Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | SANTOS CABRAL | ||
Descritores: | RECURSO DE REVISÃO CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL SENTENÇA CRIMINAL ABSOLVIÇÃO CONDENAÇÃO CASO JULGADO NON BIS IN IDEM CRIME MATÉRIA DE FACTO BEM JURÍDICO PROTEGIDO CULPA INCONCILIABILIDADE DE DECISÕES DUPLA CONDENAÇÃO APLICAÇÃO ANALÓGICA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
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Data do Acordão: | 11/27/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO DE REVISÃO | ||
Decisão: | AUTORIZADA A REVISÃO | ||
Área Temática: | DIREITO ESTRADAL - HABILITAÇÃO LEGAL PARA CONDUZIR. DIREITO PENAL - CRIMES CONTRA A VIDA EM SOCIEDADE / CRIMES CONTRA A SEGURANÇA DAS COMUNICAÇÕES. DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS / RECURSO DE REVISÃO. | ||
Doutrina: | - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 47. - Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa” Anotada, 3.ª ed., p. 194. - João Conde Correia, O Mito do Caso Julgado e a revisão Propter Nova, p. 304. - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, p. 1209. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DA ESTRADA (CE): - ARTIGOS 121.ºN.º 1, 122.º, N.º 1, 123.º, N.º 1, 124.º, N.º1. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 675.º (REDACÇÃO ANTERIOR A 2013). CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 449.º, 449.º, N.º1, AL. C), E N.º3, 460.º, 465.º. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 292.º, N.º1. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 29.º, N.ºS 5 E 6. D.L. N.º 2/98, DE 03-01: - ARTIGO 3.º, N.º1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 7-10-2009; DE 16-11-2011. -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: -N.º 376/2000. | ||
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Sumário : | I - A questão desenhada nos presentes autos cinge-se ao facto de o arguido ter sido objecto de duas decisões contraditórias em relação aos mesmos factos. Nomeadamente: - no processo A, o arguido foi julgado pelo facto de, no dia 10-11-2005, pelas 4.40 h, em SDR, na Rua CP, conduzir o ciclomotor Yahama, de matrícula x-xxx-xx-xx, sem habilitação legal, tendo sido absolvido; - nos presentes autos – processo B – o arguido foi julgado pelos mesmos factos referentes ao dia 10-11-2005, pelas 4.40 h, em SDR, na Rua CP, ter conduzido o ciclomotor Yahama, de matrícula x-xxx-xx-xx, sem habilitação legal, tendo sido, desta vez, condenado na pena parcelar de 4 meses de prisão e, em cúmulo jurídico com a prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. p. pelo art. 292.º, n.º 1, do CP, na pena única de 6 seis meses de prisão efectiva; - a primeira decisão foi proferida em 20-09-2007 e a segunda em 25-09-2009. II - O esgotamento da possibilidade de exercício da acção penal, originado pelo caso julgado material, impedimento processual amplo, ou seja, um novo procedimento é inadmissível; uma nova sentença de mérito está excluída por força do princípio ne bis in idem. Se, não obstante, se profere uma segunda sentença de mérito a mesma é nula, segundo a opinião dominante. É indiferente, para tal finalidade, que a decisão seja condenatória ou absolutória. III - Questão prévia na aferição da existência de uma violação do princípio em causa é a constatação da existência de um mesmo crime. Qualquer que seja a perspectiva que se adopte na transposição para o caso vertente, e quer se considere o bem jurídico violado ou o acontecimento histórico como critério de aferição do mesmo fato jurídico, uma coisa é certa: o concreto ilícito pelo qual o arguido foi primitivamente julgado integra-se no universo mais amplo objecto de actividade delituosa convocado pela condenação proferida no processo B. Igualmente é manifesto que existe uma parcial dessintonia no que toca ao segmento específico da culpa que no primeiro processo ficou indemonstrada contrariamente ao que sucedeu nos presentes autos. IV - Revela-se, assim, a inconciliabilidade entre os factos que foram provados na decisão revidenda e aqueles que não ficaram provados na decisão invocada, ou seja, os factos que serviram de fundamento à condenação são inconciliáveis com os dados como não provados noutra sentença. Não estamos perante um caso de identidade dos factos mas perante uma parcial divergência que integra a al. c) do art. 449.