Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SILVA SALAZAR | ||
Descritores: | GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS CRÉDITO LABORAL HIPOTECA VOLUNTÁRIA SALÁRIOS EM ATRASO PRIVILÉGIO CREDITÓRIO | ||
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Nº do Documento: | SJ200304030004666 | ||
Data do Acordão: | 04/03/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL GUIMARÃES | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 113/02 | ||
Data: | 09/26/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
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Sumário : | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Por sentença proferida em 2/2/01, transitada em julgado, foi declarada a falência de A, tendo depois sido aberto concurso de credores, em que foram reclamados numerosos créditos, nenhum deles tendo sido objecto de impugnação. No respectivo saneador sentença, proferido em 10/10/01 e rectificado por despacho de fls. 1045, nos termos do art.º 196º, n.º 2, do C.P.E.R.E.F., foram reconhecidos os aludidos créditos, que foram graduados pela seguinte forma: I - Quanto a um bem imóvel: Em primeiro lugar, o crédito, reclamado pela B, sob n.º 6, garantido por hipoteca, até ao montante de 395.450.000$00; Em segundo lugar, todos os demais créditos reclamados, rateadamente, por serem comuns; II - Quanto aos móveis sobre que incide um contrato de penhor celebrado entre a falida e o C: Em primeiro lugar, o crédito, reclamado pelo C, sob n.º 1; Em segundo lugar, os créditos, reclamados por trabalhadores, sob os n.ºs 10, 11, 13 a 15, 21 a 63, 107 e 110; Em terceiro lugar, os demais créditos reclamados, rateadamente, por serem comuns; III - Quanto aos móveis sobre que incide um contrato de penhor celebrado entre a falida e a B: Em primeiro lugar, o crédito, reclamado pela B, sob n.º 6; Em segundo lugar, os ditos créditos reclamados pelos trabalhadores; Em terceiro lugar, os demais créditos reclamados, rateadamente, por serem comuns; IV - Quanto aos demais bens móveis: Em primeiro lugar, os ditos créditos reclamados pelos trabalhadores; Em segundo lugar, os demais créditos reclamados, rateadamente, por serem comuns. Quase na sua totalidade, os trabalhadores interpuseram recurso da sentença de graduação de créditos, na parte em que graduara os seus créditos em segundo lugar. A Relação proferiu acórdão que julgou improcedentes as apelações na parte em que os apelantes pretendiam que os seus créditos fossem graduados em primeiro lugar relativamente aos bens móveis sobre que incidiam penhores, nessa medida confirmando a sentença ali recorrida, mas alterou a mesma sentença na graduação relativa ao imóvel, colocando: Em primeiro lugar, os créditos dos recorrentes trabalhadores, com excepção da parte relativa à indemnização; Em segundo lugar, o crédito reclamado pela B, sob n.º 6; Em terceiro lugar, o remanescente dos créditos daqueles recorrentes trabalhadores; Em quarto lugar, os demais créditos reconhecidos. É desse acórdão que vem interposta a presente revista, por um lado pela B, restrita à parte da graduação respeitante ao imóvel, e por outro lado pelos trabalhadores apelantes, com excepção de D, E, F, G, H, I, J, L e M. Foram apresentadas alegações, que terminaram pelas seguintes conclusões: I - Da B: 1ª - O Código Civil que entrou em vigor em 1 de Junho de 1967 apenas prevê a constituição de privilégios imobiliários especiais (n.º 3 do art.º 735º); 2ª - Assim, o privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos laborais dos trabalhadores, previsto na al. b) do n.º 1 do art.º 12º da Lei n.º 17/86, de 14/6, e no art.º 4º da Lei n.º 96/2001, de 20/8, constitui uma derrogação ao princípio geral consagrado no n.º 3 do art.º 735º do Cód. Civil de que os privilégios imobiliários são sempre especiais; 3ª - A Lei n.º 17/86 não estabelece expressamente que os privilégios imobiliários gerais que instituiu abarcam todos os bens existentes no património da devedora, concretamente, a entidade patronal, nem sequer regula o concurso de tal privilégio com outras garantias reais, in casu, a hipoteca, nem esclarece a sua relação com os direitos de terceiros; 4ª - Assim, aos privilégios imobiliários gerais de que beneficiam os créditos laborais, - por serem de natureza absolutamente excepcional, por não incidirem sobre bens certos e determinados, por derrogarem o princípio geral estabelecido no n.