Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | PIRES DA ROSA | ||
Descritores: | CRÉDITO BANCÁRIO PENHOR COMPRA E VENDA ERRO INCUMPRIMENTO DEFINITIVO INDEMNIZAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ200611300041527 | ||
Data do Acordão: | 11/30/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA | ||
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Sumário : | I - Num contrato de empréstimo com penhor, o penhor não passa disso mesmo, ou seja, de uma garantia especial da obrigação contraída que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como o dos juros, se ou houver, com preferência sobre os demais credores. II - No caso de incumprimento por parte do devedor, e apenas neste, o credor fica com o direito de proceder à venda judicial do objecto penhorado para garantir o seu crédito. III - Incumpre o contrato misto de empréstimo e penhor celebrado com a autora o réu (banco) que, por erro seu, procede à venda extrajudicial dos penhores em leilão quando aquela sempre cumpriu tempestivamente a sua obrigação de pagamento de juros. IV - Tal incumprimento é definitivo, não podendo o réu cumprir jamais as obrigações que sobre qualquer mutuante a lei faz recair, designadamente, não mais se podendo responsabilizar pela existência e conservação dos bens penhorados e pela sua restituição, uma vez extinta a obrigação a que servem de garantia, e isto independentemente de o mutuante lograr recuperar e devolver posteriormente à mutuária o bem dado de penhor. V - Neste caso, resta à mutuária, em vez dos objectos a que teria direito findo o contrato e cuja existência se perdeu por responsabilidade da mutuante, vir exigir a esta, de volta, a quantia que indemnize essa perda. VI - Esta quantia indemnizatória pode corresponder a outro valor que não aquele que foi encontrado na avaliação dos objectos dados de penhor e que, no caso concreto, teve por exclusiva referência o seu peso em ouro e prata para efeitos de garantia do crédito da mutuante. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: AA intentou, em 15 de Março de 2000, no Tribunal Judicial da comarca do Porto, onde recebeu o nº…./…. do 4º Juízo, 2ª secção, acção ordinária contra C. E. M. G. pedindo a condenação deste a pagar-lhe « a quantia de 40 000 000$00 acrescida de juros vincendos à taxa legal de 7% e na entrega de todos os bens recuperados », com fundamento em factos que invoca na sua petição, relativos à celebração de três contratos de empréstimo sobre penhores de ouro, prata e pedras preciosas. Citado o M. G., por carta registada com A/R, em 7 de Abril de 2000 ( fls.29 ), não contestou. Por despacho de fls.30, foi ordenado o cumprimento do «disposto no art.484º, nº2 do CPCivil ». Notificada, a autora veio a fls.40, apresentar as suas alegações escritas. Por sentença de fls.49 a 52, corrigida a fls.89, a acção foi julgada parcialmente procedente por provada e consequentemente foi decidido : 1) condenar a ré a pagar à autora a quantia de 25000 000$00 pelo valor de peças não recuperadas; 2 ) condenar a ré a pagar à autora a quantia de 5 000 000$00 por danos não patrimoniais; 3 ) condenar a ré a pagar à autora juros sobre as sobreditas quantias à taxa de 7% contados desde a citação e até integral liquidação; 4 ) condenar a ré a entregar à autora todos os materiais recuperados, imediatamente. A fls.59 veio a C. E. M. G. arguir a nulidade da sua citação defendendo, em síntese, que « o funcionário que subscreve o aviso de recepção não recebeu qualquer sobrescrito referente aos presentes autos » e que « a mera assinatura do aviso de recepção não consubstancia por si só a citação da ora reclamante ». E, a fls.67, dizendo fazê-lo por cautela, « só para a mera eventualidade de improcedência da arguição de nulidade de citação », interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que veio a ser admitido por despacho de fls.182. E a autora veio, a fls.188, notificada da admissão do recurso de apelação, interpor da sentença recurso subordinado, admitido por despacho de fls.189. Opôs-se a autora ( fls.77 ) ao deferimento da pretendida arguição. Por despacho de fls.93 a 96, foi julgada improcedente a arguida nulidade de falta de citação. A ré interpôs recurso de agravo do despacho de fls.93 a 96, recurso que foi admitido por despacho