Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
86/13.8JELSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: CORREIO DE DROGA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
ILICITUDE CONSIDERAVELMENTE DIMINUÍDA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
Data do Acordão: 02/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO O RECURSO
Área Temática:

DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES / TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.º2, 50.º, N.º1, 71.º, N.ºS 1 E 2.
D.L. N.º 15/93, DE 22-01: - ARTIGOS 21.º, 25.º.
Sumário :

I -A conduta atribuída ao arguido insere-se no transporte intercontinental de droga por via aérea, a cargo de pessoas contratadas para o efeito, viajando como vulgares passageiros de avião, e levando a droga na sua bagagem, ou na roupa, de forma disfarçada, ou mesmo no interior do próprio corpo. São os vulgarmente chamados «correios de droga».
II - Trata-se de um fenómeno recorrente, sendo Portugal um país normalmente utilizado como plataforma de entrada na Europa de estupefacientes provindos dos países produtores, normalmente da América do Sul, quando se trata de cocaína, por vezes recorrendo os «correios» a uma rota indireta, com passagem por terceiros países, para tentar iludir a vigilância policial.
III -Esta conduta dificilmente poderá ser considerada de «menor gravidade», para efeitos de poder ser enquadrada no art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, integrando, ao invés, o crime fundamental de tráfico de estupefacientes do art. 21.º do referido diploma.
IV - Nos termos do art. 71°, n.º 1, do CP, a pena é determinada em função da culpa e da prevenção, não podendo ultrapassar a medida da culpa (n.º 2 do art. 40.º do CP). Na determinação concreta da pena há que atender às circunstâncias do facto, nomeadamente à ilicitude, e a outros fatores ligados à execução do crime, à personalidade do agente, e à sua conduta anterior e posterior ao crime (art. 71.º, n.º 2, do mesmo Código).
V - Nas condutas em referência, que são geralmente muito homogénas na sua execução, a ilicitude deve, essencialmente, ser medida pela quantidade de estupefaciente transportado, pois da quantidade derivará uma maior ou menor virtualidade de disseminação do produto, e consequentemente uma maior ou menor intensidade de danos para a saúde das pessoas: a uma quantidade mais elevada corresponderá normalmente uma maior ilicitude da conduta.
VI -No caso em análise, não esquecendo que era cocaína a droga transportada pelo arguido, há que acentuar que esta tinha, em termos de peso líquido, 8089,89 g, uma quantidade claramente acima da média transportada pelos «correios» (que se situa entre os 4 e os 5 kg), potenciadora de uma ampla disseminação do estupefacientes entre os consumidores, agravando assim fortemente a conduta do arguido.
VII - Por outro lado, as dificuldades de ordem financeira que o arguido sentia, e que o motivaram para a prática do crime, não encerram qualquer valor atenuativo, já que correspondem precisamente ao tipo de agentes recrutados pelas redes de drogas para a função de «correio» (não se provou aliás que a situação vivida pelo arguido fosse desesperante, em termos de tornar «menos exigível» a sua conformação com o direito e as normas jurídicas).
VIII - As exigências da prevenção geral são muito fortes, pela recorrência deste tipo de conduta no nosso País. Mas também a prevenção especial se mostra exigente, dados os antecedentes criminais do arguido e a adesão fácil a novo envolvimento nesta atividade, perante as dificuldades financeiras sentidas, para enfrentar as quais o arguido deveria ter escolhido outros meios, não ilícitos.
IX - Não há, pois, qualquer razão para efetuar qualquer redução na medida da pena fixada [5 anos e 10 meses de prisão], que cumpre as finalidades preventivas e não excede a medida da culpa.

Decisão Texto Integral:
           

                Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. Relatório

            AA, cidadão boliviano, com os sinais dos autos, foi condenado na 4ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 18.10.2013, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do DL nº 15/93, de 22-1, na pena de 5 anos e 10 meses de prisão, e na pena acessória de expulsão do território nacional por 5 anos.

            Dessa decisão recorreu o arguido, que concluiu assim a sua motivação:

1. O acórdão recorrido condenou o recorrente pela prática de:

Um crime de tráfico de estupefacientes, em autoria, p. e p. pelo art. 210, n.º 1 do D. L. nº 15/93, de 21 de Janeiro, com referencia à tabela I-B, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 5 anos e 10 meses de prisão;

2. No que se reporta à medida da pena, atendendo aos princípios gerais de direito e à tão visada reinserção social, afere-se como excessivamente gravosa e, acima de tudo, contraproducente a medida da pena.

