Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
088422
Nº Convencional: JSTJ00029710
Relator: TORRES PAULO
Descritores: ESTABELECIMENTO INDUSTRIAL
ESTABELECIMENTO DE ENSINO
INTERESSE DA EMPRESA
Nº do Documento: SJ199604160884221
Data do Acordão: 04/16/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N456 ANO1996 PAG396
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: RAU90 ARTIGO 110 ARTIGO 115.
CCOM888 ARTIGO 2 ARTIGO 13 ARTIGO 230.
CCIV66 ARTIGO 1038 G.
Sumário : Cabe o reconhecimento como empresa industrial ao estabelecimento de ensino particular de interesse público visando a reeducação de crianças atrasadas mentais, com a finalidade da obtenção de lucro.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1 - No 3. Juízo Cível do Porto, A, como proprietário de prédio urbano, que identificou, accionou B e C, pedindo que se declare resolvido contrato de arrendamento que celebrou com a primeira Ré, decretando o despejo imediato das Rés, dado ter existido cessão da posição de arrendatário pela primeira à segunda, sem que a lei o permita ou o senhorio o autorize.
Em contestação as Rés sustentam ter havido trespasse do estabelecimento comercial instalado no prédio arrendado, situação comunicada oportunamente ao A.
Proferiu-se sentença absolutória do pedido.
Em apelação o douto Acórdão da Relação do Porto folhas
119 a 127 confirmou o decidido.
Daí a presente revista.
2 - Nas suas alegações o A. recorrente conclui, em resumo: a) Escola de Reeducação Pedagógica dos Autos - estabelecimento a funcionar no local arrendado - não é um estabelecimento comercial ou industrial. b) É estabelecimento de ensino especial que prossegue um manifesto interesse público de educação de crianças atrasadas mentais. c) Não cabe na enumeração de empresas comerciais e na qualificação dos actos de comércio, efectuados nos artigos 2 e 23 do C. Comercial. d) A transmissão da propriedade e direcção da Escola verificada em 21 de Novembro de 1991, em simultâneo com a cedência do local arrendado foi uma cessão de posição contratual, não permitida pela lei, nem autorizada pelo senhorio.
A recorrida B pugnou pela manutenção do decidido.
3 - Colhidos os vistos, cumpre decidir.
4 - Está provado pela Relação. a) O A. é dono e legítimo possuidor do prédio urbano sito na Rua do ..., Porto. b) O A. deu de arrendamento à 1. Ré, em 13 de Março de
1973, mediante a outorga entre ambos de um contrato promessa de arrendamento, parte daquele prédio correspondente a uma casa de habitação sita na Rua ..., ficando expressamente excluída a garagem e o terreno do prédio correspondente à parte do artigo 2023, situada a nascente e separado por um muro e portão de acesso. c) O local arrendado destina-se à actividade de reeducação de crianças atrasadas mentais. d) Nos termos do referido contrato promessa ficou estabelecido na cláusula 4.
"A parte aqui arrendada destina-se à actividade de reeducação de crianças atrasadas mentais, não podendo a arrendatária dar-lhe outra finalidade, nem sublocá-lo ou cedê-lo, por qualquer forma, sem consentimento, por escrito do senhorio". e) A 1. Ré ocupou o local arrendado desde a data de celebração do aludido contrato promessa até final de
1991, aí estando instalada e em funcionamento uma escola de reeducação de crianças atrasadas mentais. f) A 1. Ré celebrou com a 2. Ré, em 18 de Novembro de
1991, uma escritura pública de trespasse de "estabelecimento de ensino denominado Escola de
Reeducação Pedagógica das Antas", sito no referido local arrendado. g) A 1. Ré notificou o A. da celebração dessa escritura de trespasse mediante carta registada expedida em 22 de
Novembro de 1991 e recebida pelo A. em 25 desse mês. h) A 1. Ré pretendeu transmitir para a 2. Ré a propriedade da "Escola de Reeducação Pedagógica das
Antas" como um todo, nela se incluindo a transmissão da sua posição de arrendatária, ou seja, transmitindo simultaneamente o seu direito ao arrendamento daquele local. i) Nesse sentido, a 2. Ré passou, a partir de 18 de
Novembro de 1991, a gerir funcionalmente e a orientar pedagogicamente aquela escola de ensino privado, ainda no local arrendado pelo A.
5 - As instâncias reconheceram à "Escola" em causa a natureza de empresa industrial e daí passaram a concluir que estamos perante um trespasse e não perante uma cessão de posição contratual.
Frisa-se que o douto A. recorrido é uma peça jurídica bem fundamentada, alicerçando a sua decisão de direito em estudo crítico das diferentes vertentes doutrinais e jurisprudênciais que se debruçam sobre o problema chave em discussão: a enumeração do artigo 230 do C.Com. é taxativa ou exemplificativa?
Tal simplifica a elaboração deste acórdão na medida em que evita as repetições doutrinais e jurisprudências nele insertas.
