Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P1227
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: RECURSO PENAL
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
RESOLUÇÃO CRIMINOSA
UNIDADE DE INFRACÇÕES
COMPARTICIPAÇÃO
AUTORIA
Nº do Documento: SJ200307080012275
Data do Acordão: 07/08/2003
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6856/02
Data: 01/28/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : 1 - No recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da relação tirado em recurso, não pode o recorrente invocar vícios da sentença da 1ª instância previstos nas alíneas do artº. 410º, nº. 2, do CPP, pois o recurso visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.
2 - Essa é, por maioria de razão, a posição a assumir quando já perante a Relação a questão dos vícios foi suscitada pelo recorrente, pois então já foi assegurado um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto e encontra-se definitivamente encerrada a questão de facto.
3 - Não valem como impugnação de uma decisão, as considerações feitas em recurso de outra decisão, interposto antes de aquela ser proferida.
4 - No recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos da Relação que se pronunciaram sobre decisão da 1ª instância, o recorrente deve atacar os fundamentos do acórdão recorrido e não os invocados na 1ª instância, pois, ao proceder doutro modo, o recorrente ignora a decisão judicial que afinal está a impugnar e o seu recurso é manifestamente de rejeitar, por inobservância do artº. 412º do CPP.
5 - A comparticipação criminosa basta-se com a existência de um acordo tácito, ainda que tomado no momento da execução
6 - Verificando-se que:
- por um lado, no elenco dos factos provados consta que houve uma actuação "concertada", isto é, concordante para atingir o mesmo fim;.
- por outro, a sequência dos factos provados demonstra, à evidência, face às regras de experiência comum, que os arguidos (entre os quais os dois recorrentes) agiram, não só em simultâneo, como em conjunto, isto é, em conjugação de esforços e de vontades, com consciência de que a actuação conjunta acarretaria a morte dos nove indivíduos visados pelo fogo das armas que levavam, morte essa que cada um deles desejava provocar;
estamos, indubitavelmente, perante a existência de um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum, pelo que houve comparticipação criminosa e não autorias paralelas.
7 -Na comparticipação criminosa cada agente responde não apenas por aquilo que concretamente fez mas também pela actuação de cada um dos seus comparticipantes; o autor material de uma das actividades é autor mediato da conduta executada pelos outros
8 - Tendo os dois recorrentes, juntamente com outros dois, todos armados com pistolas semiautomáticas que traziam escondias na roupa e já municiadas, ido à porta de uma discoteca e, após curta troca de palavras com o porteiro sobre a obrigatoriedade de pagar um "consumo mínimo", recuado uns passos, sacado (os quatro) das armas e, concertada e simultaneamente, disparado indiscriminadamente contra todas as nove pessoas que se encontravam junto à porta, matando uma e ferindo quatro, mostra-se ajustado condenar, cada um dos arguidos, nas penas parcelares de 21 anos de prisão pelo homicídio consumado, 9 anos de prisão por cada um dos 4 crimes de homicídio tentado em que ficaram feridos os visados, 7 anos de prisão pelos restantes 4 crimes de homicídio tentado, 1 anos e 6 meses de prisão pelo crime de detenção e uso de arma proibida e na pena unitária de 25 anos de prisão.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Os arguidos A e B foram julgados na 1ª. Vara Criminal de Lisboa (3ª. secção) e, a final, quanto à matéria crime, foi decidido:
1 - Condenar cada um dos arguidos A e B:
1.1 - Pela co-autoria comissiva, entre si e com C e D (homiziados e objecto de processo separado), no dia 17 de Março de 2001:
1.1.1 - De um (1) crime de homicídio, qualificado, consumado, previsto e punível pelos artºs. 131º e 132º, nº. 1, do C. Penal, (à pessoa de E), à pena de 21 (vinte e um) ANOS DE PRISÃO;
1.1.2 - De quatro (4) crimes de homicídio, qualificado, tentados, p.p. pelos artºs. 131º e 132º, nº. 1, 22º, 23º, nºs. 1 e 2 e 73º, nº. 1, als. a) e b), do mesmo diploma, [às pessoas de F, G, H e I, (feridos)], a quatro (4) correspondentes penas de 9 (nove) ANOS DE PRISÃO;
1.1.3 - De quatro (4) crimes de homicídio, qualificado, tentados, p.p. pelos mesmos normativos legais, [às pessoas de J, L, M e N (não atingidos/feridos)], a quatro (4) correspondentes penas de 7 (sete) ANOS DE PRISÃO.
1.2 - Pela autoria comissiva - imediata, singular -, na mesma ocasião, de um (1) crime de detenção e uso de arma proibida, p.p. pelo artº. 275º, nº. 3, do C. Penal, com referência aos normativos 1º, als. a) e b), e 2, da Lei nº. 22/97, de 27 de Junho, e 3º, nº. 1, al. a), do Dec.-Lei nº. 207-A/75, de 17 de Abril, à pena de 1 (um) ANO e 6 (seis) MESES DE PRISÃO.
1.3 - À pena conjunta - ou unitária - de 25 (vinte cinco) ANOS DE PRISÃO, em razão da unificação, em cúmulo jurídico, das referidas reacções penais.
Foram ainda condenados a pagar importâncias indemnizatórias aos demandantes civis, também as custas criminais e cíveis e foi decretado o perdimento a favor do Estado do veículo automóvel "Renault Clio Williams", de matrícula nº. "EO", do respectivo espelho retrovisor, (apreendido separadamente) e das munições e fragmentos, cuja destruição se ordenou.

