Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
399/04.0TVLSB.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
NULIDADE PARCIAL
CONVERSÃO LEGAL
LICENÇA PRECÁRIA PARA OBRAS
UTILIZAÇÃO DO LOGRADOURO
REGEU
PARTE COMUM
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
ABUSO DO DIREITO
INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/08/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I – No regime da propriedade horizontal conflui um feixe de direitos de que é titular o proprietário de fracção autónoma, [sem que tal situação se confunda com a compropriedade]; a titularidade de um direito de propriedade exclusivo, relativamente à fracção autónoma, e compropriedade com os demais condóminos, relativamente às partes comuns.

II – O regime de autorização precária é excepcional, revogável a todo o tempo pela Administração, visando um concreto fim que não pode ser ultrapassado. Sendo os actos precários revogáveis a todo o tempo, foi abusiva a utilização da licença administrativa para a Ré fazer obras não objecto da licença concedida em 1955, dispensando-se de observar os preceitos imperativos do RGEU.

III – O Assento do STJ, de 10.5.1989 – (DR, II série, nº141, de 22.6.1989, in DR, I série, de 15.9.1989, hoje, com o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos arts. 732. °-A e 732. °-B, ambos do Código de Processo Civil, por força do art. 17. °-2 do DL nº329. °-A/95, de 12-12), versou sobre um caso em que houve violação do destino de fracção autónoma, em infracção a projecto aprovado por uma Câmara Municipal, mas, por maioria de razão, a sua doutrina é aplicável ao caso dos autos em que as obras foram realizadas sem projecto e ao abrigo de uma licença precária que as não podia consentir, por não poder derrogar preceitos cogentes do RGEU.

IV – A expressão a falta de requisitos legalmente exigidos que consta no art. 1416º,nº1, do Código Civil, abrange não só os enumerados no art. 1415º, mas também os “concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas”, que são de interesse e ordem pública. A ofensa a preceitos regulamentares do interesse geral e ordem pública, cogentes, implica nulidade, nos termos do art. 294.° do Código Civil.

V – Declarando-se a nulidade parcial do título constitutivo no que respeita à fracção “O”, cujo logradouro era parte comum e foi pelo Réu destinado a oficina de reparação de automóveis, tendo privado da sua área integral os condóminos, implica que esse logradouro tenha de ser considerado parte comum do condomínio.

VI – A declaração de nulidade parcial do título constitutivo tem efeito retroactivo, pelo que os condóminos se tornaram retroactivamente comproprietários daquela parte comum, de acordo com a permilagem de cada fracção.

VII – O facto de a situação retroagir à data em que os AA. se tornaram donos das fracções do prédio nada tem de enriquecimento, a menos que se pudesse considerar que ao adquirirem as fracções, teriam pago um preço que não contemplava aquele logradouro como parte comum do imóvel, facto que não está demonstrado nos autos.

VIII – Para haver abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, seria necessário, in casu, que a conduta dos Autores fosse no sentido de criar, razoavelmente, no Réu uma expectativa factual, sólida, de que não intentariam a acção por se conformarem com a situação que para eles perdura desde 1990.

IX – Se alguém obtém, aquilo que lhe pertence à custa do lesante, não enriquece sem causa, mas tão só vê reintegrado o seu património; não existe empobrecimento daquele que lesava porque não tinha o direito que se arrogava, nem enriquecimento do lesado que se vê restituído ao seu pleno direito, que estava a ser perturbado pela actuação ilícita do alegado empobrecido.

X – A interpretação conforme à Constituição, tem lugar sempre que determinada disposição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação, sendo algumas delas incompatíveis com a própria Constituição e implica que se excluam as possibilidades de interpretação consideradas inconstitucionais.




Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA e mulher BB instauraram, em 14.1.2004, pelas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa – 7ª Vara Cível – acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra:

CC e mulher EE, FF e mulher, GG, HH, II, JJ, KK, LL MM, NN, OO e mulher PP, QQ., RR e SS.

Pedindo que:

a) Seja declarada a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio situado na Av. ......., n°s ....... a ......, em Lisboa, na parte em que foi constituída a fracção “O”;

b) Seja declarada a nulidade parcial do correspondente registo predial no que respeita a essa fracção e seja ordenado que o mesmo seja parcialmente anulado quanto a tal fracção;

e) A hoje denominada fracção “O” fique sujeita ao regime da compropriedade e com o destino que lhe foi imposto pela Câmara Municipal de Lisboa.

Para tanto alegaram, em resumo, que:

- A.A. e R.R. são proprietários das diversas fracções autónomas que constituem o prédio urbano em regime de propriedade horizontal situado na Av. ......., n°s. ........., em Lisboa;

- Esse prédio já se encontrava construído em 1950 e com alguns dos seus fogos habitacionais arrendados;

- Em 14 de Agosto de 1953, a então proprietária, Caixa Sindical de PPIC, hoje designada SS, deu de arrendamento à Sociedade de Casas Económicas, SARL, o pátio (logradouro) e garagem do prédio;

- Em 19 de Abril de 1965, esta veio a requerer à Câmara Municipal de Lisboa, a título precário, uma licença para cobertura do logradouro;

- Essa licença veio a caducar e terminou no indeferimento de todo o licenciamento da obra que correu pela Câmara Municipal de Lisboa;

- Mas o projecto de cobertura do pátio acabou por ser executado e o logradouro que possuía uma área descoberta de 594,50m2, hoje, em função do que se designa de fracção “O” e das obras ilegais que lhe deram origem, não possui mais do que 253,5m2;

- Essa construção está a servir de oficina de automóveis, contendo uma estufa de pintura e secagem industrial e outros equipamentos pesados e perigosos, usados na manutenção e reparação de veículos automóveis, pondo em risco a segurança e saúde pública;

- Essa actividade também não está autorizada e licenciada;

- Em 26 de Março de 2002, a actual arrendatária, VV - Comércio e Reparação de Automóveis, SA, procurou obter uma licença de utilização para a construção clandestina em apreço, tendo o respectivo processo voltado a ser indeferido pela Câmara Municipal de Lisboa;

-O R. SSl, em 6 de Março de 1990, procedeu à constituição do prédio em propriedade horizontal, transformando aquela construção numa fracção autónoma, designada de fracção “O”, pelo que se verifica uma nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal.

Pessoal e regularmente citados os R.R. com a cominação legal, apenas os R.R. S.A. e SS contestaram, nos seguintes termos:

Ré RR, S.A., dizendo, no essencial, que:

- A Ré celebrou um contrato de locação financeira com TT, o qual teve por objecto a fracção de que é proprietária, sendo que aquele é o único e exclusivo utilizador da referida fracção;

- Desconhece os factos alegados pelos A.A. e nada tem a ver com eles.

Requereu, ainda, a intervenção provocada de TT.
SS contestou:

Por excepção dilatória:

- O Tribunal competente em razão da matéria é o Tribunal Administrativo, porquanto o R., quando constituiu a propriedade horizontal, fê-lo no âmbito das suas competências próprias como instituto público, gozando das prerrogativas que lhe eram concedidas pelo Decreto-Lei n°141/88, de 22 de Abril;

Por excepção peremptória:

- O prédio dos autos foi construído antes do RGEU, podendo, por isso, ser-lhe dada a utilização que o proprietário entendesse, sem carecer de licença de utilização camarária;

- Se actualmente a área descoberta do logradouro não possui mais do que 253,5 m2, isso deve-se a uma alteração do título constitutivo da propriedade horizontal levada a cabo pelo único proprietário do prédio, na altura, o que fazia parte dos seus poderes como proprietário da totalidade do edifício;

- Os posteriores adquirentes das fracções autónomas tinham a plena consciência, quando adquiriram as fracções, do espaço comum do logradouro que lhes cabia e da constituição da fracção “O”, assim como das permilagens correspondentes, incluindo a da fracção “O”, que já existia na altura da aquisição efectuada pelos actuais proprietários, incluindo o A;

Por impugnação:

- Existiu uma licença passada pela Câmara Municipal de Lisboa para a construção do logradouro, que foi iniciada em 1955, e o indeferimento da Câmara Municipal de Lisboa reporta-se ao projecto apresentado em finais de 1966, que visava alterar toda a estrutura do prédio com o acrescento de mais três pisos, ficando o edifício com 8 pisos, sendo aumentado em mais dois e construído um outro mais recuado, projecto que nunca foi executado;

-Se a Câmara Municipal de Lisboa tivesse considerado a estrutura uma obra ilegal, tê-la-ia mandado demolir, o que não fez.

Termina pela procedência da excepção dilatória, com a consequente absolvição do R; pela improcedência da acção, com a consequente absolvição do R. dos pedidos, e pede que os A.A. sejam condenados como litigantes de má fé em multa e indemnização a liquidar em execução de sentença.

Os A.A. apresentaram réplica, na qual pugnam pela improcedência da excepção de incompetência material e da excepção peremptória, reiterando a procedência da acção.

Por despacho de fls. 224, foi indeferida a intervenção provocada requerida pela Ré RR S.A.

Realizada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador – no qual foi julgada improcedente a excepção de incompetência em razão da matéria deduzida pelo R. SS –, e seleccionada a matéria de facto tida por pertinente, com a elaboração dos factos assentes e a organização da base instrutória, tendo ulteriormente, no início da audiência de discussão e julgamento, sido alterada a redacção dada às alíneas AC) e AD) dos Factos Assentes e ao Quesito 9° da Base Instrutória.