º do CPP, pois que não se pode, simultaneamente, ter, e não ter, consciência da ilicitude. V - A jurisprudência maioritária do STJ sobre a questão da dupla condenação não tem aqui aplicação. Com efeito, tal jurisprudência tem, como denominador comum, a existência de uma coincidência de factos e de dupla condenação, o que suscita a questão da aplicabilidade por analogia do art. 675.º do CPC (redacção anterior a 2013), concluindo-se que, quando ocorre uma duplicação de processos que conduziu a uma dupla condenação do mesmo arguido pelo mesmo facto, não existe o fundamento de revisão previsto na al. c) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, uma vez que as decisões não são inconciliáveis. Consequentemente, existindo aquela dupla condenação, e contornando a verificada violação do princípio ne bis in idem, a solução será aplicar ao caso a norma do art. 675.º, n.º 1, do CPC, cumprindo-se assim, e tão só, a decisão que transitou em primeiro lugar. VI - No caso de duplo julgamento por factos parcialmente divergentes, e decisão contraditória, entendemos que não há lugar a qualquer recurso à analogia, pois que o mecanismo adequado está previsto no processo penal, nomeadamente no instituto da revisão. Ponto é que da oposição resultem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. VII - No caso vertente, dúvidas não existem da inconciliabilidade parcial dos factos, nomeadamente no que toca à culpa e no que concerne à decisão, o que implica uma grave dúvida sobre a justiça da condenação. VIII - Assim, em nosso entender, estão verificados os pressupostos do deferimento do pedido formulado, o qual, tal como é solicitado, se cinge ao concreto crime de condução sem habilitação legal, p. p. pelo art. 3.º, n.º 1, do DL 2/98, de 03-01, por referência aos arts. 121.º, n.º 1, 122.º, n.º 1, e 123.º, n.º 1, do CE. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
O Ministério Público veio interpor recurso de revisão da decisão que condenou o arguido AA pela prática de um crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo artº 3 nº 1 do DL 2/98 de 3/1, por referência aos artºs 121 nº 1, 122 nº 1 e 123 nº 1 todas as disposições do Código da Estrada e pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez previsto e punido pelo artº 292 nº 1 do Código Penal, em cúmulo jurídico na pena única de seis meses de prisão, dela na parte relativa ao primeiro dos crimes enunciados, uma vez que o arguido já tinha sido julgado pelos mesmos factos que integram a prática deste crime de condução sem habilitação legal, nos termos do artº 399º, 412º nº 1, 413º nº 1, 449º c), 450º, 451º, 452º e 454º do Código de Processo Penal. São as seguintes as conclusões formuladas pelo recorrente; 1-Existe assim caso julgado anterior (processo 297/06.2PFCSC ) relativamente aos factos imputados ao arguido nos presentes autos no tocante à falta de habilitação legal para conduzir, não podendo, em obediência ao princípio “ ne bis in idem “, ninguém ser julgado duas vezes pelos mesmos factos, assim dispondo o artº 29 nº 5 da Constituição da República Portuguesa. 2. Tal caso julgado põe em causa a justiça da presente condenação, pelo que a decisão de condenação pela prática do crime de condução sem habilitação legal deve ser revista, sacrificando-se o valor da segurança e estabilidade e prevalecendo a justiça e a verdade material. 3. Pelo que existe fundamento para que se proceda a recurso de revisão nos termos do art. 449 nº 1 c) do CPP, devendo ser revista a decisão judicial na parte em que condenou o arguido pela prática do crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo artº 3 nº 1 do DL 2/98 de 3/1 e manter-se na parte relativa à condenação pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido pelo artº 292 nº 1 do Código Penal. Termina pedindo que seja revista a decisão judicial na parte em que condenou o arguido pela prática do crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo artº 3 nº 1 do DL 2/98 de 3/1, mantendo-se apenas a decisão