Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
571/15.7PBFAR.E1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: RECURSO PENAL
PERÍCIA
VALOR PROBATÓRIO
IN DUBIO PRO REO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROVA / MEIOS DE PROVA / PROVA PERICIAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
Doutrina:
-Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, I, 2.ª Edição, p. 79;
-Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1992, p. 106.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 163.º E 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 131.º E 132.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEAS B) E J).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º, N.º 2.
REGIME JURÍDICO DAS ARMAS E MUNIÇÕES (RJAM), APROVADO PELA LEI N.º 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO: - ARTIGO 86.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 27-05-2010, PROCESSO N.º 6/09.4JAGRD.C1.S1;
- DE 04-01-2017, PROCESSO N.º 655/10.8GBTMR.E1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


- DE 10-05-2006, IN CJ, 3, 43.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


- DE 05-06-2007, PROCESSO N.º 648/07-1.
Sumário :
I - A questão suscitada pelo arguido, de ter sido valorada perícia menos favorável, entre duas efectuadas nos autos, embora verse sobre um meio de prova e sobre a respectiva valoração a relevar em sede de matéria de facto e, por isso, sempre está fora do âmbito dos poderes de cognição do STJ, enquanto tribunal de revista (art. 434.º, do CPP), coloca, contudo, a questão de direito do valor da prova pericial cujo juízo técnico ou científico se presume subtraído à livre apreciação do julgador, sendo que a haver divergência esta carece de fundamentação de igual natureza à desse juízo (art. 163.º, do CPP).

II - Na falta de coincidência entre o resultado das perícias pode o juiz fundar a sua convicação naquela que se lhe apresentar mais sólida, mais objectiva e isenta de dúvidas, podendo e devendo controlar a logicidade entre as premissas de facto e as conclusões a que os exames chegaram, caminho que foi seguido pela 1.ª instância e acolhido pela relação.

III - Com efeito, quando a 1.ª perícia infere a existência de uma lesão neurológica sem contudo a demonstrar, parte não de um juízo científico a que pudesse contrapor-se juízo de igual natureza, mas de uma opinião, ou talvez melhor de uma suposição que não pode figurar como premissa que leve a conclusão lógica que tenha de acatar-se sem mais, deixando assim de constituir prova tarifada ou vinculada, contrariamente à 2.ª perícia que teve adesão de ambas as instâncias. Não foi, pois, violado o disposto no art. 163.º, do CPP, muito menos o princípio da presunção de inocência na vertente invocada do in dubio pro reo e o disposto no art. 32.º, n.º 2, da CRP.

IV - O recorrente não pôs em causa a qualificação jurídico-penal dos factos (nem oficiosamente há que fazê-lo) como integrando o crime de homicídio qualificado dos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. b) e j), do CP, agravado nos termos do art. 86.º, n.º 3, do RJAM, cuja moldura penal varia entre os 16 e os 25 anos de prisão. Em razão desse mínimo de pena abstracta, carece de sentido a pretensão do recorrente de uma pena não superior a 15 anso de prisão.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AA, nascido em .....1977, com os demais sinais dos autos, foi julgado e condenado em 1.ª instância, por acórdão do tribunal colectivo de 28.10.2016 da Instância Central Criminal da Comarca de Faro (Proc. Comum Colectivo n.º 571/15.7.7PBFAR), como autor de um crime de homicídio qualificado agravado, dos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e j), do Código Penal e 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, além do mais, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão, de que recorreu para a Relação de Évora que, por acórdão de 02.05.2017, confirmou integralmente tal decisão.

Irresignado, recorre agora o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, circunscrevendo o objecto do recurso às seguintes conclusões por nós numeradas: 

 “1. O arguido recorrente foi condenado em primeira instância na pena de 19 (dezanove) anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, nos termos do disposto no artigo 131.° e 132.° n.º 1 alínea b) e j) do Código Penal, agravado nos termos do disposto nos 86.° n.º 3 da Lei 5/2006. Pena esta que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora.

2. Sucede que, quando o arguido recorreu da pena em primeira instância, alegou entre outros fundamentos que não concordava com a escolha e valoração da perícia efectuada pelo Tribunal.

3. No entanto, o Tribunal da Relação de Évora entendeu que o recorrente não tinha razão, por considerar que não se verificava o vício indicado pelo recorrente, na medida em que entendeu não se verificar qualquer violação das [normas] que foram invocadas pelo recorrente, nomeadamente a violação do disposto no 151.° e 163.° do Código do Processo Penal, quando dos autos constam duas perícias com juízos técnicos contrários, ambos devidamente fundamentados.

4. Ora, sucede que o recorrente não concorda com os fundamentos indicados no acórdão de que ora se recorre. Isto porque, a opção efectuada pelo Tribunal na escolha da perícia que adoptou não foi, como refere no Acórdão de que se recorre, a opção por um juízo técnico contido na segunda perícia.

5. Pois, a primeira perícia que foi afastada pelo Tribunal continha também ela um juízo técnico, só que este seria, pelo menos em teoria, mais favorável ao arguido.

6. Está claramente a violar o Princípio da Presunção da Inocência uma vez que a opção por uma perícia em detrimento de outra não fica no livre arbítrio do julgador pois, se assim fosse, a decisão ficaria reduzida a um mero exercício de retórica ou, a assertividade com que o relatório pericial foi elaborado, independentemente do seu valor técnico e científico.

7. Aquilo que o Tribunal da Relação fez, quanto a este assunto, foi presumir que uma perícia tinha superioridade científica sobre a outra, quando nada o indicia quer do ponto de vista formal, quer do ponto de vista material.

8. A única presunção admissível e que o julgador pode fazer em matéria criminal é a PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, e essa, pela sua própria natureza, funciona a favor do arguido e não contra este.

9. O acórdão recorrido confunde o Princípio da Livre Apreciação da Prova, com um raciocínio de presunção, tratando-se contudo de dois conceitos distantes e inconfundíveis.

10. O princípio da livre apreciação não pode, de forma alguma, ser uma apreciação incontrolável, isto é, em que seja impossível de estabelecer uma ligação com a prova produzida, porque a liberdade de apreciação da prova tem limites.

11. Assim, não pode o arguido recorrente concordar com a fundamentação constante do acórdão em crise por considerar [atendendo] a igual eficiência técnica e cientifica que ambas as perícias apresentam.