Tendo falecido na pendência da presente acção o R. NN, por decisão de fls. 818, veio a ser julgada habilitada para prosseguir a acção no lugar daquele R., UU.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, perante juiz singular, com gravação da prova, sendo a matéria de facto controvertida decidida pela forma constante do despacho de fls. 947-952, que foi objecto de reclamação por parte do R. SS, totalmente desatendida.

Os A.A. e o R. SS produziram, por escrito, alegações sobre o aspecto jurídico da causa.


Foi proferida sentença que julgou a acção procedente, por provada, e, consequentemente:

“Declarou a nulidade parcial do acto constitutivo da propriedade horizontal do prédio urbano sito na Av. ......., n°s ......., em Lisboa, descrito na 2° Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n°98, na parte relativa à constituição da fracção “O “,

- Determinou que a fracção “O” passe a integrar as zonas comuns daquele prédio ficando pertença, em compropriedade, de todos os condóminos, como as demais partes comuns,

- Ordenou o cancelamento do registo no que respeita à fracção “O”, bem como da inscrição da mesma a favor do respectivo titular.»

Inconformado, o Réu SS interpôs recurso de apelação da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 16.10.2008 – fls.1252 a 1292 –, julgou o recurso improcedente e confirmou a sentença recorrida.

De novo inconformado, o Réu recorreu para este Supremo Tribunal e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

Quanto à questão das duas interpretações dos arts. 1414°, 1415°, 1416° e 294° do Código Civil e da constitucionalidade de cada uma das interpretações.

1) Verifica-se que interpretação conjunta das normas dos art°s 1414°, 1415° e 1416° e 294º do Código Civil comporta duas retóricas possíveis:

i) A primeira entende que o título constitutivo da propriedade horizontal é parcialmente nulo, ao dar destino diverso do constante do projecto aprovado pela Câmara, a parte comum ou a fracção autónoma, ou seja, ao violar o Regulamento Geral das Edificações Urbanas.

ii) A segunda interpretação defende que a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal apenas resulta da falta dos requisitos do artigo 1415° do Código Civil.

2) Ora, a primeira das interpretações referida está ferida de inconstitucionalidade por violação das regras constitucionais que resultam, entre outros, dos art. 111°, n° 2, art. 112° n°s 1 e 5 todos da CRP.

3) O intérprete está obrigado a adoptar o sentido mais conforme com a Constituição no caso de uma norma interpretativa polissémica.

4) Entre um sentido que é passível de um juízo de inconstitucionalidade ou de um sentido conforme a Constituição, o intérprete e aplicador das normas deve optar por esta última, a não ser que o sentido claro e inequívoco da lei seja rotundamente o sentido inconstitucional, caso em que a mesma deverá ser declarada, afastando-se a sua aplicação.

5) Pelo que as normas em causa só comportam um sentido: o sentido defendido pela recorrente.

Quanto à alegada violação do RGEU e aplicabilidade do Assento do STJ de 10.05.89:

6) Perante o rol de factos provados resulta que não existe qualquer divergência entre o direito camarário e o título constitutivo da propriedade horizontal, uma vez que ficou provado que o prédio é de construção anterior ao REGEU e não tem nenhuma licença de utilização específica para qualquer fim.

7) E no prédio, ao contrário do que consideraram as Instâncias, está incluída, desde sempre, uma garagem com 104 metros quadrados, a qual conjuntamente com uma cobertura, deram lugar à fracção “O”.
E, só esta cobertura é posterior à entrada em vigor do REGEU.

8) Não houve qualquer violação das normas do REGEU, designadamente dos seus artigos 1.º a 7. °, por parte dos RR.

9) A alteração efectuada no edifício (i.e. a cobertura) foi precedida de licença camarária precária, a qual se mantém desde 1955 sem que a Câmara alguma vez tenha esboçado qualquer ideia de alterar a situação existente.

10) O acto administrativo em questão não foi revogado, nem caducou, pelo que mantém a sua vigência.

11) Não foi violado o disposto nos artigos 1416.° e 1418.° do Código Civil, porquanto não existe qualquer divergência entre o constante no projecto e o constante no título constitutivo, no que respeita ao fim ou destino da fracção “O”.

12) A tudo isto é de adicionar que o IGFSS, pessoa jurídica que constituiu o regime jurídico da propriedade horizontal, é um serviço do Estado e por isso não carece de licença municipal para qualquer obra que queira realizar ou manter (art. 14° do REGEU).

13) De igual modo, nos termos do art°s 15° e 20° do Decreto-lei n°141/88, de 22 de Abril o mesmo IGFSS está dispensado de formalismos legais para constituir a mencionada propriedade horizontal.

14) O Assento do STJ de 10.05.89 (MENERES PIMENTEL) fixou jurisprudência (com inúmeros votos de vencido) no sentido de que “nos termos do artigo 294.° do Código Civil, o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir a parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela Câmara Municipal”.

15) Assim, decidiu-se que o título constitutivo cedia perante o disposto no projecto, de forma a ficar conforme com este.

16) Ora, a decisão mencionada não é aplicável ao caso sub judice: o decidido no Assento de que os autores se socorreram para justificar a sua pretensão, e que as Instâncias acolheram para fundamentar a condenação no pedido, visa impedir a contradição entre o constante do projecto aprovado e o constante do título constitutivo, o que não sucede na presente situação.

17) Assim, do Assento não tem qualquer cabimento, por não se verificar a situação de facto que lhe é subjacente.

Da violação da suposta obrigatoriedade de estacionamento:

18) Não existia qualquer imposição de estacionamento privativo para o edifício cuja nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal se discute.

19) Com efeito, em nenhum momento é invocada qualquer disposição ou decisão que impusesse esse mesmo estacionamento: o que se verifica é que se pretende tirar uma ilação (errada e inadmissível) quanto a essa mesma imposição, afirmando, mediante a utilização de um cálculo proporcional, que deveria acautelar-se a existência de 12 lugares de estacionamento, um para cada fogo.

20) Todavia, essa pressuposição é fundada na decisão da CML de impor um número de lugares correspondente a 16 para o caso de vir a ser concretizada uma ampliação do número de pisos do edifício, ampliação essa que nunca foi efectuada porque indeferida (facto 1.21).

Da violação das regras dos artigos 1414º e 1415º do Código Civil.

21) O Tribunal da Relação de Lisboa veio a declarar a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal com base em matéria nova nos autos, nunca antes debatida e não focada nas alegações ou conclusões do recorrente ou dos recorridos.

22) Cometeu assim a nulidade prevista no art. 668°, 1 d), ex-vi art. 716°, nº1 do Código de Processo Civil.

23) O Tribunal da Relação de Lisboa analisou de modo errado os factos provados e configurou a fracção “O” como não sendo independente e não tendo saída para uma parte comum do prédio ou directamente para a via pública.

24) Ora, tal ideia é errada pois que desde sempre que a garagem referida no facto provado 1.16 d), que deu existência à fracção “O”, tem saída para o logradouro do prédio e deste para a rua, sendo a ligação com o prédio contíguo uma realidade posterior (facto provado 1.19).

25) Assim, a fracção “O” em crise reúne todos os requisitos previstos na para poder ser considerada e constituída como fracção do prédio onde se encontra.

Da conversão da fracção em parte comum:

26) E ainda que se verificasse a mencionada nulidade parcial, o que não se concede e só por hipótese de raciocínio se admite, nunca a consequência dessa mesma nulidade poderia ser a conversão da fracção em parte comum, com exclusão total do actual proprietário da fracção.

27) A constituição da propriedade horizontal foi feita pelo único e proprietário, por negócio jurídico unilateral, nos termos do disposto no artigo 1417.° do Código Civil.

28) Semelhante actuação é perfeitamente consentânea com os seus poderes de proprietário da totalidade de prédio, que pode dispor da sua propriedade e alterar a sua composição, desde que respeite e se encontra previsto no artigo 1415.° do Código Civil.

29) A tudo acresce que esse proprietário é um Serviço do Estado e como tal está dispensado de autorizações camarárias e formalismos legais.

30) Ora, a fracção “O” possui todas as características elencadas nos artigos 1414.° e 1415.° do Código Civil, constituindo uma unidade independente, com saída própria.

31) No caso concreto porque a propriedade horizontal ter resultado apenas de uma vontade unilateral individual e todas as fracções com excepção daquela que se pretende cancelar foram vendidas, a nulidade do título implica que todo o prédio tenha que ser devolvido ao regime da compropriedade, atribuindo-se a cada condómino a sua quota na propriedade horizontal, i.e, no caso da recorrente 25,7%.

32) O que de resto é absolutamente óbvio, porque de outra forma existiria um enriquecimento indevido por parte dos condóminos com prejuízo do anterior proprietário e actual proprietário da fracção em causa que pura e simplesmente deixava de ter qualquer valor investido no prédio.

33) Quererem os autores ver agora aumentado o seu património mediante um aumento significativo da área comum (que, como se sabe, tem uma repercussão directa e inegável no valor de cada fracção) é intolerável, tanto mais quanto esse aumento é feito à custa do empobrecimento do proprietário da fracção “O”.

Do abuso de direito e do enriquecimento sem causa.

34) A solução impugnada é injusta e resulta de uma pretensão manifestamente abusiva e que leva a um enriquecimento sem causa dos condóminos, consequência de uma verdadeira expropriação privada do direito do proprietário da fracção exterminada.