2. Do acórdão condenatório da 1ª. instância recorreram estes dois arguidos para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Porém, antes do processo subir a essa instância, sofreu algumas vicissitudes, que importa resumidamente descrever.
Assim, no prazo de recurso e antes de apresentar a sua motivação, o arguido A requereu ao tribunal a transcrição pelos "serviços judiciais" da gravação dos actos de produção de prova (oral), invocando para tanto intenção de não prescindir de recurso em matéria de facto, e competir ao tribunal tal acto. Requereu, simultaneamente, o diferimento do início do prazo de recurso para momento subsequente ao envio da referida transcrição.
De seguida e antes do juiz do processo se pronunciar, tal arguido apresentou a sua motivação de recurso, na qual, como questão prévia, indicou que foi violado o artº. 101º, nº. 2, do CPP e o artº. 20º da CRP, ao não ser dado ao recorrente acesso à transcrição da prova, para, dessa forma, melhor preparar o seu recurso relativo à matéria de facto, pelo que, só a partir desse momento, em que tivesse conhecimento das transcrições é que o prazo para interposição do recurso se deveria iniciar.
A anteceder o despacho que admitiu os recursos interpostos pelos arguidos para o Tribunal da Relação, o Mmº. Juiz do processo, após exaustiva fundamentação e pronunciando-se expressamente sobre o dito requerimento do arguido A, indeferiu as suas duas pretensões, consignando que não competia ao tribunal efectuar a transcrição das gravações da prova. Esse despacho foi notificado ao arguido, na pessoa do seu Il. Mandatário e o mesmo não interpôs recurso.
Após o despacho que admitiu os recursos dos arguidos para a Relação, o Mmº. Juiz do processo, em novo despacho, rectificou o despacho de admissão, na parte em que recebeu na totalidade o recurso desse arguido A, pois não atentou que o mesmo manifestava também o propósito de recorrer da decisão, inclusa no acórdão, de declarar perdido para o Estado o veículo de matrícula EO, quando é certo que ele próprio afirmava que a mesma viatura pertencia à sua companheira. Por isso, considerando que o arguido A não tinha legitimidade para impugnar a decisão de perdimento do veículo, "rejeitou" o recurso do identificado arguido na parte em questão.
O arguido A reclamou desse não recebimento para o Exmo. Presidente da Relação de Lisboa, o qual não atendeu à reclamação.
Finalmente, os recursos subiram ao Tribunal da Relação de Lisboa, tendo a 2ª. instância, por acórdão de 28 de Janeiro de 2003, negado provimento aos recursos e confirmado a decisão recorrida.

3. Do acórdão do Tribunal da Relação recorreram os dois arguidos para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões:
I - No recurso do arguido A:
1. (QUESTÃO PRÉVIA - TRANSCRIÇÕES) Foi violado o disposto no Artigo 101º nº. 2 do Código de Processo Penal e o Artigo 20º da Constituição da República Portuguesa ao não ser dado ao recorrente acesso à transcrição da prova para, dessa forma, melhor preparar o seu Recurso relativo à matéria de facto. Só a partir desse momento, em que tivesse conhecimento das transcrições é que o prazo para interposição do recurso se deveria iniciar.
2. O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa é nulo por violação da alínea c) do nº. 1 do Artigo 379º do C. P. P. por não se ter pronunciado sobre questões que devesse apreciar (transcrição da prova).
3. O arguido foi condenado na pena de 86 anos e 6 meses de prisão e, operado cúmulo jurídico, a pena de 25 anos de prisão.
4. O presente recurso versa a medida da pena e aquilo que o recorrente entende ter sido um errado enquadramento jurídico-penal face à matéria dada como provada.
QUANTO À CO-AUTORIA
5. Os arguidos não actuaram de forma concertada nem existiu acordo prévio ou tácito, antes estamos perante autorias paralelas.
Na verdade, o Colectivo não logrou provar:
6. a existência de acordo prévio;
7. a verificação de acordo tácito, resultante da vontade recíproca intervenientes;
8. dos 20 tiros disparados, quem os disparou e em que proporção;
9. a quem pertenciam as armas que encravaram;
10. quem atingiu a vítima mortal;
11. quem atingiu, ferindo-as, as restantes vítimas;
12. qual a arma utilizada pelo ora recorrente;
13. se o ora recorrente, como armou, apenas disparou para o ar;
14. se o ora recorrente sequer atingiu alguém;
15. se atingiu, quem?
16. A matéria de facto dada como provada é insuficiente para enquadrar o comportamento do recorrente na figura da co-autoria tendo o Tribunal Colectivo violado no disposto no Artigo 26º do Código Penal, padecendo o Acórdão do vícios contidos no Artigo 410º nº. 2, al. a) e b) do Código de Processo Penal.
17. Foi violado o disposto no Artigo 109º do Código Penal ao ter sido decretado o perdimento a favor do Estado do veículo automóvel Renault Clio Williams.
Em consequência deve: o presente recurso merecer provimento, ser concedido ao Recorrente prazo para completar a sua Motivação, depois de notificado da transcrição da prova e sempre o Acórdão ora recorrido ser revogado e substituído por outro onde, imputada em concreto a conduta do arguido ora recorrente, seja efectuado novo enquadramento jurídico penal que determine a sua autoria (paralela) e nessa conformidade condenado apenas pela tentativa, reformulando-se novo cúmulo jurídico.
Deve ainda ser mandado restituir o veículo automóvel apreendido a quem provar pertencer-lhe.

II - No recurso do arguido B:
1 - O Tribunal a quo não responde de forma minimamente fundamentada à questão levantada pelo recorrente de saber se os factos provados em julgamento permitem concluir que houve intenção de matar por parte do recorrente e dos restantes arguidos e se esta intenção é ou não incompatível com a sustentabilidade da actuação em co-autoria, preferindo rejeitá-la liminarmente, pelo que o acórdão recorrido é nulo, por falta de fundamentação, atento o disposto no artigo 425º, nº. 4, conjugado com o artigo 379º, nº. 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal.
2 - Acresce que, o Tribunal a quo, em sede de recurso, entendeu que o recorrente e os outros arguidos agiram em acordo, ainda que tácito, com vista à obtenção do mesmo resultado: tirar a vida às pessoas contra as quais dispararam.
3 - Ora, salvo o devido respeito, a matéria de facto provada e definitivamente fixada pelas instâncias, não autoriza as conclusões vertidas no acórdão recorrido quanto à questão da qualificação jurídico-penal da actuação do recorrente e dos restantes arguidos, nos vários crimes de homicídio, como co-autoria material.
4 - Na medida em que, não ficou provado que todos os arguidos, nos quais se inclui o recorrente, actuaram mediante plano previamente acordado e em conjugação de esforços e intenções, com vista à obtenção daquele resultado - os homicídios.
5 - Com efeito, a matéria de facto dada como provada é insuficiente para enquadrar o comportamento do recorrente na figura da co-autoria como decorre do estatuído no artigo 26º do Código Penal, quando qualifica como co-autor de um ilícito criminal quem o executa juntamente com outro(s), mediante acordo prévio.
6 - Atento o disposto neste dispositivo legal, para que se verifique a existência de co-autoria, é necessário que se provem dois requisitos cumulativos: uma decisão conjunta tendo em vista a obtenção de um resultado criminoso (elemento subjectivo) e uma execução igualmente conjunta (elemento objectivo).
7 - Ora, no caso sub judice, embora tenha sido dado como provado que o recorrente e os outros arguidos praticaram conjuntamente actos dirigidos ao mesmo fim - os homicídios, não ficou, como já se disse, provada a existência de um acordo prévio, expresso ou tácito, entre os autores dos disparos, com vista à obtenção daquele resultado.
8 - Não estando demonstrada a verificação do elemento subjectivo da co-autoria, a actuação do recorrente e co-arguidos configura antes autorias singulares paralelas.
9 - O Tribunal a quo ao entender que o recorrente e os outros arguidos terão agido em co-autoria material, fez uma incorrecta interpretação e aplicação do artigo 26º do Código Penal.
10 - Portanto, tratando-se de autorias singulares paralelas, cada autor só é responsável pelo resultado a que a sua conduta individual deu lugar.
11 - Pelo que, é necessário determinar os efeitos a que cada uma das condutas deu lugar ou causou, de acordo com a teoria da causalidade adequada consagrada no artigo 10º do Código Penal, o que conduz necessariamente à repetição do julgamento para se operar tal determinação.
Termos em que, e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o acórdão recorrido ser declarado nulo, por inobservância dos requisitos de fundamentação previstos no artigo 425º, nº. 4, conjugado com o artigo 379º, nº. 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, ou, caso assim não se entenda, deve o acórdão recorrido ser revogado e, em consequência, ser ordenada a repetição do julgamento em 1ª. instância, para que seja efectuado novo enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente, que determine que o mesmo agiu em autoria material, e apurada a responsabilidade individual do mesmo nos factos pelos quais foi condenado, fazendo-se assim Justiça.
Mais requer que, havendo lugar a alegações, estas tenham lugar por escrito, nos termos do disposto no artigo 411º, nº. 4, do Código de Processo Penal.