12. Sucede que, perante tal dificuldade, ou seja, a existência de duas perícias contrárias, a solução a adoptar pelo Tribunal, uma vez que nestes casos se exclui da livre apreciação do julgador - 163.° do Código de Processo Penal, passa por o Tribunal a quo, fazer uma análise de acordo com as princípios estruturantes do processo penal, ou seja, do “IN DUBIO PRO REO”, na sua verdadeira concepção, ou seja, enquanto regra probatória, no sentido que qualquer dúvida resultante da prova produzida será sempre resolvida a favor do arguido.

13. Aliás, o "IN DUBIO PRO REO", muito embora poucas vezes seja referido, mais não é que uma consequência do Princípio do Favor Rei, de acordo com o qual, o Tribunal está obrigado a seguir a tese mais favorável ao arguido, em todos os casos em que a acusação não tenha conseguido carrear prova suficiente para obter uma condenação, conforme é o caso dos presentes autos.

14. Se por um lado, o IN DUBIO PRO REO, está intimamente ligado com as questões da prova e da sua produção, ou seja, no sentido de que se o tribunal não consegue adquirir uma certeza quanto a facto que constitui a acusação, deve a questão ser resolvida a favor do arguido.

15. Por outro lado e atento que o PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, ao contrário do "in dubio pro reo", só funciona em termos da prova se revela durante todo o processo nomeadamente, e no que para os presentes autos importa, em termos práticos na não necessidade de o arguido provar a sua inocência.

16. Não podia o Tribunal da Relação condenar o arguido pela prática de crime em causa, nos termos em que o fez, atenta as duas perícias existentes.

17. Ao decidir da forma como decidiu, o Tribunal violou o referido princípio da presunção a inocência.

18. Perante os factos dados como provados o arguido também não se pode conformar com a decisão do Acórdão quando manteve integralmente a pena que lhe foi aplicada em primeira instância.

19. Antes de mais, porque aquele acórdão faz uma incorrecta valoração das circunstâncias atenuantes relevantes para a arguido e também porque o mesmo excede em muito a culpa do arguido.

20. " ... A culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome das medidas preventivas ..."

21. A pena de prisão de 19 (dezanove) anos, aplicada ao recorrente, salvo o devido respeito, não cumpre os fins das penas.

22. E nessa medida, não obedece à sua função de ressocialização, sendo contraproducente nos seus objectivos, uma vez que gera no arguido recorrente um sentimento de revolta e de injustiça.

UMA VEZ QUE ESTÁ A SER PUNIDO MUITO PARA ALÉM DA SUA CULPA.

23. Obviamente que a pena a aplicar aos arguidos considerados culpados deve ter em conta quer a prevenção geral, quer a prevenção especial.

24. No caso "sub judice" não foi tido em consideração este binómio, não foram ponderados factores essenciais à determinação em concreto da medida da pena a aplicar ao arguido recorrente.

Ou seja, em concreto não foi cumprido o disposto nos artigos 70.º e 71.º do Código de Penal.

25. Isto porque,

Sempre foi ignorado, ou pelo menos não valorado convenientemente, o facto do arguido não ter durante toda a sua vida praticado qualquer outro tipo de ilícito criminal.

26. E se o facto de ser primário não assumir especial relevância nestes tipos de crimes não se poderá desvalorizar por completo uma vida inteira orientada pelos padrões regulares da sociedade, nomeadamente ser uma pessoa trabalhadora, bem como o facto da mesma ser uma pessoa querida no meio social em que se integra, ser um cidadão calmo, que não causa qualquer perturbação social e ainda que do seu registo criminal não constar qualquer condenação seja a que título for.

27. De tudo isto resulta que a pena de 19 anos que foi aplicada ao arguido recorrente é extremamente violenta e está em total desconformidade quer com a sua culpa, quer com as necessidades de prevenção geral e especial e atendendo às atenuantes acima referidas não existe razão para que a medida da pena aplicada ao arguido recorrente seja de tão elevado "quantum", a qual nunca deveria ter ultrapassado os 15 anos ...

28. Sendo a pena uma função-meio de prevenir a prática de crimes, ela há-de atender ao presente com olhos no futuro. Ora, nomeadamente no caso de infractores primários, pode não se verificar, a necessidade de prevenção especial.

29. Acresce que, por sua vez, a dissuasão ("intimidação") do condenado, é conatural à pena e constitui também uma função da pena, que em nada é incompatível com a função positiva de ressocialização e essa outra função da pena é claramente cumprida com uma pena que se fixe com um "quantum" não superior a 15 anos.

30. Ao aplicar uma pena com aqueles limites o Tribunal estaria a respeitar o limite mínimo da moldura penal estabelecido pelo legislador e também a prevenção geral indispensável sem pôr em causa a ressocialização do arguido.

31. Ao decidir da forma como decidiu, aquele acórdão violou o disposto nos artigos 163.° do Código de Processo Penal e o artigo 32.° n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

32. Termos em que deverá ser revogado o acórdão proferido e em sua substituição proferir-se nova decisão que o condene numa pena não superior a 15 anos.

Respondeu o M.º P.º junto do tribunal recorrido, em defesa do julgado.

Também os assistentes, pais da vítima, BB e CC, pugnaram pela manutenção do decidido.

O Exmo. Procurador – Geral Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recuso quer quanto à impugnação da decisão de facto e alegada violação do princípio “in dubio pro reo”, quer quanto à medida da pena, que em seu entender peca mais por defeito que por excesso.

Cumprido o disposto no n.º 1 do art.º 417.º do CPP, respondeu o arguido a reafirmar a procedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência, sendo duas as questões que vêm colocadas:

a) – O valor da prova pericial e a violação do princípio da presunção de inocência na vertente do “in dubio pro reo”;

b) – A medida da pena.

*

II. Fundamentação
A) – Na decisão recorrida vêm dados como provados os seguintes factos:

1. O arguido e DD contraíram casamento no 31 de Dezembro de 2006.

2. Em data não concretamente apurada, mas situada em finais de Janeiro e início de Fevereiro de 2014, o arguido veio residir em Matosinhos e DD manteve-se a residir na Ilha do Faial.