35) E mesmo que se admitisse a existência de um tal direito, o que se faz somente por hipótese de raciocínio, sempre haveria que considerar a existência da figura do abuso de direito.

36) O qual é do conhecimento oficioso e não depende de culpa do abusado.

37) Nunca os demais condóminos do prédio pretenderam adquirir a parte do edifício que corresponde à fracção “O”, nem o proprietário da mesma — que foi proprietário de todo o prédio — alguma vez pretendeu transmitir a sua propriedade, pelo que a atribuição da mesma aos primeiros traduz-se num enriquecimento ilegítimo, à custa da expropriação privada da propriedade.

38) Assim, o Tribunal a quo fez uma má aplicação das normas jurídicas plasmadas nos artigos 294, 1414.°, 1415.°, 1416.° e 1418.° do Código Civil e nos artigos 111º, nº2 e 112° n°s 1 e 5 todos da CRP e art. 14° do REGEU e art°s 15° e 20º do Decreto-lei n° 141/88, de 22 de Abril.

Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto acórdão recorrido e absolvendo-se os réus nos pedidos formulados pelos autores,

Os AA. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Acórdão.


Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que as Instâncias consideraram provados os seguintes factos (1).:
1.1. Os 1°s R.R. são proprietários da autónoma designada pela letra “A” do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Av. ......., ......., em Lisboa, na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, e inscrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número noventa e oito da mencionada freguesia – (Alínea A) dos Factos Assentes).

1.2. Os 2°s R.R. são os proprietários da fracção autónoma designada pela letra “B” do mesmo prédio (Alínea B) dos Factos Assentes).

1.3. A 3 Ré é proprietária da fracção autónoma designada pela letra “C” do mesmo prédio (Alínea C) dos Factos Assentes).

1.4. A 4 Ré é proprietária da fracção autónoma designada pela letra “D” do mesmo Prédio – (Alínea D) dos Factos Assentes).

1.5. Os 5º, 6° e 7°s R.R. são proprietários da fracção autónoma designada pela letra “E” do mesmo prédio – (Alínea E) dos Factos Assentes).

1.6. A 8ª Ré é proprietária da fracção autónoma designada pela letra “F” do mesmo prédio – (Alínea F) dos Factos Assentes).

1.7. O 9º R. é proprietário da fracção autónoma designada pela letra “O” do mesmo prédio – (Alínea G) dos Factos Assentes).

1.8. Os 1O°s R.R. são proprietários da fracção autónoma designada pela letra “1” do
mesmo prédio – (Alínea H) dos Factos Assentes).

1.9. O 13° R. é proprietário das fracções autónomas designadas pelas letras “J”, “L” e “O” do mesmo prédio (Alínea 1) dos Factos Assentes).

1.10. A 11ª Ré é proprietária da fracção autónoma designada pela letra “M” do mesmo prédio – (Alínea J) dos Factos Assentes).

1.11. A 12ª Ré é proprietária da fracção autónoma designada pela letra “N” do mesmo prédio (Alínea L) dos Factos Assentes).

1.12. Os Autores são proprietários da fracção autónoma designada pela letra “H” do mesmo prédio (Alínea M) dos Factos Assentes).

1.13. Os acima referidos R.R. e A.A. – e identificadas catorze fracções –, representam a totalidade do prédio urbano em regime de propriedade horizontal a que se vem aludindo – (Alínea N) dos Factos Assentes).

1.14. O referido prédio começou por ser um terreno que possuía uma área total de 994,50 metros quadrados – (cfr. docs. de fls. 43 a 66) (Alínea O) dos Factos Assentes).

1.15. Em Agosto de 1947 foi dado conhecimento ao respectivo Registo Predial de que nesse terreno se estava a construir “uma casa que se há-de compor de lojas no rés-do-chão e 5 andares, tendo lado direito e esquerdo, e logradouro” (cfr. doc. de fls. 43 a 50) (Alínea P) dos Factos Assentes).

1.16. O referido prédio era composto por:

a) rés-do-chão, com uma habitação e casa de porteira;
b) duas lojas;
c) habitação nos cinco andares do prédio, lados esquerdo e direito;
d) uma pequena garagem, à retaguarda do prédio, com 104 metros quadrados;
e) um logradouro (área descoberta) com o tamanho de 594,5 metros quadrados - (cfr. doc. de fls. 43 a 67) – (Alínea Q) dos Factos Assentes).

1.17. Tal prédio estava inscrito na matriz predial urbana do Campo Grande com o número 760 e, actualmente, sob o artigo 187 da freguesia de Nossa Senhora de Fátima (cfr. doe. de fls. 43 a 67) – (Alínea R) dos Factos Assentes).

1.18. Em 14 de Agosto de 1953, a então proprietária, Caixa Sindical de PPIC acordou com a Sociedade de Casas Económicas, SARL, o arrendamento do pátio e garagem (logradouro) do mencionado prédio, nos termos do contrato de fls. 68 a 76 – (Alínea S) dos Factos Assentes).

1.19. Nesse contrato, a referida proprietária, logo em Agosto de 1953, e a partir do dia catorze, autorizou a então inquilina a ligar o logradouro com a oficina que se encontra instalada no prédio número duzentos e cinquenta e nove da mesma Avenida ....... – (Alínea T) dos Factos Assentes).

1.20. A inquilina, Sociedade de Casas Económicas, requereu a cobertura a título precário de parte do logradouro a que se alude em Q), de que é arrendatária, nos termos constantes dos documentos de fls. 77 e 78, o que foi deferido – (Alínea U) dos Factos Assentes).

1.21. A Câmara Municipal de Lisboa indeferiu o requerimento de ampliação do prédio dos autos, formulado pela então proprietária, Caixa Sindical de Previdência do Pessoal da Indústria de Cerâmica, nos termos dos documentos de fls. 79 e 80 – (Alínea V) dos Factos Assentes).

1.22. A 20 de Março de 2001, os proprietários dos andares 1° Dtº, 1° Esq., 2° Esq., 4° Dtº, 4º Esq., e 5° Dtº do prédio dos autos, dirigiram-se à Câmara Municipal de Lisboa, nos termos constantes a fls. 81 e 82 – (Alínea X) dos Factos Assentes).

1.23. Na sequência da vistoria realizada no dia 3 de Maio de 2001 à VV-Comércio e Reparação de Automóveis, S.A., arrendatária do pátio, garagem e logradouro a que se alude em Q) (fracção O), a comissão presente no local conclui que o estabelecimento em causa não reunia as condições necessárias para funcionamento, pelas razões constantes do respectivo auto de vistoria, tendo proposto o indeferimento do pedido de emissão de Licença de Utilização e dado um prazo de 30 dias úteis para o requerente solicitar um pedido de Licenciamento de Obras ao abrigo do D.L. 445/94, de 15 de Outubro - (cfr. doc. de fls. 83 e 84) (Alínea Z) dos Factos Assentes).

1.24. O Autor enviou à Câmara Municipal de Lisboa a carta constante a fls. 85, datada de 17 de Janeiro de 2002 (Alínea AA) dos Factos Assentes).

1.25. Em 20 de Janeiro de 1947, o proprietário do imóvel requereu à Câmara Municipal de Lisboa autorização para executar algumas alterações indicadas no projecto que então juntou (cfr. doc. de fls. 193 a 201) – (Alínea AB) dos Factos Assentes).

1.26. Em 06 de Março de 1990, o 13° Réu (IGFSS) procedeu à constituição do prédio dos autos em propriedade horizontal, tendo-a posteriormente alterado em 17 de Junho de 1996, ficando o logradouro com 253,5 metros quadrados – (Alínea AC) dos Factos Assentes).

1.27. Tendo designado parte do pátio e a garagem a que se alude em S) como fracção “O” (Alínea AD) dos Factos Assentes).

1.28. A ligação do logradouro (fracção “O”) com a oficina a que se alude em T) mantém-se até à presente data – (Resp. Quesito 1° da Base Instrutória).

1.29. Existindo uma ligação em tudo semelhante da dita fracção ao salão de vendas do número 263 também da Av. ....... (Resp. Quesito 2° da Base Instrutória).

1.30. O projecto de cobertura do pátio a que se alude em U) acabou por ser executado – (Resp. Quesito 3° da Base Instrutória).

1.31. Até à data da propositura da acção a cobertura do pátio a que se alude em U) servia de oficina de automóveis – (Resp. Quesito 4° da Base Instrutória).

1.32. Até àquela data existia na dita oficina uma estufa de pintura e secagem industrial (Resp. Quesito 5° da Base Instrutória).

1.33. Na mesma oficina existiam até à referida data outros equipamentos usados na manutenção e reparação de veículos automóveis – (Resp. Quesito 6° da Base Instrutória).

1.34. A actividade que foi desenvolvida na oficina a que se alude na resposta dada ao artigo 4° não estava autorizada nem licenciada – (Resp. Quesito 8° da Base Instrutória).

1.35. Em consequência das obras realizadas na fracção “O” a área destinada ao logradouro e descoberta não possui mais do que os 253,5 metros quadrados a que se alude em AC) (Resp. Quesito 9º da Base Instrutória).

1.36. A existência da dita oficina e de um muro no local tornam impossível estacionar um número superior a cinco veículos (Resp. Quesito 10º da Base Instrutória).

1.37. Ao contrário dos dezasseis previstos e aprovados pela Câmara Municipal de Lisboa – (Resp. Quesito 11º da Base Instrutória).