4. Respondeu o Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa, pronunciando-se pelo não provimento dos recursos.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal apôs o seu visto e opôs-se às alegações por escrito requeridas pelo recorrente B. Alegou oralmente em audiência.

5. Colhidos os vistos, foi realizada a audiência com o formalismo legal.
Cumpre decidir.
As principais questões que se colocam nos recursos são:
I- no recurso do arguido A:
a) se foi violado o disposto nos artigos 101º nº. 2 do Código de Processo Penal e 20º da Constituição da República Portuguesa ao não ser dado ao recorrente acesso à transcrição da prova para, dessa forma, melhor preparar o seu recurso para o tribunal da Relação relativo à matéria de facto e só a partir desse momento, em que tivesse conhecimento das transcrições, é que o prazo para interposição desse recurso se deveria iniciar, ou se, doutro ponto de vista, tal questão foi decidida e indeferida por despacho do Mmº. Juiz da 1ª. instância, entretanto transitado em julgado, pois dele não foi interposto recurso.
b) se o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa é nulo por violação da alínea c) do nº. 1 do Artigo 379º do C. P. P., por não se ter pronunciado sobre questões que devesse apreciar, relativos à transcrição da prova.
c) se os arguidos não actuaram de forma concertada nem existiu acordo prévio ou tácito, pelo que não há co-autoria e antes estamos perante autorias paralelas.
d) se a matéria de facto dada como provada é insuficiente para enquadrar o comportamento do recorrente na figura da co-autoria, tendo o tribunal colectivo violado no disposto no artigo 26º do Código Penal, padecendo o acórdão respectivo dos vícios contidos no artigo 410º nº. 2, al. a) e b) do Código de Processo Penal.
e) se foi violado o disposto no artigo 109º do Código Penal ao ter sido decretado o perdimento a favor do Estado do veículo automóvel Renault Clio Williams ou se, noutro ponto de vista, o recurso dessa questão para a Relação não foi admitido e a reclamação para o Presidente foi desatendida, pelo que a questão da recorribilidade está já definitivamente decidida em sentido negativo.

II- no recurso do arguido B:
a) se o Tribunal a quo não respondeu de forma minimamente fundamentada à questão levantada pelo recorrente de saber se os factos provados em julgamento permitem concluir que houve intenção de matar por parte do recorrente e dos restantes arguidos e se esta intenção é ou não compatível com uma actuação em co-autoria, preferindo rejeitá-la liminarmente, pelo que o acórdão recorrido é nulo, por falta de fundamentação, atento o disposto no artigo 425º, nº. 4, conjugado com o artigo 379º, nº. 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal.
b) se os factos provados não permitem que se integre a conduta do recorrente na co-autoria material, antes numa autoria paralela (questão comum ao anterior recorrente).
c) se, sendo a resposta à anterior questão afirmativa, é necessário determinar os efeitos a que cada uma das condutas deu lugar ou causou, de acordo com a teoria da causalidade adequada consagrada no artigo 10º do Código Penal, o que conduz necessariamente à repetição do julgamento para se operar tal determinação.

O Tribunal Colectivo considerou apurada a seguinte factualidade, relativa à parte criminal, integralmente mantida pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido:

A-I (referente ao objecto processual - enquadrado pela acusação):