3. Ainda para mais quando resulta do próprio texto do aresto que da avaliação da personalidade unitária do agente não resulta a recondução a uma tendência criminosa.

4. Entende-se ser possível fazer-se um juízo de prognose favorável à reintegração social do arguido.

5. As condições pessoais do recorrente condenado são favoráveis a uma ressocialização em liberdade e em ambiente familiar.

6. O arguido tem hábitos de trabalho.

7. A aplicação da uma pena privativa da liberdade ao condenado recorrente mostra-se adversa ao tal juízo de prognose favorável à reintegração social que o acórdão parece querer evidenciar.

8. O Tribunal a quo não levou em consideração os critérios enunciados no nº 2 do artigo 71º e 72º do C.P.

9. A própria condição pessoal, profissional e social do agente, é de molde a decidir-se por medida que contribua para a reintegração e não para a segregação, cumprindo-se assim o disposto no artigo 40º do C.P.

10. O doseamento da pena arbitrado pelo tribunal a quo viola o princípio da proporcionalidade das penas.

11. A pena deve ser de 5 anos de prisão, suspendendo-se a sua execução por igual período, sem sujeição ao regime de prova.

Normas violadas: artigos 40°, 50.°, 70.°, 71.° e 72.° todos do Código Penal; arts. 21 e 25 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01.

Nestes termos e nos mais de direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., concedendo-se provimento ao presente recurso, requer-se seja

a) Reduzida a pena aplicada por outra no mínimo legal ao tipo, atendendo à culpa do arguido e por terem sido preteridas circunstâncias concretas para efeitos de prevenção geral e especial, nomeadamente o facto do arguido não se dedicar, por qualquer forma, ao crime, entre outras, como exposto;

Caso o presente recurso proceda e reduza a pena para cinco anos, deverá

b) Suspender-se a mesma na sua execução e pelo tempo daquela

Respondeu a sra. Procuradora da República, dizendo:

1. A pena aplicada é justa e adequada no caso em que o arguido fazia transportar para cima de 8090 gramas (+ de 8Kg) de cocaína.

2. A confissão e o arrependimento não têm qualquer carácter extraordinário nem neste tipo de crime nem nas circunstâncias em que se dá a apreensão, não sendo fundamento para aplicar ao arguido o limite mínimo da moldura do crime de tráfico.

3. Cada caso é um caso e um dos princípios maiores do direito penal encontra-se consagrado logo no art. 71.º n.º1 do Código Penal que dispõe: “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, ou seja, a medida da pena determina-se em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele. (n.º2 do art. 71.º)

4. O arguido tem já a experiência de outras situações ligadas ao tráfico, tendo já sido condenado em pena de prisão efectiva nos anos noventa por crime ligado ao tráfico e esteve em prisão preventiva durante o ano de 2012, por causa de uma acusação ligada também ao crime de tráfico de estupefacientes.

5. Só essa circunstância constitui logo uma diferença essencial dos seus colegas de estabelecimento prisional a que tão veemente recorre como exemplo para tão diversa condenação em cada um dos casos.

6. O acórdão recorrido ponderou as diversas circunstâncias indicadas na fundamentação para onde se remete, concluindo pela aplicação da pena de 5 anos e 10 meses de prisão efectiva, quantum, que, a nosso ver, se mostra inteiramente ajustado às exigências impostas pelo binómio culpa/prevenção.

7. A suspensão da execução da pena inferior a cinco anos de prisão, tem sobretudo na sua base considerações de prevenção especial, traduzidas no facto de, considerando a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, for possível concluir, por um juízo de prognose favorável, que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão são suficientes para a afastar da criminalidade.

8. Contudo, a suspensão da execução da pena de prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime. (Figueiredo Dias, in Consequências jurídicas do crime, 1993, parágrafo 520)

9. No caso em concreto, as exigências de prevenção geral, dada a natureza do crime de tráfico, e a conduta específica do arguido, em especial a sua confissão e o seu comportamento anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, não são susceptíveis de concluir, por um juízo de prognose favorável de que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão são suficientes para o afastar da criminalidade.