1.38. O indeferimento da Câmara Municipal de Lisboa a que se alude em V) reporta-se ao acrescento ao prédio de dois pisos mais um – (Resp. Quesito 12º da Base Instrutória).

1.39. Ficando o mesmo com 8 pisos (Resp. Quesito 13º da Base Instrutória).

1.40. Em 1955 iniciaram-se os trabalhos de construção da cobertura de parte do logradouro, tendo a Câmara Municipal de Lisboa autorizado essa cobertura a título precário. – (Resp. Quesito 16º da Base Instrutória).


Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se o título constitutivo da propriedade horizontal é válido, ou enferma de nulidade parcial;

- se se considerar a nulidade, quais as consequências jurídicas desse facto;

- se a Ré poderia ter realizado as obras que realizou e constituir mais uma fracção autónoma – a designada pela letra “O”;

- se os AA. agem com abuso do direito;

- se se considerar a nulidade da constituição da fracção autónoma “O” pelo Réu, se existe enriquecimento sem causa, por parte dos AA.

- se a interpretação perfilhada no Acórdão, ao considerar parcialmente nulo o título constitutivo da fracção “O”, padece de inconstitucionalidade.

Vejamos:

Está em causa um longo e persistente litígio quanto a saber se a fracção “O” do imóvel identificado se constituiu validamente.

Na propriedade horizontal coexistem dois tipos de propriedade: a propriedade exclusiva da fracção de certo condómino e a compropriedade de todos relativamente às partes comuns.

“O que caracteriza a propriedade horizontal e constitui razão de ser do respectivo regime é o facto de as fracções independentes fazerem parte de um edifício de estrutura unitária.
A propriedade horizontal pressupõe a divisão de um edifício através de planos ou secções horizontais, por forma que, entre dois planos se compreendam uma ou várias unidades independentes, ou ainda através de um ou mais planos verticais, que dividam igualmente o prédio em unidades autónomas.
Logo, em alguns casos, a chamada propriedade horizontal, pode ser propriedade vertical. A divisão através de um ou vários planos é a única possível quando se trate de edifícios de um só piso”. - Henrique Mesquita, RDES, XXIII-84.

A propriedade horizontal é o resultado da evolução histórica e da necessidade de responder a crescentes necessidades de habitação, com melhor aproveitamento dos solos, mormente, através da construção em altura.

Após o primeiro conflito mundial e consequente crise de habitação, procedeu-se em Portugal, à revisão da legislação do inquilinato em 1948, reconhecendo-se a necessidade de regulamentar o que tinha ficado previsto na Lei 2030, de 22 de Junho de 1948.

Obrigando-se o Governo a proceder à revisão do artigo 2335º do Código Civil de então, estabelecendo a propriedade de casas por andares.

Todavia, só em 14 de Outubro de 1955, foi publicado o Decreto-Lei 40 333 que veio definir e regular o regime da propriedade horizontal.

Assim, a Câmara Corporativa escreveu no Parecer sobre o Regulamento da propriedade horizontal:

A propriedade horizontal é, por conseguinte, a propriedade exclusiva duma habitação integrada num edifício comum. O direito de cada condómino em conjunto é o direito sobre um prédio, portanto, sobre uma coisa imobiliária, e como tal é tratado unitariamente pela lei; mas o objecto em que incide é misto – é constituído por uma habitação exclusiva, que é o principal, e por coisas comuns, que são o acessório”.

Assim, no direito português, a propriedade horizontal foi criada – pelo menos com a configuração que oferece actualmente pelo DL. 40.333,de 14 Outubro de 1955 (2). - e depois introduzida no Código Civil.

Em 1994, o legislador introduziu alterações nesta matéria, tanto no Código Civil como também, por dois diplomas autónomos os Decretos-Leis 268/94 e 269/94, de 25 Outubro.

Nestes dois diplomas foram introduzidas normas regulamentares.

Todavia, já nas Ordenações Filipinas § 34 do título LXVIII (Dos almotacés) do Livro I, se dispunha:

“Se uma casa for de dois senhores, de maneira que de um deles seja o sótão e de outro o sobrado, não poderá aquele cujo for o sobrado fazer janela sobre o portal daquele cujo for o sótão, ou logea, nem outro edifício algum”.

Nos termos do vigente Código Civil (3) – art. 1415º.

Só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.”

Acompanhando Rui Vieira Miller, in “A Propriedade Horizontal no Código Civil”, pág. 83:

“ É da conjugação dos arts. 1414.° e 1415.° que resultam as características legais da propriedade horizontal.
Parece que bastaria afirmar, como se fez no art. 1414.°, que devem constituir unidades independentes as fracções autónomas em que o edifício se parcelou; mas, para vincar essas independência e autonomia o art. 1415.° exige que aquelas sejam distintas e isoladas entre si e com uma saída própria, seja esta para uma parte comum, seja directamente para a via pública – isto para não se tornar esta forma de propriedade “um factor de promiscuidade das pessoas” ou “numa fonte permanente de discórdias e de litígios entre os diversos proprietários (nº3, do preâmbulo do Decreto-Lei nº40333.)”.

Como se sabe, no regime da propriedade horizontal conflui um feixe de direitos de que é titular o proprietário de fracção autónoma, [sem que tal situação se confunda com a compropriedade]; a titularidade de um direito de propriedade, exclusivo relativamente à fracção autónoma, e compropriedade com os demais condóminos, relativamente às partes comuns.

“A propriedade horizontal é a propriedade que incide sobre as várias fracções componentes de um edifício, fracções essas que têm de estar em condições de constituírem unidades independentes (art. 1414º do Código Civil).
Trata-se de um regime de propriedade não sobre um edifício na sua totalidade mas sim sobre uma fracção autónoma, embora seja comproprietário de partes comuns (arts. 1414°, 1415° e 1420.° do Código Civil), mas esta compropriedade é forçada, não pode sair da indivisão enquanto durar a propriedade horizontal: Mota Pinto, “Direitos Reais” e Revista.
Estamos em face de um direito real novo, de uma forma particular de propriedade.
É um direito real complexo que combina no âmbito dos direitos reais: a propriedade singular (sobre a fracção autónoma) e a compropriedade (sobre as partes comuns do edifício): artigo 1420° do Código Civil”. – Francisco Pardal, in “Da Propriedade Horizontal”, pág.94.

Para Henrique Mesquita – “O núcleo da propriedade horizontal constituído por direitos privativos de domínio, direitos estes a que estão associados com função instrumental (mas de modo incindível), direitos de compropriedade sobre as partes do prédio não abrangidas por uma relação exclusiva… […].
O condomínio é, assim, a figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários contitulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial — daí a expressão condomínio — sobre fracções determinadas.”

Carvalho Fernandes, in Lições de Direitos Reais, 1996, pág. 335 e segs. considerando “os aspectos substanciais do seu regime”, entende que tudo aponta “para a conveniência de autonomizar o condomínio da propriedade, seja singular, seja colectiva. Para bem se captar e traduzir a sua realidade jurídica, há que o encarar como um tipo específico de direito real de gozo”.

Menezes Cordeiro, atendendo a que “a afectação que a propriedade horizontal traduz pode, analiticamente, explicar-se por formas que, nos termos da lei e noutras circunstâncias, consistem em direitos reais independentes (propriedade e compropriedade)”, considera-a “um direito real complexo”.

Oliveira Ascensão, in “Direitos Reais”, 3ª edição, págs. 462 e 464, depois de uma alusão histórica (4) ao instituto, afirma acerca da natureza jurídica da propriedade horizontal:

“Cremos porém que a qualificação correcta desta situação é a de propriedade especial. Embora se conjuguem propriedade e compropriedade a propriedade é o fundamental, sendo a compropriedade meramente instrumental. Escopo da propriedade horizontal não é criar uma situação de comunhão: é permitir propriedades separadas, embora em prédios colectivos (…). Sendo assim, há nuclearmente uma propriedade, mas esta é especializada pelo facto de recair sobre parte da coisa e de envolver acessoriamente uma comunhão sobre outras partes do prédio. Estas especialidades levam a que a lei tenha tido a necessidade de recortar um regime diferenciado. Isto é típico justamente das propriedades especiais, de que a propriedade horizontal nos oferece o melhor exemplo…”.

Vejamos alguns dos normativos do Código Civil com especial relevância na apreciação do recurso.

Artigo 1415º – “Só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública”.

Artigo 1416º – Falta de requisitos legais

“1. A falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418º ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção.
2. Têm legitimidade para arguir a nulidade do título os condóminos, e também o Ministério Público sobre participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções”.

Artigo 1418º – Conteúdo do título constitutivo.

“1. No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.
2. Além das especificações constantes do número anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente:
a) Menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum;
b) Regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das fracções autónomas;
c) Previsão do compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da relação de condomínio.
3. A falta da especificação exigida pelo nº 1 e a não coincidência entre o fim referido na alínea a) do nº 2 e o que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente determinam a nulidade do título constitutivo”. (Redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº267/94, de 25 de Outubro).

Mas, a par dos normativos do Código Civil, importa ter em consideração o RGEU (5)
– DL. 33.3082, de 7.8.1951, diploma que regula os requisitos da construção urbana tendo em conta interesses públicos ligados à higiene, segurança e salubridade das construções, com finalidades claramente disciplinadoras da actividade e licenciamento das construções, diploma que foi alvo de várias alterações e que impõe regras cuja violação pode acarretar ilegalidade.