que condenou o arguido no que respeita à prática do crime de condução em estado de embriaguez previsto e punido pelo artº 292 nº 1 do Código Penal. O Magistrado Judicial pronunciou-se nos termos do artigo 454 do Código de Processo Penal. Refere-se ali que: Nos presentes autos, o arguido foi julgado pelos mesmos fados referentes ao dia 10/11/2005, pelas 4h40m, por, nessa data, conduzir em S. Domingos de Rana, na Rua Chaby Pinheiro, comarca de Cascais, o ciclomotor Yahama, de matricula x-xxx-xx- xx, sem habilitação legal, tendo sido condenado na pena parcelar de 4 meses de prisão pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p.p. no artº 3.°, n.º 1, do DL n. ° 2/98 de 3/1. O mesmo facto é objecto nos dois processos. Existe caso julgado anterior, não podendo, em obediência ao princípio «in dúbio pro reo», ninguém ser julgado duas vezes pelos mesmos factos. Tal caso julgado põe em causa a justiça da condenação pela prática do crime de condução sem habilitação legal. Considera haver fundamento para que se proceda a revisão de sentença na parte em que condenou o arguido pela prática do crime de condução sem habilitação legal p.p. no artº 3.°, nº 1, do DL nº 2/98 de 3/1. Entendo que o recurso deve merecer provimento. O artº 449.°, nº 1, al, c) do C.P.P. preceitua: «1. A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando: 2) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação». Nos presentes autos, Processo Comum (Tribunal Singular) nº 784/05.0PFCSC, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p.p. no artº 3.° nº 1 do DL nº 2/98 de 3/1 e de um crime de condução em estado de embriaguez p.p. no artº 292.° nº 1 do Cód. Penal, na pena de 4 meses de prisão, por cada um deles, e, em cumulo jurídico, na pena única de 6 meses de prisão, em virtude de, no dia 10/11/2005, pelas 4h40 m, conduzir o ciclomotor Yahama, de matrícula x-xxx-xx-xx, na Rua Chaby Pinheiro, em S. Domingos de Rana, sem ter habilitação legal para conduzir e com uma TAS de 2,48 gr/I, tendo actuado de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei. A sentença foi proferida a 25/09/2009 e transitou em julgado a 26/10/2009. No Processo Comum (Tribunal Singular) nº 297/06.2PFCSC do 3° Juízo Criminal de Cascais, foi o arguido absolvido da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal p.p. no artº 3.° n.º1 do DL nº 2/98 de 3/1, em virtude de, no dia 10/11/2005, pelas 4h40m, conduzir o ciclomotor Yahama, de matrícula x-xxx-xx-xx, na Rua Chaby Pinheiro, em S. Domingos de Rana, sem ter habilitação legal para conduzir, não se provando que o arguido tivesse actuado deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. A sentença foi proferida a 20/09/2007 e transitou em julgada a 10/10/2007. Estamos perante casos julgados contraditórios sobre o mesmo crime de condução sem habilitação legal, uma sentença condenatória e uma absolutória, sendo a sentença que absolveu o arguido a primeira proferida e transitada em julgado. Verificando-se a situação prevista no artº 449.°, n.º 1, al. c) do C.P.P., determino que todo o processo suba ao Supremo Tribunal de Justiça. Neste Supremo Tribunal de Justiça o Exº Sr Procurador Geral Adjunto emitiu proficiente parecer concluindo que: 3.1 – O recurso de revisão, com consagração constitucional (art.º 29.6 da CRP), (i)visa obter o equilíbrio entre a imutabilidade da sentença ditada pelo caso julgado (vertente da segurança) e a necessidade de assegurar o respeito pela verdade material (vertente da Justiça), e (ii)tem os seus fundamentos taxativamente previstos nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 449.º do CPP; 3.2 – Não é de considerar abrangido pela previsão normativa contida em nenhuma das alíneas do n.º 1 do citado preceito – mormente a alínea c), convocada pelo recorrente –, sendo por conseguinte de negar a pedida revisão, num caso em que, como o dos autos, foram proferidas, pelos mesmos factos e em dois processos distintos, sucessivamente, duas sentenças judiciais contraditórias e inconciliáveis: uma delas, a primeira – [no âmbito do processo n.