Mas há que traçar claramente a linha que se segue.
6 - O A. recorrente invocou como causa de pedir a celebração entre a 1. e a 2. Ré de uma escritura pública de trespasse do estabelecimento de ensino
"Escola de Reeducação Pedagógica das Antas"
Alegando que esta escola não é um estabelecimento comercial ou industrial, conclui que a aludida transmissão se operou por uma cessão da posição de arrendatária, não permitida por lei, nem por si autorizada.
O trespasse traduz-se na transferência do estabelecimento comercial ou industrial, considerado como universalidade, transmissão integral e definitiva para ser continuada a sua exploração pela adquirente.
Para a sua efectivação não é obrigatória a prévia autorização do senhorio - artigo 115 RAU.
Uma vez operado, a sua eficácia perante o senhorio depende da comunicação da cedência, no prazo de 15 dias
- artigo 1038 gp. do Código Civil.
Frente ao estatuído no artigo 110 RAU o arrendamento será comercial ou industrial, quando tenha sido tomado directamente para fins relacionados, respectivamente, com uma actividade comercial ou industrial.
Actividade comercial entendida como de mediação, ou seja, em sentido económico e não jurídico Professor P.
Coelho Arrendamento, Lições, 1980 Página 41 (referido ao então artigo 1182 do Código Civil).
Actividade industrial com destino à produção de riqueza
- Professor Pires de Lima e Antunes Varela, Anotado vol
II, 2. edição, página 634, como Pais de Sousa
"Anotações ao RAU, página 59 e Dr. Januário Gomes.
Arrendamentos Comerciais, 2. edição, Página 26.
Houve, desta forma, o abandono do critério fiscal para surpreender aquelas actividades, inserto no Acórdão
único artigo 52 do Decreto 5411, onde se reputava como industrial todo o indivíduo que, como tal, estivesse sujeito à respectiva contribuição e que não fosse comerciante.
Pretendeu-se separar o "inconveniente grave de se subordinar a lei civil aos princípios tantas vezes sem lógica, ou sem técnica, das leis fiscais" - Rev. Leg.
Jurp. ano 95, Página 41.
E a Relação - folha 125 verso e 126 - preenche o conceito de produção de riqueza com dois factos, o trespasse foi efectuado pelo preço de 3000000 escudos e a recusa expressa por parte do Centro Regional de
Segurança Social do Porto em reconhecer a actividade da
"Escola", como actividade "sem fins lucrativos".
7 - Perante estas sumárias considerações jurídicas e os factos provados, a tese do recorrente só poderá encontrar êxito se considerarmos taxativa a enumeração das empresas comerciais inserta no artigo 230
C.Comercial por efectivamente a actividade da "Escola" não constar daquela enumeração.
8 - Ao contrário do Código Comercial francês - artigo
632 - italiano de 1865, artigo 2; de 1882, artigo 3 e da Lei belga de 15 de Dezembro de 1872, artigo 2 o nosso Código Comercial artigo 230 não qualifica a empresa comercial como acto de comércio.
O nosso legislador na enumeração de empresas inserta no artigo 230 acompanhou o Código Italiano, que lhe serviu de fonte.
Mas o n. 3, deste Código, não distinguia o acto de comércio da empresa comercial "são actos de comércio as empresas de..."
Diferentemente o nosso legislador separa, tratando de acto de comércio no artigo 2 e de empresa no artigo 230.
Começa aqui por estatuir "Haver-se-ão por comerciais as empresas que se propuserem...".
Frisa-se o sentido subjectivista da empesa.
Daí que se atente o fundamento da indicação das sete empresas recebida nos sete números do artigo 230 como comerciais, no facto de todas elas manifestarem pela sua constituição o "propósito firme" de exercerem a sua actividade como empresários.
Liga-se a comercialidade do empresário, como comerciante, à comercialidade da empresa.
O legislador foi buscar aquelas "sete" empresas à experiência da vida, todas portadoras de diferentes situações.
E verificou-as.
Fê-lo em torno da mesma estrutura relacional criando: tipo de empresa comercial.
Mas, dir-se-á que para além daquelas sete situações, pensadas e analisadas, outras poderão e deverão ser integradas, logo que a razão de ser do artigo 230, plena e eficazmente respeitada, o imponha.
"Desde que se constitua uma empresa com fins comerciais, que pela sua instalação manifeste o firme propósito de comerciar, por que motivo se não deve aplicar-lhe o artigo 230, se a Lei a isso se não opõe?"
- Professor José Tavares, Empresas Página 737.
E responde afirmativamente através de analogia.
Paralelamente Professor Oliveira Ascensão - D. Com. I,
1988, páginas 129 e seguintes.
9 - É sabido que a norma decompõe-se sem previsão ou tipo (factispecie, tattestand ou faits juridiques, na linguagem respectivamente, italiana, alemã ou francesa) que consiste na descrição feita em termos gerais e abstractos das situações de facto a regular pela norma e em instituição, que contém a disciplina, o efeito jurídico aplicável às situações descritas.