º 3 do art.º 735º do Cód. Civil, por nem sequer existirem na realidade jurídica à data da entrada em vigor daquele diploma legal, por afectarem gravemente os legítimos direitos de terceiros, designadamente os do credor cuja hipoteca se encontra devidamente registada, em virtude de não estarem sujeitos a registo -, é-lhes inaplicável o princípio previsto no art.º 751º do Cód. Civil; 5ª - Donde, a tais privilégios, pelo facto de serem gerais, deve ser aplicado o regime previsto nos art.ºs 749º e 686º do Cód. Civil, constituindo pois meras preferências de pagamento, só prevalecendo em relação aos créditos comuns; 6ª - Consequentemente, face à lei ordinária, os direitos de crédito garantidos por privilégios imobiliários gerais - in casu os créditos laborais dos apelantes - cedem, na ordem da graduação, perante os créditos garantidos por hipoteca (art.º 686º do Cód. Civil); 7ª - Através do Acórdão n.º 160/00, publicado no DR, II Série, de 10/10/2000, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade das normas do art.º 2º do Dec. - Lei n.º 512/76 e do art.º 11º do Dec. - Lei n.º 103/80 - créditos pelas contribuições para a Segurança Social e respectivos juros -, o que foi aplicado pelo S.T.J. no Acórdão proferido em 14/3/02 no processo n.º 10873/01 -, e por Acórdão proferido pela 2ª Secção nos autos de recurso n.º 753/00 o Tribunal Constitucional declarou também a inconstitucionalidade da norma do art.º 104º do Cód. do I.R.S. -, todas interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas contido prefere à hipoteca nos termos do art.º 751º do Cód. Civil; 8ª - Tais declarações de inconstitucionalidade fundamentam-se no facto de tais normas violarem o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito Democrático, consagrado no art.º 2º da Constituição da República, bem ainda do princípio da proporcionalidade previsto no n.º 1 do art.º 18º do diploma constitucional; 9ª - Os mesmos princípios e fundamentos aplicam-se, mutatis mutandis, aos privilégios imobiliários gerais instituídos pela al. b) do n.º 1 do art.º 12º da Lei n.º 17/86, de 14/6, e pelo art.º 4º da Lei n.º 96/2001, de 20/8, quanto aos créditos laborais; 10ª - Não obstante, a decisão recorrida interpretou os citados normativos (art.ºs 12º e 4º) no sentido de que o privilégio imobiliário geral aí instituído prefere às hipotecas anteriormente registadas, graduando consequentemente os créditos dos trabalhadores (com excepção das indemnizações) com preferência aos créditos garantidos por hipoteca; 11ª - Ora, tal interpretação viola também os mencionados princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica; 12ª - Com efeito, tal privilégio é de índole geral, sem qualquer conexão com o prédio sobre que incide, e constitui um ónus oculto porquanto não é possível aos particulares indagar sobre a existência desses créditos privilegiados e apurar o seu montante; 13ª - Em consequência, os credores hipotecários são, no momento da graduação de créditos, confrontados e surpreendidos com uma realidade que não conheciam, nem podiam conhecer, podendo ver completamente prejudicado o pagamento dos seus créditos, apesar de tudo terem acautelado tendo em vista a certeza e segurança jurídicas; 14ª - A consagração constitucional dos direitos dos trabalhadores em nada favorece a conformidade da interpretação feita pela decisão recorrida com a Constituição, na medida em que esses direitos não podem anular ou sacrificar, pura e simplesmente, outros valores, em atenção aos princípios da unidade da Constituição e da concordância prática; 15ª - Tais princípios representam uma ideia de harmonização, de proporcionalidade e de igualdade; 16ª - Essa ideia não é seguida na decisão recorrida, não só porque não houve, em concreto, a devida harmonização de valores, mas também porque a restrição do valor da segurança jurídica não era sequer necessária: está legalmente