Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00021600 | ||
Relator: | AMADO GOMES | ||
Descritores: | UNIDADE DE RESOLUÇÃO PRESSUPOSTOS CRIME CONTINUADO MEDIDA DA PENA | ||
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Nº do Documento: | SJ199401120457253 | ||
Data do Acordão: | 01/12/1994 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | BMJ N433 ANO1994 PAG225 - CJSTJ 1994 ANOII TI PAG190 | ||
Tribunal Recurso: | T J LOURES | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 162/931 | ||
Data: | 05/24/1993 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | PROVIDO. | ||
Área Temática: | DIR CRIM - TEORIA GERAL. | ||
Legislação Nacional: | CPP87 ARTIGO 410. CP82 ARTIGO 30 N1 ARTIGO 72 ARTIGO 78 ARTIGO 201 N1 N2 ARTIGO 208 N1 B. L 23/91 DE 1991/07/04 ARTIGO 14 N1 B N4. | ||
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Sumário : | I - Haverá unidade de resolução quando os actos praticados resultam de uma só deliberação, sem novas motivações em cada actuação. II - Se a conduta do agente revelar que, em cada actuação, houve um renovar da sua resolução criminosa, está-se perante a prática de vários crimes, excepto se esse renovar do propósito criminoso for devido a uma situação exterior ao agente que facilite a renovação da resolução dentro de uma certa conexão temporal, tudo a revelar diminuição da culpa, caso em que se perfila a figura do crime continuado. III - Se o arguido comete sobre o mesmo ofendido, seguidamente, nas mesmas circunstâncias, dois crimes de violação do previsto dos artigos 201, ns. 1 e 2 e 208, n. 1, alínea a) do Código Penal, em obediência a resoluções criminosas autónomas, a situação será de concurso real de infracções e não de crime continuado quando não se prove que a segunda resolução terá sido determinada por uma situação exterior ao mesmo agente que lhe tenha facilitado a execução e diminuido consideravelmente a culpa. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Acusado pelo Ministério Público da autoria de dois crimes de violação previstos e punidos pelo artigo 201 números 1 e 2 e 208 n. 1 alínea h), do Código Penal, o arguido A, casado, Técnico de frio, nascido a 4 de Julho de 1955, foi julgado na comarca de Loures e condenado apenas por um daqueles crimes na pena de três anos de prisão, cuja execução lhe foi suspensa por cinco anos mediante a condição de, em seis meses, pagar a quantia de 300 contos de compensação a favor da ofendida. Esta decisão assenta na seguinte matéria de facto dada como provada: Em dia indeterminado do Verão de 1989, numa altura em que a menor B, nascida a 1 de Janeiro de 1983, passara férias em casa do arguido, sita em Zambujal, estando, assim, confiada á guarda e cuidados daquele, o A conduziu-a ao seu quarto de dormir e fechou a porta. Aí, o arguido começou a despir-se e, concomitantemente, despiu também a ofendida, na altura com sete anos de idade. De seguida deitou a menor na cama e, ele próprio deitou-se por cima dela e, com o pénis erecto, esfregou-o na vagina (vulva) e nas coxas da ofendida até sobre estas ejacular. Após este acto o arguido voltou, nas mesmas circunstâncias, a esfregar o pénis na vulva da menor até, mais uma vez, ejacular. A fricção exercida pelo arguido na vulva da menor foi de tal ordem que esta sangrou. Por outro lado o arguido recomendou à menor que não contasse nada a ninguém. O arguido agiu sempre livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei e tendo em vista a exclusiva satisfação dos seus instintos libidinosos. O arguido tinha clara consciência da idade da menor e da dependência desta em relação a ele. O arguido não tem trabalho certo vive de «biscates» como mecânico de frio. Junto com uma mulher tem, seus e desta, cinco filhos menores. Discordando do decidido interpôs recurso o Ministério Público, limitando-o às questões que expõe nas conclusões da motivação: 1- O arguido cometeu dois crimes de violação previstos e puníveis pelo artigo 201 números 1 e 2 e 208 n. 1 alínea h) do Código Penal e não apenas um. 2- A medida da pena aplicada é excessivamente leve. Por cada um dos dois crimes deve ser-lhe aplicada a pena de três