Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
046999
Nº Convencional: JSTJ00039078
Relator: AMADO GOMES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
TRAFICANTE-CONSUMIDOR
QUANTIDADE DIMINUTA
TRATO SUCESSIVO
CRIME
Nº do Documento: SJ199410190469993
Data do Acordão: 10/19/1994
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/SOCIEDADE / CRIM C/PESSOAS.
Legislação Nacional: DL 15/93 DE 1993/01/22 ARTIGO 21 N1 ARTIGO 25 ARTIGO 26 ARTIGO 40 N1.
DL 15/94 DE 1994/05/11 ARTIGO 1 N1 R.
Sumário : I - O elemento específico do tipo legal de crime descrito no artigo 26º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, é a finalidade exclusiva do consumo pessoal do estupefaciente, pelo que, provando-se também que as drogas que o arguido detinha se destinavam não apenas ao seu consumo mas ainda à venda a diversas pessoas, já não é possível subsumir tal conduta à previsão do citado artigo 26º.
II - É requisito essencial do tipo de crime previsto no artigo 25º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, que a "ilicitude do facto se mostre consideravelmente diminuída", diminuição esta que há-de resultar de elementos concretos os quais a citada disposição legal indica a título exemplificativo.
III - Não se pode falar em "ilicitude do facto consideravelmente diminuída" para efeitos do artigo 25º do DL 15/93, de 22 de Janeiro quando se verifica que os arguidos detinham 31 embalagens de plástico contendo 5,417 grs. de heroína - uma das chamadas "drogas duras", com poder tóxico muito elevado - 5 embalagens de plástico contendo 688 mgrs de haxixe e 6500 escudos provenientes da venda de estupefacientes.
IV - O tráfico de estupefacientes é um crime de trato sucessivo, medindo-se a sua ilicitude não só em função das porções de droga que, em dado momento, o agente detém ou trafica mas por todas as que, durante um determinado período, se relaciona com qualquer das situações descritas no artigo 21º nº 1 do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Os arguidos:
1 - A, casado, pedreiro, nascido a 13 de Março de 1967; e
2 - B, solteira, doméstica, nascida a 24 de Dezembro de 1970,
interpuseram recurso do acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo de Ponta Delgada em 17 de Março de 1994, no processo comum colectivo n. 358/94, do 2. Juízo daquela comarca, que condenou cada um deles pela autoria de um crime previsto e punido pelo artigo 21 n. 1 do Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, e de um crime previsto e punido pelo artigo 40 n. 1 daquele diploma, nas seguintes penas:
a) - arguido A:
- pelo 1. crime, 5 anos de prisão;
- pelo 2. crime, 1 mês de prisão;
- em cúmulo jurídico, 5 anos e 20 dias de prisão.
b) - arguida B:
- pelo 1. crime, 4 anos e 6 meses de prisão;
- pelo 2. crime, 1 mês de prisão;
- em cúmulo jurídico, 4 anos, 6 meses e 20 dias de prisão.

Os fundamentos de ambos os recursos são os mesmos e constam da mesma peça processual: a motivação de folhas 183 a 191.
As questões por ambos suscitadas resumem-se ao seguinte:
1 - Os factos provados não integram a previsão do artigo 21 n. 1 do Decreto-Lei n. 15/93, motivo porque o Tribunal Colectivo violou aquele preceito legal;
2 - esses factos integram antes a previsão do artigo 26 do mesmo Decreto-Lei ou, se assim não for entendido, a do seu artigo 25, com a consequente alteração das penas.
Respondeu o Ministério Público que se pronunciou pela confirmação do decidido.
Neste Supremo Tribunal a Excelentíssima Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de que nada obsta a que o recurso prossiga para audiência, salientando, porém, que no acórdão a proferir deve ter-se em conta que o crime pelo qual os arguidos vêm condenados, previsto e punido pelo artigo 40 n. 1 do Decreto-Lei n. 15/93, encontra-se amnistiado pela Lei n. 15/94, de 11 de Maio.

