Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B2162
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
HABITAÇÃO
POSSE
CONVIVÊNCIA MARITAL
Nº do Documento: SJ200510060021622
Data do Acordão: 10/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6739/04
Data: 11/30/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - Numa união de facto, sendo a habitação do casal propriedade de um dos membros dessa união, a participação do outro nos actos de gestão doméstica, nomeadamente nos seus normais encargos, não significa que age como possuidor.
II - Beneficia da posse da sua companheira, em termos de fruição da coisa, sem que esta fruição lhe advenha de qualquer poder exercido por si e em seu nome.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I

"A" moveu a presente acção ordinária contra B, pedindo que o réu fosse condenado a reconhecer a sua propriedade de determinada fracção, restituindo-a ao autor livre de pessoas e bens, bem como a pagar-llhe a quantia de 2.160.000$00.
O réu contestou e reconveio pedindo que fosse reconhecida a sua propriedade sobre a dita fracção, ou, quando assim se não entenda, condenar-se o autor a pagar-lhe o montante de metade do valor actual daquela, devendo ser concedidos ao alimentos ao réu nos termos referidos.
Houve réplica do autor e resposta do réu.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi o réu condenado a reconhecer a propriedade do autor entregando-lhe o respectivo bem, sendo o autor condenado a pagar ao réu o que se vier a apurar em execução de sentença, quanto ao valor com que este contribuiu para a aquisição da fracção autónoma em causa.
Apelaram ambas as partes, vindo o Tribunal da Relação a alterar a decisão de 1ª instância, com a condenação do réu a indemnizar o autor, em quantia a liquidar em execução de sentença, pelo o uso indevido do imóvel.
Recorre agora, apenas o réu, o qual nas suas alegações de recurso, em síntese, defende que tem uma posse do andar em questão, desde 1975, altura em que o foi habitar juntamente com a mãe do autor, praticando a partir de então todos os actos inerentes a um verdadeiro possuidor. Nomeadamente, no que se refere à sua conservação e às respectivas relações de condomínio
Essa posse sempre foi exercida em nome próprio e não em representação da mãe do autor.
Deve, assim, ser reconhecida a sua aquisição originária do andar.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Nos termos do artº 713º nº 6 do C. P. Civil, consignam-se os factos dados por assentes pelas instâncias remetendo para o que consta de fls.418 a 420.
III
Apreciando

A pretensão do recorrente radica na alegação basilar de que é possuidor do andar em causa há largos anos. Facto que lhe permitiria invocar a usucapião.

Compete ver, portanto, antes do mais, se efectivamente, detinha ele a posse que alega.
O artº 1251º do C. Civil define a posse como a actuação correspondente ao exercício de um direito real.
Exercer um direito real de gozo, como a propriedade, consiste, por isso, em dispor da coisa que é seu objecto e frui-la, de acordo com uma normalidade sócio-económica, ou seja, tal como qualquer outro proprietário o faria.
É a isto que se chama o corpus possessório a que tem de se juntar a intenção de agir como titular do direito o animus de possuir. Este, contudo presume-se do primeiro.
A posse é, deste modo e em primeiro lugar, um poder de facto de que decorrem consequências jurídicas.
Assim, cumpre analisar, no que à questão interessa, a situação factual apurada pelas instâncias:
1 - o recorrente, em 1975, foi habitar o andar com a mãe do autor com quem ali viveu em união de facto, até 1996, ano do seu falecimento;
2 - em 1982, o Fundo de Fomento da Habitação, por contrato escrito, atribuiu o andar em propriedade resolúvel à mãe do autor;
3 - o recorrente foi sempre visto e tratado pelos restantes condóminos, vizinhos e amigos, mesmo os da sua companheira, como dono e legítimo possuidor da fracção;
4 - a mãe do autor e o recorrente suportaram, na medida das suas forças, todas as despesas domésticas e todos os encargos com a aquisição da habitação que ao longo de todos estes anos partilharam;
5 - o recorrente procedeu, sempre que necessário, às obras de reparação e conservação da fracção, pagando os inerentes custos.

Retira-se destes factos a conclusão de que o recorrente nunca actuou como verdadeiro possuidor do andar, mas antes a de que agiu, numa situação semelhante à conjugal, como agiria qualquer cônjuge, participando naturalmente na gestão doméstica, que inclui os normais encargos com a habitação. A considerar-se doutro modo, a grande maioria dos cônjuges sobrevivos no regime de separação de bens, poderia vir alegar a usucapião dos bens do cônjuge falecido.
Para além disso, não se prova uma única actuação do recorrente que possa ser classificada como de possuidor. Uma actuação não de companheiro da possuidora, mas de possuidor em nome próprio. Por outras palavras, o recorrente beneficiou da posse da mãe do autor, em termos de fruição da coisa, mas sem que tal fruição lhe adviesse de qualquer poder exercido por si e em seu nome.

Por isso, bem andou a sentença de 1ª instância quando consignou que "...tal actuação (do réu) é perfeitamente conforme com a actuação que teria não sendo dono, mas vivendo maritalmente com a dona e sendo a fracção a casa de morada de ambos.(sublinhado nosso)", acrescentando que o réu não conseguiu provar outros factos que permitissem distinguir a actuação daquele enquanto companheiro da dona da casa ou enquanto dono da casa.

É certo que o recorrente sentiu a necessidade de por alguma forma conectar a sua posição com a aquisição da propriedade pela mãe do autor. E veio alegar que só não figurou no contrato de aquisição do andar, por na altura a lei não reconhecer a união de facto. Nesta hipótese a situação seria diferente. Estaria demonstrada a vontade do recorrente de ser dono e, logo, as suas posteriores actuações poderiam ser atribuídas a uma eventual composse com aquela que veio a ser a única proprietária - cf. artº 1252º nº 2 do C. Civil sobre a presunção da posse, em caso de dúvida, naquele que exerce o poder de facto.

Esta matéria foi levada à base instutória - ponto 3º - e não logrou resposta afirmativa, sendo certo que competia ao réu a prova do facto.
Não conseguiu, pois, o recorrente provar o corpus possessório que seria necessário para demonstrar a posse que fundamenta o direito a que se arroga.
Ficam, por isso, prejudicadas as restantes considerações feitas nas conclusões do recurso em causa e respeitantes à natureza e regime jurídico dessa posse, por ser ela inexistente.
Deste modo, não merece censura a decisão em apreço, no que à matéria do recurso
respeita, improcedendo a pretensão do recorrente.

Pelo exposto, acordam em negar a revista e confirmam o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 6 de Outubro de 2005
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida,
Noronha do Nascimento.