10. Face a este quadro não poderia ser suspensa a pena de prisão, pois que o juízo de prognose não lhe seria favorável.

11. O que está em causa no instituto da suspensão da execução da pena não é qualquer “certeza”, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser conseguida, devendo o Tribunal correr risco “prudencial” de forma fundada e calculada sobre a manutenção do agente em liberdade.

12. A existir razões sérias para pôr em causa a capacidade do arguido de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada.

Neste Supremo Tribunal, o sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

2 - Do mérito do recurso:

2.1 – Emitindo parecer, como nos cumpre, sobre as questões que vêm colocadas [reexame da escolha e da medida concreta da pena], cabe dizer o seguinte:

                2.1.1 – Liminarmente, e tendo em conta que, mesmo não sendo objecto de controvérsia, sempre a questão cabe, nesta sede, nos poderes, oficiosos, de cognição deste Supremo Tribunal, sublinhar que nos não merece reparo a qualificação jurídica dos factos operada pela 1.ª Instância: A factualidade fixada – [no voo n.º TP52, procedente de Belo Horizonte, Brasil, o recorrente transportava consigo, uma parte impregnada em 5 casacos e 2 edredões acondicionados na mala da respectiva bagagem, e outra parte colada às coxas e canelas do seu corpo, 8089,890 gramas (peso líquido) de “cocaína”] – é, sem qualquer dúvida, integradora do crime de tráfico de estupefacientes, levado a cabo por um “correio”.

                As circunstâncias provadas, que, dentro da moldura abstracta do referido crime, da previsão normativa do art. 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, relevam para a medida concreta da pena, também não diferem das que se verificam na generalidade dos casos de tráfico de cocaína detectados nos aeroportos nacionais e que têm sido objecto de julgamento, em recurso, pelo STJ.

                O elevado grau de ilicitude da sua conduta, a quantidade e qualidade da droga apreendida (mais de 8 quilos de cocaína), a intensidade do dolo, directo, com que agiu e a existência de um antecedente criminal pelo mesmo crime, tudo em contraposição com a manifesta irrelevância da sua confissão, inviabilizam por si só a mera hipótese – aliás não colocada no recurso – de ponderação da possibilidade de atenuação especial da pena: é que, manifestamente, nenhuma circunstância capaz de diminuir, por forma acentuada, a culpa do recorrente, a ilicitude da sua conduta ou a necessidade da pena se mostra provada.

                A pena aplicada por outro lado, de 5 anos e 10 meses de prisão, sem pôr em causa o limite, inultrapassável, da medida da culpa [art. 40.º, n.º 2 do CP], corresponde não só às exigências de prevenção geral – consabidamente muito elevadas – como também as de socialização ínsitas à prevenção especial – [estas desde logo decorrentes não só do seu antecedente criminal, como também da circunstância de, não se mostrando minimamente alterado o quadro de dificuldades económico-financeiras que o levaram a aceitar a proposta de transporte da droga em causa nos autos, o arguido, se recolocado em liberdade, ficaria em situação propícia para não resistir a eventual novo convite para serviço idêntico] –, e não se revela, de todo, desproporcionada ou desajustada.

                Ademais, como pode ler-se, em sede de fundamentação, por exemplo no Acórdão do STJ de 26 de Abril de 2012, proferido no Processo n.º 293/10.5JALRA.C1.S1, da 5.ª Secção, «competem ao Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, funções de uniformização de critérios da medida da pena, com vista a um tratamento tão igualitário quanto possível de casos similares. Ora, e para citarmos apenas um exemplo, foi de 5 anos e 6 meses a pena confirmada pelo Acórdão do STJ do passado dia 16-05-2012, proferido no Processo n.º 77/11.3JELSB.L1.S1, desta 3.ª Secção, onde estava em causa uma situação de idênticos contornos, mormente no que diz respeito à quantidade de cocaína aí transportada pelo arguido, também como “correio de droga”, quantidade essa aliás até significativamente inferior [apenas cerca de 4 quilos e 300 gramas].