de fls.137. Em acórdão de fls.547 a 556, o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao agravo, confirmando a decisão de fls.93 a 96 e, na parcial procedência da apelação da ré, alter|ou| a sentença recorrida na parte em que condenou esta a pagar à autora, a título de danos morais, a quantia de cinco milhões de escudos, ficando a ré condenada a pagar à autora a quantia de quinze mil euros. No mais confirmou a sentença recorrida, e declarou prejudicado o conhecimento do recurso subordinado da autora. Não se conformou a ré e interpôs ( fls.561 ) recurso de revista, em cujas alegações começou por invocar a nulidade do acórdão recorrido. Antes da subida do recurso, que admitiu, o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de fls.623, concluiu pela inexistência da pretendida nulidade. Por acórdão de fls.632 a 638, este Supremo Tribunal de Justiça decid|iu|: não conhecer do objecto do recurso quanto à arguição da nulidade ou falta de citação do réu « por ser inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça sobre essa pretensa violação da lei processual »; no mais, e sem prejuízo da subsistência da resolução das questões que atrás ficaram decidias, julg|ou| prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, anul|ou| o acórdão recorrido por ter deixado de se pronunciar, oficiosamente, sobre questão da ineptidão da petição inicial e, ao brigo do disposto no art.731º, nº2 do CPCivil, orden|ou| a baixa do dos autos à Relação do Porto, a fim de se fazer a reforma da decisão anulada, pelos mesmos Exmos Desembargadores, quando possível. Cumprindo o ordenado, o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de fls.647 a 660 julg|ou| não verificada no caso concreto a invocada ineptidão da petição inicial, motivo por que neg|ou| provimento ao recurso e confirm|ou| a decisão recorrida. De novo inconformada, a C.E. M. G. interpõe recurso de revista para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido para subir nos autos com efeito meramente devolutivo. Alegando a fls.669, apresenta a recorrente as seguintes CONCLUSÕES: 1-Pese embora a presente acção não ter sido contestada a verdade é que a mesma não podia ter sido julgada procedente em virtude de não se encontrarem reunidos os necessários pressupostos fácticos e jurídico-processuais para alicerçar o pedido formulado pela Autora; 2 - A A. não podia formular um pedido indemnizatório contra a ora Recorrente sem que previamente (nesta acção ou numa que lhe fosse antecedente) se tivesse dirigido ao tribunal a pedir a condenação na entrega dos objectos dados em penhor. Só no caso desta o não fazer é que ficaria legitimada para intentar uma acção de natureza indemnizatória, como a presente, com fundamento na perda de tais objectos; 3 - No caso presente a causa de pedir juridicamente relevante é constituída por um conjunto de factos concretos, alguns dos quais, sendo essenciais e determinantes para a consubstanciação do direito invocado pela A., não foram alegados; 4 - A Autora não alegou que tenha pago os capitais mutuados emergentes dos três contratos de empréstimo, que diz ter celebrado com a ora Recorrente, limitando-se tão só a dizer que regularizou os juros; 5 - Enquanto não se mostrar extinta a obrigação garantida pelos objectos dados em penhor o devedor não pode exigir do credor a restituição de tais bens, nem este se encontra obrigado a proceder à sua entrega; 6 - O credor tem o direito de manter na sua posse os objectos do penhor enquanto a obrigação não se mostrar extinta na sua totalidade; 7 - Ora, se a Autora não podia exigir da ora Recorrente a restituição dos referidos objectos também não pode exigir qualquer indemnização resultante da sua não entrega; 8 - A Autora incorre em profunda contradição ao partir do princípio que os capitais mutuados se encontram pagos ( extinção da obrigação ), pelo produto obtido com a venda de tais objectos, e vem pedir que a Recorrente seja condenada no pagamento de indemnização pela sua não devolução; 9 - A causa de pedir é ininteligível, por razões de ambiguidade e obscuridade, uma vez que não se encontram devidamente identificados os objectos não recuperados nem determinado individualmente o seu valor; 10 - A Recorrente encontrava-se impossibilitada de produzir prova em contrário por