º 297/06, datada de 20-09-2007 e transitada em 10-10-2007] –, absolutória; e a outra, a segunda – [no âmbito destes autos, datada de 25-09-2009 e transitada em 26-10-2009] –, condenatória; 3.3 – Uma vez que qualquer daquelas decisões – no segmento ora controvertido transitou em julgado – a contradição deve ser resolvida pela convocação do comando normativo ínsito no art. 625.º do CPC, aplicável ex vi do art. 4.º do CPP, devendo ser cumprida portanto, apenas, aquela que transitou em julgado em primeiro lugar, o mesmo é dizer a mencionada sentença absolutória, com todas as consequências daí decorrentes, maxime a rectificação em conformidade do registo criminal do arguido, com o cancelamento da inscrição, neste concreto segmento, da sentença condenatória proferida. 4 – TERMOS EM QUE, e por se não mostram reunidos, pelo sumariamente exposto, os fundamentos para considerar o caso “sub judice” abrangido pela previsão normativa da alínea c) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal – nem de qualquer dos demais segmentos do mesmo preceito –, se emite parecer no sentido de que: 4.1 – É de julgar infundado o presente recurso extraordinário, denegando em consequência a pedida autorização para a revisão, no segmento convocado, da sentença condenatória a que os autos se reportam; 4.2 – Deve no entanto a questão suscitada ser resolvida, na 1.ª Instância, por via da convocação do comando normativo regulado no art. 625.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi do art. 4.º do CPP. Os autos tiveram os vistos legais. * Cumpre decidir. Constata-se que nos presentes autos foi imputada ao arguido a prática de factos susceptíveis de integrarem a autoria de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 3º do DL 2/98, de 3 de Janeiro e 121º, n.º1, 122º, n.º2 e 124º, n.º1 do Código da Estrada em concurso real com um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 292º do Código Penal. Em sede de julgamento e por decisão de 25 de Setembro de 2009 considerou-se provado que, no que importa aos presentes autos: 1 – No dia 10 de Novembro de 2005, pelas 04H40, o arguido AA conduzia o ciclomotor Yahama, de matrícula x-xxx-xx-xx, pela Rua Chaby Pinheiro, em S. Domingos de Rana. 2 – Nessa ocasião e lugar encontravam-se em serviço elementos pertencentes à Esquadra da PSP de S. Domingos de Rana que interceptaram o arguido AA. 3 – No subsequente controlo levado a efeito, pelos agentes policiais, o arguido AA declarou ser titular de licença de condução de ciclomotores, mas posteriormente apurou-se que na verdade o arguido não estava legalmente habilitado para a condução desse tipo de veículos. 4 – Mais se apurou que o arguido conduzia nessa ocasião cm uma taxa de álcool no sangue de 2,48 gr/l. 5 – Tal facto foi comprovado através de teste efectuado pelo aparelho Drager – modelo 7110 MKIII P, declarando o arguido não pretender realizar exames para efeitos de contraprova. 6 – O arguido AA sabia não estar legalmente habilitado para a condução de ciclomotores na via pública, o que quis e concretizou. 7 – O arguido conduzia de forma livre e consciente da taxa de álcool existente no seu sangue, situação em que voluntariamente se colocou. 8 – Ao actuar da forma descrita, o arguido AA agiu sempre de forma livre e voluntária, e com consciência plena do carácter criminalmente ilícito da sua conduta. Consequentemente foi o arguido condenado como autor de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelos n.º 1 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, por referência aos artigos 121º, n.º 1, 122º, n.º 1 e 123º, n.º 1, todos do Código da Estrada, Em 20 de Setembro de 2007 no âmbito do processo Comum Singular 297/06.2PFCSC do 3º Juízo Criminal deste Tribunal de Cascais, o mesmo arguido foi absolvido da prática do mesmo crime de condução sem habilitação legal com fundamento em factualidade coincidente com a do primeiro processo citado à excepção da consciência da ilicitude cuja ausência fundamentou a não condenação. Conforme já tivemos ocasião de referir – Acórdão de 7 de outubro de 2009- dispõe o nº 6 do artigo 29.