instituído um Fundo de Garantia Salarial que assegura aos trabalhadores o pagamento dos seus créditos, nas circunstâncias dos autos; 17ª - Esta solução legal evita a lesão de quaisquer valores, mormente dos particulares, ficando, na pior das hipóteses, apenas lesado o Fundo, ou seja, o Estado, a quem incumbe prioritariamente a protecção dos direitos dos trabalhadores; 18ª - Como tal, essa solução é a única que respeita a ideia da igualdade constitucional, dado que seriam todos os contribuintes a suportar um determinado encargo social e não apenas determinados particulares, pelo que também foi violado pela decisão recorrida o princípio da igualdade previsto no art.º 13º da Constituição; 19ª - Em face do exposto, e especialmente atentos os fundamentos ínsitos nos mencionados Acórdãos do Tribunal Constitucional e do S.T.J., as normas contidas na al. b) do n.º 1 do art.º 12º da Lei n.º 17/ 86 e no art.º 4º da Lei n.º 96/2001, interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido aos créditos dos trabalhadores prefere à hipoteca, é inconstitucional, por violação dos princípios da confiança e segurança, proporcionalidade e igualdade, previstos, respectivamente, nos art.ºs 2º, 18º, n.º 1, e 13º, da Constituição da República. Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido por forma a que o crédito hipotecário dela recorrente seja graduado preferencialmente aos créditos dos trabalhadores, garantidos por privilégios imobiliários gerais. II - Dos trabalhadores: 1ª - A protecção legal das situações de salários em atraso, prevista na Lei 17/86, não está dependente da rescisão ou suspensão do contrato de trabalho por esse motivo; 2ª - Assim, devem ser incluídas naquele normativo as indemnizações de antiguidade decorrentes do encerramento do estabelecimento da falida, pois se verificavam salários em atraso; 3ª - Com a entrada em vigor da Lei 96/2001, todos os créditos laborais dos recorrentes passaram a beneficiar da protecção da Lei 17/86, devendo ser graduados em primeiro lugar, quer quanto ao imóvel, quer quanto aos móveis; 4ª - De facto, a nova lei apenas fez respeitar os direitos decorrentes dos privilégios anteriormente constituídos com direito a ser graduados antes da entrada em vigor dessa lei; 5ª - Quer a hipoteca, quer o penhor, não são privilégios, pelo que os direitos que conferem cedem perante todos os créditos laborais dos recorrentes; 6ª - O douto acórdão recorrido fez incorrecta aplicação do disposto no art.º 12º da Lei 17/86 e no art.º 4º da Lei 96/2001, pelo que deve ser revogado graduando-se em primeiro lugar todos os créditos dos recorrentes, quer quanto aos móveis, quer quanto ao imóvel. Não houve contra alegações. Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que os factos assentes são os como tais declarados no acórdão recorrido, para o qual nessa parte se remete ao abrigo do disposto nos art.ºs 726º e 713º, n.º 6, do Cód. Proc. Civil, uma vez que não houve impugnação da matéria de facto nem há fundamento para a sua alteração. I - Quanto à revista da B: A questão suscitada nas conclusões das alegações da revista interposta pela B consiste em determinar se o crédito desta, garantido por hipoteca constituída sobre um imóvel da falida, prefere ou não aos créditos laborais reclamados pelos trabalhadores, garantidos por privilégio imobiliário geral. Isto porque o acórdão recorrido entendeu reconhecer preferência aos créditos laborais (excluída a indemnização), enquanto a recorrente B sustenta a preferência do crédito hipotecário. Importa, pois, saber se os créditos dos trabalhadores recorrentes devem ser graduados, na parte respeitante ao imóvel, com prioridade sobre o crédito da B, garantido por hipoteca anteriormente registada. Encontra-se reconhecido que os aludidos créditos dos trabalhadores gozam de privilégio imobiliário geral, ao abrigo do disposto no art.º 12º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 17/86, de 14/6, ao passo que o crédito da B está garantido por hipoteca registada anteriormente à declaração de falência. Nos termos do art.º 686º, n.