Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2231
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PAULO SÁ
Descritores: ACÇÃO DE DESPEJO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ2006103102231
Data do Acordão: 10/31/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - A ocupação de um prédio ou fracção, como oposição do proprietário, pode implicar a indemnização deste pela ocupação e pelos danos que o prédio ou fracção tenha sofrido.
II - O recebimento de “rendas” pela Autora, proprietária da fracção autónoma, após a caducidade do contrato de arrendamento, por morte do arrendatário, é compatível a com a intenção de obter, pelo menos, parcial pagamento pela ocupação abusiva que o Réu vem fazendo daquela fracção, não podendo inferir-se desse recebimento um comportamento de tolerância ou de aceitação do ocupante como arrendatário.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – No Tribunal da Comarca de Lisboa, AA e marido BB intentaram acção de despejo, com processo sumário sob a forma sumária, (subsequentemente convolada em ordinária mercê da reconvenção) contra CC pedindo que, por via da caducidade do contrato de arrendamento em questão, seja o Réu condenado a despejar imediatamente o locado e bem assim condenado a pagar-lhes a importância que for fixada em liquidação de sentença, tendo por base a quantia diária de 3.000$00, a contar da citação da presente acção até entrega daquele andar completamente desocupado.

O pedido é fundado, em síntese, nos seguintes factos:

Entre o anterior dono do prédio que identifica e DD, foi ajustado um contrato de arrendamento; que o inquilino faleceu sem que naquele momento tivesse deixado quaisquer parentes ou afins na linha recta que com ele coabitassem e que consequentemente o contrato de arrendamento caducou com a sua morte; o Réu, ao contrário do que se arroga, não tem qualquer direito a permanecer no arrendado porquanto não existe fundamento para que o mesmo arrendamento se lhe transmita já que não vivia com o seu pai no último ano de vida deste.
A detenção do andar pelo Réu causa-lhes prejuízos porquanto o mesmo vale actualmente, a preços de mercado, renda mensal não inferior a 90.000$00 mensais.
Citado regularmente, contestou o R., Réu, por excepção, arguindo erro na forma do processo, ilegitimidade passiva e abuso de direito por parte dos AA., já que tiveram há longos anos conhecimento da morte do pai do Réu ocorrida em 1970, e que receberam durante mais de 31 anos as rendas e até a renda do mês de Março pagas pelo Réu e, por impugnação, negando existir fundamento legal para o despejo uma vez que, no seu entender o contrato de arrendamento não caducou, antes se transmitiu ao Réu na qualidade de filho do inquilino que com ele convivia há mais de um ano à data da morte, bem como os restantes filhos e a companheira do pai, sua mãe.
Deduziu igualmente reconvenção na qual peticiona se reconheça o Réu como inquilino da fracção em causa, por para si se ter transmitido a posição do seu falecido pai, primitivo arrendatário, vigorando as condições do primitivo contrato de arrendamento, peticionando também, a condenação dos AA a pagarem-lhe a título de reembolso das despesas de reparações urgentes no arrendado a quantia de 15.000,00 euros.
Em resposta, a A. pugnou pela improcedência das excepções deduzidas, referindo designadamente que o Réu nunca comunicou o falecimento de seu pai aos AA, nem ao seu procurador, negando que alguma vez tenham recebido a renda do Réu, admitindo, face à morte do pai, que o Réu o tenha efectuado, se bem que em datas bem recentes e que jamais informou os AA da necessidade de realização de quaisquer obras ou os instou a fazê-las ou a pagá-las.
Foi proferido despacho saneador no qual se conheceram das excepções deduzidas de erro na forma do processo e de ilegitimidade no sentido da sua improcedência e consignou-se a matéria de facto assente e a base instrutória, tendo havido reclamação que foi indeferida.
Fixada a matéria de facto assente e a que iria submeter-se a prova, procedeu-se a julgamento, tendo sido respondido à matéria de facto sem reclamações.
A sentença teve a acção por parcialmente procedente, reconhecendo a caducidade do arrendamento e, em consequência:
a) condenou o Réu a despejar imediatamente o identificado prédio dos AA., livre e devoluto de pessoas e bens e a entregá-lo a estes;
b) condenou o Réu a pagar aos A.A., a título de indemnização, quantia mensal correspondente ao dobro do valor da renda, desde a data da citação (1.3.02) até efectivo despejo, no mais o absolvendo a esse título
Em consequência da improcedência dos pedidos reconvencionais foram os Autores absolvidos dos mesmos.
Inconformado o R. apelou, recurso esse que foi admitido.
Os apelados pugnaram pela confirmação do julgado.
A Relação de Lisboa veio a proferir acórdão no qual julgou procedente o recurso de apelação e, consequentemente, revogou a sentença, absolvendo-se os R.R. do pedido.
De tal acórdão vieram os AA. interpor recurso de revista, recurso que foi admitido.
Os recorrentes apresentaram as suas alegações, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:
1. O douto acórdão recorrido premiou a violação por parte do R. dos deveres que a lei lhe impõe enquanto parte do processo.
2. O R. não comunicou aos AA. a morte do locatário, tendo optado pelo silêncio ocupando e usufruindo do locado durante muitos anos.
3. Ao ser detectada a situação irregular em que se encontrava, o R. negou a evidência, prestando falsas declarações ao Tribunal (destaca-se pela sua relevância o facto de alegar que não tinha qualquer outra casa quando afinal tinha e tem outra casa que adquiriu por compra para sua residência permanente).
4. Os AA. só após terem sido notificados do douto acórdão recorrido vieram a descobrir que o R. em 2000.05.02, tinha comprado casa.
5. Se não fossem as falsas declarações do R. ao Tribunal, a questão do direito à transmissão do arrendamento nem sequer poderia ser discutida (cfr. art.ºs 85.º e 86.º do RAU).
6. Tendo caducado o contrato de arrendamento com a morte do locatário não se vislumbra por parte dos AA. qualquer propósito de o fazer renascer ou sequer qualquer comportamento donde possa extrair-se tal conclusão.
7. Logo que os AA. tiveram conhecimento da morte do locatário e que a casa estava a ser ocupada pelo R. que não tinha direito à transmissão do arrendamento, tudo fizeram para exigir a entrega dessa casa completamente desocupada, designadamente enviaram-lhe uma carta registada C/A.R. a exigir a entrega do locado e, esgotadas as hipóteses de entrega extrajudicial do locado, propuseram a competente acção judicial.
8. A oposição dos AA. à presença do R. no locado foi firme, jamais tendo desistido ou abrandado nas diligências com esse propósito.
9. Em momento algum tiveram qualquer comportamento donde pudesse concluir-se ser seu propósito reconhecer o R. como seu inquilino ou criaram a expectativa ao R. de com ele vir a celebrar contrato de arrendamento.
10. O R. alegou na sua douta contestação que era ele quem pagava as rendas, mas não fez qualquer prova nesse sentido.
11. Dado que não estava em causa o pagamento de rendas esse facto não tinha o relevo que o douto acórdão recorrido pretende dar-lhe.
12. Só no dia designado para a audiência de julgamento, o R. veio surpreendentemente juntar o documento de fls. 462.
13. Com o devido respeito por entendimento diverso, nem esse documento nem os documentos de fls. 478/480, que foram impugnados em sede própria, têm a virtualidade de provar a existência de um contrato de arrendamento, dado que tal prova não se extrai da sua literalidade e estão em total desacordo com a posição assumida pelos AA. ao longo deste processo.
14. O R. aproveitou-se da circunstância de os AA. viverem fora de Portugal Continental e de ser o Banco a administrar o prédio.
15. Por esse facto a comunicação ao Banco para não emitir mais recibos porque o inquilino já tinha falecido não foi tão pronta quanto devia.
16. Extrair desse facto a conclusão de que esse comportamento equivale à formação de um novo contrato com o R. é, com o devido respeito, uma sanção demasiado gravosa para os AA. e completamente contrária à sua vontade real evidenciada ao longo de todo este processo.
17. Os AA. desconheciam que era o R. quem pagava as rendas, conforme resposta negativa ao quesito 9.º da base instrutória.
18. Mas não seria lógico nem razoável que excluíssem categoricamente a hipótese de o R. ter pago alguma ou algumas rendas, porque se o fizessem estariam a fazer afirmações de factos de que não tinham a percepção.
19. Se não podiam excluir essa hipótese teriam de a admitir, mas daí a reconhecerem que era o R. quem pagava as rendas ou de que deram a sua aquiescência, vai um passo gigantesco.
20. Essa posição foi evidenciada em várias intervenções no processo designadamente na resposta à contestação (art.os 9.º a 13.º) e na resposta à reclamação da matéria de facto.
21. O comportamento dos AA. desde que tiveram conhecimento da situação da ocupação irregular do locado por parte do R. é de todo incompatível com a formação de um novo contrato para legitimar tal ocupação e outro sentido não poderá ser extraído desse comportamento (art.º 236.º do C. P. Civil).
22. Das declarações negociais também não pode extrair-se essa conclusão porque nem sequer houve proposta nem contraproposta em vista à formação de um novo contrato.
23. A emissão de recibos de renda em nome do falecido inquilino não é, com o devido respeito, prova da existência de um novo contrato em nome do R.
24. A renovação do contrato caduco depende de dois factores, da manutenção do arrendatário na posse do prédio e da falta de oposição por parte do locador ao verificar esse gozo (art° 1056° do C. Civil).
25. A resposta ao quesito 8.º da base instrutória foi dada com restrições tendo o quesito 9.º tido resposta negativa.
26. O R. não impugnou em sede de recurso a decisão proferida sobre a matéria de facto relativa aos mencionados quesitos, pois se o fizesse teria de obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (art.º 690-A do C. P. Civil).
27. Pelo que a sua pretensão de ver alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto deveria ter sido rejeitada.
28. Mas ao contrário disso, o douto acórdão recorrido não só se alheou do comando do dispositivo legal antes citado como extravasou das conclusões formuladas pelo R. para o favorecer na sua pretensão, violando assim o princípio do dispositivo e da igualdade de partes, proferindo uma autêntica decisão surpresa (art.os 684.º n.os 2 e 3 e 690.º-A do C. P. Civil.)
29. Não é correcta a afirmação de que do processo constam todos os meios de prova necessários para proferir tal decisão, na medida em que foram ouvidas testemunhas à matéria dos factos em apreço, conforme consta da acta de audiência de julgamento e a gravação dos seus depoimentos não foi ouvida em sede de recurso, pois nem sequer foi indicada.
Pede que se revogue o acórdão da Relação e se amplie a matéria de facto com os elementos resultantes dos documentos que apresentou.
Houve resposta, na qual se defendeu a manutenção do acórdão recorrido.
Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A) De Facto