anos e seis meses de prisão e, em cúmulo jurídico, a pena única de cinco anos de prisão, na qual deve ser aplicada o perdão de um ano nos termos do artigo 14 n. 1 alínea h) e n. 4 da Lei n. 23/91, de 4 de Julho. - Na hipótese de se entender que os factos integram num único crime, a pena não deve ser inferior a quatro anos de prisão aplicando-se também o referido perdão de um ano. 4- Se vier a ser decidido que é de manter a pena de três anos de prisão, não deve a sua execução ser suspensa. Respondeu o arguido defendendo desenvolvidamente a manutenção do decidido, sem prejuízo de qualquer outro entendimento que o beneficie. Neste Supremo Tribunal o Ministério Público teve vista do processo, não suscitando qualquer questão que obstasse ao prosseguimento do recurso para a audiência. Foram colhidos os vistos legais. Teve lugar a audiência. Passa-se a decidir. Não foram suscitadas quaisquer questões que obstassem ao conhecimento do objecto do recurso, nem este Tribunal vislumbra a sua existência. A matéria de facto decidida pelo Tribunal Colectivo não foi objecto de arguição de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410 do Código de Processo Penal, nem este Tribunal vislumbra a sua existência. Está definitivamente fixada. Com base nela vão ser decididas as questões de direito suscitadas neste recurso - artigo 43 daquele Código. Primeira questão: unidade ou pluralidade de crime. O Tribunal Colectivo integrou os factos como um só crime de violação. Entende o Recorrente que são dois os crimes praticados, em concurso real, afastando a figura do crime continuado por não existir uma situação exterior que diminua a culpa do agente e ainda porque se verifica o preenchimento plúrimo do mesmo tipo legal de crime que protege bens eminentemente pessoais. Esclarece que houve duas acções distintas, duas condutas que violaram o mesmo bem jurídico mediante renovação do desígnio criminoso. Vejamos: Segundo o artigo 30 n. 1 do Código Penal, "O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente". No caso em apreço estamos perante a violação da mesma norma jurídica. Haverá tantas violações dessa norma quantas as vezes ela se mostrar ineficaz na função determinadora da vontade do agente. O que nos indica quantas vezes se verificou essa ineficácia, é a resolução criminosa. Todas as vezes que o agente resolve agir contra o comando de uma norma jurídica, significa que, de todas essas vezes, o seu comando se mostrou ineficaz. Haverá unidade de resolução quando os actos praticados resultam de uma só deliberação, sem novas motivações em cada actuação. Se a conduta do agente nos revela que em cada actuação houve um renovar da sua resolução criminosa, estamos perante a prática de vários crimes, excepto se esse renovar do propósito criminoso for devido a uma situação exterior ao agente que facilita a renovação da resolução dentro de uma certa conexão temporal, tudo a revelar diminuição da culpa, caso em que se perfila o figurado crime continuado. Da matéria de facto resulta que o arguido praticou na pessoa da ofendida, os mesmos actos, nas mesmas circunstâncias, por duas vezes. O mesmo tipo de crime foi preenchido duas vezes. Também da matéria de facto resulta que a segunda actuação se ficou a dever à mesma nova resolução criminosa: «Após este acto o arguido voltou, nas mesmas circunstâncias, a esfregar o pénis na vulva da menor até, mais uma vez, ejacular». Assentando-se, assim, na pluralidade de resoluções criminosas, resta apurar se estamos perante um concurso real de crimes ou perante um crime continuado. O crime continuado só seria possível se a segunda resolução tivesse sido determinada por uma situação exterior ao agente que facilitasse a execução e diminuísse consideravelmente a culpa. Tal tipo de situação não resultou provada. O facto de a menor ofendida estar a passar férias na casa do arguido, confiada à sua guarda e aos seus cuidados, é insuficiente para caracterizar tal situação. Tanto assim é que a decisão sobre matéria de facto não atribuí qualquer relevo a essa situação. A conexão temporal entre as duas condutas - essencial no crime continuado - não está definida. Sem