1 - No dia 17 de Março de 2001, pelas 07h:49m, os ora arguidos A e B, os homiziados/ausentes D e C, e O (melhor id. a fls. 223), saíram do veículo automóvel "Renault Clio Williams", de matrícula nº. "EO", em que, sob condução do primeiro, se fizeram transportar até às imediações do estabelecimento "P", sito em ..., Lisboa, (pertencente à sociedade comercial "Q", com sede em Av.ª ..., em Lisboa), e dirigiram-se à respectiva porta de entrada, junto à qual se encontravam E e irmão F ("porteiros"), G e J ("seguranças"), H ("relações públicas"), I, L, M e N ("clientes").
2 - Cada um dos arguidos A, B, D e C, levava uma pistola semiautomática, municiada, escondida na roupa que envergava, sendo uma de calibre .45 ACP [Automatic Colt Pistol (equivalente a 11.43mm)] e as demais três de calibre 7,65mm.
3 - O arguido A, em representação de todos os acompanhantes, solicitou aos identificados porteiros a entrada no dito estabelecimento, o que foi negado, em virtude da (informada) proximidade do horário de encerramento (08h:00).
4 - Após breve troca de palavras com os porteiros, designadamente com E que, em função da insistência, anunciou o necessário/"regulamentar" pagamento individual de "consumo mínimo", em montante equivalente a Esc. 25.000$00, às 07h:51m, os quatro referidos indivíduos (A, B, D e C) recuaram cerca de 2/3 metros, empunharam as respectivas (quatro) pistolas semiautomáticas e, concertada e simultaneamente, dispararam indiscriminadamente contra todas as nove identificadas pessoas que se encontravam junto à porta (E, F, G, J, H, I, L, M e N), visando atingi-los na cabeça e tronco e tirar-lhes a vida.
5 - Efectuaram pelo menos 20 (vinte) disparos, sendo que, duas das armas encravaram durante o tiroteio.
6 - Logo encetaram fuga (1), correndo para a dita viatura "Renault Clio Williams", em que abandonaram o local, às 07h:52m, tendo ainda um deles (D) efectuado mais alguns disparos (do fundo da rua) na direcção da porta do referido estabelecimento.
7 - Foram atingidos por alguns dos projécteis disparados no decurso do acto (comum) descrito em 4 e 5, E, F, G, H e I.
7.1 - E foi atingido por dois (2) projécteis, um na região parietal posterior esquerda e outro na região lombar esquerda, tendo-lhe os respectivos impactos provocado lesões traumáticas crânio-encefálicas e abdominais (descritas no relatório de autópsia junto a fls. 745/755, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido), que foram causa directa e necessária da sua morte, ocorrida às 00h:05m de 19 de Março de 2001.
7.2 - F, foi atingido por um projéctil na anca direita, que lhe causou fractura sub-capital do fémur direito e demais lesões e sequelas descritas nos autos de fls. 605 e 836/837, cujos dizeres aqui se consideram igualmente reproduzidos, determinantes de doença incapacitante para o trabalho por cerca de 9 (nove) meses, e incapacidade permanente em grau de 7,5%.
7.3 - G, foi atingido com dois (2) projécteis, um na face externa do 1/3 médio do braço esquerdo e outro no abdómen (hipocôndrio esquerdo), ficando este último alojado na face anterior do hemitórax direito, provocando as lesões e sequelas descritas nos autos de fls. 402 e 843/844, cujos dizeres aqui se consideram igualmente reproduzidos, que foram causa directa e necessária de, pelo menos, 90 dias de doença incapacitante para o trabalho.
7.4 - H, foi atingido com quatro (4) projécteis, no 5º. dedo da mão esquerda, na região costal esquerda, na face interna da coxa esquerda, e na nádega direita, determinantes das lesões e sequelas descritas nos autos de fls. 521 e 761/762, cujos dizeres aqui se consideram igualmente reproduzidos, e de, pelo menos, 10 dias de doença incapacitante para o trabalho.
7.5 - I, foi atingido com um projéctil no pé direito, determinante das lesões e sequelas descritas nos autos de fls. 672 e 771, cujos dizeres aqui se consideram igualmente reproduzidos, e de cerca de 2 (dois) meses de doença incapacitante para o trabalho, (esteve de baixa, concretamente, até 15/05/2001).
8 - Apenas por não haverem sido atingidos em órgãos vitais, designadamente por terem procurado desviar-se e fugir ao tiroteio, não foram igualmente mortos os identificados cidadãos F, G, H e I.
9 - As demais pessoas presentes junto à porta (J, M, L e N) só não foram também atingidas por haverem logrado refúgio e fuga (2).
10 - Todos os quatro referidos atiradores, designadamente os ora arguidos A e B, sabiam:
10.1 - Que os projécteis disparados eram idóneos à produção da morte das pessoas visadas;
10.2 - Que lhes era vedada por lei a posse e utilização das respectivas pistolas [de calibre superior a 6,35 mm, (v. item 2, supra)], por não reunirem as necessárias condições para tal.
11 - Nenhuma das referidas armas fora manifestada e registada.
12 - Ambos os identificados arguidos A e B se determinaram às respectivas/descritas condutas procedimentais livre e conscientemente, com conhecimento da sua proibição legal.

A-III (outros elementos factuais - decorrentes da discussão da causa e demonstrados documentalmente):

1 - O arguido A tem companheira e dois filhos comuns, de menoridade (5 e 3 anos), a cargo da progenitora e avós maternos.
2 - Até à reclusão não exercia qualquer actividade laboral.
3 - Em 7 de Maio de 2002, o mesmo sujeito processual fez depositar na Caixa Geral de Depósitos (..., em Lisboa), à ordem do Tribunal e a título de comparticipação pessoal indemnizatória ("total ou parcial") dos herdeiros de E - R e S -, a importância pecuniária de € 5.000,00 (cinco mil euros).
4 - Por acórdão de 14/11/1997, proferido no Proc. Comum (Colectivo) nº. (nuipc) 235/96.9GASXL, do 1.º Juízo Criminal de Seixal, pela autoria comissiva, em 29/12/1997, de um crime de homicídio, tentado, foi condenado à pena de 3 (três) anos de prisão, declarada suspensa na respectiva execução pelo período de 4 (quatro) anos.
5 - Não lhe são conhecidos, ou a B, registralmente, outros comportamentos delitivo/criminais.

B - Além dos descritos, com interesse para a decisão da causa, e a necessária segurança, nenhuns outros elementos factuais se apuraram, designadamente:
1 - Qual dos supra identificados "atiradores" possuía e utilizou a referida pistola semi-automática de calibre 45 ACP [Automatic Colt Pistol (equivalente a 11.43mm)], no descrito tiroteio e, por conseguinte, o arguido A;
2 - Que E haja sentido angústia ou quaisquer dores desde que os "atiradores" empunharam as armas, dispararam e o atingiram, e até à sua morte, por nenhuns elementos objectivos, que tal indiquem, existirem, [sendo, aliás, de presumir o inverso, em função da rapidez e precipitação do descrito acto atentatório à sua vida, dos órgãos vitais atingidos (máxime a cabeça) e da provável/imediata inconsciência];
3 - Que I haja sido despedido do seu emprego em razão da ausência por incapacitação decorrente das descritas lesões que lhe foram produzidas no pé direito; que tenha tido necessidade de pagar cerca de Esc. 5.000$00 a um amigo, "que várias vezes o levava aos vários sítios", para custeio de gasolina; e que, desde a data da alta (15/05/2001 - cfr. item 7.5 de A-I) e até Dezembro de 2001 não tenha trabalhado ou obtido outros rendimentos, maxime remuneratórios;
4 - Quaisquer elementos sobre a situação pessoal do arguido B, que optou pelo direito processual ao "silêncio", recusando-se a prestar quaisquer declarações, (cfr. acta de fls. 1421 e artºs. 343º e 361º, maxime, do C.P.Penal).