Da discussão da causa nas instâncias resultou provada a seguinte matéria de facto, (A Relação alterou as respostas às alíneas N. e O. e aditou a demais matéria de facto assinalada a itálico):
A. A Autora é dona da fracção autónoma designada pela letra “E” a que corresponde o primeiro andar esquerdo do prédio urbano, sito na Rua ....., n.º 00, em Lisboa, inscrito na respectiva matriz da freguesia de Santa Maria de Belém sob o artigo.1.653, concelho de Lisboa;
B. O anterior dono da fracção, EE, deu-a de arrendamento a DD pelo prazo de seis meses sucessivamente renovado por igual período, com início no dia 1 de Setembro de 1963
C. A renda acordada foi de esc. 1.100$00 mensais, devendo ser paga em casa do senhorio ou de quem o representasse, no primeiro dia útil do mês anterior aquele a que respeitava;
D. A renda tem sido actualizada, pelo que foi fixada em esc. 10.567$00 a partir da que se venceu no dia 1 de Janeiro de 2002;
E. Os anteriores donos da fracção encarregaram, entretanto, o Banco Nacional Ultramarino da sua administração, que inclui, além do mais, a cobrança das rendas, bem como a sua actualização;
F. Situação que a A. manteve quando adquiriu a propriedade plena do imóvel;
G. DD, faleceu no dia 25 de Novembro de 1970, no estado civil de viúvo de FF;
H. Por carta registada com aviso de recepção de 25 de Julho de 2001 os AA. interpelaram o R. para que lhes entregasse a fracção desocupada, em virtude de o arrendamento ter caducado por morte do inquilino;
I. Entrega que o R. recusou por carta de 12 de Setembro de 2001;
J. O réu ocupa o andar e recusa-se a sair de lá;
K. O réu é filho de DD;
L. Os autores residem nos Açores;
M. Em 25.7.01, os AA já tinham conhecimento do falecimento do inquilino;
N. Pelo menos, desde Dezembro de 2001, que as rendas foram pagas pelo réu;
O. O que os AA. conheciam;
P. O réu conviveu com sua mãe na fracção autónoma em causa sensivelmente desde 1987 e até há seis anos a esta parte;
Q. A mãe do Réu viveu em condições análogas às dos cônjuges com o pai do réu durante vários anos e com as restantes filhas de ambos;
R. Actualmente, só o réu, a companheira deste e a filha de ambos residem na fracção em causa;
S. Na fracção em causa, dormem, comem, recebem as visitas de familiares e amigos, é aí o centro de vida todos os dias;
T. A fracção está velha e nem o primitivo senhorio, nem os autores fizeram quaisquer obras;
U. Na varanda foram reparados e pintados os componentes metálicos dos varandins e elementos de protecção da mesma, a janela original da sala foi substituída por outra em caixilharia de alumínio e também foi removida a estrutura de ferro que sustentava originalmente os vidros da marquise e substituída por uma nova em caixilharia de alumínio.
V. O BNU/CGD, na qualidade de procurador da A., emitiu, mensalmente, recibo de renda da referida fracção, em nome de DD, até Outubro de 2004 (referente à renda de Novembro de 2004);
W. Como igualmente procedeu à actualização anual da mesma renda relativamente aos anos de 2003 e 2004.