3. No dia 14 de Maio de 2015, DD deu conhecimento ao arguido de que pretendia divorciar-se e proceder à partilha de bens e que caso o arguido não aceitasse seguiria com uma acção litigiosa.

4. No final do mês de Abril de 2015, DD veio para Faro e passou a residir com André Brás, com quem mantinha uma amizade há cerca de um ano e, nessa altura, com quem passou a relacionar-se sexualmente.

5. No dia 25 de Maio de 2015, o arguido convencido de que DD mantinha uma relação amorosa com outrem, confrontou-a com tal facto, tendo aquela negado. 

6. No dia 26 de Maio de 2015, o arguido descobriu que DD residia em Faro e trabalhava no estabelecimento de restauração denominado “...."

7. O arguido ficou desagradado com o facto de a DD lhe ter ocultado que se encontrava a viver em Faro e, convencido que ela mantinha uma relação com outrem, que aquela o negasse.

8. Em momento não concretamente apurado, mas ocorrido entre 26 e 27 de Maio de 2015, o arguido formulou o propósito de pôr termo à vida de DD. 

9. Assim e com vista a concretizar a sua intenção, no dia 27 de maio de 2015, o arguido adquiriu e entrou na posse do veículo automóvel de matrícula QE-... e colocou no seu interior, entre outros objectos, uma espingarda caçadeira, da marca Mossberg, com o n.º de série G715311, de origem norte-americana, calibre 12 GA (para cartucho de caça), de repetição, de tipo “pump-action”, com capacidade para 5 cartuchos de calibre 12 A, registada e manifestada em seu nome; 25 (vinte e cinco) cartuchos de caça, de calibre 12, com as inscrições “C&T V. N. Famalicão Especial A1 34”; uma faca de abertura manual, com 7,5 cm de lâmina em aço, com sistema manual de tranca da lâmina, com cabo de madeira e metal, e um aparelho de georreferenciação (GPS), da marca Garmin.

10. A hora não concretamente apurada do dia 27 de maio de 2015, o arguido, ao volante do veículo automóvel de matrícula QE-..., iniciou viagem desde Matosinhos até Faro, onde chegou durante a madrugada do dia 28 de maio de 2015.

11. Uma vez na cidade de Faro, o arguido logrou localizar o restaurante “...” e esperou que DD entrasse no mesmo, aguardando no interior do seu veículo automóvel, que se encontrava parqueado junto às traseiras do referido estabelecimento, mais concretamente na Rua ...

12. Pelas 10 horas do dia 28 de maio de 2015, o arguido viu DD a entrar no aludido estabelecimento comercial.

13. Pelas das 13 horas e 30 minutos, desse mesmo dia, o arguido entrou no restaurante “...”, que tinha, nesse momento, cerca de 20 clientes, e deslocou-se ao balcão de atendimento ao público, onde se encontrava DD.

14. Nesse momento, DD perguntou-lhe o que ele ali estava a fazer, ao que o arguido respondeu que tinham de falar.

15. A DD não respondeu, virou costas ao arguido e, com receio do mesmo, deslocou-se para o interior da cozinha do restaurante.

16. Por sua vez, o arguido, depois de ter bebido e pago um café, saiu do estabelecimento e regressou ao seu veículo.

17. Decorridos cerca de 5 (cinco) minutos, DD retornou ao balcão de atendimento pelo seu lado interior.

18. Nesse momento, o arguido voltou a entrar, calmamente, no aludido restaurante, pela porta de acesso sita nas traseiras, trazendo consigo a espingarda caçadeira, da marca Mossberg, previamente municiada com seis cartuchos, estando cinco no depósito e um na câmara, e a faca de abertura manual, estando esta última no seu bolso do lado esquerdo das calças que trajava.

19. Seguidamente, o arguido posicionou-se junto ao balcão de atendimento ao público, retirou, num gesto rápido, a espingarda caçadeira do estojo que a acondicionava, empunhou-a, e apontando-a na direcção de DD, e disse as seguintes palavras: “Querias o divórcio, não querias! Sabias que eu te ia encontrar”.

20. Acto contínuo, o arguido, a uma distância de cerca de 1 metro desta, efectuou dois disparos de seguida que atingiram DD no cotovelo esquerdo, e de forma tangencial na pele do hemotórax esquerdo, tendo provocado a sua queda no solo.

21. Seguidamente, o arguido contornou o balcão de atendimento, entrou para o seu lado interior, e quando se encontrava a cerca de 1/1,5 metros de DD, que estava ajoelhada e se tentava erguer, efectuou mais três disparos, por ordem temporal não apurada, que atingiram o corpo desta, designadamente, no hemitórax direito, na coxa direita e na região lombar esquerda.

22. Enquanto disparava o arguido dizia as seguintes palavras: “Eu não sou corno manso”, “Eu vou preso mas se necessário venho acabar o trabalho”.