° da Constituição que os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão de sentença e à indemnização pelos danos sofridos. Uma decomposição do normativo revela o facto de o mesmo pretender atingir o equilíbrio entre dois conceitos caros ao processo penal: -por um lado o direito a uma decisão justa, que faz parte do património de qualquer cidadão, e, por outro, a necessidade de revestir a mesma decisão judicial da estabilidade que conforta a certeza e segurança da definição jurídica e social. Por alguma forma Figueiredo Dias nos dá notícia da necessidade de superação desta antinomia referindo que a justiça é, por certo, fim do processo penal, no sentido de que este não pode existir validamente se não for presidido por uma directa intenção ou aspiração de justiça. Isto não obsta, porém, a que institutos como o do «caso julgado», ou mesmo princípios como “o in dubio pro reo”, indiscutivelmente de reconhecer em processo penal, possam conduzir, em concreto, a condenações e absolvições materialmente injustas. Continuar a afirmar, perante hipóteses destas, que a justiça foi, em absoluto, fim do processo penal respectivo, pode ser, ainda, ideal e teoreticamente justificável- v. g. porque se argumente que as exigências de segurança surgem ainda como particular modus de realização do Direito e, por conseguinte, do «justo», quando este se lança no contexto amplo de todos os interesses sociais conflituantes -, mas é também, seguramente, renunciar à obtenção de um critério prático adequado de valoração das normas e problemas processuais. Mais adianta o mesmo Mestre que também a segurança é fim do processo penal O que não impede que institutos como o do «recurso de revisão» contenham na sua própria razão de ser um atentado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmente se poderia erigir a segurança em fim ideal único, ou mesmo prevalente, do processo penal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com a justiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos têm de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser só, no fundo, a força da tirania aos puros valores da «justiça» e da «segurança», não cedendo à tentação fácil de os absolutizar: é um facto comprovado nada haver de mais perigoso que a absolutização de valores éticos singulares, pois aí se inscreverá a tendência irresistível para uma santificação dos meios pelos fins. Importa sim reconhecer que se está aqui, como em toda a autêntica «questão-de-direito», mesmo no cerne de uma ponderação de valores conflituantes, cujo resultado há-de corresponder ao ordenamento axiológico do Direito, há-de constituir a síntese das antinomias entre justiça e segurança encontrada no degrau mais elevado da ordem jurídica. De novo, porém, surge a pergunta: como tirar desta verificação um critério prático prestável para a valoração das singulares normas e problemas processuais? Se persistirmos em traduzir numa fórmula o resultado da ponderação de valores que no processo penal conflituam, cremos que, com razoável exactidão, poderemos ver o fim do processo penal em obstar à insegurança do direito que necessariamente existe «antes» e «fora» daquele, declarando o direito do caso concreto, i. é, definindo o que para este caso é, hoje e aqui, justo. O processo penal, longe de servir apenas o exercício de direitos assegurados pelo direito penal, visa a comprovação e realização, a definição e declaração do direito do caso concreto, hic et nunc válido e aplicável.[1] Esta necessidade de justiça no caso concreto e de superação de situação que encerra uma insuportável violação da mesma leva o legislador á consagração do recurso de revisão, prevendo a quebra do caso julgado e, portanto uma severa limitação ao princípio de segurança jurídica inerente ao Estado de Direito. Porém, como se referiu só circunstâncias “substantivas e imperiosas” devem permitir a quebra de caso julgado por forma a que este recurso extraordinário não se revele numa apelação “disfarçada”[2] Como refere o acórdão 376/2000 do Tribunal Constitucional trata-se aí de uma exigência de justiça que se sobrepõe ao valor de certeza do direito, consubstanciado no caso julgado. Este é preterido em favor da verdade material, porque essa é condição para a obtenção de sentença que se funde na verdade material, e nessa medida seja justa. O julgamento anterior, em que se procurou, com escrúpulo e com o respeito das garantias