não saber quais os objectos em questão e o valor a cada um atribuído, e não poder exercer o contraditório, pois que não podia aceitar ou impugnar o valor de cada um deles; 11 - A factualidade alegada era insuficiente para servir de base jurídica à procedência da presente acção; 12 - Uma vez que não se encontrava determinado nos autos o valor dos referidos objectos não podia a Autora atribuir-lhe um valor mais elevado, nem pedir tal montante indemnizatório por o mesmo mais não ser do que um verdadeiro locupletamento à custa da ora Recorrente, face ao valor da sua avaliação; 13 - Em consequência da não individualização e consequente atribuição de valores, a cada um deles, era legalmente impossível à Recorrente exercer o seu legítimo direito de defesa em completa conformidade e em perfeita plenitude com o princípio do contraditório, uma vez que se encontrava impossibilitada de produzir prova em contrário, quanto ao número, natureza e valor de cada um dos objectos; 14 - Pelo que a petição inicial está ferida do vício de ineptidão o que deveria ter levado à absolvição da instância; 15 - Para a eventualidade de assim se não entender, e que antes se está em presença duma petição inicial imperfeita ou meramente deficiente, então a omissão de alegação de factualidade necessária ao reconhecimento do direito da A., deveria ter levado à improcedência da acção; 18 - O facto da Recorrente ter feito a qualificação jurídica de ineptidão da petição inicial, face à não alegação de factualidade necessária e essencial para o bom êxito da acção, não impede este Supremo Tribunal de corrigir essa qualificação, e de julgar improcedente a pretensão da Recorrida, uma vez que tal actuação se integra na sua competência de conhecer oficiosamente de questões de direito; 19 - O pedido tal como se encontra formulado é insubsistente e ilegal; 20 - O montante fixado a título de danos morais é ilegal por inexistência de factualidade que o suporte (falta de causa de pedir); 21 - As instâncias não podiam atribuir qualquer indemnização a título de danos morais uma vez que no articulado da petição inicial não foram alegados factos que permitam saber quais os valores ou interesses da personalidade física ou moral da Autora que tenham ficado afectados; 22 - Mas, a ser devido, o que só por mera hipótese de raciocínio se admite, nunca o valor justo e correcto seria o fixado, por manifestamente exorbitante e excessivo; 23 - A ora Recorrida ao formular um pedido indemnizatório de tão elevado valor actua manifestamente em flagrante abuso de direito; 24 - Todas as questões expostas nas presentes alegações podem e devem ser apreciadas e decididas por este mais Alto Tribunal, por as mesmas constituírem matéria de direito e, como tal, serem do conhecimento oficioso dos tribunais superiores e estes não se encontrarem vinculados à qualificação jurídica dos factos feita pelas partes nos seus articulados ou peças processuais; 25 - Não foi, pois, feita a melhor interpretação da lei, nem uma justa aplicação do direito, pelo que se encontram violadas, nomeadamente, as normas contidas nos artigos 3°, 193°, n° 2, 288°, n° 1, alínea e), 495º, 510º, nº1, als.a ) e b ), 660°, nºs1 e 2, todos do CPCivil e ainda 671° n°1, al. c ) e762º, nº2 do CCivil. Não houve contra – alegações. Estão corridos os vistos. Cumpre decidir. Vejamos os FACTOS: Em 20/01/1997, a autora celebrou com a ré um contrato de empréstimo sobre penhores de ouro, prata e pedras preciosas ( doc.1). Para o efeito entregou : - dois anéis, -1 par de brincos, -1 alfinete e medalha religiosa em brilhantes, diamantes, pérolas e pedras de cor, -1 anel com monograma " As", - 2 pares de botões de punho, -1 corrente, - pulseira e 4 fios, - colar com brilhantes, - mola para gravata, - 4 medalhas, - 2 anéis com pérola e pedra de cor, - ouro c/contraste e s/contraste, tudo com 297 gramas, - relógio para pulso de senhora, Omega, em ouro de 18 K, com brilhantes e pedras de cor, com 35.7 gramas. Os bens foram avaliados em 590 000$00 tendo a ré emprestado a quantia de 400 000$00 e sido atribuído o termo 174764.3 Na data de 27-01-97, a A. celebrou com a Ré outro contrato de empréstimo sobre penhores, de ouro e prata (doc. 2), Tendo entregue os seguintes bens: - uma cruz, - uma medalha, - 4 anéis com brilhantes e pedras