23. Em resultado dos cinco tiros efectuados pelo arguido, BB sofreu as seguintes lesões: no tórax, ferida circular com 4 cm de diâmetro, com bordos irregulares na face anterior do hemotórax direito, na linha externa justo a projecção do 9º e 10º arcos costais, 4 cm acima do rebordo costal (orifício de entrada e projéctil de tiro), e ferida superficial, com áreas de queimadura, que ocupa a face anterior do hemitórax esquerdo, com 7 cm, irregular em duas áreas (área de queimadura de projéctil de raspão, provavelmente que atingiu o cotovelo esquerdo); no abdómen, múltiplas feridas no abdómen (orifícios) punctiformes, numa área de 10 a 15 cm, no hipocôndrio e flanco esquerdo, com chumbos a florar e bordos externos (orifício de saída de projecteis, em relação ao tiro que atingiu a região lombar esquerda), ferida circular com 4 cm de diâmetro, com bordos irregulares na região lombar esquerda, abaixo do rebordo costal (orifício de entrada de projéctil de tiro), e ferida suturada na região lateral esquerda do abdómen, na projecção da linha axilar com o hipocôndrio; no membro superior esquerdo, ferida com esfacelo no cotovelo na face interna e posterior com 12 por 14 cm, interessando o 1/3 superior e inferior do braço e antebraço, respectivamente, com presença de chumbos, e fracturas expostas com desarticulação dos ossos do cotovelo e múltiplas esquírolas ósseas (orifícios de entrada e saída de tiro); no membro inferior direito, ferida com esfacelo da coxa, face anterior e externa, com 10 por 20 cm, com presença de topos ósseos e esquírolas (orifícios de entrada e saída de tiro); nas paredes do tórax, infiltração hemorrágica do hemotórax direito, acima do rebordo costal, com chumbos inclusos; na clavícula, cartilagens e costelas directas, áreas de fractura da 8ª e 9ª costelas cominutivas em trajecto e arcos costais anteriores com chumbos inclusos; no pericárdio e cavidade pericárdica, hemopericárdio com coágulos e tamponamento e lacerações punctiformes e presença de chumbos; no coração, laceração múltipla com presença de feridas punctiformes, no ventrículo direito e esquerdo, com presença de chumbos; na artéria pulmonar, lacerações punctiformes com presença de chumbos à esquerda; na pleura parietal e cavidade pleural esquerda: hemotórax com cerca de 350 ml (status pós-drenagem torácica) e lacerações múltiplas da pleura punctiformes com a presença de chumbos; no pulmão esquerdo e pleura visceral: atelectasia e lacerações múltiplas; no esófago, laceração punctiformes com presença de chumbos; no diafragma: laceração à direita, central e esquerda com presença de chumbos; nas paredes do abdómen: infiltração hemorrágica localizada; no peritoneu e cavidade peritoneal, lacerações punctiformes com presença de chumbos (hemoperitoneu com 250 ml); no epíplon, laceração esquerda punctiforme com chumbos; no mesentério, lacerações punctiformes; no estômago, lacerações com chumbos; nos intestinos, lacerações à esquerda do cólon transverso e descendente com presença de chumbos; no pâncreas, laceração na cauda hemorrágica; no baço, laceração com chumbos; no rim esquerdo, laceração do polo inferior e punctiformes com chumbos; na aorta abdominal, lacerações por chumbos; e no membro inferior direito, laceração da coxa direita, com destruição muscular, e fractura óssea do fémur com contusão vascular e chumbos.

24. Tais lesões, principalmente a ferida cardíaca múltipla com hemopericárdio por tiro de arma de fogo e as demais feridas descritas em 23., foram causa directa e necessária da morte de DD, que ocorreu nesse dia 28 de maio de 2015, pelas 14 horas e 45 minutos, no Hospital de Faro.

25. No interior do estabelecimento “...” e no interior do veículo automóvel do arguido, foram encontrados e apreendidos os seguintes objectos:

- Uns óculos de sol de armação metálica de cor preto;

- Uma espingarda caçadeira da marca Mossberg, de cano único, de fabrico norte-americano, mod. 500 ATp8 12 GA, com o número de série GT 15311;

- Uma munição/cartucho por percutir de calibre 12, da marca C & T, com os dizeres “Especial A1 34 g/ N.º 6”;

- Quatro invólucros de cartucho com corpo na cor encarnado, já deflagrados, de calibre 12, da marca C&T, com os dizeres “Especial A1 34 g/ N.º 6”;

- Um saco de acondicionamento de armas longas, na cor verde, da marca “Cometa”;

- Duas buchas plásticas de acondicionamento de projécteis em munições de calibre 12;

- Dezanove bagos de chumbo;

- Um telemóvel da marca Alcatel, modelo One Touch, com o Imei 863859025168324;

- Dois talões de pagamento de combustíveis;

- Dois talões de pagamento de auto-estrada;

- Dezanove munições da marca C&T, de calibre 12, com os dizeres “Especial A1 34g/ N.º 6”, acondicionadas em caixa de papel, todas por deflagrar;

- Um cadeado de gatilho de arma de fogo, de abertura por combinação numérica;

- Uma mochila de usar a tiracolo, com publicidade da Michelin, em tecido sintético, na cor creme;

- Um aparelho de georreferenciação (GPS), da marca Garmin, modelo Nuvi;

- Um suporte de utilização do GPS com os dizeres 10R-023487;

- Um tablet da marca “Wortex”, mod. PC 65 CXI, acompanhado do respectivo carregador e cabo USB;

- Uma lanterna em plástico, amarela, da marca Energizer, mod. SportGear;

- Uns auscultadores;

- Um leitor Mp3 da marca Canyon, em plástico branco;

- Um colete em material retro-reflector, verde fluorescente;

- Uma mica plástica com uma declaração de compra e venda de automóvel exarada a favor do arguido, uma fotocópia de um cartão de cidadão em nome de ... e uma guia de pagamento de IUC titulada por ...;

- Um certificado internacional de seguro emitido a favor do arguido, sobre o veículo 58-45-MT;

- Uma guia de reparação da empresa “Norauto” datada de 27.05.2015, emitida a favor do arguido e referente à reparação no automóvel QE-36-42;

- Uma carta verde e recibo de seguro datados de 27.05.2015, emitidos em nome do arguido sobre o veículo QE-...;

- Uma chave do automóvel Nissan Micra, matrícula QE-....

26. O arguido é titular de licença para uso de porte de arma n.º 60879/2012, para armas da classe C, válida até 21.01.2017, e de licença de caçador n.º 697410, válida até 28.01.2037, possuindo registadas em seu nome, para além da espingarda referida em 6.º, uma espingarda, da marca José Luís Bulumburo, com n.º de série 1953, da classe D, com o livrete n.º B55081.

27. O arguido bem sabia que o objecto – espingarda caçadeira - que utilizou, atenta a sua natureza e características, era potencialmente perigoso e apto a tirar-lhe a vida.

28. Ao agir da forma descrita nos pontos 19. a 22., o arguido sabia que estava a actuar sobre o seu cônjuge e quis, de forma, livre, voluntária e consciente, atingir a DD com as balas [bagos de chumbo dos cartuchos] que havia introduzido na espingarda, em zonas do corpo da mesma que, atingidas pelas balas sofreriam lesões idóneas a provocar-lhes a morte, propósito que logrou alcançar.

29. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei, sendo pessoa capaz de avaliar tal proibição e punibilidade e de se determinar de acordo com essa avaliação.

Da parte civil:

30. Em consequência da conduta do arguido, descrita nos pontos 19. a 22., o Centro Hospitalar do Algarve, EPE, em Faro, prestou tratamentos médicos/hospitalares urgentes a ..., que ascenderam a € 361,87 (trezentos e sessenta e um euros e oitenta e sete cêntimos).

