Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | REIS FIGUEIRA | ||
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Nº do Documento: | SJ200210080020431 | ||
Data do Acordão: | 10/08/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 11633/01 | ||
Data: | 01/24/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
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Sumário : | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça No Tribunal Marítimo de Lisboa, a "A, sociedade anónima", deduziu, por apenso à execução que lhe instaurou "B", embargos à dita execução e oposição à liquidação. Salvo quanto aos juros, que se decidiu serem à taxa de 7% a contar das datas do vencimento dos títulos dados è execução, em tudo o mais foram os embargos julgados improcedentes na primeira instância. Mediante recurso de apelação do embargante, a Relação de Lisboa confirmou a decisão de primeira instância. Recorre de novo o Embargante, agora de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça. Alegando, concluiu: a) Para obrigar a Embargante é necessária, tanto por força da lei como dos estatutos, a actuação conjunta de pelo menos dois dos seus administradores. b) Por tal facto, não pode considerar-se que a Embargante tenha aceite qualquer uma das cinco letras dadas à execução, uma vez que delas não constam as assinaturas de dois administradores. c) Agindo um administrador isoladamente, em representação da sociedade, o que está em causa não é (ou não é apenas) uma actividade do administrador em contravenção com o contrato social, mas a representação da sociedade perante terceiros, ou seja, a capacidade do administrador para por si só representar a sociedade. d) O modo de exercício do poder representativo das sociedades por quotas e anónimas não se integra no domínio das limitações do contrato de sociedade, ou das deliberações dos sócios a que se referem, respectivamente, os art. 260 e 409 do CSC. e) A admissibilidade de vinculação da sociedade com a assinatura de um único administrador, quando a lei e os estatutos determinam um mínimo de dois, importaria uma efectiva consagração prática de um método disjuntivo de representação, o que contraria expressamente o regime imperativo previsto no art. 409 do CSC, bem como o disposto no art. 9, nº1 da Primeira Directiva Comunitária. f) A necessidade da protecção de terceiros não pode ir ao ponto de postergar os interesses dos sócios e muito menos de permitir interpretações que vão ao ponto de derrogarem o disposto em leis imperativas: art. 408, nº1 do CSC. g) Ainda que a forma de obrigar a sociedade resulte de cláusulas estatutárias que disponham de forma diferente do regime supletivo previsto no art. 408, nº1, constando a forma de obrigar a sociedade do respectivo extracto de inscrição no registo, essas clausulas são oponíveis a terceiros, por força das regras do registo. h) De todo o modo, a ter existido um contrato de empreitada entre a Embargante e a Embargada, para reparação do navio "...", nos termos do qual a Embargante se tivesse obrigado a pagar as despesas de reparação de um barco que não era seu, e sem que desse pagamento resultasse para ela qualquer contrapartida, esse contrato, por contrário aos fins societários da Embargante, sempre seria nulo: art. 980 do CC e 6, nº1 do CSC. i) O acórdão recorrido violou as disposições legais citadas e bem assim os art. 55, nº1, 493, nº2, 494, e) e 811-A, nº1, b) do CPC e a norma do art. 9, 1ª parte da Primeira Directiva Comunitária. Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que declare a Embargante parte ilegítima por não ser a aceitante dos títulos, absolvendo-se da instância; ou, pelo menos, julgando o recurso procedente por nulidade do alegado negócio subjacente aos títulos dados à execução. A recorrida contra-alegou, em apoio do decidido na Relação. Cabe conhecer. Os factos dados como provados na primeira instância, que a Relação não alterou, são os seguintes: a) A Embargada dedica-se por forma habitual à actividade de reparação de navios e outros engenhos flutuantes (A). b) A Embargante explora a actividade piscatória de longo curso (B). c) O navio "..." nunca pertenceu à Embargante ( C). d) A solicitação da Embargante, a Embargada procedeu à reparação do navio referido, nele realizando trabalhos e incorporando materiais, tal como discriminado na factura cuja cópia consta de fls. 8 a 23 dos autos de acção executiva de que os presentes são apenso, com o valor de 17.320.556 Pesetas (1º). e) Para pagamento do custo de reparação, a Embargante entregou à Embargada cinco letras de câmbio, que constam de fls. 24 a 28 da acção executiva (2º). f) Essas cinco letras de câmbio foram assinadas no anverso do