º 1, do Cód. Civil, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo. Por sua vez, o privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (art.º 733º do mesmo Código). Trata-se de uma garantia que visa assegurar dívidas que, pela sua natureza, se encontram especialmente relacionadas com determinados bens do devedor, justificando-se por isso que sejam pagas de preferência a quaisquer outras, até ao valor dos mesmos bens. Os privilégios creditórios podem ser, como se vê do disposto no art.º 735º, n.º 1, do Cód. Civil, de duas espécies: mobiliários ou imobiliários. Os mobiliários são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente, ou especiais, quando compreendem só o valor de determinados bens móveis (n.º 2 do mesmo art.º 735º). Já os privilégios imobiliários, segundo o n.º 3 do mesmo artigo, eram sempre especiais. Apesar do disposto neste n.º 3, alguns diplomas avulsos posteriores à publicação do Código Civil vieram criar privilégios imobiliários gerais. É precisamente o caso da Lei n.º 17/86, de 14/6, que no seu art.º 12º dispõe que os créditos emergentes de contrato individual de trabalho, regulados pela presente lei, gozam de privilégio imobiliário geral (n.º 1, al. b), graduando-se antes dos créditos referidos no art.º 748º do Cód. Civil e ainda antes dos créditos por contribuições devidas à Segurança Social (n.º 3, al. b). Mais recentemente, também a Lei n.º 96/2001, de 20/8, estabeleceu no seu art.º 4º que os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei n.º 17/86 gozam de privilégio imobiliário geral (n.º 1, al. b), graduando-se antes dos créditos referidos naquele art.º 748º e ainda dos créditos devidos à Segurança Social (n.º 4, al. b). Ora, quanto à eficácia dos privilégios creditórios em relação a terceiros, ou seja, ao conflito entre direitos dos credores e direitos de terceiro estabelecidos sobre os bens que constituem objecto do privilégio, há que distinguir entre privilégios mobiliários e imobiliários. Sobre tal questão, ensina o Prof. Almeida Costa, in "Direito das Obrigações", 8ª ed., pág. 897, que, quanto aos privilégios mobiliários gerais, os art.ºs 749º e 750º do Cód. Civil fixam as seguintes soluções: "Tratando-se de privilégio geral, este não vale contra terceiros que sejam titulares de direitos oponíveis ao credor exequente, quer dizer, que não possam abranger-se na penhora; mas, tratando-se de privilégio especial, como a garantia incide sobre determinados bens, o legislador adoptou o critério da prioridade da constituição" . Apura-se, deste modo, que os privilégios mobiliários gerais não conferem ao respectivo titular o direito de sequela sobre os bens em que recaiam (art"º 749º). Daí que se devam excluir da categoria das verdadeiras garantias reais das obrigações" Apenas existe algo de parecido com a eficácia própria dos direitos reais, enquanto o titular do privilégio goza de preferência, na execução, relativamente aos credores comuns do devedor" Pelo que toca aos privilégios imobiliários, determina o art.º 751º que são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele; e, em confronto com as outras garantias reais (consignação de rendimentos, hipoteca ou direito de retenção), o privilégio prevalece, ainda mesmo que estas, sendo caso disso, se encontrem registadas e tenham data anterior". Acrescenta, porém, logo de seguida, na pág. 898, o mesmo ilustre Professor: "Claro que a referida disciplina só abrange os privilégios imobiliários especiais" Foram estes que o legislador do Código Civil teve em conta. Às hipóteses que possam verificar-se de privilégios imobiliários gerais, criadas posteriormente, aplica-se o regime, há pouco indicado, dos correspondentes privilégios mobiliários (art.º 749º). Também não se qualificam, pois, como garantias reais das obrigações. Constituem meros direitos de prioridade que prevalecem, contra os credores comuns, na execução do património debitório". No mesmo sentido se pronuncia o Prof. Menezes Cordeiro ("Direito das Obrigações", 2º Vol., págs. 500/501), quando escreve: "A figura do privilégio imobiliário geral foi introduzida na nossa ordem jurídica pelo Dec. - Lei n.