Como consta da al. o) – item 1.14 dos factos provados – a construção do imóvel foi iniciada em Agosto de 1947, quando não estava em vigor o DL.33.382. de 7.8.1951.

Antes, em 20.1.1947, o proprietário do imóvel requereu à Câmara boa autorização para executar algumas alterações indicadas no projecto que então juntou (cfr. doc. de fls. 193 a 201) – (Alínea AB) dos Factos Assentes), sinal que havia submetido previamente um projecto de construção.

Tal prédio era composto de: a) rés-do-chão, com uma habitação e casa de porteira; b) duas lojas; c) habitação nos cinco andares do prédio, lados esquerdo e direito; d) uma pequena garagem, à retaguarda do prédio, com 104 metros quadrados; e) um logradouro (área descoberta) com o tamanho de 594,5 metros quadrados – (cfr. doc. de fls. 43 a 67) – (Alínea Q) dos Factos Assentes).

Em 14 de Agosto de 1953, a então proprietária, Caixa Sindical de PPIC acordou com a Sociedade de Casas Económicas, SARL, o arrendamento do pátio e garagem (logradouro) do mencionado prédio, nos termos do contrato de fls. 68 a 76 – (Alínea S) dos Factos Assentes).

Em 1955 iniciaram-se os trabalhos de construção da cobertura de parte do logradouro, tendo a Câmara Municipal de Lisboa autorizado essa cobertura a título precário – (Resposta ao Quesito 16° da Base Instrutória).

Em 06 de Março de 1990, o 13° Réu (IGFSS) procedeu à constituição do prédio dos autos em propriedade horizontal, tendo-a posteriormente alterado em 17 de Junho de 1996, ficando o logradouro com 253,5 metros quadrados – (Alínea AC) dos Factos Assentes).

Tendo designado parte do pátio e a garagem a que se alude em S) como fracção ‘O” – (Alínea AD) dos Factos Assentes).

A constituição da fracção “O” implicou que o logradouro visse diminuída a sua área inicial, sendo que parte dele estava afecto ao estacionamento de viaturas automóveis.

Em consequência das obras realizadas na fracção “O”, a área destinada ao logradouro e descoberta não possui mais do que os 253,5 metros quadrados a que se alude em AC) – (Resp. Quesito 9° da Base Instrutória).

A existência da dita oficina e de um muro no local tornam impossível estacionar um número superior a cinco veículos – (Resp. Quesito 10° da Base Instrutória).

Ao contrário dos dezasseis previstos e aprovados pela Câmara Municipal de Lisboa — (Resposta ao quesito 11° da Base instrutória).

O recorrente afirma estar dispensado de observar as normas do RGEU, porquanto constituiu a propriedade horizontal ao abrigo do art. 15º do DL. nº 141/88, de 22 de Abril, sustentando que beneficiava de um estatuto especial.

Mas tal afirmação não tem fundamento legal, desde logo pelo facto do art. 2º daquele normativo afirmar que “a constituição propriedade horizontal faz-se mediante declaração da entidade proprietária de que estão verificados os requisitos legais”.

Ora, esta alusão aos requisitos legais, não é uma imposição desprovida de conteúdo.

Muito embora o Réu pudesse constituir a propriedade horizontal mediante declaração, estava obrigado a cumprir os requisitos legais sob pena de ficar ao seu alvedrio comportar-se como entendesse, ficando impune qualquer violação da lei.

O entendimento que faz o recorrente, traduz patente inconstitucionalidade por violação dos princípios da igualdade e da legalidade com assento no art. 13º da Lei Fundamental.

O DL. 141/88, de 22 de Abril, alterado pelo DL 288/93, de 20 de Agosto, rege especificamente para o património habitacional do Estado, não sendo aplicável à constituição de fracções autónomas de edifícios pertencentes ao Instituto Réu.

Como se escreve na decisão da 1ª Instância – fls. 1039 – “O próprio Réu Instituto, consciente disso, declarou na constituição da propriedade horizontal, e respectiva alteração, na sua qualidade de proprietário, que “o prédio referido reúne os requisitos legais para a constituição em propriedade horizontal, constantes do artigo1415° do Código Civil” (cfr. doc. de fls. 51 a 66).
Aliás, é o próprio D.L. 141/88 que, no seu artigo 12°, dá uma clara orientação na resolução da questão, pois quando ainda se diz que “o IGAPHE e o IGFSS estão dispensados da apresentação de licenças de construção e de utilização para os actos referidos no artigo 44° da Lei n° 46/85, de 20 de Setembro”, tais actos são única e exclusivamente “escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade”.

Concluímos, assim, que o Réu não estava dispensado de observar os requisitos legais imperativos para constituição em regime de propriedade horizontal da fracção “O”.
Sustenta o Réu que fez as obras no logradouro, ao abrigo de uma autorização precária concedida pela Câmara Municipal de Lisboa, em 1955, e, por isso, estava legitimado a fazer as alterações que fizeram diminuir a área do logradouro.

Desde logo importa referir, aspecto que se afigura de crucial importância, que a licença precária concedida pela edilidade lisboeta em 1955 foi apenas para cobertura de parte do logradouro – cfr. resposta ao quesito 16º.

Ora não será ousado afirmar que, à luz das regras da actuação de boa-fé, a recorrente sabia que com base nessa autorização precária apenas poderia fazer as obras nela autorizadas, como que se esgotando a licença com a conclusão dessa obra.

De outro modo o que começou precário no remoto ano de 1955 ainda o é actualmente.

Ora, há que distinguir entre as obras realizadas desde o início ao abrigo da autorização precária e quando ainda não havia RGEU, daqueloutras que o Réu fez estando em plena vigência tal diploma, sendo certo que o recorrente, como vimos, não beneficiava de qualquer estatuto especial que o eximisse de observar preceitos legais imperativos.

Assim é, que mesmo não tendo sido revogada ou declarada caducada tal autorização precária, o certo é que as obras que fez e com base nas quais requereu a constituição da fracção “O”, além de não estarem contempladas no âmbito e finalidade para que foi concedida a licença de 1955, infringiram preceitos cogentes, mormente, os arts. 1º a 7º do RGEU (as obras foram feitas em 1990).

O recorrente afirma que o art. 14º do RGEU dispensa os serviços do Estado de licença municipal.

O Réu não é hoc sensu um serviço do Estado, mas antes um instituto público que goza de autonomia administrativa e financeira.

Mas, o que, particularmente, releva é que a obras que permitiram ao Réu considerar a existência de uma nova fracção e pedir o seu reconhecimento, foram realizadas sem autorização após a entrada em vigor do RGEU.

Que essas obras não foram autorizadas e enfermam de ilegalidade, resulta claro do facto provado 1.23:

“Na sequência da vistoria realizada no dia 3 de Maio de 2001 à VV-Comércio e Reparação de Automóveis, S.A., arrendatária do pátio, garagem e logradouro a que se alude em Q) (fracção O), a comissão presente no local conclui que o estabelecimento em causa não reunia as condições necessárias para funcionamento, pelas razões constantes do respectivo auto de vistoria, tendo proposto o indeferimento do pedido de emissão de Licença de Utilização e dado um prazo de 30 dias úteis para o requerente solicitar um pedido de Licenciamento de Obras ao abrigo do D.L. 445/94, de 15 de Outubro”- (doc. de fls. 83 e 84 e Z) dos Factos Assentes). (destaque e sublinhado nossos)

Como bem afirmam os recorridos – “Na data de construção do prédio, apenas existia uma garagem com 104 metros quadrados e um logradouro (área descoberta) com 594,50 metros quadrados – (alínea Q) dos factos assentes)”.

De modo algum se pode considerar que estas obras poderiam ter sido feitas ainda ao abrigo da autorização precária concedida em 1955, volvidos mais de 50 anos.

A C.M. de Lisboa, em 1967, invocando o seu Edital 101/62, de 5.5.1962(6). – sobre “Construções de Edificações Urbanas (documentos de fls. 79 e 80) afirmou à ora recorrente:

“…A repartição, verificando-se que o edifício possui logradouro com vasta área emite parecer desfavorável, julgando de impor o estacionamento privativo…a repartição informa que a capacidade de estacionamento prevista é largamente suficiente para os 16 carros que a ocupação dos andares carece e as condições de acesso satisfazem as normas adoptadas…”.

Pretender que, quando a CML já impunha pelo seu Edital de 1962, a existência de parques de estacionamento nos prédios com as características constantes do Edital, e que para a Ré vigorava a licença precária, mesmo após a vigência do RGEU, para ao abrigo dela continuar a fazer obras a seu bel prazer, não é de todo aceitável pelo cariz precário da licença, que, pelo menos implicitamente, se deve considerar revogada, já que a pretensão do Réu, que foi indeferida, tinha subjacente aquela autorização precária de 1955.

Em função da data em que foram realizadas as obras de alteração, o Réu deveria ter-se munido de uma licença que, como vimos do facto provado 1.23 antes transcrito não obteve, pelo que foram consideradas ilegais tais obras.

Nos termos dos artigos 3º, 6º, 8º e 165º do Decreto-Lei nº 38 382, de 7 de Agosto de 1951, os projectos de construção deviam indicar o destino das edificações e a utilização prevista para os diversos compartimentos.

Quando foi constituída a propriedade horizontal em causa, inscrevia-se na competência da câmara municipal, no âmbito do planeamento, do urbanismo e da construção, a aprovação dos projectos de construção e a concessão de licenças várias, designadamente para construção, habitação ou outros fins – artigo 51º, nº 2, alíneas e) e f), do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março.