Antes de mais, diga-se que os presentes recursos visam exclusivamente o reexame de matéria de direito (artºs. 432º, al. b) e 434º do CPP), pois são dirigidos ao Supremo Tribunal de Justiça e têm por objecto acórdão proferido, em recurso, pela relação.
A este propósito diga-se que é jurisprudência pacífica neste Supremo Tribunal de que só podem ser invocados os vícios do nº. 2 do artº. 410º do CPP perante o STJ em duas circunstâncias: no recurso de decisão final do júri, único caso em que se mantém perante o STJ a «revista alargada» tal como era configurada antes da reforma processual de 1998, ou quando o STJ funciona como 2ª. instância (por ter sido a Relação a 1ª. instância).
Fora destes casos, nunca o recurso para o STJ se pode fundar na invocação desses vícios.
Se o recurso é trazido directamente da 1ª. instância, então o STJ, unanimemente, considera a Relação competente para dele conhecer, pois que não visa exclusivamente matéria de direito.
Se o recurso vem da Relação, reafirma-se a doutrina que se explanou e acrescenta-se que essa é, por maioria de razão, a posição a assumir quando já perante a Relação a questão dos vícios foi suscitada pelos recorrentes, pois então já foi assegurado um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto e encontra-se definitivamente encerrada a questão de facto. Efectivamente, nenhum sentido faria suscitar-se novamente a mesma questão relativa à matéria de facto perante um Tribunal de Revista que só conhece de direito.
Deste modo, não é de conhecer a invocação que o recorrente A faz (conclusão 16º) de que o Acórdão recorrido, por ter confirmado os factos fixados na 1ª. instância, padece dos vícios a que se reporta o artigo 410º nº. 2, als. a) e b) do Código de Processo Penal, pois, de resto, a existência de tais vícios já fora suscitada no recurso interposto para a Relação e aí apreciou-se e decidiu-se.
Todavia, a impossibilidade do recorrente trazer ao STJ a questão dos vícios previstos no artº. 410º, nº. 2, do CPP, não obstaria a que este Supremo Tribunal de Justiça pudesse vir a conhecê-los oficiosamente, caso considerasse que a matéria de facto não era suficiente e adequada para a aplicação do direito. Essa, de resto, é a jurisprudência fixada neste STJ (Assento nº. 7/95, in DR, I-série, de 1995-12-28) e, em qualquer caso, o artº. 729º, nº. 3 do CPC sempre o consentiria .
Mas, no caso dos autos, não ocorre qualquer dos vícios referidos no artº. 410º, nº. 2, do CPP, pelo que a matéria de facto fixada na 1ª. instância e posteriormente confirmada pela Relação tem-se por definitivamente adquirida.
A primeira questão suscitada pelo recorrente A assume natureza prévia, mas é de fácil resolução.
Na verdade, este arguido, ainda na 1ª. instância e no decurso do prazo de interposição do recurso do acórdão condenatório, requereu que o tribunal procedesse à transcrição da prova produzida oralmente em audiência, para assim poder impugnar a matéria de facto. Requereu ainda, consequentemente, que fosse prorrogado o prazo de interposição do recurso. Mas, como não obteve resposta em tempo útil, o recorrente interpôs recurso do acórdão condenatório, em cuja motivação invocou, como questão prévia, que foi violado o artº. 101º, nº. 2, do CPP e o artº. 20º da CRP, ao não ser dado ao recorrente acesso à transcrição da prova, para, dessa forma, melhor preparar o seu recurso relativo à matéria de facto, pelo que, só a partir desse momento, em que viesse a ter conhecimento das transcrições é que o prazo para interposição do recurso se deveria iniciar.
Contudo, a anteceder o despacho que admitiu o(s) recurso(s), o Mmº. Juiz do processo, em despacho profusamente fundamentado, apreciou o referido requerimento desse arguido e indeferiu-o, com o fundamento de que não cabe ao tribunal efectuar a transcrição e o arguido não pode beneficiar do alargamento do prazo, peremptório, para interpor recurso. Ora, o arguido A foi notificado desse despacho de indeferimento e não o impugnou, deixando-o transitar em julgado.
Por isso e com toda a razão, a Relação de Lisboa, pronunciando-se sobre a questão prévia da pretensa violação do artº. 101º, nº. 2, do CPP e o artº. 20º da CRP, decidiu o seguinte.
«A fls. 1534, em requerimento apresentado em 4 de Julho de 2002, por telecópia, aquele arguido requereu:
a) que se ordene, pelos serviços judiciais, a transcrição da prova por não se prescindir do recurso em matéria de facto;
b) que o prazo para a entrega da motivação do recurso só comece a correr depois da notificação da decisão proferida sobre o presente requerimento e bem assim ao envio da transcrição requerida;
Sem que, entretanto, houvesse recaído despacho sobre tal requerimento, o arguido interpôs, em 9 de Julho de 20022, recurso do acórdão condenatório, no qual suscita a referida questão prévia.
Por despacho de 11 de Julho de 2002, notificado ao arguido, por carta registada expedida em 12 de Julho de 2002, foi aquele requerimento indeferido.
Tal despacho não foi, oportunamente, impugnado, por isso que transitou em julgado.
Com efeito, não valem como impugnação de uma decisão, as considerações feitas em recurso de outra decisão, interposto antes de aquela ser proferida.
A aceitar-se o contrário - conhecer-se, a título de questão prévia, levantada em recurso da decisão final, de matéria que foi objecto de outra decisão, não impugnada, proferida após a interposição daquele recurso - seria considerar-se admissível o recurso de decisão antes de ela ser prolatada.
A apreciação de tal questão está, assim, por força do caso julgado, vedada a este tribunal, por isso que não se conhece do seu objecto».

Esta fundamentação do acórdão ora recorrido merece a nossa inteira concordância, mas o recorrente, neste recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, nem sequer ataca os fundamentos invocados pela Relação, pois não indica se, na sua opinião, ocorreu ou não trânsito em julgado relativamente à matéria em questão.
Ora, como repetidamente se vem decidindo, no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos da Relação que se pronunciaram sobre decisão da 1ª. instância, o recorrente deve atacar os fundamentos do acórdão recorrido e não os invocados na 1ª. instância, pois, ao proceder doutro modo, o recorrente ignora a decisão judicial que afinal está a impugnar e o seu recurso é manifestamente de rejeitar, por inobservância do artº. 412º do CPP (3).
Deste modo, não é de atender à questão suscitada na 1ª. conclusão do recurso do arguido A.

