Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
00S2022
Nº Convencional: JSTJ00040811
Relator: JOSÉ MESQUITA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
SEGURANÇA NO TRABALHO
CULPA DA ENTIDADE PATRONAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
Nº do Documento: SJ200010110020224
Data do Acordão: 10/11/2000
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 89/99
Data: 01/04/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR TRAB - ACID TRAB.
Legislação Nacional: DL 41821 DE 1958/08/14 ARTIGO 44.
L 2127 DE 1965/08/03 BXV N2 BXIII N4.
D 360/71 DE 1971/08/21 ARTIGO 54.
Sumário : I - Se a entidade patronal não se dedica à actividade de construção civil, desconhecendo as regras de segurança, não lhe pode ser exigível o mesmo grau de responsabilidade que a uma empresa que se dedique àquela actividade.
II - E essa não responsabilidade mais se acentua se os trabalhadores recusaram o conselho de seguirem certas normas de segurança, não se amarrando, e se os trabalhadores não se encontravam vinculados a um verdadeiro contrato de trabalho.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I. 1. A propôs no Tribunal do Trabalho de Portalegre, a presente acção especial emergente de acidente de trabalho, contra:
B, S.A. e C, todos nos autos devidamente identificados, alegando o que consta da sua petição de fls. 80 e seguintes e pedindo que seja definida a responsabilidade pelo acidente de trabalho de que foi vítima ao serviço do 2º Réu, cuja responsabilidade estava transferida para a Ré Seguradora e que a responsável seja condenada a pagar-lhe:
- a pensão anual e vitalícia de 207144 escudos;
- 1000 escudos de taxa moderadora no hospital onde foi assistido;
- 4500 escudos que despendeu num par de muletas; e
- 295740 escudos de despesas de transportes para comparecer a consultas e tratamentos de fisioterapia.
2. Contestou a Seguradora alegando que o acidente se deveu à violação das regras de segurança e, como tal, a sua responsabilidade é subsidiária, sendo responsável principal a entidade patronal.
Contestou também o Réu C, alegando a sua ilegitimidade, em razão de a sua responsabilidade estar transferida para a Seguradora, a inexistência de contrato de trabalho com o Autor; e que a queda se deveu à violação das regras de segurança pelo próprio Autor.
3. Proferido despacho saneador, onde se desatendeu a excepção da ilegitimidade, e organizadas a especificação e o questionário, prosseguiu o processo para julgamento, realizado o qual foi proferida a douta sentença de fls. 186 e seguintes que condenou o Réu C como responsável principal, sendo subsidiária a responsabilidade da Seguradora.
Interposto recurso desta sentença, o Tribunal da Relação de Évora, proferiu o douto acórdão de fls. 221 e seguintes anulando o julgamento, repetido o qual veio a ser proferida nova sentença de fls. 263 e seguintes, condenando do mesmo modo o Réu C como principal responsável e a Seguradora subsidiariamente.
Também desta sentença apelou o Réu C, recurso que veio a ser julgado procedente pelo douto acórdão de fls. 307 e seguintes que o absolveu, condenando a Seguradora como única responsável.
II. 1. Deste aresto interpuseram recurso de revista a Ré Seguradora, independente e o Ministério Público, subordinado.
Recurso da Ré Seguradora.
A final das suas doutas alegações, a Ré apresentou as seguintes
CONCLUSÕES:
1ª. - A inexistência de qualquer protecção contra quedas para o exterior, designadamente guarda corpos, à volta do telhado em que o autor trabalhava integra violação do artigo 44º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, aprovado pelo Decreto nº 41821 de 11 de Agosto de 1958.
2ª. - A inexistência de qualquer andaime no exterior da parede em cima da qual o autor trabalhava integra violação do artigo 1º do mesmo Regulamento.
3ª. - Ainda que as normas legais acabadas de citar não existissem, o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 441/91, de 14 de Novembro, impunham ao co-réu a implementação na obra de um qualquer sistema de segurança colectivo, adequado a obviar à eventualidade de quedas dos trabalhadores para o solo pelo exterior do edifício.
4ª. - Na falta de qualquer dispositivo colectivo de segurança, o co-réu devia, ao menos, ter fornecido ao Autor qualquer meio de protecção individual, com a mesma finalidade, designadamente o cinto de segurança a que aludem o § 2º do artigo 44º do Decreto nº 41821 e o Anexo II da Portaria 988/93, de 6 de Outubro.