B) De Direito

III.1 – Pese embora a deficiente formulação das conclusões são duas as questões suscitadas pelo recorrente: a incorrecta alteração pela Relação da matéria de facto e a conclusão de direito extraída dessa matéria de facto.

III.2 – A alteração pela Relação da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto é uma faculdade prevista no artigo 712.º, n.º 1, do CPC.

A Relação fez uso, no presente processo, da referida faculdade.

As decisões da Relação previstas no artigo 712.º do CPC não admitem recurso, ex vi do disposto no n.º 6 do citado artigo, aditado pelo Decreto-Lei n.º 375-A/99, de 20 de Setembro.

Antes porém, desta alteração legislativa já a jurisprudência se formara no mesmo sentido, pelo que o n.º 6 do artigo 712.º mais não representa que a consagração, em letra de lei, da doutrina já maioritariamente seguida nos tribunais (cf. Acórdão deste STJ de 3 de Julho de 2003, Revista n.º 4730/02-2ª Secção, in Sumários dos Acórdãos de Julho/Setembro de 2003, Gabinete dos Juízes Assessores, p. 28).

Compreende-se que assim seja.

Na verdade, é às instâncias que compete a fixação da matéria de facto, cabendo ao Supremo aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (cf. Artigo 729.º, n.º 1, do CPC).

Por outro lado, não podemos deixar de chamar à colação o Assento n.º 10/94, de 13 de Abril de1994 (BMJ n.º 436, p. 15, D.R., I, de 26 de Maio de 1994), segundo o qual “[n]ão é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que, revogando o saneador-sentença que conhecera do mérito da causa, ordena o prosseguimento o prosseguimento do processo, com elaboração de especificação e questionário”.

Apesar da abolição dos assentos, tal doutrina manteve-se em vigor (cf. Acórdão do STJ de 4 de Março1997, in BMJ n.º 465.º, p. 511).

Porém, tal entendimento já não será o correcto se não tiver sido respeitado o comando dos artigos 690.º-A e 712.º do Código de Processo Civil, tendo a Relação alterado a matéria de facto com violação da lei.

Ou seja, o Supremo Tribunal não pode censurar o não uso pela Relação dos poderes de alterar a matéria de facto mas pode censurar o uso que a Relação deles faça.

Assim, por exemplo, se a Relação, por presunção judicial, dá como provado um facto que não foi alegado nem quesitado, facto esse em oposição com um facto dado como provado por acordo das partes, em violação do disposto nos artigos 664.º, 490.º, n.º 2, 659.º, n.º 3 e 712.º (Cf. acórdão de 27 de Setembro de 2005, Revista n.º 1891/05-1.ª, in Sumários, n.º 93, p. 70.)