31. O arguido e DD casaram sem convenção antenupcial, sob o regime de comunhão de bens adquiridos.

32. Não existem filhos do casamento.

33. Em 17 de Setembro de 2009, DD e o arguido adquiriram, por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, um imóvel sito na Rua ..., com recurso a empréstimo bancário na Caixa Geral de Depósitos, tendo por isso sido constituída uma hipoteca voluntária sobre o imóvel e sido prestada fiança pelos pais da DD

34. O arguido era titular dos seguintes veículos:

- Um motociclo com a matrícula ...-GP (1996), registado em 15.11.2008, sem ónus ou encargos;

- Um motociclo com a matrícula ...-LQ (1998), registado em 02.02.2012, sem ónus ou encargos;

- Um motociclo com a matrícula ...-MT (1999), registado em 01.08.2012, sem ónus ou encargos;

- Um veículo automóvel ligeiro, com a matrícula ...-JP (1997), registado em 06.02.2014, sem ónus ou encargos;

- Um veículo automóvel ligeiro, com a matrícula ...-NU (1991), registado em 14-01.2015, sem ónus ou encargos;

- Um veículo automóvel ligeiro, com a matrícula ...-AA (1992), registado em 23.01.2015, sem ónus ou encargos;

- Um motociclo com a matrícula ...-BZ, registado em 20.04.2015, sem ónus ou encargos.

35. Durante o período em que o arguido residiu com a DD no Faial, entre final de 2012 e Janeiro/Fevereiro de 2014, o arguido esteve desempregado e auferia subsídio de desemprego.

36. Entre os meses de agosto e Dezembro de 2014, o arguido trabalhou dois meses em Inglaterra e dois meses em França.

37. A última remuneração registada na segurança social do arguido reporta-se ao mês de Dezembro de 2014 no montante de € 810,95 (oitocentos e dez euros e noventa e cinco cêntimos).

38. À data dos factos, a DD já tinha encerrado uma loja de roupa que abrira, em 2013, no Faial e estava a reorganizar a sua vida pessoal e profissional em Faro, tendo começado a trabalhar, poucos dias antes, no estabelecimento de restauração “...”.

39. Nas circunstâncias referidas em 15. dos factos provados, a DD chorou, estava assustada e perturbada com a presença do arguido no estabelecimento e pelo facto de ele a ter encontrado.

40. Os disparos referidos no ponto 20. dos factos provados provocaram, para além da queda da vítima, um sangramento abundante.

41. Durante os dois primeiros disparos a DD gritava.

42. Após cada disparo, DD gemeu de dores.

43. À entrada do serviço de urgência do Hospital de Faro, pelas 14h17 a Ângela Faria estava consciente.

44. DD sofreu aflição, angústia e dor, causadas pela consciência da morte eminente, tendo a noção que havia sido baleada várias vezes.

45. DD nasceu a ... de 1984.

46. DD faleceu sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de bens por morte.

47. BB e DD são pais da DD.

48. BB é natural da freguesia da .....e nasceu a .... de 1960.

49. Tem o .... ano de escolaridade e é ...

50. CC é natural da freguesia da ... nasceu a ... de 1964.

51. Tem o... ano de escolaridade e é ....

52. Por força do óbito da filha, BB e CC despenderam o montante de € 2.346,85 (dois mil trezentos e quarenta e seis euros e oitenta e cinco cêntimos) com o funeral, sendo € 1.921,90 (mil novecentos e vinte e um euros e noventa cêntimos) com as despesas fúnebres no local do óbito e € 424,95 (quatrocentos e vinte e quatro euros e noventa e cinco cêntimos) com as despesas fúnebres no ..., para onde foram os restos mortais.

53. Em virtude do choque que os demandantes sofreram, foi o irmão da vítima, FF, quem se responsabilizou pelo tratamento de todas as questões burocráticas associadas ao óbito da DD.

54. Tendo sido posteriormente reembolsado pelos demandantes.

55. Em consequência do óbito da DD, os demandantes BB e CC, sofreram e ainda sofrem, dor, angústia e tristeza, tendo deixado de conviver e de sair de casa com a regularidade que faziam anteriormente.

56. Os demandantes BB e CC mantinham laços de grande afecto e proximidade com a vítima.

57. Até cerca de um mês antes dos factos e desde o final de 2012, DD residia no ..., próximo dos pais, com quem estava ou falava diariamente.

58. Mesmo no período em que permaneceu no continente, a DD contactava e era contactada regularmente pelos seus pais.

59. No período supra referido, sempre que tinham oportunidade, nas quadras festivas os demandantes BB e CC, vinham ao continente para estar com os filhos.

60. Os demandantes BB e CC acompanharam a vida da filha, designadamente o seu percurso escolar, profissional e pessoal, sendo a estes que a vítima recorria sempre que precisava de ajuda nomeadamente financeira.

61. A relação entre pais e filha era pautada por respeito e preocupação.

62. A DD era uma boa filha, dedicada aos pais e à vida familiar em geral, sendo muito amada pelos seus pais.

63. Os demandantes BB e CC sentem uma profunda revolta pelo facto de filha ter sido morta pelo próprio marido.

64. GG explora o estabelecimento comercial de restauração, designado “...”, sito na ..., desde o mês de Abril de 2015.

65. Os cerca de 20 clientes que estavam no interior do estabelecimento “...” à data e hora dos factos saíram sem pagar o respectivo consumo.

66. O menu (prato do dia, bebida e café) tinha à data dos factos o custo de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos).

67. O estabelecimento esteve fechado entre 29 de maio e 7 de Junho de 2015, tendo reaberto ao público no dia 8 de Junho de 2015.

68. A demandante GG suportou as despesas do estabelecimento com remunerações, segurança social, IRS, renda, consumo de água, luz, gás e comunicações referentes aos meses de maio e Junho de 2015.

69. A cozinheira auferia um salário líquido de € 480,00.

70. Desde o dia 28 de maio de 2015 a cozinheira não voltou ao serviço.

71. A demandante, enquanto trabalhadora por conta própria tirava o seu ordenado em função dos lucros e no mês de maio de 2015 não tirou ordenado para si.