de defesa do arguido, obter uma decisão na correspondência da verdade material disponível no momento em que se condenou o arguido, ganha autonomia relativamente ao processo de revisão para dele se separar. No novo processo não se procura a correcção de erros eventualmente cometidos no anterior, e que culminou na decisão revidenda, porque para a correcção desses vícios terão bastado, e servido, as instâncias de recurso ordinário, se acaso tiverem sido necessárias. Isto é; os factos novos do ponto de vista processual e as novas provas, aquelas que não puderam ser apresentadas e apreciadas antes, na decisão que transitou em julgado, são o indício indispensável para a admissibilidade de um erro judiciário carecido de correcção. Por isso, se for autorizada a revisão com base em novos factos ou meios de prova, haverá lugar a novo julgamento (cf. artigo 460º do CPP), tal como, nos casos em que for admitida a revisão de despacho que tiver posto ao processo, o Supremo Tribunal de Justiça declara sem efeito o despacho e ordena que o processo prossiga, obviamente que no tribunal a quo (artigo 465º). Compreende-se a esta luz que a lei não seja permissiva ao ponto de banalizar e, consequentemente, desvalorizar a revisão, transformando-a na prática em recurso ordinário, endo-processual neste sentido – a revisão não pode ter como fim único a correcção da medida concreta da pena (nº 3 do artigo 449º) e tem de se fundar em graves dúvidas lançadas sobre a justiça da condenação * É, assim, dentro deste enquadramento, que, no caso vertente, se devem perspectivar os fundamentos do recurso de revisão, ou seja, a circunstância de os mesmos configurarem uma ultrapassagem da certeza e segurança inscritas no princípio do caso julgado a qual só admissível em função da comprovação de uma situação prevista no normativo citado A revisão visa, não uma reapreciação do anterior julgado, mas sim uma nova decisão assente em novo julgamento da causa, com base em novos dados de facto. Versa sobre a questão de facto. Os fundamentos taxativos deste recurso extraordinário vêm enunciados no artigo 449º do Código de Processo Penal e são apenas estes: a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão; b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo; c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação; d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si, ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos nºs 1 a 3 do artigo 126°; f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação; g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça
II Sinteticamente a questão desenhada nos presentes autos cinge-se ao facto de o arguido ter sido objecto de duas decisões contraditórias em relação aos mesmos factos. Nomeadamente, a) No processo comum singular 297/06.2PFCSC do 3º Juízo Criminal deste Tribunal de Cascais, o arguido foi julgado pelo facto de no dia 10 de Novembro de 2005, pelas 4h 40m, em S. Domingos de Rana, na Rua Chaby Pinheiro, área desta comarca de Cascais conduzir o ciclomotor Yahama, de matrícula x-xxx-xx-xx, sem habilitação legal, tendo sido absolvido c) Nos presentes autos - processo comum singular nº 784/06.2PFCSC - o arguido foi julgado pelos mesmos factos referentes ao dia 10 de Novembro de 2005, pelas 4h 40m, em S. Domingos de Rana, na Rua Chaby Pinheiro, ter conduzido o ciclomotor Yahama, de matrícula x-xxx-xx-xx, sem habilitação legal, tendo sido desta vez condenado na pena parcelar de quatro meses de prisão e em cúmulo jurídico com a prática de um crime de condução em estado de embriaguez previsto e punido pelo artº 292 nº 1 do Código Penal, na pena única de ( 6 ) seis meses de prisão efectiva. A primeira decisão foi proferida em 20-09-2007 e a segunda em 25-09-2009