A decisão impugnada assenta na seguinte matéria de facto decidida pelo Tribunal Colectivo:
No dia 30 de Setembro de 1994, pelas 8 horas e 30 minutos, os arguidos tinham em seu poder, num anexo à residência da B, sita na Rua João do Rego de Baixo, n. 61, em Ponta Delgada:
a) - 1 embalagem plástica contendo 1,984 gramas de heroína;
b) - 30 embalagens de papel, contendo heroína com o peso global de 3,433 gramas;
c) - 14 pedaços de haxixe com o peso global de 1,666 gramas.
d) - 5 pedaços de haxixe com peso global de 688 mgr;
e) - 8 embalagens de papel, vazias;
f) - 8500 escudos em dinheiro.
O arguido mantém uma relação íntima com a B, pernoitando com a mesma no aludido anexo e todos os objectos supra-referidos pertenciam a ambos os arguidos.
As substâncias descritas nas alíneas a) a d) encontram-se incluídas nas tabelas I-A e I-C, anexas a Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, sendo o haxixe o nome por que é vulgarmente conhecida a espécie botânica "cannabis sativa L".
Os arguidos destinavam tais produtos à venda a diversas pessoas e ao seu consumo pessoal.
As embalagens de papel, vazias, continham heroína, parte da qual havia sido consumida no dia 29 de Setembro de 1993 à noite por ambos os arguidos e por um amigo destes que não foi possível identificar, tendo os arguidos cedido tal droga e haxixe ao mesmo, tendo todos igualmente consumido haxixe.
Os 8500 escudos em dinheiro provinham da venda de tais produtos que era feita em conjunto por ambos os arguidos a pessoas que regularmente os procuravam e a outras que por indicação daquelas, começavam a procurá-los também.
Os arguidos adquirem tais substâncias a diversas pessoas não identificadas, tanto na Ilha de São Miguel como no continente, tendo o arguido A ido a Lisboa no dia 23 de Setembro de 1993 e comprado heroína e haxixe naquela cidade, no Casal Ventoso, e transportado tais produtos para Ponta Delgada.
Os arguidos cedem, por vezes, gratuitamente, haxixe e heroína aos seus amigos.
Os arguidos agiram sempre livre, voluntária e conscientemente, em conjugação de esforços, conhecendo as características do haxixe e da heroína, designadamente a sua natureza estupefaciente.
Sabiam, ainda, que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Os arguidos admitiram a existência dos bens referidos na sua casa e o arguido confessou a sua deslocação a Lisboa, ao Casal Ventoso, para aquisição de estupefacientes.
O arguido encontra-se separado da sua mulher, encontrando-se a viver há meses com a arguida.
Esta é doméstica e o arguido cerca de 3 meses antes de Setembro de 1993, conduzia um camião para transporte de pessoal, ganhando 25000 escudos por semana.

Foram colhidos os vistos legais.
Teve lugar a audiência.
Passa-se a decidir.
I - Questão prévia - Amnistia.
A Lei n. 15/94, de 11 de Maio, no seu artigo 1 alínea r), amnistia o crime previsto no artigo 40 do Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, desde que praticado antes de 16 de Março de 1994 e os arguidos não sejam delinquentes habituais ou por tendência ou alcoólicos habituais ou equiparados - artigo 9 n. 2 alínea a).
O crime previsto artigo 40 n. 1, do Decreto-Lei n. 15/93, pelo qual os arguidos vêm condenados, foi praticado em 29 de Setembro de 1993.
Os arguidos não são - pelo menos não está provado que o sejam - delinquentes habituais, por tendência, nem alcoólicos habituais. Igualmente não se provou que sejam toxicodependentes, - situação equiparada à de alcoólicos habituais - apesar de na motivação do recurso insistirem que o são e que o Tribunal Colectivo não teve em conta tal situação. E não consta dos seus certificados de registo criminal que tenham sido condenados em pena indeterminada (artigo 126 n. 4 do Código Penal).
Nestas circunstâncias, por força das citadas disposições legais e ainda do disposto no n. 1 do artigo 126 citado, julga-se amnistiado o crime previsto pelo artigo 40 n. 1 do Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, pelo qual os dois arguidos foram condenados e extinto o respectivo procedimento criminal.
II - A matéria de facto provada considera-se definitivamente fixada porque não foram alegados quaisquer vícios que pudessem determinar o reenvio do processo, nem nulidades.
Passa-se, portanto, à matéria de direito, cuja reapreciação se limita às questões postas pelos recorrentes, já que nenhuma outra se apresenta em termos de dever ser conhecida oficiosamente.
É no quadro factológico atrás exposto que havemos de encontrar os elementos que permitam uma correcta aplicação do direito.