de cor, - um par de brincos, - 5 anéis com pedras sem valor , - 7 fios, - 9 pulseiras diversas, - 5 crucifixos, - 12 berloques, - 2 pares de argolas ( com nossas ), -10 pulseiras com pérolas e pedras de cor (1 partida), - objectos de ouro com e sem contraste. Os bens foram avaliados em 590 000$00 tendo a ré emprestado a quantia de 400.000$00, tendo sido atribuído o termo 174727-4. Em 29-08-95, a A celebrou outro contrato de empréstimo sobre penhor de ouro e prata, tendo a Autora entregue os seguintes bens (doc. 3): - cigarreira, - bolsa, - cofre, - par de castiçais, - jarra, - 3 argolas, - Etiqueta para garrafas, - cinzeiro, - 15 salvas diversas em prata, -12 facas, 19 garfos, pá, 21 colheres em prata. Os bens foram avaliados em 200 000$00, tendo a Ré emprestado a quantia de 135 000$00, tendo sido atribuído o termo 171270-4 - doc. 3. A Autora foi avisada pela ré para proceder ao pagamento dos juros em 15-07-97. O que fez, por depósito bancário, na agência da Ré em Vila do ……e em 9-10-97 - conhecimento de depósito n°. ……. A Autora dirigiu-se ao balcão da Ré, na rua do…… nº…, Porto, em 10 de Abril de 1998, para proceder aos pagamentos dos contratos de penhor e resgatar os bens dados em penhor, Quando é surpreendida com a informação de que os bens haviam sido vendidos em Fevereiro de 1998. Não obstante, os juros encontrarem-se pagos, àquela data, e sem qualquer comunicação posterior, todos os bens dados em penhor, foram vendidos em Leilão, por iniciativa e vontade da Ré. Um funcionário da Ré disse, mais tarde, que a venda foi ordenada, por não terem conhecimento do depósito efectuado pela A. em 09-10-1997 no valor de 63 836$00. Depósito esse efectuado nos termos e conforme as instruções da Ré. Procederam à venda dos bens dados em penhor, porque internamente julgaram que os juros não estavam pagos e o contrato não cumprido. As peças de joalharia dadas em penhor encontravam-se na família do marido da autora há mais de 50 anos. São peças de um enorme valor afectivo, que a autora nunca deixaria sair da família, nunca as venderia. São antigas, com enorme trabalho artesanal. Nos contratos de penhor, o valor atribuído às peças teve por exclusiva referência o seu peso em ouro ou prata. A avaliação feita pela ré, não teve em consideração o facto de serem peças antigas, com mais de 50 anos, nem serem jóias de família. Não foi tido em consideração todo o trabalho, arte de joalharia e qualidade das peças e as pedras preciosas incorporadas. O valor das pedras preciosas e semi-preciosas não foi, igualmente, considerado. São peças antigas não encontradas no mercado à venda, o que as torna de certo modo, únicas, ou raras e impossíveis de serem substituídas. A autora, com uma credencial passada pela ré, e a própria ré, procederam a diligências diversas, tendo conseguido recuperar alguns dos bens vendidos. O Valor das peças que não foram recuperadas era superior a 25 000 000$00. A perda de bens que não são substituíveis, por não se encontrarem à venda no mercado, causou à autora grave dano moral. ~~ Recolheram-se os factos tais como vêm tidos por assentes pelas instâncias, designadamente no acórdão recorrido. E os factos, esses factos, são aqueles que foram alegados pela autora na petição inicial. É assim porque estão resolvidas, com trânsito, as questões levantadas pela ré M. e que têm a ver com a pretendida falta ou nulidade da citação e com a aplicação ao caso do disposto no nº1 do art.484º do CPCivil. E com a alegada ineptidão da petição inicial, por falta ou inintelegibilidade da causa de pedir ou por contradição entre esta e o pedido. De acordo com o acórdão deste Supremo Tribunal de fls.632 a 638, ficaram decididas em definitivo as duas primeiras questões: não se verifica a pretendida nulidade ou falta de citação e, válida esta e atenta a ausência de contestação, funciona no caso o princípio cominatório do nº1 do art.484º do CPCivil havendo-se por confessados os factos articulados pela autora. Por sua vez, o acórdão impôs à Relação que conhecesse do invocado vício da ineptidão da petição inicial e o acórdão recorrido ( fls.647 a 660 ) conclui pela inexistência do vício – não se verifica o vício processual da ineptidão da petição inicial. Sendo certo que desta decisão, concretamente da decisão que conclui pela inexistência