5ª. - Foi por não haver na obra qualquer dispositivo colectivo de segurança nem estar a ser usado pelo Autor qualquer meio de protecção individual contra quedas, em violação das disposições legais citadas nestas conclusões, que teve lugar o acidente.
6ª. - Nos termos do artigo 54º do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto, considera-se ter resultado de culpa da entidade patronal ou do seu representante o acidente devido à inobservância de preceitos legais e regulamentares que se refiram à higiene e segurança do trabalho.
7ª. - Mesmo sem normas legais ou regulamentares a impor directamente a construção de andaimes, guarda corpos ou vedações para evitar a ocorrência de quedas para o solo pelo exterior do edifício ou, dada a falta daqueles meios de protecção, a impor o fornecimento de meios de protecção individual, sempre o co-réu estava obrigado a adoptar medidas adequadas a evitar a eventualidade de tais quedas, tão patente era para qualquer pessoa o risco da sua ocorrência.
8ª. - O acidente ocorreu, assim, por culpa da entidade patronal do Autor.
9ª. - Nos termos do nº 4 da Base XLIII da Lei nº 2127, quando o acidente é devido a culpa da entidade patronal, a seguradora responde subsidiariamente em relação a ela e apenas pelas prestações normais.
10ª. - Tendo condenado a recorrente a título principal e absolvido o réu C, o douto Acórdão recorrido violou, por desaplicação, as disposições legais e regulamentares sobre segurança no trabalho citadas nestas conclusões e, bem assim, o artigo 54º do Decreto nº 360/71 e o nº 4 da Base XLIII da Lei nº 2127.

2. - O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público, em patrocínio oficioso do Autor interpôs recurso subordinado, no qual concluiu:
1ª. - O Autor trabalhava na remodelação de um telhado do Réu C, sem qualquer meio de protecção, encontrando-se em cima de uma das paredes exteriores, a cerca de sete metros do solo, quando caiu;
2ª. - o Decreto nº 41821, de 11 de Agosto de 1958, impõe em situações deste tipo a utilização de meios de protecção dos trabalhadores, designadamente andaimes (artigo 1º), guarda-corpos, plataformas ou cintos de segurança (artigo 44º, § 2º);
3ª. - O acidente é, pois, imputável ao Réu C, por não ter observado estas regras de segurança, devendo, assim, ser condenado a título principal.

III. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Vem fixada pelas instâncias a seguinte
MATÉRIA DE FACTO:
a) no dia 13 de Setembro de 1996 o Autor caiu de uma parede;
b) de que lhe resultaram as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 41;
c) e uma ITA até 26 de Novembro de 1996;
d) e uma ITP de 40% de 27 de Novembro de 1996 a 24 de Fevereiro de 1997.
e) o Autor auferia 150000 escudos x 14 meses.
f) À data do acidente estava em vigor um contrato de seguro, do ramo de acidentes de trabalho, celebrado pelos Recorrentes e titulado pela apólice nº 190 900.
g) Aquando do acidente, o Autor trabalhava na remodelação de um prédio do Réu C, mais propriamente na remodelação do telhado.
h) encontrando-se em cima de uma das paredes exteriores, a meio da empena.
i) o Autor estava a cerca de 7 metros do solo.
j) e estava a puxar com uma corda uma viga de ferro que se destinava a ser colocada no cume, para sustentação do telhado.
m) e fazia-o com a ajuda do Réu C e outros dois companheiros de trabalho estando o C e um dos dois companheiros de trabalho no pavimento do 1º andar e o outro em cima de um andaime que estava no interior do edifício, junto à parede em cima da qual se encontrava o sinistrado, andaime que se encontrava a cerca de dois metros do pavimento do 1º andar e a cerca de 1,5 a 2 metros do local onde o Autor caiu.
n) a viga tinha cerca de seis metros e pesava cerca de 200 quilos.
o) a certa altura o Autor desequilibrou-se e largou uma das mãos que agarrava na corda, que passava apenas por debaixo da viga, e caiu desamparado.
p) o Autor não usava cinto de segurança nem qualquer outro meio de protecção.