II. 1 - Pretendem os recorrentes, em primeiro lugar, que as suas condutas devem ser integradas no artigo 26 do citado Decreto-Lei n. 15/93 que prevê o tipo legal de crime de narcotráfico para consumo, nestes termos:
"1 - Quando, pela prática de algum dos factos referidos no artigo 21, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparados compreendidas nas Tabelas I a III, ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV".
O elemento específico deste tipo legal é a finalidade exclusiva para consumo pessoal.
Sucede, porém, que embora se tenha provado que os arguidos são consumidores de estupefacientes, provou-se também que os estupefacientes que detinham, os destinavam à venda a diversas pessoas e ao seu consumo pessoal.
Não se provou a referida finalidade exclusiva do consumo pessoal. Daí que seja impossível a integração do tipo legal definido no citado artigo 26. É inócua qualquer argumentação contrária dada a evidência da situação.
II. 2 - Melhor sorte não tem a pretensão de ver integrada a conduta no artigo 25 do mesmo diploma legal que prevê o crime de tráfico de menor gravidade.
É requisito essencial deste tipo de crime, "a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída".
Sublinhou-se a palavra "consideravelmente" porque, em regra, os recorrentes, não atentam no seu significado.
Essa diminuição considerável da ilicitude há-de resultar de elementos concretos; a título exemplificativo, o artigo 25 indica:
a) - a qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
Provou-se que os arguidos tinham em seu poder (viviam juntos):
- uma embalagem plástica contendo 1,984 gramas heroína;
- trinta embalagens de papel contendo heroína com o peso global de 3,433 gramas;
- 14 pedaços de haxixe com o peso global de 1,666 gramas.
- 5 pedaços de haxixe com o peso global de 688 mgr.
- 8500 escudos proveniente da venda de tais produtos que era feita em conjunto por ambos os arguidos.
A heroína é uma das chamadas drogas duras com um poder tóxico muito elevado que destrói a saúde.
A quantidade apreendida já tem relevo, tanto mais porque respeita a uma actividade em que eram regularmente procurados por compradores, como vem provado.
b) - Os meios utilizados: os estupefacientes eram fraccionados em pequenas quantidades, permitindo a distribuição por muitas pessoas.
c) - Modalidade e circunstâncias da acção.
Vem provado que os arguidos adquiriam tais substâncias a diversas pessoas, chegando o arguido a vir a Lisboa para comprar heroína e haxixe.
A venda era feita por ambos a pessoas que regularmente os procuravam e a outras que, por indicação daquelas, começavam a procurá-los também, ou seja, o número de pessoas a quem vendiam estupefacientes ia sempre aumentando.
Destas circunstâncias não se pode concluir que a ilicitude se mostra consideravelmente diminuída não só porque a heroína é um dos estupefacientes mais tóxicos, como ainda pela quantidade que os arguidos vendiam. O que releva, para este efeito, não é a quantidade de droga que lhes foi encontrada e que é pequena, sem dúvida O crime de tráfico de estupefacientes é de trato sucessivo, medindo-se a sua ilicitude não só em função das porções de droga proibida que, em dado momento, o agente detêm ou trafica, mas por todas que, durante um determinado período, se relacionem com qualquer das situações descritas no artigo 21 n. 1 do Decreto-Lei n. 15/93.
A conduta dos arguidos tem as características dos chamados "pequenos traficantes", modalidade que tem proliferado imenso, com efeitos muito nocivos porque penetra em todos os meios sociais.

III - Improcede, portanto, a pretensão dos recorrentes de verem alterada a integração jurídico-penal dos factos e a consequente alteração das penas.
A integração feita no acórdão recorrido mostra-se correcta.
Os recorrentes não formularam qualquer pedido de alteração das penas para a hipótese de ser mantida a incriminação que consta do acórdão recorrido, motivo porque este tribunal nada mais tem a decidir.
Os recursos improcedem totalmente.
IV - Em face do exposto acorda-se em decidir o seguinte:
1 - Julga-se extinto, por amnistia, o procedimento criminal pelo crime previsto no artigo 40 n. 1 da Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro pelo qual ambos os arguidos foram condenados, por força do disposto no artigo 1 alínea r), da Lei n. 15/94, de 11 de Maio, ficando sem efeito as penas aplicadas por este crime e os cúmulos jurídicos operados.
2 - Nega-se provimento aos recursos interpostos pelos arguidos mas altera-se o acórdão recorrido nos termos decididos em 1, confirmando-o na parte restante.
3 - Condena-se cada recorrente, pelo decaimento total, a pagar 4 UC’s de taxa de justiça e, solidariamente, vão condenados nas custas com um terço de procuradoria.

Na primeira instância providenciar-se-à pela aplicação aos arguidos do perdão previsto na citada Lei n. 15/94, para não serem privados do direito do recurso da decisão a proferir sobre tal matéria.
Lisboa, 19 de Outubro de 1994.
Amado Gomes,
Ferreira Vidigal,
Ferreira Dias,
Lopes Rocha.