Existe uma coincidência parcial na actividade sob escrutínio em qualquer um daqueles processos, nomeadamente no que concerne á condução sem habilitação Estamos, assim, reconduzidos em toda a sua plenitude à questão do caso julgado e da violação do princípio “ne bis..” Na verdade, como refere Roxin o esgotamento da possibilidade de exercício da acção penal, originado pelo caso julgado material, repercute-se como um impedimento processual amplo, ou seja, um novo procedimento é inadmissível; uma nova sentença de mérito está excluída por força do principio ne bis in idem (ne bis de eadem re ne sit actio). Se, não obstante, se profere uma segunda sentencia de mérito a mesma é nula, segundo a opinião dominante. É indiferente para tal finalidade que a decisão seja condenatória ou absolutória. Com esta extensão ampla, o principio ne bis in idem foi promovido, através do artigo 29 da Constituição, à categoria de preceito de direito constitucional. O referido preceito da Constituição estabelece que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime», e acerca do mesmo escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 194): O n.º 5 dá dignidade constitucional ao clássico princípio non bis in idem. Também ele comporta duas dimensões: a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. A afirmação do referido principio increve-se no nucleo essencial dos direitos de cidadão pois que, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, o princípio da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito (artigo 2.° da CRP), o princípio da força vinculativa especial das decisões dos tribunais (artigo 205.°, nº2, da CRP), o princípio do ne bis in idem penal (artigo 29.°, nº 5 da CRP), o princípio da revisão de sentença penal em benefício do réu injustamente condenado (artigo 29.°, nº 6 da CRP) e o regime da ressalva do caso julgado previsto pelo artigo 282.°, nº 3, da CRP, permitem afirmar o direito de cidadania constitucional do princípio da tutela do caso julgado dentro e fora do processo penal.[3] Questão prévia na aferição da existência de uma violação do princípio em causa é a constatação da existência de um mesmo crime a qual avaliza a garantia concedida pelo normativo constitucional.
[1] Direito Processual Penal pag 47 [2] Paulo Pinto de Albuquerque Comentário ao Código de Processo Penal pag 1209 [3] A garantia do caso julgado fora do processo penal decorre do artigo 6.°, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da garantia do caso julgado no processo penal reconhecida pelo artigo 4.° do protocolo adicional n.o 7 à Convenção, princípios a que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem deu um conteúdo substantivo nos acórdãos fundamentais proferidos nos casos Brumarescu v. Roménia, Ryabykh v. Rússia, Taskin e Outros v. Turquia, Levages Prestrations Services v. França e Oferta Plus SRL v. Moldávia sobre o conteúdo desta garantia fora do processo penal, e nos acórdãos igualmente decisivos proferidos nos casos Sergey Zolotukhin v. Rússia (GC), Assenidze v. Geórgia, Gradinger v. Áustria e Nikitin v. Rússia, sobre o conteúdo desta garantia no processo penal, isto é, a garantia de que uma pessoa condenada definitivamente em processo penal não deve ser punida, nem condenada, nem perseguida de novo pelos mesmos factos. A tutela constitucional e convencional inclui o caso julgado formal, que está expressamente reconhecido no artigo 338.°, nº 1 ("acerca das quais ainda não tenha havido decisão") e no artigo 368.°, nº 1 ("sobre as quais ainda não tiver recaído decisão") (acórdão do TC nº 255/98 e acórdão do TEDH proferido no caso Salov v. Ucrânia, e, sobre a questão concreta do caso julgado formal sobre a competência internacional dos tribunais nacionais, o acórdão do TRE, de 27.11.2007, in CJ, XXXII, 5, 257, e ver ainda a NOTA PRÉVIA ao Artigo 399.°). É, pois, à luz daqueles princípios materiais positivados na CRp, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no seu protocolo adicional n.o 7 que o conteúdo substantivo e formal da garantia do caso julgado deve ser fixado. Nem a CRP nem a Convenção Europeia dos Direitos do Homem admitem manipulações 2 da definição do momento do trânsito em julgado (acórdãos do TC n.o 1166/96 e nº 524/97 e acórdão do TEDH proferido no caso Assenidze v. Geórgia) e do âmbito da eficácia pessoal, material e territorial do caso julgado (acórdãos do TC n.o 172/92, n.o 263/94, n.o 161/95, n.o 212/95, nº 102/99, n.o 244/99 e n.o 104/2006 e acórdãos do TEDH profe¬ridos nos casos Brumarescu v. Roménia, Taskin e Outros v. Turquia e Nedzela v. França). [4] Relator Juiz Conselheiro Raul Borges |