A segunda questão está relacionada com a anterior.
Com efeito, apesar da decisão do Mmº. Juiz da 1ª. instância, veio a ser integralmente efectuada por determinação do Tribunal da Relação de Lisboa a transcrição da prova oralmente produzida na audiência e a mesma encontra-se junta ao processo.
Mas, o recorrente A afirma que, apesar disso, o Tribunal da Relação acabou por não conhecer do conteúdo das transcrições, pelo que o acórdão é nulo por violação da alínea c) do nº. 1 do artigo 379º do C. P. P., dado que não se pronunciou sobre questões que devesse apreciar (transcrição da prova).
Ora, esta nulidade não ocorre, quanto mais não seja porque o acórdão recorrido debruçou-se sobre as provas transcritas, fazendo uma apreciação crítica das mesmas, como se pode ler a fls. 2157-2158 e 2168-2169.
Pelo que improcede manifestamente a conclusão nº. 2 do recurso do arguido A.

Chegámos agora à questão fulcral, comum aos recursos dos dois recorrentes, pelo que será abordada em conjunto.
Trata-se de saber se os factos provados e fixados integram a co-autoria do crime de homicídio qualificado, como foi decidido pelas instâncias, ou se estamos, meramente, perante autorias singulares paralelas, como pretendem os recorrentes.
Na verdade, os dois recorrentes defendem que os factos provados não consentem a conclusão de que actuaram de forma concertada, pois não se logrou demonstrar que existiu acordo prévio ou tácito entre eles.
Dizem os mesmos que o Colectivo não logrou provar:
- a existência de acordo prévio;
- a verificação de acordo tácito, resultante da vontade recíproca dos intervenientes;
- dos 20 tiros disparados, quem os disparou e em que proporção;
- a quem pertenciam as armas que encravaram;
- quem atingiu a vítima mortal;
- quem atingiu, ferindo-as, as restantes vítimas;
- qual a arma utilizada pelos recorrentes;
- se o recorrente A apenas disparou para o ar;
- se os recorrente sequer atingiram alguém;
- se atingiram, quem?
Dizem, assim, que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para enquadrar o comportamento dos recorrentes na figura da co-autoria, tendo o tribunal colectivo violado no disposto no artigo 26º do Código Penal.
Ora, o artº. 26º do C. Penal indica que é autor do crime, para além do mais, quem tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros.
Sobre esta situação, configurada doutrinalmente como co-autoria ou comparticipação criminosa, discorre assim o "C. Penal Anotado" de Simas-Santos e Leal-Henriques, 2002, I vol. pág. 339:
"São, assim, dois os requisitos:
- acordo com outro ou outros: esse acordo «tanto pode ser expresso como tácito; mas sempre exigirá, como sempre parece ser de exigir, pelo menos, uma consciência da colaboração (...), a qual, aliás, terá sempre de assumir carácter bilateral» (BMJ 1444-43).
- participação directa na execução do facto juntamente com outro ou outros: um exercício conjunto no domínio do facto, uma contribuição objectiva para a realização, que tem a ver com a causalidade, embora possa não fazer parte da «execução» (v.g., a conduta do motorista do veículo onde se deslocam os assaltantes do banco).
Há ainda, pois, co-autoria quando, embora não tenha havido acordo prévio expresso, as circunstâncias em que os arguidos actuaram indiciam um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum.
Com efeito, para incorrer na co-autoria de um crime precedido de um plano, quando nele participam vários agentes, não é necessário que todos eles tenham tido intervenção na elaboração desse plano. Basta que os vários agentes participem na execução dos actos que integram a conduta criminosa, não sendo, contudo, necessário que intervenha em todos eles desde que actue, conjugadamente e em comunhão de esforços, no sentido de alcançar o objectivo criminoso.
A co-autoria exige, pois, a verificação do elemento subjectivo (uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado criminoso) e do elemento objectivo (uma execução igualmente conjunta, não sendo, porém, indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos a praticar). Pode dizer-se, com o STJ (Ac. de 89-10-78, BMJ 390-142) que a essência da co-autoria consiste em que cada comparticipante quer causar o resultado como próprio, mas com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas".
E mais adiante, comentam os mesmos autores (pág. 340):
«Da co-autoria há que distinguir a mera actuação paralela que ocorre quando diversos agentes praticaram, sem prévio acordo, actos concorrentes para um resultado criminoso, distinção de todo o interesse, uma vez que na comparticipação cada um dos co-autores responde pela totalidade do evento, enquanto que na actuação paralela cada um dos agentes só responde pelo resultado causado pela própria conduta».
Temos, pois, que a grande distinção entre a comparticipação e as autorias singulares paralelas verifica-se por na primeira haver um acordo prévio entre os co-autores, que pode ser expresso ou meramente tácito.
E, efectivamente, este Supremo Tribunal tem decidido:
"O comparticipante principal há-de praticar, pelo menos, parte da actividade causal do delito e fazê-lo com a consciência de que está a colaborar com outrem" (Acórdão do STJ de 02-03-1983, processo nº 36920).

"Na comparticipação criminosa, na modalidade de co-autoria, são necessários os seguintes requisitos:
a) Elemento subjectivo: uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado criminoso; e
b) Elemento objectivo: uma execução igualmente conjunta, não sendo, porém, indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos a praticar" (Acórdão do STJ de 15-07-1992, Processo nº 42942).

"1 - Para a existência de comparticipação criminosa, sob a forma de co-autoria é necessária não apenas uma decisão conjunta tendo em vista a consecução de determinado fim, mas ainda uma execução conjunta dos comparticipantes.
2 - Porém, não é indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os actos para obtenção desse resultado pretendido, já que basta que a actuação de cada um, embora parcial, seja um elemento componente do todo indispensável à sua produção" (Acórdão do STJ de 24-11-1993, processo nº 44858).

"Há co-autoria material quando, embora não tenha havido acordo prévio expresso, as circunstâncias em que os arguidos actuaram indiciam um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas à luz das regras da experiência comum" (Ac. STJ de 15-09-1993, proc. 43643).

"Verifica-se a co-autoria quando cada comparticipante quer o resultado como próprio com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas, bastando um acordo tácito assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum" (Ac. STJ de 27-06-2002, proc. 3211/02).