º 512/76, de 16 de Junho, em favor de instituições de previdência. Este diploma não indica o regime concreto dos privilégios imobiliários gerais que veio criar. Pensamos, no entanto, que o seu regime se deve aproximar dos privilégios gerais (mobiliários) que consta do Código Civil. Isto porque, dada a sua generalidade, não são direitos reais de garantia - não incidem sobre coisas corpóreas, certas e determinadas - nem, sequer, verdadeiros direitos subjectivos, mas tão só preferências gerais anómalas. Assim sendo, deve ser-lhes aplicado o regime constante do art.º 749º do Cód. Civil: nomeadamente, eles não são oponíveis a quaisquer direitos reais anteriores ou posteriores aos débitos garantidos". Ainda no mesmo sentido se pronuncia A. Luís Gonçalves ("Privilégios Creditórios, Evolução Histórica, Regime e sua Inserção no Tráfico Creditício", in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXVII, pág. 7). Damos a nossa concordância a este entendimento de que o referido art.º 751º do Cód. Civil contém um princípio geral insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral, por este não incidir sobre bens determinados e pelo facto de os privilégios imobiliários gerais não serem conhecidos aquando do início da vigência do actual Código Civil, o que implicava que, dizendo o n.º 3 do art.º 735º que os privilégios imobiliários eram sempre especiais, só a privilégios imobiliários especiais o art.º 751º se podia referir, só estes, portanto, preferindo à hipoteca, aliás de harmonia com a referência aos privilégios especiais feita no dito art.º 686º, n.º 1. Não se compreenderia sequer que o legislador, perante a delicadeza da questão, se pretendesse integrar os privilégios imobiliários gerais no regime do art.º 751º, não procedesse à alteração radical de regime que tal determinaria no que respeita ao n.º 3 do art.º 735º e ao art.º 686º, n.º 1, deixando subsistir enormes dúvidas susceptíveis de provocar grave insegurança no comércio jurídico. Logo, se não produziu tal alteração só pode ser porque não quis integrar os privilégios imobiliários gerais no regime daquele art.º 751º. Para além disso, não pode deixar de se ter em conta que, não estando os privilégios imobiliários gerais sujeitos a registo, se prevalecessem sobre hipotecas iriam afectar gravemente os direitos de terceiros, credores hipotecários, - que só se tornaram credores da empresa por estarem convictos da inexistência de perigo de uma tal prevalência a acrescer às demais garantias já existentes, com a existência da qual não tinham que contar -, e, pelo risco que estes teriam acrescidamente de suportar, dificultariam enormemente o recurso ao crédito pelas empresas, acabando, de forma contraditória com os objectivos de desenvolvimento perseguidos pelo Estado, por precipitar muitas destas em situação de grave dificuldade económica, consequência esta que por certo o legislador há-de ter ponderado. É improvável que uma entidade bancária, por exemplo, se dispusesse de bom grado a financiar uma empresa em perigo e a possibilitar a sua recuperação, colaborando inclusive na tentativa de salvaguarda dos postos de trabalho respectivos, se soubesse que no caso de insucesso teria de enfrentar o risco da prevalência, sobre a hipoteca com que se protegesse, de privilégios imobiliários gerais que a pudessem impedir de se fazer pagar do seu crédito. Este entendimento é reforçado pela orientação que vem sendo seguida por recente jurisprudência do Tribunal Constitucional, que já julgou inconstitucionais, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, consignado no art.º 2º da Constituição, as normas constantes do art.º 2º do Dec. - Lei n.º 512/76, de 3/7, do art.º 11º do Dec. - Lei n.º 103/80, de 9/5, e do art.º 104º do Cód. do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, quando interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido prefere à hipoteca, nos termos do art.º 751º do Cód. Civil (Acórdãos n.º 160/2000, de 22/3/2000, n.º 354/2000, de 5/7/2000, e n.º 109/2001, de 5/3/2001, publicados, respectivamente, no DR de 10/10/2000, de 7/11/2000, e de 24/4/2002, II Série). Com efeito, o privilégio imobiliário geral funciona à margem do registo (por a ele não estar sujeito), e sacrifica os demais direitos de garantia consignados no dito art.