                E, de resto, como este Supremo Tribunal vem repetidamente dizendo – no acolhimento aliás os ensinamentos de Figueiredo Dias [In Direito Penal Português, II – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 197] –, em recurso de revista não é de sindicar o quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção manifesta da quantificação efectuada – o que, e a nosso ver, não é, de todo, o caso.

                2.1.2 – Por outro lado, há ainda que evidenciar que, perante a inusitada frequência com que vem sendo praticado este tipo de ilícitos, são por demais elevadas as exigências de defesa do ordenamento jurídico, o que vale por dizer pois que, em tais situações, nunca a simples censura do facto e ameaça de pena – mesmo se fixada (o que, e a nosso ver bem, não é o caso) em medida não superior a 5 anos de prisão – seria de molde a permitir acautelar de forma adequada e suficiente as elevadas exigências de prevenção geral. 

                Dir-se-á pois, em conclusão, que a opção por qualquer reacção criminal diferente da que foi aplicada, mesmo que apenas na respectiva medida concreta, já não satisfaria minimamente, “in casu” nem as necessidades de prevenção especial de socialização – influência concreta sobre o agente – nem, sobretudo, as de prevenção geral de tutela do ordenamento jurídico – influência sobre a comunidade, no sentido de “reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida”.

                2.1.3 – Mas se porventura se entendesse ser, apesar de tudo, de reduzir a pena, nessa hipótese para medida não superior a 5 anos de prisão, medida esta consentânea com a possibilidade de substituição pela pena de suspensão da execução da prisão, face à redacção dada ao n.º 1 do art. 50.º do C. Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, não cremos que ainda assim essa suspensão possa, in casu, ser equacionada.

                De acordo com este novo normativo, com efeito, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. É necessária, pois, a formulação de um juízo de prognose social favorável que permita esperar que essa pena de substituição reintegre o agente na sociedade, mas também proteja os bens jurídicos, afinal os fins visados pelas penas (n.º 1 do art. 40.º do C. Penal).

Como a este propósito decidiu este Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em Acórdão datado de 15-11-07, proferido no âmbito do Processo n.º 3761/07, da 5.ª Secção, «para que possa ser suspensa a pena de prisão é necessária a formulação de um juízo de prognose social favorável que permita esperar que essa pena de substituição reintegre o agente na sociedade, mas também proteja os bens jurídicos, os fins visados pelas penas (n.º 1 do art. 40.º do C. Penal)[…]».

E conforme, de resto, ensina também o Prof. Figueiredo Dias, a primeira finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, mas não é a única.

O que vale por dizer, pois, que a suspensão da execução da pena de prisão tem de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Se as não realizar, a suspensão não deve ser decretada.

Se os fins de defesa do ordenamento jurídico, cuja prossecução a norma penal demanda, forem postos em causa pela suspensão da execução da pena, ela não deverá ser decretada, ainda que o tribunal conclua por um prognóstico favorável ao arguido no que concerne à eficácia desta pena de substituição para o afastar da prática de novos crimes.

Em idêntico sentido se pronunciou também a Prof. Anabela Rodrigues, salientando a este propósito que embora como pressuposto e limite da culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, só na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade.

Ora no caso em apreço, e independentemente de quaisquer considerações sobre o maior ou menor relevo das circunstâncias que depõem a favor do ora recorrente ou contra ele (todas elas equacionadas, aliás, na determinação concreta da pena), o certo é que uma tal pena substitutiva poderia pôr gravemente em causa a credibilidade que ainda gozam as normas penais. Estamos, com efeito, perante um facto ilícito típico cuja gravidade no plano das consequências se situa num patamar muito elevado, sendo que o grau de culpa da arguida é também muito acentuado.

O que significa portanto que inquestionáveis exigências de prevenção geral (reforço da consciência jurídica comunitária, no que respeita ao sentimento de segurança face à violação das normas penais), - que não podem, de forma nenhuma, ser descuradas –, impõem, pois, aquele juízo de prognose desfavorável à possibilidade de escolha de uma pena não privativa da liberdade. O mesmo é dizer que, e a nosso ver, não estamos perante um caso em que a simples censura do facto e a ameaça do cumprimento da pena pudessem ainda realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do arguido na sociedade (art. 40.º do Código Penal).