De igual modo, o Supremo pode sindicar qualquer desrespeito dos estritos pressupostos, em que a alteração, pela Relação, da matéria de facto é possível, ao abrigo do artigo 712.º do Código de Processo Civil.

Neste sentido é abundante a jurisprudência deste Tribunal, podendo citar-se a título exemplificativo, os acórdãos de 16 de Dezembro de 1999, processo n.º 1022/99, da 1.ª Secção, de 19 de Março de 2002, Processo n.º 299/02, da 7.ª Secção, de 16 de Outubro de 2003, processo n.º 03B2813, de 13 de Novembro de 2003, processo n.º 03B2343 e de 19 de Novembro de 2003, processo n.º 04B1528.

Justifica-se que se transcreva do acima citado acórdão de 13 de Novembro de 2003 o seguinte trecho:

“Constitui jurisprudência pacífica a de que o Supremo pode exercer censura sobre o uso que a Relação tenha feito dos poderes conferidos pelo art. 712.º do CPC.
Mas isso significa, apenas, que ao Supremo compete verificar – e não também que possa sindicar a apreciação das provas a que a Relação tenha procedido, uma vez que esta actividade respeita ao apuramento da matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias. Actualmente, esta afirmação tem por si a força da lei: do n.º 6 do art. 712.º decorre que a decisão da Relação que exercite os seus poderes de alteração da matéria de facto é insusceptível de recurso. Esta norma, introduzida pelo Dec-Lei 375-A/99, de 20 de Setembro, não é, porém, aplicável aos processos pendentes à data da entrada em vigor daquele diploma.”

A este respeito é exemplar, pela sua clareza, a explicação do Prof. Alberto dos Reis, que mantém plena actualidade:
«Com fundamento no n.º 1, a Relação diz: os elementos de prova constantes do processo justificam decisão diversa da que o tribunal colectivo proferiu. O Supremo não pode exercer censura para o efeito de declarar: não é exacto; os elementos do processo não justificam a alteração. Mas pode perfeitamente intervir para observar: a Relação aplicou indevidamente o n.º 1, porque não constam do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão do tribunal colectivo.
A Relação serve-se do n.º 2.º para alterar a decisão do tribunal colectivo; o Supremo não pode exercer esta censura: os elementos fornecidos pelo processo não impõem decisão diversa da que o tribunal colectivo emitiu. Mas pode sair ao caminho para considerar: a Relação atribuiu a tal ou tal documento força probatória diversa da que a lei lhe dá.
A Relação altera a decisão do tribunal colectivo com base no n.º 3 do art. 712.º; o Supremo pode apreciar se realmente se verifica o caso do n.º 3 do art. 771.º, isto é, se o documento apresentado é novo e superveniente e se tem a força probatória que a Relação lhe atribui.
Em resumo: uma coisa é a apreciação das provas por parte do tribunal colectivo e da Relação, outra a questão de saber se esta fez uso legal dos n.os 1, 2 e 3 do art. 712.º; a primeira é questão de facto, com a qual nada tem o Supremo; a segunda é questão de direito, em relação à qual é legítima a censura por parte do tribunal de revista» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1952, pp. 473/474).

Vejamos a situação dos presentes autos.

Efectivamente, a Relação entendeu que os elementos de prova constantes dos autos podiam e deviam ser reapreciados e com base em documentos não impugnados ou por entender que havia documentos que impunham resposta diversa insusceptível de ser destruída por qualquer outras provas.
No caso em apreço houve gravação da prova e impugnação da decisão relativa à matéria de facto, nos termos do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, tendo a Relação sustentado poder dar outra resposta aos quesitos, por dispor de elementos de prova que impunham outra decisão, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova, por se tratar de documentos não impugnados.

Pensamos que a situação em causa não se integra na alínea b) do n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil.

De facto o documento de fls. 489 foi impugnado (fls. 468 e 495) e apenas foi junto aos autos antes de audiência de julgamento. Mesmo que dele se possa inferir que a conta referida nos recibos de prenda é do R., esse facto só é do conhecimento dos AA. a partir da informação do Montepio Geral. Ou seja, só a partir da junção aos autos da referida informação se pode dizer que os AA. têm conhecimento de que é a conta do R. que suporta o pagamento das rendas. O banco, procurador dos AA. não é obrigado a pesquisar quem paga os recibos. Não pode, por isso, extrair-se desse documento, por forma insusceptível de ser destruída pela outra prova produzida na audiência, a alteração a que se procedeu na Relação relativamente aos quesitos 8.º e 9.º.