q) para além do andaime já mencionado, que se encontrava na parte de dentro do edifício, não havia qualquer outro meio de protecção, nomeadamente poios, guarda-corpos, plataformas, redes, ou outro dispositivo que protegesse o Autor contra quedas.
r) o Autor caiu desamparado no solo.
s) O Réu C e o D disseram ao Autor para atar a corda à viga, tendo este respondido que assim estava bem (a corda estava passada apenas por debaixo da viga).
t) o andaime tinha sido colocado para facilitar a colocação das vigas no telhado.
u) O Autor, e as testemunhas D e E trabalhavam à data do sinistro e desde tempos atrás, "em equipa", trabalhando em diversas obras, que umas vezes tomavam de "empreitada", e outras trabalhavam por conta do patrão, proprietário da obra. O D era tido como o "mestre" da equipa, sendo ele que orientava o trabalho da equipa juntamente com o Autor.
v) o Autor e o D acordaram com o C a remodelação da casa com horário das 8 às 12 e das 13 às 17 horas e remuneração diária de 8000 escudos, incumbindo ao C dizer genericamente as obras que pretendia,
x) o Réu C tanto entregava a remuneração semanal devida aos trabalhadores que executavam a obra, em conjunto ao D, que depois a dava ao Autor e ao E, como pagava individualmente a cada um deles.
z) Após o acidente o E, que até então era o servente, passou a exercer as funções de pedreiro, tendo o Réu C contratado um servente para dar apoio àqueles dois.
aa) A obra teve início em 2 de Setembro de 1996 e durou cerca de um mês.
bb) as ferramentas e utensílios necessários para a realização da obra foram fornecidos pelos referidos pedreiros, a saber, andaimes, as colheres, as pás, o rodo e os ponteiros.
cc) os materiais necessários eram fornecidos pelo Réu, tais como, cimento, telhas, esquentador, o lava-loiças, a cal, os azulejos, a sanita, as vigas de ferro, os barrotes e forro do telhado.
dd) o Réu C já tinha contactado o Autor e o D uns meses antes do início da obra onde se deu o acidente, tendo que esperar que eles tivessem tempo para a sua obra, dado que eram muito procurados para outras obras e tinham outros compromissos.
ee) O Autor estava colectado como trabalhador independente à data do acidente e fazia os seus próprios descontos para a segurança social.
ff) O Réu C fora durante a sua vida activa trabalhador agrícola, e estava reformado dessa actividade.

IV. Colhidos os factos, vejamos
O DIREITO:
1. Subsiste como única questão a resolver, a de saber se o acidente foi devido à inobservância, das regras de segurança por parte do Réu C, tal como o entendeu a douta sentença da 1ª instância.
Ela constitui o objecto de ambos os recursos, nos quais se defende a mesma posição.
Por isso, terão tratamento unitário.
2. Como vimos, a sentença da 1ª instância considerou não terem sido respeitadas as regras de segurança, designadamente as estabelecidas no artigo 44º do Decreto nº 41821, de 11 de Agosto de 1958 - (Regulamento da segurança na Construção Civil) - e, em consequência, condenou o Réu C como principal responsável e a Ré, Seguradora a título subsidiário, nos termos das conjugadas disposições das Bases XVII, nº 2 e XLIII, nº 4 da Lei nº 2127 e do artigo 54º do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto.
Diferentemente, o acórdão recorrido absolveu o Réu C e condenou a Ré Seguradora como única responsável, por entender não ser aplicável ao caso o artigo 44º citado, que respeita "a obras em cima de telhados" e, a haver violação das regras de segurança, ela não ser imputável ao dono da obra, o Réu C, reformado da actividade e desconhecedor das regras de segurança, que confiou na excepção profissional do Autor.
3. Recordemos os factos para o ponto mais relevante - (respeitando as alíneas da matéria de facto) -.
g) - Aquando do acidente, o Autor trabalhava na remodelação de um prédio do Réu C, mais propriamente na remodelação do telhado;
h) - encontrando-se em cima de uma das paredes exteriores, a meio da empena;
i) - o Autor estava a cerca de 7 metros do solo;
j) - e estava a puxar com uma corda uma viga de ferro que se destinava a ser colocada no cume, para sustentação do telhado;
m) - e fazia-o com a ajuda do Réu C e outros dois companheiros de trabalho, estando o C e um dos dois companheiros de trabalho no pavimento do 1º andar e o outro em cima de um andaime que estava no interior do edifício, junto à parede em cima da qual se encontrava o sinistrado, andaime que se encontrava a cerca de dois metros do pavimento do 1º andar e a cerca de 1,5 a 2 metros do local onde o Autor caiu;
n) - a viga tinha cerca de 6 metros e pesava cerca de 200 quilos;
o) - a certa altura o Autor desequilibrou-se e largou uma das mãos que agarrava na corda, que passava apenas por baixo da viga, e caiu desamparado.