72. No mês de maio de 2015, a demandante GG a renda do estabelecimento foi de € 600,00 euros.

73. Pelo consumo de gás efectuado entre 16 de maio de 2015 e 18 de Junho de 2015, a demandante GG pagou € 212,90.

74. Pelo consumo de electricidade entre 27 de maio de 2015 e 26 de Junho de 2015, a demandante GG pagou € 228,23.

75. Pelo consumo de água nos meses de maio e Junho de 2015, demandante GG pagou € 80,21 e € 76,68, respectivamente.

76. Pelos serviços de telecomunicações prestados pela NOS no mês de maio de 2015, a demandante GG pagou € 88.02.

77. Encontrava-se agendado para o dia 30 de maio de 2015, um jantar de aniversário, no estabelecimento ..., tendo sido marcada mesma para cerca de 20 pessoas, ao custo de € 15,00 por pessoa.

78. Encontrava-se agendado para o dia 31 de maio de 2015, um encontro de amigos para comemoração da final da Taça de Portugal, no estabelecimento ..., tendo sido marcada mesa para cerca de 25 pessoas, ao custo de € 20,00 por pessoa.

79. A demandante GG já havia adquirido alguns produtos alimentares e outros para os referidos eventos.

80. A demandante GG encontra-se a explorar o estabelecimento ... através do Programa Nacional do Microcrédito, financiado pelo IEFP, em parceria com uma instituição de crédito.

Das condições pessoais do arguido

81. O arguido AA de 39 anos de idade, é o único filho do primeiro matrimónio da sua progenitora, surgindo o progenitor precocemente (aos dois anos de idade) demissionário da sua função parental, na sequência de processo emigratório para o continente Africano, desconhecendo os familiares desde então, não obstante goradas tentativas de localização, o seu paradeiro.

82. Decorrente de tal circunstancialismo o arguido e respectiva progenitora viriam a integrar o agregado da avó materna, também ele de características monoparentais e de dimensão numerosa (cinco tios e cinco tias, a mais nova das quais, da mesma faixa etária do arguido) e, por sua vez inscrito num contexto socioeconómico modesto.

83. Aos 8 anos de idade, a progenitora viria a contrair 2º matrimónio e a autonomizar-se do agregado de origem, permanecendo o arguido no agregado avoengo até aos 18 anos de idade, aquando da sua autonomização familiar, mantendo contudo proximidade relacional com a progenitora e posteriormente com os seus dois irmãos uterinos.

84. Não obstante tais contingências familiares durante o seu processo de crescimento o arguido usufruiu de um ambiente familiar estável e coeso, num modelo sócio educativo de cariz tradicional, mas afectuoso e assente em valores de solidariedade, partilha e responsabilidade.

85. Não há registo de histórico de violência na família de origem e/ou de vitimação, embora o arguido denote dificuldades na abordagem do desaparecimento do pai e posteriormente no afastamento da mãe.

86. O arguido é referenciado pelos familiares como ponderado, contido, calado e/ou com dificuldades em expressar desejos/sentimentos, necessidades.

87. Em termos escolares, foi um aluno regular, sem registo de problemas de aprendizagem e /ou comportamentais; contudo o arguido viria a abandonar os estudos após ter concluído o 2º ciclo, aos 12 anos de idade, decorrente da necessidade de contribuir economicamente para o agregado familiar, após o que iniciou actividade laboral no ramo da construção civil.

88. Com cerca de 16 anos passou a trabalhar como aprendiz de electricista, onde rapidamente adquiriu consistente experiência, actividade que viria a manter de forma contínua e que o levaria a autonomizar-se do seu agregado de origem e a migrar para Lisboa aos 18 anos de idade.

89. Neste contexto o arguido protagonizou um percurso sócio laboral contínuo e manifestamente investido e objectivado a uma mais-valia pessoal e familiar para diversas empresas de prestação de serviços de electricidade para a EDP.

90. Algum tempo depois de se fixar em Lisboa viria a estabelecer relação de namoro com companheira, dois anos mais nova e a contrair matrimónio, que viria a perdurar durante cerca de 12 anos e do qual teve um filho, actualmente com 19 anos de idade.

91. Após o matrimónio o casal fixa residência próxima da área de residência do agregado de origem do arguido, integrando no seu agregado o irmão mais novo deste, da mesma faixa etária do filho, por motivos laborais/período de emigração da progenitora, enquanto empregada fabril.

92. Na génese da separação conjugal, de mútuo acordo, esteve um crescente desgaste relacional/afectivo, primacialmente associado à precocidade do relacionamento e a alguma imaturidade de ambos, mantendo até à actualidade relacionamento próximo.

93. Na sequência da separação conjugal, o descendente comum fica sob a égide da mãe, mantendo consistente proximidade relacional com o arguido e posteriormente com a DD.

94. Em 2005 o arguido estabeleceu relacionamento com a DD então sua vizinha, e pouco tempo depois vivência marital conjunta e posterior matrimónio em 2006.

95. Por motivos laborais o casal deslocou-se para a área da grande Lisboa, regressando dois anos depois a Matosinhos.

96. A dinâmica relacional revelou-se isenta de conflitos relevantes e assente em consistentes laços afectivos.

97. Em meados de 2013 e na sequência de um processo de despedimento colectivo da empresa onde o arguido trabalhava, o casal viria a deslocar-se para o Faial/Açores, terra natal da DD e a fixar ali residência, adquirindo uma loja comercial, que passou a ser gerida por aquela.

98. Em Janeiro/Fevereiro 2014 o arguido regressou a Matosinhos, tendo sido sujeito a intervenção cirúrgica em 13 de Fevereiro de 2014 e ficou sujeito a tratamento médico e medicamentoso.

99. À data dos factos subjacentes ao processo e desde há cerca de um ano, o casal continuava separado, residindo o arguido na habitação morada de família, própria, que detinham em Matosinhos e o cônjuge/vítima nos Açores.

100. Em termos laborais o arguido manteve no último ano a situação de baixa médica e a situação de desemprego, com o inerente subsídio de desemprego e apoio dos familiares em situações de maior carência, o que lhe permitiu assegurar a sua subsistência e os seus encargos.

101. O arguido é referenciado por elementos familiares e da comunidade, como indivíduo cordato na relação interpessoal, mas muito contido/introvertido com subsequentes prejuízos no relacionamento de proximidade com o outro, sendo que o arguido minimiza eventuais problemas de relacionamento interpessoal.