Constituiu mesmo uma temeridade a realização de tais obras, para colocar numa importante rua de Lisboa a funcionar num logradouro de um prédio também destinado à habitação, uma oficina de reparações automóveis.

O regime de autorização precária é excepcional, revogável a todo o tempo pela Administração, visando um concreto fim que não pode ser ultrapassado.

Como ensina Marcello Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, volume II, 9ª edição, página 945:

“Através da natureza precária do acto administrativo o órgão competente assegura a sua ulterior intervenção na situação jurídica (porque regulada precariamente), de modo a satisfazer novas exigências do interesse público específico». (Filipa Urbano Galvão, “Os actos precários e os actos provisórios no direito administrativo”, página 27).

Sendo os actos precários revogáveis a todo o tempo, foi abusiva a utilização da licença administrativa para a Ré fazer outras obras que não as objecto da licença de 1955,dispensando-se de observar os preceitos imperativos do RGEU.

Como se escreveu no Acórdão recorrido – fls. 1281 a 1282:

“A partir da entrada em vigor do RGEU, passou a ser obrigatório, com carácter tendencialmente geral (cfr. § único do art. 1°), quer o licenciamento camarário de novas edificações e da reconstrução, ampliação, alteração, reparação ou demolição das edificações (art°s. 1° e 2°), devendo os correspondentes projectos indicar sempre “o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos” (art. 6°), quer a emissão de alvará de utilização relativamente a edificações novas, reconstruídas, ampliadas ou alteradas, “quando da alteração resultem modificações importantes nas suas características” (art. 8°), de tal modo que as câmaras municipais podiam proceder ao “despejo sumário dos inquilinos e demais ocupantes das edificações ou partes das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com elas” (art. 165°)”.

Concluímos, assim, que não foram observados os requisitos legalmente exigidos e, por tal, o título constitutivo da fracção “O” enferma de nulidade – art. 1416º, nº1, do Código Civil.

O Assento do STJ, de 10.5.1989 (DR, II série, nº141, de 22.6.1989, págs. 6126 e ss; DR, I série, de 15.9.1989, firmou a seguinte doutrina (hoje, com o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos arts. 732.°-A e 732.°-B, ambos do Código de Processo Civil por força do art. 17.°-2 do DL nº329.°-A/95, de 12-12):

“Nos termos do art. 294.º do Código Civil, o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir à parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela Câmara Municipal”.

O Assento versou sobre um caso em que houve violação do destino de fracção autónoma, em infracção a projecto aprovado por uma Câmara Municipal, mas, por maioria de razão, a sua doutrina é aplicável ao caso dos autos em que as obras foram realizadas sem projecto e ao abrigo de uma licença precária que as não podia consentir, por não poder derrogar preceitos cogentes do RGEU.

Como afirma Rui Vieira Miller – obra citada – págs. 87 e 88 – em anotação ao art. 1416º do Código Civil, em alusão ao direito anterior:

“Não existia nele preceito correspondente.
O não se enunciarem, na lei anterior, as consequências da falta dos requisitos legalmente exigidos para a constituição da propriedade horizontal, resultava talvez do facto de, conforme os §§ l.° e 2.° do art. 4.° do Decreto-Lei n.°40 333, a existência desses requisitos ter que ser previamente afirmada pela câmara municipal — mediante vistoria ou através de aprovação do projecto da obra — ou por vistoria judicial.
O sistema era, porém, imperfeito porque apenas tinha consequências negativas — a proibição de constituir a propriedade horizontal — sem abrir qualquer solução para a situação decorrente de cada caso. …[…].
Com efeito — escreveu sobre esse problema Armando Guerra (…) — a única solução possível é a de “se ter de considerar o acto nulo quanto à disposição visando a instituir a propriedade horizontal, ficando os respectivos interessados em mero regime de compropriedade no imóvel, na proporção instituída, se tal tiver sido declarado, ou, em caso de omissão, a que se averigue que corresponda à intenção do testador, ficando em comum e partes iguais, desde que esse apuramento não seja possível fazer-se”.

O referido autor, comentando o Assento antes citado, e o regime de nulidade parcial que prevê, escreve na pág. 91:

“Acresce que a verificação da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal não tem ainda a consequência assinada, como regra, no art. 289.° — a restituição ao estado anterior — mas antes implica uma conversão legal do negócio jurídico viciado (neste sentido, Henrique Mesquita, ob., cit., pág. 276, e R.D.E.S., cit. pág. 88, nota 27; Ribeiro Mendes, loc. cit., pág. 52.) – situação que, por exemplo, também se verifica nos casos dos arts. 946.°, nº2, e 2251.°, n.º2 — independentemente das condições expressas no art. 293.°, uma vez que o prédio em relação ao qual se pretendeu instituir o regime da propriedade horizontal ficará necessariamente sujeito ao da compropriedade, correspondendo a cada condómino a quota equivalente à percentagem ou permilagem que o título invalidado lhe tivesse atribuído ou, na sua falta, ao valor da fracção que nele lhe tivesse sido destinada.
É certo que este regime de compropriedade poderá ser afastado pelos interessados estabelecendo um outro que, nesse caso, porém, resultará não já da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, mas de outro negócio jurídico autónomo”.

Abordando a questão da nulidade parcial do título e suas consequências – Abílio Neto, in “Manual da Propriedade Horizontal”, 2006 – págs. 29 e 30 – escreve:

“Quando ocorra essa hipótese, a sanção deste art. 1416.° — subordinação ao regime de compropriedade — deve ser aplicada apenas às fracções constituídas com ofensa da lei, passando, assim, a vigorar entre os titulares dessas mesmas fracções o regime da compropriedade.
Entre os restantes, nada impedirá, em princípio, que continue a vigorar o regime da propriedade horizontal, com as correcções e ajustamentos impostos por aquela conversão (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., pág. 402, e Henrique Mesquita, A Propriedade Horizontal, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIII, 1976, pág. 88, nota 26; em sentido divergente, vid. Ac. RP, de 26.1.1993).
Assim, se se instituir como fracção autónoma cada local de estacionamento separado dos restantes apenas por um traço ou um risco de tinta, faltam os requisitos da distinção, independência e o isoladamente de cada fracção em relação às outras, requisitos fundamentais nos termos do disposto nos arts. 1414.° e 1415.° do Código Civil.
Portanto esta propriedade horizontal não vale enquanto tal, pelo que os compradores das fracções autónomas — apartamentos e lojas — não são donos dessas fracções, mas comproprietários de todo o espaço das garagens, na percentagem ou permilagem igual à da sua fracção, em relação a todo o prédio”.

A expressão a falta de requisitos legalmente exigidos” que consta no art. 1416º,nº1, do Código Civil, abrange não só os enumerados no art. 1415º, mas também os “concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas”, que são de interesse e ordem pública.

A ofensa a preceitos regulamentares do interesse geral e ordem pública, portanto, imperativos implica nulidade, nos termos do art. 294.° do Código Civil. - Ac. da Relação de Lisboa, de 26.1.1993, JTRL00002367, in www.dgsi.pt.

Assim, declarando-se a nulidade parcial do título constitutivo no que respeita à fracção “O”, cujo logradouro era parte comum e foi pelo Réu destinado a oficina de reparação de automóveis, tendo privado da sua área integral os condóminos, o Acórdão considerou, que esse logradouro é parte comum de todos os condóminos, logo essa proporcionalidade calcula-se em função da permilagem de cada uma das fracções no condomínio.

Sustenta o recorrente que o Acórdão declarou a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal com base em matéria nova nunca antes debatida, pelo que existiria nulidade da decisão, nos termos do art. 668º,nº1, d) do Código de Processo Civil.

Carece de razão.

O Tribunal operou a partir dos factos provados, alegados como causa de pedir da peticionada nulidade e que foram versados na sentença recorrida.

Sufragamos a argumentação do Acórdão quando considera que não foram observados na constituição da fracção “O” os requisitos dos arts. 1414º – unidade independente – e 1415º do Código Civil – ser a fracção distinta e isolada das outras e com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

“Conforme resulta das Alíneas T) e U) dos factos Assentes e das respostas dadas aos Quesitos 1° e 2° da Base Instrutória, o espaço que deu origem à fracção “O” sempre esteve ligado ou interligado aos prédios contíguos, retirando qualquer autonomia ou independência à mesma fracção”.

Alega, ainda, o recorrente que a propriedade horizontal resultou, apenas, de uma vontade unilateral (individual), e todas as fracções, com excepção daquela que se pretende cancelar, foram vendidas, pelo que a nulidade do título implicará que todo o prédio tenha que ser devolvido ao regime da compropriedade, atribuindo-se a cada condómino a sua quota na propriedade horizontal, no caso, da recorrente 25,7%.

Mas não é assim.

Trata-se de nulidade parcial e não de nulidade total.

A propriedade horizontal foi constituída por negócio jurídico unilateral, mas as fracções foram posteriormente vendidas a diversos donos.

A declaração de nulidade tem efeito retroactivo, pelo que os condóminos se tornaram retroactivamente comproprietários daquela parte comum, de acordo com a permilagem de cada fracção.