lado esquerdo e atravessadamente por um administrador da Embargante (3º). g) Em 10/01/00, o mandatário forense da Embargada, em Espanha, remeteu um fax à Embargante, no qual exigia o pagamento, entre outras importâncias, do montante de 8.000.000 de Pesetas, titulado por duas letras dadas à execução (4º). h) No seguimento deste fax, a Embargante remeteu àquele Mandatário outro fax, com uma proposta de acordo para regularização do débito e assinado com a mesma rubrica constante de todos os documentos constantes dos autos e emanados da Embargante, designadamente das letras em causa, e sempre sob a epígrafe "A, sociedade anónima/A Administração" (5º). i) A encomenda de reparação do navio "..." foi confirmada através de telecópia remetida pela Embargante à Embargada (doc. de fls 27 a 28), da qual consta a assinatura do Sr. Eng. C, membro dos serviços técnicos da Embargante (6º). j) A factura da qual consta a descrição dos trabalhos efectuados no navio "...." pela Embargada e atrás referida foi recebida pela Embargante e desta não mereceu qualquer reclamação, não tendo sido devolvida à Embargada (7º). As questões postas no recurso são essencialmente duas: A) Ilegitimidade da Executada-Embargante para a execução, em virtude de não ter aceite as letras de câmbio que a titulam B) Nulidade do negócio subjacente, por o mesmo extravasar a capacidade de gozo da Embargante e ser contrário ao seu fim societário. Estas questões foram já colocadas ao Tribunal da Relação de Lisboa, que lhes deu resposta adequada. Aí se demonstrou, sem nenhum reparo nosso, a aplicabilidade da lei portuguesa. Daí que genericamente se remeta para os fundamentos da decisão tomada pela Relação (fls. 116 a 124). Sublinharemos, porém, sucintamente os aspectos mais relevantes, a que aditaremos uma ou outra nota mais saliente. Primeira questão. Compete ao conselho de administração gerir as actividades da sociedade (art. 405, nº1 do CSC, como serão os mais citados sem indicação de origem). O conselho de administração tem exclusivos e plenos poderes de representação da sociedade: art. 405, nº2 do CSC. Conforme D, "não há, entre a sociedade e o seu representante, uma relação de mandato representativo, mas da, assim chamada, representação orgânica (...). A relação entre estes (os administradores) e a sociedade é uma relação dita de representação orgânica, que se aproxima da representação legal, afastando-se da representação voluntária, e que, não constituindo uma relação intersubjectiva, só impropriamente, por força da tradição e por comodidade de linguagem, se designa como representação. No rigor dos princípios, os representantes não representam a pessoa colectiva: são parte integrante desta (...); por isso se explica que os seus poderes, como geralmente se reconhece, tenham em princípio a mesma extensão da capacidade de agir da sociedade" (Curso de Direito das Sociedades, 4ª edição, 342 e 343). No entanto, a sociedade pode ter um só administrador (art. 390, nº2), bem como pode o conselho encarregar especialmente um certo administrador para se ocupar de certas matérias da administração: administrador delegado (art. 407). A sociedade fica obrigada pelos negócios jurídicos que, nestas condições, sejam concluídos pelo administrador (único ou delegado) (art. 408, n.ºs 1 e 2). Isto posto, chegamos então ao comando do art. 409: os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultante de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas (nº1). A sociedade pode no entanto opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objecto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto praticado não respeitava essa cláusula, e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos accionistas (nº2). O conhecimento referido não pode ser provado apenas pela publicidade dada ao contrato de sociedade (nº3). Os administradores vinculam a sociedade, apondo a sua assinatura, com a indicação dessa qualidade (nº 4). Por outro lado, a sociedade fica vinculada pela assinatura do administrador, com indicação dessa qualidade, mesmo que o acto em concreto extravase o objecto social (art. 6, nº4 da Primeira Directiva Comunitária), visto ao terceiro que contrata com a sociedade não ser exigível que conheça em pormenor o concreto conteúdo do objecto social. O regime estabelecido no art. 409, nº4, para as sociedades anónimas, não é substancialmente diferente do estabelecido no art. 260, nº4 para as sociedades por quotas: as sociedades ficam vinculadas com a assinatura do representante, com indicação dessa qualidade. Nem podia ser doutra forma, atentas as necessidades mercantis, a imporem velocidade nas múltiplas transacções comerciais, e a protecção de terceiros