ela não se evidencia a diminuição da culpa em que assenta esta figura, porque não é de presumir uma menor reflexão sobre a acção criminosa anterior, facilitadora e a repetição do ilícito. É de afastar, portanto, a figura do crime continuado. Não é, acrescenta-se, o facto de estar em causa a ofensa de um bem eminentemente pessoal que afasta tal figura porque a pessoa ofendida é a mesma. A ofensa de tal tipo de bens só afasta o crime continuado quando eles respeitam a pessoas diferentes, como ensina o saudoso Professor Eduardo Correia, em Unidade e Pluralidade de Infracções, a folhas 352, exemplificando: "Se A. atenta contra o pudor de várias mulheres ou as estupra ou viola, fica logo excluída a possibilidade de mera continuação criminosa porque são vários os bens jurídicos ofendidos com essa actividade". O arguido praticou dois crimes de violação previstos e puníveis pelos artigos 201 números 1 e 2 e 208 n. 1 alínea b) do Código Penal, em concurso real. Segunda questão: medida das penas e suspensão se a pena for única. A medida abstractamente aplicável a cada crime é de dois anos e oito meses a dez anos e oito meses de prisão. Na determinação da medida concreta regem o artigo 72 do Código Penal os princípios que informam este diploma. O Código atribui á pena conteúdo de reprovação ética, sem deixar de atender aos fins de prevenção geral e especial. O artigo 72 impõe critérios de valoração, objectivos, resultantes da própria lei, não podendo o julgador orientar-se por critérios pessoais. Segundo tal comando, a medida da pena determina-se em função da culpa, tendo-se ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes. A culpa é o limite inultrapassável da pena concreta; fundamenta e limita a pena. De acordo com os citados princípios a pena há-de servir para retribuição justa do mal praticado; Há-de contribuir para a reinserção social do delinquente; há-de dar satisfação ao sentimento de justiça da comunidade e servir de elemento dissuador. Posto isto vejamos. O arguido agiu com um grau de culpa muito elevado. Homem casado, com filhos, aproveitar-se da inocência de uma criança de sete anos incompletos que estava confiada aos seus cuidados, para satisfazer desejos libidinosos inferiores, tão inferiores que nem os animais irracionais praticam actos semelhantes na época do cio; rejeitam as crias para o sexo. Neste tipo de crimes são muito acentuadas as exigências da prevenção geral. A ilicitude do facto é elevada e o dolo directo foi intenso. Não se passaram circunstâncias que diminuam a ilicitude do facto ou a culpa do arguido. Não se provou o seu bom comportamento anterior. Não houve reconhecimento do mal praticado nem arrependimento. As circunstâncias passadas de o arguido ser mecânico de frio que vive de «biscates», com cinco filhos a seu cargo, apenas o podia beneficiar na determinação da taxa diária de uma pena de multa que não é aplicável neste caso. Atendendo a todos estes elementos entende-se por justa e adequada a pena de três anos de prisão por cada crime e, um cúmulo jurídico, nos termos do artigo 78 do Código Penal, a pena única de cinco anos de prisão. Esta medida da pena afasta a possibilidade da suspensão da sua execução. Nestes termos acorda-se em dar provimento ao recurso e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido quanto á incriminação, medida das penas e suspensão da sua execução pelo que: 1- Julga-se o arguido autor material de dois crimes de violação previstos e punidos pelo artigo 201 números 1 e 2 208 n. 1 alínea b) do Código Penal. 2- Condena-se o arguido, por cada um de tais crimes, na pena de três anos de prisão. 3- Em cúmulo jurídico condena-se o arguido na pena única de cinco anos de prisão. 4- Nos termos do artigo 14 n. 1 alínea b) e n. 4 da Lei n. 23/91, de 4 de Julho, declara-se perdoado num ano de prisão. 5- Por ter decaído na oposição que deduziu condena-se o arguido em quatro UCS de taxa de justiça e nas custas com um terço de procuradoria. Lisboa, 12 de Janeiro de 1994 Amado Gomes; Ferreira Vidigal; Ferreira Dias; José Silva Reis. Decisão impugnada Acórdão de 24 de Maio de 1993 do Tribunal Judicial de Loures. |