Ora, munidos destes ensinamentos doutrinais e da jurisprudência deste STJ, vejamos os factos fixados, entre os quais avultam, designadamente, os seguintes:
- no dia 17 de Março de 2001, pelas 07h:49m, os ora arguidos A e B, os homiziados/ausentes D e C, e O (melhor id. a fls. 223), saíram do veículo automóvel "Renault Clio Williams", de matrícula nº. "EO"...";
- "cada um dos arguidos A, B, D e C, levava uma pistola semiautomática, municiada, escondida na roupa que envergava...";
- "o arguido A, em representação de todos os acompanhantes, solicitou aos identificados porteiros a entrada no dito estabelecimento, o que foi negado..."
- "após breve troca de palavras com os porteiros, designadamente com E que, em função da insistência, anunciou o necessário/"regulamentar" pagamento individual de "consumo mínimo", em montante equivalente a Esc. 25.000$00, às 07h:51m, os quatro referidos indivíduos (A, B, D e C) recuaram cerca de 2/3 metros, empunharam as respectivas (quatro) pistolas semiautomáticas e, concertada e simultaneamente, dispararam indiscriminadamente contra todas as nove identificadas pessoas que se encontravam junto à porta (E, F, G, J, H, I, L, M e N), visando atingi-los na cabeça e tronco e tirar-lhes a vida".
- "logo encetaram fuga, correndo para a dita viatura "Renault Clio Williams", em que abandonaram o local...".
Isto é, foram todos juntos para a discoteca, quatro levavam armas escondidas e já municiadas, um deles falou em representação de todos, todos recuaram e empunharam as pistolas semiautomáticas e, concertada e simultaneamente, dispararam indiscriminadamente contra todas as nove pessoas que se encontravam junto à porta, visando tirar-lhes a vida. Posteriormente, todos abandonaram o local na mesma viatura.
Assim, por um lado, verificamos que no elenco dos factos provados consta que houve uma actuação "concertada", isto é, concordante para atingir o mesmo fim.
Mas, ainda que se entenda que a expressão "concertada" é conclusiva e, portanto, não inteiramente de ordem factual, a sequência dos factos provados demonstra, à evidência, face às regras de experiência comum, que os arguidos (entre os quais os dois recorrentes) agiram, não só em simultâneo, como em conjunto, isto é, em conjugação de esforços e de vontades, com consciência de que a actuação conjunta acarretaria a morte dos nove indivíduos visados pelo fogo das armas que levavam, morte essa que cada um deles desejava provocar.
Estamos, indubitavelmente, perante a existência de "um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum" conforme ensinamento do Ac. do STJ já anteriormente citado, de 27-06-2002, proc. 3211/02.
Note-se que o que pretendem os recorrentes, isto é, que as suas condutas sejam consideradas como autorias singulares paralelas, não encontra qualquer eco nos factos provados, pois é incompatível com o agir "concertado", que, recorde-se, faz parte da descrição factual. Por outro lado, a autoria paralela não se conforma com a evidente ligação existente entre todos os arguidos durante o desenrolar dos factos (do início ao fim) e também com o modo de execução, que se mostra igual, simultâneo e conforme entre si.
É certo que não se pode afirmar que houve um acordo expresso entre os arguidos, tomado com antecedência e sendo a acção cuidadosamente planeada, pois, para tal, era necessário que tal acordo expresso e a existência de um plano criminoso constassem do elenco dos factos provados. Mas, talvez por carências na investigação, que aqui já não vêm ao caso, a acusação não foi formulada com esses factos e, por isso, atento o princípio acusatório que rege o nosso processo penal, não o poderemos tomar em consideração.
Mas, como vimos, a comparticipação basta-se com a existência de um acordo tácito, ainda que tomado no momento da execução. E os factos provados apontam, clara e seguramente, para a existência de acordo, ainda que tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas à luz das regras de experiência comum.
Ora, estando-se perante uma comparticipação criminosa, mostra-se irrelevante apurar-se se o comparticipante A ou B disparou algum dos 20 tiros, em que proporção o fez, se lhe pertencia alguma das armas que encravaram, se atingiu a vítima mortal, se feriu as restantes vítimas, qual a arma que utilizou, se apenas disparou para o ar, etc.. Com efeito, cada um dos comparticipantes responde criminalmente pela actuação global de todos.
Tem este Supremo Tribunal sempre entendido que "na comparticipação criminosa cada agente responde não apenas por aquilo que concretamente fez mas também pela actuação de cada um dos seus comparticipantes; o autor material de uma das actividades é autor mediato da conduta executada pelos outros" (ver, entre muitos, o Acórdão do STJ de 24-11-1993, Processo nº 44858).
Por essa razão, não há que alterar a qualificação jurídica dos crimes imputados aos dois recorrentes, nem modificar a moldura abstracta das penas aplicáveis (e, consequentemente, das penas aplicadas), nem anular o julgamento e mandá-lo repetir, pois improcedem as conclusões 3 a 16 do recurso do arguido A e 2 a 11 do recurso do arguido B.

O último ponto do recurso do arguido A não tem qualquer razão de ser e diz respeito à perda do veículo Renault Clio Williams, de matrícula "EO".
Na verdade, o ora recorrente impugnou para o Tribunal da Relação essa decisão, mas não lhe foi admitido o recurso nessa parte, por falta de legitimidade (não é o proprietário do veículo). Tendo o recorrente apresentado reclamação junto do Presidente daquele Tribunal, a reclamação foi desatendida. Esta decisão do Presidente da Relação de Lisboa é definitiva, por força da lei (artº. 405º, nº. 4, do CPP).
Já tendo sido apresentadas estas razões no acórdão ora recorrido, que por tal motivo não tomou conhecimento da questão do perdimento do veículo para o Estado, é a todos os títulos censurável que volte a ser exposta perante este Supremo Tribunal.
Por isso, a conclusão nº. 17 do recurso do arguido A é manifestamente de rejeitar.

Quanto ao recurso do arguido B já apreciámos e considerámos improcedentes as conclusões nºs. 2 a 11 do seu recurso.
Falta apenas decidir, portanto, a primeira questão que este recorrente suscita, que é a de saber se o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação, atento o disposto no artigo 425º, nº. 4, conjugado com o artigo 379º, nº. 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, pois não responde de forma minimamente fundamentada à questão levantada pelo recorrente de saber se os factos provados em julgamento permitem concluir que houve intenção de matar por parte do recorrente e dos restantes arguidos e se esta intenção é ou não compatível com uma actuação em co-autoria, preferindo rejeitá-la liminarmente.
Ora, o acórdão recorrido sobre esta questão faz remissão expressa para as considerações tecidas a propósito do recurso do arguido A e, concretamente, remete para o ponto A-3.g).
Acontece, que este ponto A-3.g) abrange fls. 12 (parte final) a fls. 16 do acórdão recorrido, ou seja, 4 folhas completas, pelo que, no mínimo, é surpreendente que o recorrente acuse o acórdão de falta de fundamentação!
Assim, sem mais comentários, limitamo-nos a afirmar que o acórdão recorrido não padece da referida nulidade e improcede, manifestamente, a conclusão nº. 1 do recurso do arguido B.