que contratam com a sociedade, que geralmente não conhecem (nem lhes é exigível que conheçam) os contratos sociais de cada uma das empresas com que contratam no dia a dia. Já no acórdão da Relação do Porto, de 19/12/96 se entendeu (e demonstrou) que: "se o administrador de uma sociedade anónima pratica, em nome desta, actos que não cabem no escopo social (cláusulas estatutárias e deliberações), os actos praticados são em princípio válidos e eficazes para a sociedade, mas constituem o administrador em responsabilidade para com ela; tal acto só não será eficaz em relação à sociedade se o terceiro estiver de má fé (conhecimento ou possibilidade de conhecimento de que o acto era abusivo), e a sociedade o não tiver assumido como seu; é à sociedade que cabe o ónus de provar a má fé do terceiro e a não assunção do acto como seu" (CJ, ano XXI, tomo V, 222). No caso que nos ocupa, as letras foram assinadas por um administrador da sociedade embargante, por baixo de um carimbo da mesma sociedade, com a indicação "A Administração". Consta, portanto, dos títulos dados à execução que foi neles aposta a assinatura de um administrador, com a indicação dessa qualidade. Por outro lado, sempre a sociedade embargada apresentou perante a sociedade embargante outros títulos de crédito, que esta aceitou e pagou, assinados da mesma forma. Em relação aos títulos aqui em causa, provado está que já a Embargante propôs è Embargada uma forma de regularização do débito, em documento assinado pelo mesmo administrador. O que tudo poderia fazer intervir, se a Embargante tivesse razão, o instituto do abuso de direito; ou, não a tendo, o da má fé. As eventuais limitações ao pacto social não são oponíveis à Embargada, porque esta é terceiro e terceiro de boa fé, visto que a Embargante não provou, como era seu ónus, que aquela as conhecia, ou devia conhecer, sendo que o conhecimento não pode ser provado apenas pela publicidade dada ao contrato de sociedade. Impera aqui a norma especial do art. 409, nº3. Concluímos, assim, que as letras encontram-se assinadas (aceites) por um administrador da Embargante, com indicação dessa qualidade, pelo que vinculam a Embargante perante a Embargada, terceiro de boa fé em relação ao que conste, a este propósito, do pacto social. Segunda questão. A segunda questão posta é ainda menos consistente. Já deixámos uma pequena nota, em termos de abuso de direito e/ou de má fé, que não vamos desenvolver. Não está em questão a norma-quadro do art. 6, nº1, que define a sociedade comercial pelo seu escopo lucrativo (cf. art. 980 do CC), donde a nulidade, por contrariedade com lei imperativa, dos actos que não se enquadrem no seu escopo social: art. 294 do CC. Simplesmente, a Embargante é uma sociedade comercial que se dedica à exploração piscatória de longo curso. Ninguém duvida que, para isso, ela necessita de navios. Ora, a Embargante encarregou a Embargada, que é uma sociedade comercial que se dedica de foram habitual à reparação de navios e outros engenhos flutuantes, de proceder à reparação do navio "...", nele realizando trabalhos e incorporando materiais (cf. factura de fls. 8 a 23), no valor de mais de 17 milhões de Pesetas. O navio "..." não pertencia à Embargante. No entanto, não se provou que a Embargada, solicitada a proceder à reparação desse navio, conhecesse tal circunstância. E é totalmente irrelevante, para efeitos de a reparação pedida caber ou não no escopo social da Embargante, que o soubesse ou não. Em qualquer das hipóteses, a Embargada solicitou da Embargante, e esta aceitou, a reparação desse navio, reparação que é um acto (segundo parece, uma empreitada) que se insere no objecto social e lucrativo da Embargante: actividade piscatória de longo curso, para a qual necessita de navios. Que importa saber, para efeitos de o acto se inserir ou não no objecto social do "dono da obra", se o navio era do dono da obra ou de outrem? Tanto mais se considerarmos que as empresas de actividade piscatória podem utilizar, para o desempenho das suas actividades, navios seus ou de outrem: por exemplo, navios alugados! O que é relevante é que a Embargante tinha interesse na reparação daquele navio, tanto que doutra forma, decerto, não o mandava reparar, nem se comprometia a pagar (assinando letras) mais de 17 milhões de Pesetas na reparação. Por outro lado, do pagamento da reparação resultava para a Embargante a contrapartida de ter o navio reparado. O contrato (negócio subjacente) não é portanto nulo. Não foram violadas as disposições citadas, nem outras que se veja. Pelo exposto acordam em negar a revista, condenando a recorrente nas custas. Lisboa, 8 de Outubro de 2002 Reis Figueira Barros Caldeira Faria Antunes |