Acerca do art. 1417º, nº1, do Código Civil e da constituição unilateral da propriedade horizontal, Abílio Neto, obra citada, pág. 39 escreve:

“A questão que a situação descrita coloca é a da eficácia daquele negócio jurídico: segundo Carvalho Fernandes, in “Lições de Direitos Reais”, 3ª ed., 1999, pág. 355, “A sua eficácia, em tudo o que pressuponha a pluralidade de condóminos, fica dependente da conditio juris da alienação de alguma fracção”; para M. Henrique Mesquita, “A Propriedade Horizontal”, em RDES, ano XXIII, 1976, págs. 97 e ss., o título constitutivo tem determinada eficácia jurídica, no sentido de o mesmo ser um acto de divisão do imóvel que produz efeitos imediatos relativamente à autonomização das fracções, mas a declaração do proprietário único de sujeitar o edifício ao regime da propriedade horizontal tem de se considerar, em certa medida, um negócio sujeito à condição suspensiva de alienação de alguma das fracções autónomas do prédio, para que haja pluralidade de condóminos”.

Sufragando a opinião de Henrique Mesquita, a condição suspensiva (alienação das fracções) já ocorreu, razão pela qual não se pode considerar a situação como se o promotor da propriedade horizontal continue a ser considerado o dono único e exclusivo do prédio.

Seria desconsiderar a natureza de direito novo que a propriedade horizontal exprime.

Importa saber se, ao pedirem a nulidade parcial do título constitutivo da fracção “O”, os AA. actuam com abuso do direito e obtêm assim – porque tal nulidade parcial foi declarada – um enriquecimento ilícito à custa do Réu.

Quanto ao abuso do direito.

Não afirma o Réu, com clareza, as razões por que considera que os AA. agem abusando do direito mas, cremos, que relacionam essa actuação ao facto de considerar que exercem um direito que não lhes assiste e assim se enriquecem sem causa, porque vêem o seu património aumentado à custa da proporção que deterão no logradouro – parte comum.

Dispõe o art. 334º do Código Civil – “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

O instituto do abuso do direito, bem como os princípios da boa-fé e da lealdade negocial são meios de que os tribunais devem lançar mão para obtemperar a situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora dos seus direitos, ou do exercício da acção, o faz de uma maneira que – objectivamente – e atenta a especificidade do caso, conduz a um resultado que viola o sentimento de Justiça prevalecente na comunidade, que, por isso, repudia tal procedimento, que apenas formalmente respeita o Direito, mas que, em concreto, o atraiçoa.

Como se sentenciou no Acórdão deste STJ, de 10.12.91, in BMJ, 412-460:

“ Nos termos do artigo 334º do Código Civil há abuso de direito e é portanto ilegítimo o seu exercício quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Agir de boa fé tanto no contexto deste artigo como no do artigo 762º, nº2, é “agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.”.
Os bons costumes entendem-se por seu turno como um “conjunto de regras de convivência que num dado ambiente e em certo momento as pessoas honestas e correctas aceitam comummente contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social”.
Finalmente, o fim social ou económico do direito, no âmbito dos direitos de crédito – o conteúdo da obrigação desdobra-se no direito à prestação e no dever de prestar – consiste precisamente na satisfação do interesse do credor mediante a realização da prestação por banda do devedor (artigo 397º do Código Civil)”.

O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.
A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

Como ensina o Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536:

“Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.

No âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória – “venire contra factum proprium” – que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.

O abuso do direito – “como válvula de escape” que deve ser, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações clamorosas do direito.

Como escreve o Prof. Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses –, pág.745:

“O “venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo.
O primeiro – o factum proprium – é, porém contrariado pelo segundo.”

“In casu”, para haver abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, seria necessário que a conduta dos Autores fosse no sentido de criar, razoavelmente, no Réu uma expectativa factual, sólida, de que não intentariam a acção por se conformarem com a situação que perdura desde 1990.

A conduta dos recorridos, para ser integradora do “venire” teria de, objectivamente, trair o “investimento de confiança” feito pelo Réu, importando que os factos demonstrassem que a conduta dos pretensos abusantes, constituiu, in concreto, uma clara injustiça.

Como lapidarmente ensina o Professor Menezes Cordeiro, in “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:

“ (...) 1°- Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
- 2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
- 3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
- 4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”

De modo algum se pode considerar que os AA. violam as regras da boa-fé, os bons costumes ou infringem o fim social ou económico do direito que exercem.

Como o processo exuberantemente demonstra, os AA. nunca aceitaram a situação criada pelo Réu – essa, sim, ilegal e violadora dos seus direitos, que os privou da fruição de parte comum do imóvel da qual o Réu colhe proveito económico, por via do arrendamento da fracção “O”.

É inquestionável essa situação e ilegalidade, como resulta do facto provado em 1.23:

“Na sequência da vistoria realizada no dia 3 de Maio de 2001 à VV-Comércio e Reparação de Automóveis, S.A., arrendatária do pátio, garagem e logradouro a que se alude em Q) (fracção O), a comissão presente no local conclui que o estabelecimento em causa não reunia as condições necessárias para funcionamento, pelas razões constantes do respectivo auto de vistoria, tendo proposto o indeferimento do pedido de emissão de Licença de Utilização e dado um prazo de 30 dias úteis para o requerente solicitar um pedido de Licenciamento de Obras ao abrigo do D.L. 445/94, de 15 de Outubro”.

Daí que assista aos AA. legitimidade para pôr termo a essa situação que os lesa, já que não é aceitável que tenham que conviver, no logradouro do prédio, com um estabelecimento notoriamente propiciador de risco e que as autoridades competentes consideraram estar em situação ilegal.

De modo algum os AA. pactuaram com a situação ou incutiram no Réu qualquer fundada e sólida expectativa de que sempre se quedariam inertes ante a situação, pelo que inexiste abuso de direito, conduta contraditória na sua actuação.

Inexistindo, por isso, venire contra factum proprium”.

Quanto ao enriquecimento sem causa.

Afirma o recorrente na conclusão 37ª – “Nunca os demais condóminos do prédio pretenderam adquirir a parte do edifício que corresponde a fracção “O”, nem o proprietário da mesma — que foi proprietário de todo o prédio — alguma vez pretendeu transmitir a sua propriedade, pelo que a atribuição da mesma aos primeiros traduz-se num enriquecimento ilegítimo, à custa da expropriação privada da propriedade”.

O art. 473º do Código Civil – consigna:

“1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa tem por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

Como ensina Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil” – vol. II – pág. 268.

“Integram o enriquecimento sem causa:
a) uma vantagem patrimonial, isto é, susceptível de avaliação económica, para uma pessoa;
b) um empobrecimento, correlativo ao enriquecimento, que incida sobre o património de outra pessoa;
c) a falta de uma justa causa do enriquecimento do primeiro e do correlativo empobrecimento do segundo […].
[…] Para que o enriquecimento dê origem a um direito de restituição é preciso que ocorra à custa do património de outra pessoa e que, além disso, não haja razão legal que o justifique.
Esse enriquecimento pode ter resultado do aumento verificado no património do enriquecido (aumento quantitativo ou qualitativo dos valores do activo, ou diminuição do passivo patrimonial), ou desse património não ter diminuído quando tal diminuição deveria, em condições normais, ter ocorrido.
A correlação entre o enriquecimento e o empobrecimento devem derivar de um único facto produtivo”.

O instituto do enriquecimento sem causa era já conhecido dos romanos segundo Pompónio – Digesto 50, 17, 206 – “iure naturae aequum est neminem cum alterius detrimento et iniuria fieri locupletiorem” [por direito natural, é justo que ninguém se enriqueça com prejuízo e ofensa de outrem].

Visa evitar que alguém avantaje o seu património à custa de outrem, sem motivo que o justifique.

O nº2 do citado art.473º integra três situações:
- o que foi indevidamente recebido (condictio indebiti);
- o que foi recebido em virtude de causa que deixou de existir (condictio ob causam finitam);
- o que foi recebido com base em efeito que não se verificou (condictio causa data causa non secuta, também chamada condictio ob rem).

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 454 a 456, ensinam:
“A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:
É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento.
Em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.
Finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição”.

“O enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) existência de um enriquecimento; b) que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique; c) que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído” – Acs. do S.T.J., de 23.4.1998, in BMJ, 476-370 e de 14.5.1996, CJST, 1996, II, 71.

Não existe enriquecimento sem causa se alguém através do exercício de um direito vê reconhecida uma vantagem patrimonial de que estava privado pela actuação lesiva de outrem.

Se alguém obtém, aquilo que lhe pertence à custa do lesante, não obtém um enriquecimento, mas tão só vê reintegrado o seu património; não existe empobrecimento daquele que lesava porque não tinha o direito que se arrogava, nem enriquecimento do lesado que se vê restituído ao seu pleno direito, que estava a ser perturbado pela actuação ilícita do alegado empobrecido.

No caso em apreço, o Réu terá que abrir mão da arrogada fracção “O” porque constituída ilegalmente.

A consequência da nulidade da constituição da propriedade horizontal daquela fracção faz com que ela deixe de assim ser considerada, tornando os donos das fracções – os condóminos do prédio – comproprietários da parte comum que pertence ao condomínio – art. 1420, nº1, do Código Civil – e não é, portanto, coisa da propriedade exclusiva do Réu.

O facto de a situação retroagir à data em que os AA. se tornaram donos do prédio nada terá de enriquecimento, a menos que se pudesse considerar que ao adquirirem as suas fracções, teriam pago um preço que não contemplava aquele logradouro como parte comum do imóvel (7), facto que não está demonstrado nos autos.