p) - o Autor não usava cinto de segurança nem qualquer outro meio de protecção;
q) - para além do andaime já mencionado, que se encontrava na parte de dentro do edifício, não havia qualquer outro meio de protecção, nomeadamente poios, guarda-corpos, plataformas, redes ou outro dispositivo que protegesse o Autor contra quedas;
r) - o Autor caiu desamparado no solo;
s) - o Réu C e o D disseram ao Autor para atar a corda à viga, tendo este respondido que assim estava bem (a corda estava passada apenas por debaixo da viga);
t) - o andaime tinha sido colocado para facilitar a colocação das vigas no telhado;
pp) - o Réu C fora durante a sua vida activa trabalhador agrícola e estava reformado dessa actividade.
4. Perante esta factualidade parece ganhar consistência a tese do douto acórdão em análise.
Desde logo, pela inaplicabilidade do disposto no artigo 44º do Decreto 41821, onde sob a epígrafe "Obras em Telhados" se estabelecem especiais medidas de segurança estritamente direccionados aos perigos que os telhados usualmente apresentam, quando por sobre eles se trabalha.
Por isso é que, no texto do artigo se fala em "trabalho em cima de telhados" e se acrescenta "que ofereçam perigo pela inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas".
Ora, embora a obra consistisse na remodelação do telhado, a verdade é que a concreta actividade desenvolvida no momento do acidente, bem como a precisa localização do Autor - em cima de uma das paredes exteriores, a meio da empena - não se adaptam à estatuição, à previsão e à preocupação do preceito.
Por outro lado, não resulta da matéria de facto que, além do andaime instalado outro ou outros devessem ter sido montados em outros locais.
Mas, mais relevante, e até decisivo, será a argumentação desenvolvida pelo douto acórdão tomando por base a natural falta de conhecimentos do Réu C sobre as regras de segurança em contraponto com a experiência profissional do Autor e dos seus colegas na execução daquele tipo de actividades.
Como perspicazmente se escreveu no acórdão em recurso "tem que haver um grau de exigência completamente diferente consoante a entidade patronal seja uma empresa de construção civil ou um simples particular que decide da realização duma obra em sua casa e a leva a cabo em regime de administração directa, como foi o caso".
Ao Réu C, trabalhador agrícola toda a sua vida activa, não é exigível que possua conhecimentos sobre as regras de segurança na construção civil, actividade em, que acidentalmente se viu envolvido, para além dos cuidados e cautelas apreensíveis pelo homem comum e que até tiveram expressão no aconselhamento que fez para que o Autor atasse a corda à viga.
O homem médio não faria diferente, confiando no conhecimento dos "leges artis" por parte dos trabalhadores que deste tipo de trabalhos faziam profissão.
De resto, toda a discussão vivida nos autos acerca da existência de um verdadeiro contrato de trabalho pode e deve ser convocada a esta problemática, na medida em que reflecte a deslocação da actividade organizativa dos trabalhos da entidade patronal para os trabalhadores.
Uma acentuada autonomia na execução da actividade contratada, que prejudicou e enfraqueceu a visibilidade do elemento subordinação jurídica, acabou também por reflectir-se na organização e aparelhamento das medidas de segurança, transferindo-as para os trabalhadores que, como se viu daquela discussão, quase se qualificavam de empreiteiros.
As dúvidas, aí aventadas e decididas no sentido da existência de uma relação de trabalho subordinado, não se perderam nessa decisão, mantendo-se para outros efeitos, designadamente para explicar e precisar a quem, efectivamente, competia adoptar as medidas de segurança.
V. - Na conformidade do que fica exposto se acorda na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça em negar as revistas, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente Seguradora.
Lisboa, 11 de Outubro de 2000.

José Mesquita,
Almeida Deveza,
Azambuja Fonseca.