102. O arguido é estimado e considerado pelos seus pares como pessoa calma, ponderada, pacífica e trabalhador dedicado.

103. O arguido é detentor de um consistente grupo de amigos, assumindo estes em detrimento do seu grupo familiar, um papel preponderante na ocupação de tempos livres e actividades de lazer, nomeadamente como caçador e motard.

104. O arguido demonstrou ter consciência crítica das suas responsabilidades fazendo uma ponderação adequada da natureza dos factores internos e externos que condicionam o seu comportamento, reconhecendo, por outro lado, adequadamente o impacto das condutas delituosas e os danos provocados às eventuais vítimas.

105. A sua actual situação tem sido vivenciada com forte penosidade emocional pelo arguido, primacialmente pelas consequências ao nível familiar, referindo-se nomeadamente o corte relacional do filho desde os acontecimentos e a necessidade de tratamento psiquiátrico por parte da progenitora.

106. Confrontado com os valores jurídicos em causa, o arguido assume com facilidade uma postura de censura pessoal relativamente aos factos, mostrando arrependimento e elevando o valor da vida humana.

107. Não obstante o arguido tende a justificar o seu comportamento e a minimizar a culpa imputando à vítima alguma responsabilidade pelo seu descontrolo, não sendo contudo perceptíveis de crenças e estereótipos do género.

108. Em contexto prisional, regista comportamento manifestamente adequado, conforme as regras institucionais, tendo vindo a usufruir de consistente suporte familiar de retaguarda da família de origem e alargada e do grupo de amigos.

109. O arguido não regista antecedentes criminais.

*

            B) – As questões suscitadas

a) – Sobre o valor da prova pericial e a violação do princípio da presunção de inocência na vertente do in dubio pro reo

Sintetizando a pretensão do recorrente, sustenta ele que o acórdão recorrido, ao confirmar a decisão da 1.ª instância que fundamentou a matéria de facto (pontos 29 dos factos provados e 14 dos não provados) valorou perícia menos favorável, entre duas efectuadas nos autos, com juízos técnicos contrários e ao presumir a superioridade científica de uma sobre a outra violou o princípio da presunção de inocência e violou também o princípio do in dubio pro reo porquanto, estando o juízo técnico excluído da livre apreciação do julgador, o tribunal havia que ter optado pelo juízo pericial mais favorável.

Enquadrando a questão, foi realizada uma 1.ª perícia psiquiátrica e sobre a personalidade do arguido por médico psiquiatra do Centro Hospitalar do Algarve indicado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal-Delegação do Sul, de cujo relatório consta que “o presente Exame Psiquiátrico Forense (EPF) fundamenta-se na recolha de dados anamnésticos colhidos junto do examinado, assim como no conteúdo dos autos”, “infere-se a existência de lesão neurológica mínima, a nível do córtices prefrontal ventro-mediano, orbitofrontal e dorsolateral, particularmente hemisfério direito, determinando predominantemente quadro disexecutivo de tipo desinibido/“psicopático, pelo que se sugere a atenuação da pena”, concluindo, para além do mais, que o examinado “será portador de síndroma disexecutivo de tipo “desinibido/psicopático” e tinha capacidade para avaliar o carácter ilícito dos (f)actos, mas tinha incapacidade para se determinar de acordo com essa avaliação”.

Após esclarecimentos do perito em audiência de julgamento, o tribunal de 1.ª instância determinou, ao abrigo do disposto do art.º 158.º, n.º 1, alín. b), do CPP, a realização de uma nova perícia, levada a efeito por outro perito médico psiquiatra da mesma instituição hospitalar e igualmente por indicação do referido Instituto e que, após realização de testes psicológicos (de personalidade, QI e psicopatologia), elaborou o respectivo relatório, no qual concluiu, para além do mais, que “o arguido não sofre, e não sofria na data da prática dos factos, de doença mental relevante ou grave” e que, “aquando da prática dos factos, o arguido tinha capacidade de avaliar o carácter proibido dos actos que praticou, e tinha capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação (tendo, após os mesmos, ficado disponível para ser detido pela autoridade), com (aparente) arrependimento”.

A questão suscitada embora verse sobre um meio de prova e sobre a respectiva valoração a relevar em sede de matéria de facto e, por isso, sempre está fora do âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista (art.º 434.º do CPP), coloca, contudo, a questão de direito do valor da prova pericial cujo juízo técnico ou científico, como é sabido, se presume subtraído à livre apreciação do julgador, sendo que a haver divergência esta carece de fundamentação de igual natureza à desse juízo (art.º 163.º do CPP).

A divergência, no caso, está na adesão do tribunal à 2.ª perícia, cujo resultado, de o recorrente dispor de capacidade para avaliar o carácter proibido dos actos que praticou, bem como de capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação, está em contradição com a 1.ª.

Cremos, contudo, que essa divergência não enferma de qualquer vício.

Na falta de coincidência entre o resultado das perícias pode o juiz fundar a sua convicção naquela que se lhe apresentar mais sólida (Ac. RC de 10.05.2006, CJ, 3, 43), mais objectiva e isenta de dúvidas, podendo e devendo controlar a logicidade entre as premissas de facto e as conclusões a que os exames chegaram (Ac. RE de 05.06.2007 proferido no Proc. 648/07-1, citado no acórdão recorrido).

Foi esse o caminho seguido pela 1.ª instância e acolhido pela Relação, conforme aquela assim dispôs a propósito da fundamentação da matéria de facto:

No que concerne aos pontos 28. e 29. dos factos provados, para além do já referido quanto à prova do ponto 8 dos factos provados, o tribunal teve em consideração o teor do relatório pericial de fls. 1074 a 1086 que manifestamente conclui que à data dos factos o arguido não padecia de qualquer doença mental e que tinha a capacidade de avaliar o carácter proibido dos actos que praticou bem como capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação. Não se descura a existência de uma perícia anterior, designadamente a constante de fls. 680, na qual se concluía que tinha incapacidade para se determinar de acordo com a avaliação do caracter ilícito dos seus actos, sendo que o senhor Perito Dr. ..., quando ouvido em audiência de julgamento, esclareceu que no seu entender todos os homicidas têm uma perturbação mental porque agem contra natura e que do ponto de vista médico são sempre inimputáveis porque há necessariamente uma lesão cerebral, sendo que não fez quaisquer exames complementares de diagnóstico, que considera importantes mas não tem verba para os fazer, e que seriam determinantes para responder aos quesitos que lhe foram formulados, e aos quais apenas consegue responder de acordo com o seu entendimento baseado no estudo da obra do professor António Damásio. Ora, em face da manifesta falta de objectividade que presidiu à elaboração do relatório de fls. 680, plasmada nos esclarecimentos prestados pelo senhor perito, o tribunal não teve dúvida em valorar como mais credível o teor do exame pericial de fls. 1074 a 1086, onde foi inclusivamente feita uma perícia psicológica.