Finalmente, sustenta o recorrente, que a interpretação da lei acolhida no Acórdão, ao considerar parcialmente nulo o título constitutivo da propriedade da fracção “O” violou os arts. 111º, nº2 e 112º, nºs 1 e 2 da Constituição da República.

O recorrente alude à doutrina do Assento de 10.5.1989, acima citado, que foi aplicada pelas instâncias, e à tese que consagra a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal afirmando – fls. 1363 e 1365 – (alegações):

“…Importa, todavia, verificar se a interpretação que o Tribunal recorrido fez da norma que se extrai dos artigos do Código Civil referidos, nomeadamente do seu art. 1416°, n° l, é uma interpretação válida do ponto de vista constitucional ou se, pelo contrário, a norma na interpretação dada pelas Instâncias é passível de um juízo de inconstitucionalidade… a interpretação realizada pelas Instâncias viola frontalmente o art. 112°, n° 5 da Constituição quando recebe a violação das licenças camarárias como nova fonte de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, situação que não foi prevista pelo legislador.
A interpretação realizada pelo Tribunal recorrido deixa transparecer que os simples actos administrativos que dão execução às disposições do Regulamento Geral das Edificações Urbanas e as demais normas camarárias são normas imperativas em sede de direito privado comum, com igual força e dignidade do Código Civil.
E, assim, a decisão recorrida aceita que tais decisões Camarárias podem inovar a ordem jurídica existente, importando uma derrogação dos artigos 1414°, 1415°, 1416º e 1421° do Código Civil.
A interpretação da norma levada a cabo pelas Instâncias ao conferir natureza constitutiva, modificativa ou extintiva do direito à constituição da propriedade horizontal, nos moldes configurados no art°s 1414° e 1415° da Código Civil aos projectos da Câmara, editais camarários e normas do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, importa uma limitação inadmissível por violação das normas constitucionais em referência”.

Salvo o devido respeito, o que o recorrente põe em causa, objectivamente, é a constitucionalidade da doutrina acolhida Assento que, como é consabido, não constitui actualmente doutrina obrigatória, mas que não se antevê razão para não seguir.

Como se escreveu no Acórdão deste Supremo Tribunal de 14.5.2009, Proc. 218/09.OYFLSB, in www.dgsi.pt

“O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência não é, ao contrário dos antigos Assentos, estrita e rigorosamente vinculativo, antes representando jurisprudência qualificada.
No entanto, a sua componente vinculativa surge acentuada para as instâncias – como resulta, v.g., do nº2, alínea c) do artigo 678º do Código de Processo Civil – sendo meramente persuasiva, e mutável, para o Supremo Tribunal de Justiça.

O art. 111º da C.R. afirma:

“1. Os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição.
2. Nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei”.

O art. 112º, nº5, da Constituição consigna – “ Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.

Com o devido respeito, a interpretação feita dos arts. 1414º e 1415º do Código Civil de modo algum violou aqueles normativos da lei Fundamental.

O recorrente insinua que as instâncias violaram a separação de poderes estabelecida no nº1 do art. 111º por, na sua perspectiva, terem criado normas legais o que constitui exclusivo do poder legislativo.

O que está em causa é a interpretação da lei e nada mais que isso.

O Tribunal da Relação, assim como o Tribunal de 1ª Instância, interpretaram os citados normativos do Código Civil, conjugadamente com as normas do RGEU, acolhendo os critérios da hermenêutica contidos no art. 9º do Código Civil, mormente quando se impõe que na interpretação da lei se atenda à unidade do sistema jurídico e à presunção da consagração pelo legislador das soluções mais acertadas.

Ao atribuir a devida relevância jurídica aos preceitos do RGEU – do que discorda o recorrente, como discorda da doutrina do Assento – aqueles Tribunais agiram no exercício do seu poder soberano de julgar, não infringindo aquelas normais constitucionais.

A interpretação conforme à Constituição, a que alude o recorrente quando escreve – fls. 1366 – “o intérprete está obrigado a adoptar o sentido mais conforme com a Constituição no caso de uma norma interpretativa polissémica. Entre um sentido que e passível de um juízo de inconstitucionalidade ou de um sentido conforme a Constituição, o intérprete e aplicador das normas deve optar por esta última, a não ser que o sentido claro e inequívoco da lei seja rotundamente o sentido inconstitucional, caso em que a mesma deverá ser declarada, afastando-se a sua aplicação. Pelo que as normas só comportam um sentido: o sermão defendido pela recorrente” – existe sempre que determinada disposição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação, sendo algumas delas incompatíveis com a própria Constituição, implica, necessariamente, que se excluam as possibilidades de interpretação consideradas inconstitucionais.

Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional” – 6ª edição – pág. 1295 – acerca da competência legislativa e competência jurisdicional enquadrada na vertente da interpretação conforme à Constituição escreve:

[…] A alteração do conteúdo da lei através da interpretação pode levar a uma usurpação de funções, transformando os juízes em legisladores activos.
Se a interpretação conforme a constituição quiser continuar a ser interpretação, ela não pode ir além dos sentidos possíveis, resultantes do texto e do fim da lei.
Por outras palavras: a interpretação conforme a constituição deve respeitar o texto da norma interpretanda e os fins prosseguidos através do acto normativo sujeito a controlo”.

Jorge Miranda, in “Manual de Direito Constitucional”, 2ª edição, Coimbra Editora, 1988, Tomo II. p.233 ensina:

“A interpretação conforme à Constituição não consiste tanto em escolher, entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito, o que seja mais conforme à Constituição quanto em discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, conquanto não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental”.

A interpretação feita pela Relação – de que se pode obviamente discordar – não implica violação constitucional, por não haver usurpação de funções – nem pelo facto de ter sido valorado normativamente um diploma que, na perspectiva do recorrente, não devia ter sido atendido no caso em apreço.

Pelo quanto dissemos o recurso soçobra.

Decisão:

Nestes termos nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Setembro de 2009

Fonseca Ramos (Relator)
Cardoso de Albuquerque.
Salazar Casanova

_________________________________

(1)- Mantém-se a identificação dos factos provados tal como consta do Acórdão recorrido.
(2) “Os caracteres fundamentais do regime jurídico da vulgarmente chamada propriedade horizontal”, escreveu-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.°40333, “são dados pela verificação cumulativa das seguintes circunstâncias: a) A existência de várias propriedades singulares sobre as diversas fracções em que o prédio se subdivide; A articulação de todas as fracções num todo ou unidade, que é o edifício; c) A existência de bens comuns aos diversos proprietários.” – cfr. Rui Vieira Miller, in “A Propriedade Horizontal no Código Civil” , 3ª edição, 1998, pág. 66.
(3) No direito anterior – art. 4.° do Decreto-Lei n.°40333: “Só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que constituam unidades aptas para os fins mencionados no artigo 1.° e que sejam suficientemente distintas e isoladas entre si. § 1.° Se o prédio for construído propositadamente para ser vendido em fracções, nos termos do artigo 2.° será este requisito considerado na aprovação do respectivo projecto; nos outros casos será verificado por vistoria da câmara municipal do concelho respectivo ou por vistoria judicial, conforme a propriedade horizontal for constituída, respectivamente, por negócio jurídico, ou por decisão judicial. § 2.° Se, porém, esta forma de domínio for titulada por testamento, a prova do mencionado requisito só será exigível para o registo definitivo da constituição”.
(4)“A propriedade horizontal, vagamente prevista no art. 2335.° do Código de 1867, teve efectiva introdução na ordem jurídica portuguesa com o Dec.-Lei n.° 40 333, de 14 de Outubro de 1955 (veja-se também o notável Parecer da Câmara Corporativa, da autoria de M. Gomes da Silva), verificando-se desde logo uma expansão espectacular. O Código Civil limitou-se a consagrar, esclarecendo-os aqui e além, os preceitos básicos daquele decreto-lei”.
(5) O Decreto-Lei n.º 38 382 de 7 de Agosto de 1951 que aprovou o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) foi sendo sucessivamente alvo de alterações ao longo do tempo, nomeadamente pelos Decreto-Lei n.º 38 888 de 29 de Agosto de 1952, Decreto-Lei n.º 44 258 de 31 de Março de 1962, Decreto-Lei n.º 45 027 de 13 de Maio de 1963, Decreto-Lei n.º 650/75 de 18 de Novembro, Decreto-Lei n.º 43/82 de 8 de Fevereiro, Decreto-Lei n.º 463/85 de 4 de Novembro, Decreto-Lei n.º 172–H/86 de 30 de Junho, Decreto-Lei n.º 64/90 de 21 de Fevereiro, Decreto-Lei n.º 61/93 de 3 de Março, Decreto-Lei n.º 409/98 de 23 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 410/98 de 23 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 414/98 de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 555/99 de 16 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 177/2001 de 4 de Junho, Decreto-Lei n.º 290/2007 , de 17 de Agosto e Decreto-Lei n.º 50/2008, de 19 de Março.
(6) O artigo 10° do mencionado Edital (Edital 101/62 de 5 de Maio de 1962 – Construções de Edificações Urbanas): estatuía: “ Nos prédios a construir nos arruamentos com larguras iguais ou superiores a 23 metros, deverá considerar-se, em princípio, o estabelecimento de parques de estacionamento de automóveis destinados aos utentes dos mesmos prédios, desde que as características do lote o permitam”.
(7) Cfr. Acórdão deste STJ, de 20.4.2004, in CJSTJ, Tomo II, 2004, pág. 35.