º 751º, designadamente a hipoteca. Como se lê no referido Ac. do Tribunal Constitucional de 22/3/2000, o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar. Interrogando-se sobre que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, terá o cidadão perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, pondera-se no mesmo acórdão de 22/3/00 que "o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e a circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas - que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário". Em tais condições, entende-se que os privilégios imobiliários gerais se traduzem em meras preferências de pagamento, só sendo susceptíveis de prevalecer em relação a titulares de créditos comuns, pois, não incidindo eles sobre bens determinados, - pelo que não estão envolvidos de sequela -, o regime aplicável tem de ser o dos privilégios mobiliários gerais a que se reporta o art.º 749º do Cód. Civil, cedendo os direitos de crédito por eles garantidos perante os direitos de crédito garantidos por hipoteca. Assim, constata-se na hipótese dos autos que os créditos e privilégios dos trabalhadores não estão sujeitos a registo e que, embora a recorrente tenha registado previamente a sua hipoteca, ela é agora confrontada com uma realidade (privilégio imobiliário geral dos trabalhadores) que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente lhe merecia, e que também por isso não lhe pode ser oposta. Acresce que, sendo este privilégio imobiliário de carácter geral e não estando sujeito a limite temporal, nem existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado com a hipoteca e o facto que motivou os créditos dos trabalhadores (ao contrário do que sucede com os privilégios especiais dos art.ºs 743º e 744º do Cód. Civil), a sua subsistência, com a amplitude referida no acórdão recorrido, implica uma lesão desproporcionada do comércio jurídico. Daí que o crédito da B, estando garantido por hipoteca, anteriormente registada, há-de gozar de prioridade, na sua graduação, sobre os créditos dos trabalhadores que beneficiam de privilégio imobiliário apenas geral conferido pelo art.º 12º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 17/86, de 14/6, ao contrário do que foi decidido no acórdão recorrido, por não ser aplicável à situação o regime do art.º 751º, mas antes o do art.º 749º, ambos do Cód. Civil (neste sentido já se decidiu, entre outros, nos Acórdãos deste Supremo Tribunal de 3/4/2001 e de 25/6/02, proferidos respectivamente nas revistas n.º 652/01 e n.º 1928/02, ambas da 6ª Secção, e de 19/3/02, proferido na revista n.º 522/02 da 2ª Secção e com sumário in "Sumários de Acórdãos do S.T.J.", n.º 59, Março /2002, pg. 37). Conclui-se, assim, assistir razão à recorrente B, pelo que lhe será concedida a revista. II - Quanto à revista dos trabalhadores: A questão suscitada nas conclusões das alegações da revista interposta pelos trabalhadores consiste em determinar se os créditos destes, com inclusão dos créditos por indemnização, devem ser graduados na totalidade em primeiro lugar, quer quanto aos móveis, quer quanto ao imóvel. No respeitante ao imóvel, do que se expôs e concluiu na apreciação da revista interposta pela B já resulta ter de se concluir que não assiste razão aos trabalhadores recorrentes: os seus créditos pelos salários em atraso têm de ser graduados depois do da B, pelo que os créditos dos trabalhadores pela indemnização por cessação do contrato de trabalho decorrente do encerramento do estabelecimento, mesmo que fiquem por hipótese a par dos créditos por salários em atraso, também têm de ser graduados só após o da B, e isto mesmo se se considerar aplicável ao caso o disposto na Lei n.º 96/2001, de 20/8, uma vez que esta apenas estende aos créditos dos trabalhadores não abrangidos pela Lei n.º 17/86 a protecção por esta concedida, que como se disse não inclui a prevalência por eles pretendida sobre a hipoteca. No respeitante aos móveis, o que os recorrentes trabalhadores pretendem é que os seus créditos, face ao privilégio mobiliário geral concedido pelo art.