de um vício de natureza processual como o da ineptidão, não cabe recurso para o STJ, tanto quanto resulta do disposto no nº1 do art.722º do CPCivil, e do art.754º, nº2 do mesmo código. ~~ O que resta, como objecto do recurso, é o fundo, a procedência ou improcedência do pedido. E é dele que vamos conhecer, correndo as conclusões da alegação do recorrente. Temos perante nós três contratos de empréstimo sobre penhores de ouro, prata e pedras preciosas, pelo prazo de um ano, celebrados entre a C. E. M. G. mutuante, e a autora, como mutuária. Mas, num contrato de empréstimo com penhor, o penhor é apenas isso, um penhor, uma garantia especial da obrigação contraída que – na definição do art.666º do CCivil – confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores. O credor fica com o direito de proceder à venda judicial do(s) objecto(s) penhorado(s) para garantir o seu crédito. Obviamente, no caso de incumprimento do contrato por parte do seu devedor, mas apenas nessa situação. Como escreve Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, pág.780, « o objecto empenhado está sujeito a execução, na hipótese de inadimplemento da dívida garantida ». Ora bem: sem que tal situação se verificasse, como se provou – a autora foi avisada pela ré para proceder ao pagamento de juros em 15-07-97 o que fez, por depósito bancário, em 9-10-97 – sem qualquer comunicação posterior, não obstante os juros se encontrarem pagos, todos os bens dados em penhor, foram vendidos em leilão, por iniciativa e vontade da ré. Ou seja, a ré, por erro seu - sendo certo que convencionara com a autora a venda extrajudicial dos penhores, em leilão, apenas quando o mutuário dever mais de três meses de juros e taxa de leilão - procedeu à venda dos objectos penhorados em Fevereiro de 1998. Incumpriu, em definitivo, o contrato misto de empréstimo e penhor que celebrara com a autora uma vez que ( tendo esta cumprido por sua parte a obrigação de pagamento dos juros ) se colocou na situação de não mais poder cumprir as obrigações que sobre qualquer mutuante a lei, o art.671º do CCivil, faz recair, designadamente não mais se podendo responsabilizar pela existência e conservação dos bens penhorados e pela sua restituição, extinta as obrigações a que servem de garantia. Neste momento, independentemente de uma ou outra peça que posteriormente venha a recuperar e a devolver, a mutuante incumpriu em definitivo o contrato celebrado. Resta à mutuária, em vez dos objectos a que teria direito findo o contrato, e cuja existência se perdeu por responsabilidade da mutuante, vir exigir a esta, de volta, a quantia que a indemnize dessa perda. A mutuante optou – em violação do contrato, já se viu – por reaver o seu crédito, através da venda dos bens dados em penhor, e por essa venda se pagou dessa quantia – « do produto da venda será deduzida a dívida, isto é, capital e juros contados dia a dia e a percentagem das despesas para leilão. O saldo será entregue ao mutuário quando apareça a reclamá-lo no prazo de seis meses », reza o art.27º do Dec.lei nº17 766, de 17-12-29, que regula os empréstimos nas casas de penhores – e assim fez ela própria, mutuante, extinguir a obrigação da devedora AA; a esta, mutuária, resta procurar os bens, que deu apenas como penhor, na indemnização e respectivo quantitativo ou valor. Que valor? Não o valor da avaliação efectuada na ( e para a ) celebração do contrato, que esse não é o valor do prejuízo da autora com a perda dos objectos que entregou à ré apenas em penhor e não para venda. Esse, o da avaliação, é seguramente apenas um valor por baixo, um valor que – conforme se provou – teve por exclusiva referência o seu peso em ouro ou prata, e que assim garantiu garantidamente, passe o pleonasmo aparente, o crédito da mutuante. O prejuízo ou dano da autora - e é esse que tem que ser indemnizado – é muito mais do que isso. E tem que ter em conta que as peças de joalharia dadas em penhor encontravam-se na família do marido da autora há mais de 50 anos; são peças de um enorme valor afectivo, que a autora nunca deixaria sair da família, nunca as venderia; são antigas, com enorme trabalho artesanal, com todo o trabalho, arte de joalharia e qualidade das peças e as pedras preciosas incorporadas e semi-preciosas incorporadas; são peças