Ocorrendo violação dos pressupostos do artigo 712.º, pode este Tribunal censurar o uso efectuado pela Relação dos poderes conferidos pela citada norma, repondo a resposta dada na 1.ª instância aos referidos quesitos.

Não é obstáculo a este entendimento não ter o R. interposto recurso da matéria de facto, uma vez que a alteração da matéria de facto pela Relação não derivou da alínea a), do n.º 1, do referido artigo 712.º.

Termos em que se torna definitiva a seguinte matéria de facto:

A. A Autora é dona da fracção autónoma designada pela letra “E” a que corresponde o primeiro andar esquerdo do prédio urbano, sito na Rua ..., n.º 00, em Lisboa, inscrito na respectiva matriz da freguesia de Santa Maria de Belém sob o artigo.1.653, concelho de Lisboa;
B. O anterior dono da fracção, EE, deu-a de arrendamento a DD pelo prazo de seis meses sucessivamente renovado por igual período, com início no dia 1 de Setembro de 1963
C. A renda acordada foi de esc. 1.100$00 mensais, devendo ser paga em casa do senhorio ou de quem o representasse, no primeiro dia útil do mês anterior aquele a que respeitava;
D. A renda tem sido actualizada, pelo que foi fixada em esc. 10.567$00 a partir da que se venceu no dia 1 de Janeiro de 2002;
E. Os anteriores donos da fracção encarregaram, entretanto, o Banco Nacional Ultramarino da sua administração, que inclui, além do mais, a cobrança das rendas, bem como a sua actualização;
F. Situação que a A. manteve quando adquiriu a propriedade plena do imóvel;
G. DD faleceu no dia 25 de Novembro de 1970, no estado civil de viúvo de FF;
H. Por carta registada com aviso de recepção de 25 de Julho de 2001 os AA. interpelaram o R. para que lhes entregasse a fracção desocupada, em virtude de o arrendamento ter caducado por morte do inquilino;
I. Entrega que o R. recusou por carta de 12 de Setembro de 2001;
J. O réu ocupa o andar e recusa-se a sair de lá;
K. O réu é filho de DD;
L. Os autores residem nos Açores;
M. Em 25.7.01, os AA já tinham conhecimento do falecimento do inquilino;
N. Ultimamente as rendas foram pagas pelo réu;
O. O réu conviveu com sua mãe na fracção autónoma em causa sensivelmente desde 1987 e até há seis anos a esta parte;
P. A mãe do Réu viveu em condições análogas às dos cônjuges com o pai do réu durante vários anos e com as restantes filhas de ambos;
Q. Actualmente, só o réu, a companheira deste e a filha de ambos residem na fracção em causa;
R. Na fracção em causa, dormem, comem, recebem as visitas de familiares e amigos, é aí o centro de vida todos os dias;
S. A fracção está velha e nem o primitivo senhorio, nem os autores fizeram quaisquer obras;
T. Na varanda foram reparados e pintados os componentes metálicos dos varandins e elementos de protecção da mesma, a janela original da sala foi substituída por outra em caixilharia de alumínio e também foi removida a estrutura de ferro que sustentava originalmente os vidros da marquise e substituída por uma nova em caixilharia de alumínio.
U. O BNU/CGD, na qualidade de procurador da A., emitiu, mensalmente, recibo de renda da referida fracção, em nome de DD, até Outubro de 2004 (referente à renda de Novembro de 2004);
V. Como igualmente procedeu à actualização anual da mesma renda relativamente aos anos de 2003 e 2004.