Os recorrentes não suscitam outras questões, designadamente, quanto à medida das penas parcelares e únicas (máximas) aplicadas.
Na verdade, é óbvio que os recorrentes nada têm a dizer sobre essa matéria, pois é por demais evidente a frieza de carácter dos arguidos, o seu total desprezo pelos valores éticos da sociedade e pelo valor supremo que é a vida (de 9 pessoas), o motivo fútil e torpe que presidiu aos crimes, a actuação integrada em grupo fortemente armado, o acentuadíssimo grau do dolo e a necessidade premente de prevenção geral, merecedora de punição exemplar.
Como diz o acórdão da 1ª instância:
«De facto, surpreende-se, desde logo, a acentuada torpeza e futilidade dos actos dos referidos agressores, ofensiva em grau elevado da mediana moralidade e/ou do sentimento ético-social dominante na nossa sociedade - como em qualquer outra minimamente civilizada - traduzida no súbito, inesperado, pusilânime, concertado e simultâneo alvejamento a curta distância dos visados, atitudes assaz reveladoras de baixeza de carácter, imprimindo, por si, acentuada vileza e imoralidade aos crimes.
Não se nos suscitam quaisquer dúvidas sobre o funcionamento no caso em apreço de tal circunstância qualificativa nesta dupla vertente, que a frieza dos factos ilustra.
O preenchimento objectivo da segunda das referidas circunstâncias-índice [prática do acto por duas ou mais pessoas e utilização de meios particularmente perigosos, tradutores, em si, de crime de perigo comum (detenção e uso de armas proibidas)], é por demais evidente, pelo que nos dispensamos de sobre elas tecer outras considerações.
O desvalor dos actos homicidas dos identificados cidadãos, designadamente dos ora arguidos é, pois, absoluto, pelo que, por tão ignóbeis, nos dispensamos de sobre eles tecer outras considerações. A qualificação das referidas infracções criminais revela-se manifesta».
E mais adiante, continua o acórdão da 1ª. instância:
«Os identificados agentes, ora arguidos A e B, pessoas de normal capacidade de entendimento dos valores fundamentais e das regras de conduta convivenciais basilares instituídas no país, que a liberdade pessoal de todos e a sua própria limitam, escolheram/determinaram-se livremente às "levianas" e repulsivas atitudes ora conhecidas sem qualquer mínima razoabilidade justificativa.
São, naturalmente, sujeitos de forte juízo de culpa e, por conseguinte, objecto de acentuada censura ético-jurídica, demandante de enérgicas medidas punitivas, de necessária função reprovativa dos pessoais comportamentos delitivos, desmotivadoras de eventuais/futuras ilícitas (idênticas ou diversas) cogitações, e de reforço da confiança da comunidade no funcionamento das regras protectivas dos elementares valores, legalmente padronizadas, e das instituições, maxime judiciárias - na actualidade tão abalada! - para além da desejada exemplaridade a potenciais delinquentes que da condenação tomem conhecimento.
O arguido A, objecto de anterior condenação por idêntica atitude homicida, tentada, a pena de prisão suspensa (no âmbito do Proc. Comum nº. 235/96.9GASXL, do 1º. Juízo Criminal de Seixal - v. item 4 de II-A-III, supra), realizou os actos criminais ora conhecidos ainda no decurso do respectivo prazo, denotando acentuado desajustamento aos padrões de convivialidade social, apetência delitiva, maxime contra a vida humana, e insensibilidade à anterior injuntiva advertência ao respeito do ordenamento jurídico tutelar dos elementares valores.
Nenhuma prognose favorável é já possível idear sobre modificação do seu carácter e atitude convivencial.
Porém, dada a superlativa censurabilidade dos actos em análise, comum a todos os agentes, não se colhe séria/razoável justificação diferenciadora de diversidade gradativa das reacções penais referentes a cada um dos crimes pessoais relativamente ao arguido B, que nenhum auto-reparo manifestou».
Nada mais há a acrescentar a estes comentários que demonstram, à evidência, que outras não poderiam ser as penas aplicadas.
E improcedendo todas as conclusões dos recorrentes, não merecem provimento os respectivos recursos.

6. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento aos recursos dos arguidos A e B e em confirmar o douto Acórdão recorrido.
Custas por cada um dos recorrentes, com 8 UC de taxa de justiça para o A e 5 UC para o B, com um terço de procuradoria para ambos, sendo que o B pagará ainda os honorários de tabela à sua Il. Defensora oficiosa, a adiantar pelo C.G.T.
Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Julho de 2003
SANTOS CARVALHO
COSTA MORTÁGUA
RODRIGUES DA COSTA
ABRANCHES MARTINS (com a declaração de que, após as alterações introduzidas ao C.P.P. pela Lei nº. 59/98, de 25-8, sendo o recurso de acórdão final do tribunal colectivo, este Supremo Tribunal deixou de poder conhecer oficiosamente dos vícios referidos no artº. 410º, nº. 2, do C.P.P., uma vez que, além do mais, só o recorrente pode invocá-los, embora não perante este Supremo Tribunal, como se extrai claramente dos artºs. 410º, nº. 2 e 432º, al. d), do C.P.P..)
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(1) O já se havia afastado logo que viu os demais acompanhantes sacarem das respectivas armas.
(2) O primeiro saltou para o interior do edifício (tendo-lhe sido ainda perfurada a perna das calças que envergava, sem que, miraculosamente, haja sido ferido!); M correu e escondeu-se junto de um automóvel estacionado nas imediações; e os demais correram pelas escadas próximas.
(3) "Estando em causa um recurso para o STJ de um acórdão da Relação, o mesmo não pode ter por objecto o acórdão da 1ª. instância, e se o recorrente se limita a impugnar este último acórdão verifica-se falta de impugnação a que alude o artº. 412º do CPP: enunciação dos fundamentos do recurso, isto é, das razões de discordância em relação à decisão recorrida (e não outra)" - Ac. do STJ de 6-6-2002, transcrito em www.dgsi.pt (no mesmo sentido, o Acórdão acima citado e o Ac. do STJ de 24-10-2002, proc. 2124/02).