De resto, e como, num quadro de idênticos contornos, pode ler-se, em sede de fundamentação, no Acórdão deste STJ, de 20-10-2011, proferido no âmbito do Processo n.º 492/10.0JELSB, da 5.ª Secção, citamos, «[…] à suspensão opor-se-iam considerações de prevenção geral. Com efeito, a arguida levou a cabo uma conduta que assume especial relevo no comércio global de drogas, pois o "correio" é um instrumento de que os donos dos produtos proibidos se servem para o seu transporte entre pontos distantes, com vantagem sobre outros meios, por assim diminuírem os riscos de grandes apreensões E transportou uma quantidade assinalável, quase 2 quilogramas, de uma espécie de droga que gera facilmente habituação, potencia depois outro tipo de criminalidade, principalmente contra o património, para sustentar o seu dispendioso consumo, e é de considerável nocividade para a saúde dos seus consumidores. Nestas circunstâncias, representando o comportamento da arguida uma grave violação da norma que prevê e pune o tráfico de droga, a suspensão da pena não satisfaria as exigências mínimas de defesa da ordem jurídica». 
                2.2 – PELO EXPOSTO, sem necessidade de mais desenvolvidos considerandos emite-se parecer no sentido de que será de negar provimento ao recurso e de confirmar, assim, a decisão impugnada.

Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o arguido nada disse.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

A única questão que o recorrente coloca é a da medida da pena, que pretende que seja reduzida para 5 anos de prisão e suspensa na sua execução.

Torna-se antes de mais necessário conhecer a matéria de facto fixada, que é a seguinte:

1. No dia 28 de Fevereiro de 2013, pelas 14h30m o arguido chegou ao aeroporto de Lisboa procedente de Belo Horizonte, Brasil, no voo... transportando consigo uma mala que ostentava a etiqueta TP10756.

2. Tendo-se apresentado no canal verde foi seleccionado pelo funcionário alfandegário para revisão de bagagem.

3. No decurso da qual veio a ser encontrado na posse do arguido, no interior da aludida mala, impregnado em 5 casacos e 2 edredões, um produto suspeito de ser cocaína, com o peso bruto global de 13628 gramas.

4. Após o que sujeito a revista pessoal veio ainda a ser encontrado na posse do arguido, coladas às coxas e canelas, quatro – 4- embalagens contendo um produto suspeito igualmente de ser cocaína com o peso bruto de 2418,300 gramas.

5. Mais lhe foi apreendido:

Um telemóvel de marca Nokia, modelo 1661, de cor preta, com o IMEI ..., encontrando-se inserido um cartão SIM da operadora Tigo, com as inscrições 8959103000116860367, sem PIN de activação;

680€ (seiscentos e oitenta euros);

USD 200 (duzentos dólares americanos);

BOB 200 (duzentos bolivianos);

BRL 7 (sete reais brasileiros);

Um print de um mail da conta Juancn52hotmail.com de uma reserva electrónica para o percurso Porto Velho – Belo Horizonte – Lisboa, a 27 de Fevereiro, Lisboa – Valência, a 1 de Março, Madrid – Lisboa e Lisboa – Belo Horizonte a 17 de Março;

Uma etiqueta de bagagem com o código 0047 TP 710756;

Um canhoto/talão de bilhete de viagem para o percurso Belo Horizonte – Lisboa, na data de 27 de Fevereiro, tudo em nome do arguido e vários papéis manuscritos, tal como resulta dos autos de apreensão constantes de fls. 11, 12 e 68, aqui dados por reproduzidos.

6. O produto referido em 3 e 4, foi submetido a exame laboratorial e identificado como sendo cocaína (cloridrato), respectivamente com 67,3; 50,1, 47,3 e 40,9% de grau de pureza, permitindo a preparação de 19753 doses de cocaína, tendo a amostra cofre o peso líquido global de 6168,290 gramas enquanto o remanescente tinha o peso global, igualmente líquido, de 1921,600 gramas, conforme resulta do exame laboratorial constante de fls. 121, aqui dado por integralmente reproduzido.