III.3 – Vejamos se mantemos idêntica postura quanto à conclusão de direito.
Define o artigo 1022.º do Código Civil como de locação “o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa mediante retribuição.”
Tal contrato designa-se por arrendamento quando versa sobre coisa imóvel (artigo 1023.º do Código Civil).
Temos, portanto que, segundo a lei civil, o arrendamento é um contrato em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa imóvel, mediante retribuição.
Na qualificação do arrendamento é importante ter-se em conta o fim imediato da actividade que se exerce no prédio, bem como a ligação directa ou imediata do imóvel com a actividade exercida pelo locatário (v. ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 114.º, p. 13, em anotação ao Acórdão. do STJ de 19 de Março de 1980).
Estipula o artigo 3.º do Regime de Arrendamento Urbano (doravante RAU), previsto pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 Outubro, que o arrendamento urbano pode ter como fim, entre outros, a habitação (seu n.º 1).
Acrescenta ainda o seu artigo 7.º que o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
A relação jurídica de arrendamento pode extinguir-se de diferentes maneiras, nomeadamente pela caducidade do respectivo contrato. (art. 50º do RAU e 1047.º do CC), sendo um dos casos a morte do locatário (artigo 1051.º do Código Civil).
Porém, nos termos do artigo 85.º da RAU, o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviverem as pessoas referidas nas diversas alíneas deste normativo, segundo a ordem e nos demais termos aí previstos.
As normas seguintes do RAU, estabelecem os termos em que tal transmissão pode ocorrer, destacando-se o dever de comunicação ao locador (artigo 89.º), cuja inobservância é sancionada com a possibilidade de ser devida indemnização pelos danos decorrentes da omissão.
Não há qualquer dúvida de que o arrendamento inicial caducou por morte do arrendatário.
Também não há qualquer dúvida de que desde que os AA. tiveram conhecimento da morte do arrendatário vieram a exigir do R. a entrega do prédio que havia sido locado, ao que este sempre se opôs.
Também resultou provado que é o R. que ultimamente vem pagando as rendas.
Daqui não se pode inferir qualquer comportamento de tolerância ou de aceitação dos AA. para com o R.
Mesmo que assim não fosse, isto é, mesmo a manter-se inteiramente a matéria de facto tal como a fixou a Relação, estar-se-ia perante um comportamento contraditório que a Relação valorou no sentido de se ter operado a aceitação pelos AA. do ocupante como arrendatário.
Porém, pensamos que seria a inversa a conclusão que tal matéria de facto comportava.
Temos, por um lado, elementos claros de que os AA. pretendem obter a restituição do prédio ocupado pelo R.
Por outro, temos que reconhecer – atenta essa matéria de facto – que os AA. sabem que é o R. que ocupa o prédio em questão, com a sua família e quem paga as rendas, com as respectivas actualizações.
A aparente contradição só existe na perspectiva no entendimento do acórdão recorrido e deveria ter conduzido à posição contrária, à luz do artigo 236.º do Código Civil.
Mesmo que não exista qualquer contrato, a ocupação de um prédio ou fracção, com oposição do proprietário, pode implicar a indemnização deste pela ocupação e pelos danos que o prédio ou fracção tenha sofrido.
No caso em apreço foi peticionada uma indemnização pela ocupação.
O recebimento das “rendas” é assim compatível com a intenção dos AA. de obter, pelo menos, parcial pagamento pela ocupação abusiva.
O artigo 1056.º do Código Civil não pode servir de apoio à interpretação acolhida pela Relação, pois que tal norma se aplica em relação ao arrendatário, qualidade que o R. não possui.
O facto de os recibos continuarem a ser passados em nome do primitivo arrendatário, de apenas se procederem às actualizações legais permitidas por lei e de não se terem pedido novas rendas compatíveis com um novo contrato de arrendamento, igualmente favorecem a tese oposta à da Relação.
São limitados os poderes de administração do procurador dos AA.(ver a alínea E. da matéria de facto), pelo que o recebimento das rendas e as respectivas actualizações, apenas valem no sentido de que os AA. efectivamente receberam as respectivas quantias.
Em conclusão dir-se-á que (mesmo na perspectiva do acórdão da Relação) existe fundamento para a procedência do pedido de restituição do prédio dos AA., o que implica dever igualmente manter-se o decidido na 1:ª instância, quanto à indemnização.
Por maioria de razão tal decisão impõe-se perante a matéria de facto, tal como ficou, em definitivo, fixada.
Termos em que se acorda em julgar procedente o recurso de revista interposto, revogando-se, consequentemente, o acórdão recorrido, subsistindo integralmente a decisão da 1.ª instância.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 31-10-2006

Paulo Sá (Relator)
Borges Soeiro
Faria Antunes