º 12º, n.º 1, al. a), da dita Lei n.º 17/86, sejam graduados em primeiro lugar ficando à frente dos créditos protegidos por contrato de penhor, com base na entrada em vigor daquela lei n.º 96/2001, que apenas ressalva os privilégios anteriormente constituídos. Nesta parte, a sentença da 1ª instância graduara em primeiro lugar os créditos protegidos por tais contratos, relativamente aos móveis sobre que os mesmos contratos incidem. E foi, nessa parte, confirmada pelo acórdão recorrido. Com razão. Na verdade, como nele se nota, o art.º 749º do Cód. Civil estipula que o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente. Como ensinam, por outro lado, Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", Vol. I, 4ª ed., págs. 769/770, "os direitos oponíveis ao credor exequente são aqueles que não podem ser atingidos pela penhora. Neles estão compreendidos não só os direitos reais de gozo que terceiros tenham adquirido, como os próprios direitos reais de garantia que o devedor haja entretanto constituído." Ora, o penhor, como resulta do disposto no art.º 666º do Cód. Civil, é uma garantia real completa, que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito com preferência sobre os demais credores, sem excepção, pelo valor da coisa ou do direito empenhado, originando em consequência um autêntico direito de preferência sobre o produto da alienação dessa coisa ou direito, oponível erga omnes e determinante de que o credor pignoratício, à partida, não sofra a concorrência de qualquer outro credor. Acrescendo mesmo que, face ao disposto no art.º 669º, n.º 1, do Cód. Civil, o penhor de coisas só produz efeitos mediante a entrega da coisa empenhada, ou de documento que confira a exclusiva disponibilidade dela, ao credor ou a terceiro, podendo tal entrega, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, ser substituída pela simples atribuição da composse ao credor contanto que o autor do penhor fique privado da disposição material da coisa empenhada. E, devendo excluir-se os privilégios mobiliários gerais, como acima se referiu, pelas razões apontadas aquando das citações feitas de ensinamentos dos Profs. Almeida Costa e Menezes Cordeiro, da categoria das verdadeiras garantias reais das obrigações por não conferirem ao respectivo titular o direito de sequela, sobre os bens em que recaiam, contra o possuidor destes (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de 31/10/90, in B.M.J. 400º - 640), na medida em que não valem contra terceiros que sejam titulares de direitos oponíveis ao credor exequente, (art.º 749º do Cód. Civil, que assim lhes recusa a eficácia absoluta própria dos direitos reais), tais privilégios apenas conferem preferência relativamente aos credores comuns do devedor, sem embargo da ordem de graduação fixada entre créditos com privilégios mobiliários. Não a conferem, pois, em relação aos credores que beneficiem de penhor, os quais devem em consequência ver os seus créditos graduados antes dos que apenas beneficiam daqueles privilégios mobiliários, como são os créditos por salários em atraso, - e como serão os créditos por indemnização por cessação do contrato de trabalho se também destes privilégios beneficiarem -, entendimento este que não é afastado pelo disposto no art.º 4º da Lei n.º 96/2001, o qual, para além de não alterar a natureza dos privilégios mobiliários gerais, se limita a fixar ordem de graduação entre créditos com os privilégios que consagra, não excluindo a preferência do penhor. Tanto basta para se concluir pela falta de razão dos recorrentes na revista ora em causa. Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, acorda-se em negar provimento à revista interposta pelos trabalhadores e em conceder a revista interposta pela B, alterando-se o acórdão recorrido e graduando-se o crédito desta, em relação ao imóvel, em primeiro lugar, à frente dos demais créditos, mas mantendo-se o mesmo acórdão na parte restante. Custas pelos recorrentes, com excepção da B, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido. Lisboa, 3 de Abril de 2003 Silva Salazar Ponce de Leão Afonso Correia |