Assim sempre que haja uma incompletude insatisfatória no seio do todo jurídico, estaremos perante uma lacuna.
Para Engisih as lacunas são deficiências do direito positivo, apreensíveis como faltas ou falhas de conteúdo de regulamentação jurídica para determinadas situações de facto em que é de esperar essa regulamentação e em que tais falhas postulam e admitem a sua remoção através de uma decisão judicial jurídico-integradora.
10 - Só que não é pacífica a compreensão subjectiva da empresa atrás formulada pelo Professor José Tavares, nem muito menos é pacífico o recurso à analogia.
Há pois, que delimitar o campo de aplicação dos artigos
2 - 1. parte; 13 e 230 do C.Com.
Há que interpretar o artigo 230.
A finalidade da interpretação é determinar o sentido objectivo da Lei.
Entender uma Lei é indagar com profundeza o pensamento legislativo descer da superfície verbal ao conceito intimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direcções possíveis.
A nossa doutrina consagra a teoria dos actos de comércio, seguindo a francesa e a italiana.
Mesmo a não subjectivista de empresa do Professor José
Tavares engloba em si uma vertente objectivista traduzida no efectivo exercício da actividade profissionalizada.
E daí a subordinação do artigo 230 ao artigo 2, I parte. Guilherme Moreira sustentou uma tese objectivista - empresa como acto de comércio objectivo.
Teses conciliadoras houve: Cunha Gonçalves, Comentário
Páginas 585 e seguintes e Fernando Olavo, direito comercial I, páginas 158 e seguintes - presença cumulativa do empresário profissional e da sua actividade.
Por outro lado é maioritária a corrente que recusa a analogia para alargamento do campo dos actos de comércio objectivo: Guilherme Moreira, embora a defenda de iure constituendo, Pires Coelho, Mário Figueiredo, Fernando Olavo.
Defendem-na Barbosa Magalhães e Cunha Gonçalves.
A doutrina francesa admite-a, mormente, quanto às empresas não enumeradas do Cod. Com.; Legon Caen -
Renault, Traite, I, 4 edição, páginas 103 e seguintes;
Riport, TraitÒ 1988, ns. 135 e 146.
Semelhantemente em Itália - por todos a obra básica de
Montesson, il concetto di empresa, página 441.
11 - O artigo 2 C.Com., à semelhança do C. Com. espanhol de 1829, seguiu um sistema de enumeração implícita.
A sua 1. parte é taxativa e não exemplificativa como querem C. Gonçalves e B. Magalhães, que seguem a escola histórico-evolutiva.
Aí se procede à qualificação, quer positiva, quer negativa, de actos de comércio ocasionais e objectivos.
Pelo artigo 13 é comerciante quem exerce profissionalmente o comércio.
No ensinamento de Rocco só a prática habitual, regular, sistemática, de operações mercantis, decide da atribuição da qualidade de comerciante.
Ou seja, comerciante é quem exerce numa empresa comercial: é um empresário - Professor F. Correia, Lições vol. I, 1956, página 97.
O artigo 230 trata da qualificação das empresas como comerciais.
E exclui daquela qualificação, no seu parágrafo 1, as empresas agrícolas, seus acessórios e pequenas empresas.
Naquela admissão e nesta exclusão está o suporte do critério qualificador de uma empresa como comercial.
O denominador comum de admissibilidade passa pela actividade contratual de cada uma frente ao mercado, actividade sistemática e uniforme.
Surpreendido este critério globalizante, apurada fica a comercialidade de uma empresa.
O Dr. Paulo Dindim em Estudos de Homenagem ao Professor
F. Correia, Boletim Faculdade Direito de Coimbra 1989, páginas 909 a 1064, sobre o artigo 230 do Código
Comercial ensina que a analogia pode e deve ser excluída na qualificação positiva do artigo 2 - 1. parte.
E a página 957 quanto à admissão na qualificação das empresas comerciais do artigo 230, escreve "são empresas comerciais todas as que correspondam a tais características jurídicas de comercialidade, independentemente de estarem ou não enumeradas ou serem análogas a alguma das que indica".
O artigo 230 reputa de empresa comercial a actividade jurídica profissionalizada de um empresário comerciante, concretizado em negócios comerciais.
Delimitado, assim, o seu campo de aplicação fácil é concluir pela sua autonomia frente aos artigos 2 e 13.
12 - Interpretado, desta forma, o artigo 230 C.Com., impõe-se concluir que nele cabe o reconhecimento como empresa industrial do estabelecimento de ensino em causa, frente à matéria fáctica provada: trata-se de um estabelecimento de ensino particular de interesse público visando a reeducação de crianças atrasadas mentais, com finalidade de obtenção de lucro.
13 - Termos em que se nega a revista.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 16 de Abril de 1996,
Torres Paulo,
Ramiro Vidigal,
Cardona Ferreira.