antigas não encontradas no mercado à venda, o que as torna de certo modo, únicas, ou raras e impossíveis de serem substituídas. São factos alegados pela autora na sua petição inicial ( arts. 30º, 31º, 32º, 35º, 36º, 38º, 39º e 40º ) e que, por virtude da confissão imposta pelo cumprimento do art.484º, nº1 do CPCivil, se tiveram por assentes. Factos esses que sustentam o facto valorativo sequente, inscrito no art.62º da petição inicial, igualmente também a ter-se por assente, por virtude do funcionamento da mesma disposição legal - o valor das peças que não foram recuperadas era superior a 25 000 000$00. Pouco importa, aliás, quais em concreto as peças que foram recuperadas, ou mesmo saber qual o valor concreto de cada uma das peças em falta. Isso mesmo é insignificante quando a ré aceita, por confissão, que o valor global das peças em falta é superior a 25 000 000$00. Conhecendo, como conhecia, os bens que lhe haviam sido entregues em penhor, sempre a ré estaria em condições de demonstrar qual ou quais ( e qual o respectivo valor ) estavam ainda em seu poder para poder restituir à autora. E não o fez, como se viu. Se pelo menos as peças em falta valem 25 000 000$00, o certo é que a autora há-de poder pedir, e ser indemnizada, por esse montante, ainda que o seu prejuízo fosse eventualmente superior. A indefinição daquilo que eventualmente ultrapassasse os 25 000 000$00 só conduziria à improcedência do pedido na medida dessa indefinição. Se dentro dela houvesse pedido. E não há. ~~ Resta apreciar a questão atinente à condenação da ré a pagar à autora a quantia de 15 000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais. E aí é a ré que está com a razão. Não tanto porque ao pedido formulado nesse sentido pela autora falte causa de pedir, mas porque os factos com os quais a autora pretende construir essa causa de pedir são, na economia da petição inicial, exactamente os mesmos com os quais a autora sustenta o seu dano patrimonial. Para bens que, apenas a peso, foram avaliados em 1 380 000$00 ( 590 000$00 + 590 000$00 + 200 000$00 ), a autora ofereceu ( e a ré confessou ) um valor superior a 25 000 000$00 porque, além do mais, são peças de enorme valor afectivo, antigas, com enorme trabalho artesanal, com mais de 50 anos, jóias de família, que se não encontram à venda no mercado, o que as torna de certo modo únicas, raras e impossíveis de serem substituídas. Se estes são, na estrita economia da alegação da ré, factores que determinam o valor patrimonial ( superior a 25 000 000$00 ), esses mesmos factores, sob pena de uma duplicação indemnizatória, não podem ser autonomizados para sustentar um pedido de outra natureza, de natureza não patrimonial. E, como se vê, do art.64º da petição, é aí que a ré pretende ancorar esta segunda parte do seu pedido – a perda de bens que não são substituíveis, por se não encontrarem à venda no mercado, causou à A. grave dano moral. O recurso procede, pois, na parte respeitante aos danos não patrimoniais, devendo a ré ser absolvida do pedido formulado a esse título. Confirmando-se naturalmente a condenação da ré a pagar à autora, a título de indemnização por danos patrimoniais, o montante pedido de 25 000 000$00. Que não comporta, em si mesmo, qualquer ideia de abuso de direito pela razão simples e linear que a ré confessa o valor dos bens que não pôde restituir à autora. E sendo certo que está perfeitamente dentro dos limites da boa fé, dos bons costumes e do fim social ou económico do direito da autora pedir o valor que as coisas valeriam se acaso as tivesse que adquirir de novo e não aquilo que elas, a peso, valeram como garantia, nos termos fixados no contrato firmado com a ré. ~~ DECISÃO Na parcial procedência do recurso, revoga-se a decisão recorrida na parte em que condena a ré a pagar à autora uma indemnização a título de danos não patrimoniais, confirmando-se essa mesma decisão na parte em que condena a ré C. E. M. G. a pagar à autora AA a quantia de 25 000 000$00 ( 124 699,47 euros, na moeda legal em curso ), com juros à taxa legal desde a citação, em7 de Abril de 2000, até integral pagamento. Custas, em todas as instâncias, por autora e ré na proporção de 62,5% para a ré e 37,5% para a autora. LISBOA, 30 de Novembro de 2006 Pires da Rosa Custódio Montes Mota Miranda |