Donde, igualmente, a resposta negativa ao ponto 14 dos factos não provados”.

Quando a 1.ª perícia infere a existência de uma lesão neurológica sem contudo a demonstrar, parte não de um juízo científico a que pudesse contrapor-se juízo de igual natureza, mas de uma opinião, ou talvez melhor de uma “suposição” que não pode figurar como premissa que leve a conclusão lógica que tenha de acatar-se, sem mais.

Essa perícia deixa, pois, de constituir prova tarifada ou vinculada, ou, se se quiser, prova de valor reforçado, contrariamente à 2.ª perícia, que teve a adesão de ambas as instâncias.

Não foi, pois, violado o disposto no art.º 163.º do CPP, muito menos o princípio da presunção de inocência na vertente invocada do in dubio pro reo e o disposto no art.º 32.º, n.º 2, da CRP.

Essa violação ocorreria se o tribunal tivesse ficado na dúvida sobre a incapacidade de o recorrente se determinar de acordo com a avaliação do carácter ilícito dos factos e que nesse estado de dúvida decidisse contra o arguido, como nesse sentido vai há muito a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça (v., potr todos, o Ac. de 04.01.2017, Proc. 655/10.8GBTMR.E1.S1)

Mas dúvida não lhe restou, com claramente resulta, aliás, da convicção alicerçada no 2.º exame pericial, expressa no acórdão da 1.ª instância, integralmente confirmado pela Relação.

Improcede, assim, a questão suscitada.

2. Quanto à medida da pena, limita-se o recorrente a sustentar que o acórdão recorrido fez uma incorrecta valoração das circunstâncias atenuantes, como o facto de ser primário, trabalhador, querido no meio social e tratar-se de cidadão calmo, afigurando-se-lhe que a pena imposta de 19 anos de prisão é desconforme quer à culpa, quer às necessidades de prevenção geral e especial, não devendo ir além dos 15 anos.

Dir-se-á, antes de mais, que o recorrente não pôs em causa a qualificação jurídico-penal dos factos (nem oficiosamente há que fazê-lo) como integrando o crime de homicídio qualificado dos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alín.s. b) e j), do CP, agravado nos termos do art.º 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, cuja moldura penal varia entre os 16 e os 25 anos de prisão.

Em razão desse mínimo de pena abstracta, carece, assim, de sentido a pretensão do recorrente de uma pena não superior a 15 anos de prisão.

Seja como for, a decisão impugnada valorou na exacta medida todas as circunstâncias atenuantes de carácter geral ora invocadas quando, na reapreciação da fundamentação da medida da pena se ateve às condições pessoais do arguido e à sua conduta anterior isenta de qualquer condenação penal, bem como à sua integração familiar, social e profissional.

O enfoque pretendido dar à circunstância de ser primário, com relevância em sede de prevenção especial, não tem no caso em apreço e no tipo de crime em causa, de homicídio, valor de destaque, dada a sua reiteração não ser frequente, como este Supremo tem assinalado (Ac. de 27.05.2010, Proc. 6/09.4JAGRD.C1.S1).

De acordo com o disposto no art.º 40.º, n.º 1, do CP a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da confiança da comunidade na ordem jurídico-penal (prevenção geral positiva) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial positiva).

Por outro lado, a determinação da medida da pena é efectuada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (art.º 71.º, n.º 1), atendendo-se nomeadamente a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando-se, além do mais, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e gravidade das consequências, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados e os fins ou motivos determinantes do crime, as condições pessoais e a situação económica do agente, a sua conduta anterior e posterior (art.º 71, n.º 2), sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art.º 40.º, n.º 2).

No crime de homicídio em causa, onde concorrem duas circunstâncias qualificativas, ou seja, dois exemplos-padrão, porque mais grave, foi com acerto que se elegeu a circunstância da alín. b) do n.º 2 do art.º 132.º (morte de cônjuge) como a qualificadora do crime de homicídio, fazendo-se funcionar a circunstância da alín. j) do n.º 2 do mesmo normativo (reflexão sobre os meios empregados) como agravante geral, a ter reflexo da medida concreta da pena (Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense”, I, 2.ª ed., pág. 79 e Teresa Serra, “Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Almedina, 1992, pág. 106).

A par do elevado grau de ilicitude do facto, no caso, as exigências de prevenção geral positiva são intensas, dado estar em causa a violação, por parte do arguido recorrente, do bem jurídico primordial (vida).

Por outro lado, o quadro de violência de género, em especial de violência doméstica, em que o ilícito foi perpetrado e a frequência avassaladora com que tal tipo de ilícito vem sendo praticado e o alarme e intranquilidade social causados, reclamam uma forte reacção penal que só uma medida eficaz de pena concreta pode dar. 

Igualmente fortes são as exigências de prevenção especial de integração, dado que o arguido não interiorizou convenientemente o desvalor da sua conduta, conforme demonstrado pela decisão recorrida.

A intensidade do dolo está expressa no grau elevado de energia criminosa com que o recorrente executou a vítima quando, na sequência dos dois primeiros disparos, se encontrava ajoelhada no chão a tentar reerguer-se e, sem piedade, voltou a ser alvo de três outros disparos letais.

Daí que a pena imposta de 19 anos de prisão, situada aquém do limite médio da moldura penal abstracta, se mostre adequada e proporcional à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial.

Soçobra, assim, toda a argumentação do recurso interposto.

*

III. Decisão

Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso e manter integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 8 UC.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Fevereiro de 2018

Francisco Caetano

Carlos Almeida