7. O arguido conhecia perfeitamente a natureza e características de tal produto.

8. Produto esse que aceitara transportar por, para o efeito, lhe ter sido prometida quantia não apurada.

9. As importâncias apreendidas eram parte do lucro que o arguido iria obter com o transporte de tal produto.

10. O arguido agiu livre e voluntariamente,

11. Bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei.

12. O arguido é natural da Bolívia e não possui residência nem qualquer ligação familiar ou profissional no nosso país.

13. Onde apenas se deslocou para praticar os factos antes descritos qualificados pela lei como crime.

14. Existe, pois fundado perigo de que continue a praticar crimes caso seja autorizada a sua permanência em Portugal.

Provou-se ainda que:

15. O arguido nasceu e foi criado na Bolívia, numa família numerosa de condição sócio económica modesta, sendo a dinâmica familiar gratificante e integrada dentro dos parâmetros normativos, pautada por transmissão de valores socio-morais.

16. Aos 12 anos de idade, por motivos de carência económica do agregado familiar, o arguido iniciou actividade laboral, como aprendiz de técnico de ares condicionados/caldeiras, tendo-se mantido nesse ramo de actividade durante vários anos, embora de forma irregular, quer por conta própria, quer por conta de d'outrém.

17. Aos 18 anos de idade concluiu curso operacional na área da electrónica.

18. O arguido contraiu matrimónio quando atingiu a maioridade, tendo nascido 3 filhos desse matrimónio.

19. Em 1991, a sua relação conjugal veio a ser perturbada aquando do cumprimento de uma pena de prisão pela prática de um crime de tráfico/fabrico de estupefacientes, vindo a divorciar-se em 1993.

20. Dessa pena de prisão a que foi condenado, no total de 3 anos e 4 meses, terá cumprido metade da pena, tendo saído em liberdade condicional.

21. Posteriormente veio a estabelecer novo relacionamento afectivo, com a sua actual companheira, a qual é professora, tendo tido com a mesma 3 filhos, actualmente com 18, 15 e 14 anos de idade, respectivamente.

22. O casal vivia com dificuldades financeiras, pelo que, em meados de 2005, o arguido emigrou para Barcelona, onde vivia o seu irmão, tendo-se mantido em situação ilegal até 2011, tendo nessa data conseguido regularizar a sua situação, obtendo autorização de residência, até 2014.

23. Em Barcelona trabalhou por conta d'outrém, numa empresa de transporte de mercadorias, bem como por conta própria, efectuando pequenas reparações electrodomésticos e transporte de passageiros, em veículo que adquiriu.

24. Segundo o arguido, em meados de Maio/Junho de 2012 terá sido acusado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e na pendência do qual terá estado em prisão preventiva, vindo a ser absolvido da prática desse crime.

25. Por motivos de saúde da sua companheira regressou à Bolívia, onde vivia actualmente, com a sua companheira e os três filhos de ambos.

26. O agregado familiar encontrava-se numa situação económica difícil, quer pela precariedade da situação laboral do arguido, quer pela impossibilidade da companheira em desenvolver actividade profissional, por motivos de saúde.

27. Foi nessa circunstância de carência económica que o arguido veio a contactar com indivíduos relacionados com o meio criminógeno.

29.        Segundo informação vinda do IP de La Paz, o arguido foi detido em  19.10.1992, na localidade de El Abra, Camino Cotoca, no âmbito do Caso n.º H-502/92, por factos relacionados com crime de tráfico de estupefacientes.

O arguido não contesta a subsunção jurídica dos factos ao art. 21º do DL nº 15/93. Sendo a qualificação jurídica dos factos matéria de direito, de conhecimento oficioso, certo é que, no caso dos autos, é manifesto que nenhum reparo ela merece.

Na verdade, a conduta imputada ao arguido é a de transporte intercontinental de droga por via aérea, a cargo de pessoas contratadas para o efeito, viajando como vulgares passageiros de avião, e levando a droga na sua bagagem, ou na roupa, de forma disfarçada, ou mesmo no interior do próprio corpo. São os vulgarmente chamados “correios de droga”.

Trata-se de um fenómeno recorrente, sendo Portugal um país normalmente utilizado como plataforma de entrada na Europa de estupefacientes provindos dos países produtores, normalmente da América do Sul, quando se trata de cocaína, por vezes recorrendo os “correios” a uma rota indireta, com passagem por terceiros países, para tentar iludir a vigilância policial.

O transporte individual não permite obviamente a passagem de grandes quantidades de estupefacientes, mas, em compensação, possibilita a rápida introdução dos estupefacientes nos mercados dos países de consumo. Por isso, é um meio intensivamente utilizado pelas organizações que controlam a produção dos estupefacientes para a sua colocação expedita nesses países, um meio complementar da via marítima, que, essa sim, viabiliza o transporte de grandes quantidades de droga.

Os “correios”, não sendo embora os donos da droga que transportam, estando normalmente desligados do meio e do circuito comercial dos estupefacientes, sendo meros contratados, pagos “à peça”, ou seja, pelo concreto serviço prestado, ficando, após a realização do serviço, fora do ambiente das drogas, são, no entanto, uma peça importante, porventura cada vez mais importante, para fazer a conexão entre produção e consumo, sem a qual não existe negócio.

Assim, esta conduta dificilmente poderá ser considerada de “menor gravidade”, para efeitos de poder ser enquadrada no art. 25º do citado DL º 15/93.

Estabelecido, pois, o enquadramento jurídico dos factos, importa saber se a pena peca por excessiva, devendo ser fixada em medida não superior a 5 anos de prisão, e ainda ser suspensa na sua execução.

Nos termos do art. 71º, nº 1, do Código Penal (CP), a pena é determinada em função da culpa e da prevenção, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa (nº 2 do art. 40º do CP). Na determinação concreta da pena há que atender às circunstâncias do facto, nomeadamente à ilicitude, e a outros fatores ligados à execução do crime, à personalidade do agente, e à sua conduta anterior e posterior ao crime (art. 71º, nº 2, do CP).

Atente-se em que, nas condutas em referência, que são geralmente muito homogénas na sua execução, a ilicitude deve, essencialmente, ser medida pela quantidade de estupefaciente transportado, pois da quantidade derivará uma maior ou menor virtualidade de disseminação do produto, e consequentemente uma maior ou menor intensidade de danos para a saúde das pessoas. Assim, a uma quantidade mais elevada corresponderá normalmente uma maior ilicitude da conduta, e vice-versa.

Ora, no caso em análise, não esquecendo que era cocaína a droga transportada pelo arguido, há que acentuar que esta tinha, em termos de peso líquido, 8.089,89 gramas (mais de 8 kg), uma quantidade claramente acima da média transportada pelos “correios” (que se situa entre os 4 e os 5 Kg), potenciadora de uma ampla disseminação do estupefacientes entre os consumidores, agravando assim fortemente a conduta do arguido.

De realçar também os antecedentes criminais do arguido neste tipo de crime, embora a anterior condenação tenha ocorrido há um considerável número de anos (mais de vinte), na Bolívia.

As dificuldades de ordem financeira que o arguido sentia, e que o motivaram para a prática do crime, não encerram qualquer valor atenuativo, já que correspondem precisamente ao tipo de agentes recrutados pelas redes de drogas para a função de “correio”. Não se provou aliás que a situação vivida pelo arguido fosse desesperante, em termos de tornar “menos exigível” a sua conformação com o direito e as normas jurídicas.

As exigências da prevenção geral são muito fortes, pelas já assinaladas razões de recorrência deste tipo de conduta no nosso País.

Mas também a prevenção especial se mostra exigente, dados os antecedentes criminais do arguido e a adesão fácil a novo envolvimento nesta atividade, perante as dificuldades financeiras sentidas, para enfrentar as quais o arguido deveria ter escolhido outros meios, não ilícitos.

Em síntese, depara-se-nos uma situação em que a ilicitude e a culpa são elevadas, sem que se verifiquem quaisquer atenuantes ao comportamento assumido pelo arguido.

São muito fortes as exigências de prevenção geral e especial, conforme já foi referido.

Sendo assim, não há razão para efetuar qualquer redução na medida da pena, que cumpre as suas finalidades preventivas, sem exceder a medida da culpa.

Prejudicada fica a possibilidade de suspensão da execução da pena, por força do disposto no art. 50º, nº 1, do Código Penal.

Improcede, pois, o recurso interposto.

III. Decisão

Com base no exposto, nega-se provimento ao recurso.

Vai o recorrente condenado em 5 UC de taxa de justiça.

                                   Lisboa, 19 de fevereiro de 2014



Maia Costa (relator) **
Pires da Graça