Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00031577 | ||
Relator: | LOPES ROCHA | ||
Descritores: | HOMICÍDIO QUALIFICADO ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA | ||
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Nº do Documento: | SJ199703120012883 | ||
Data do Acordão: | 03/12/1997 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | BMJ N465 ANO1997 PAG325 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIAL. | ||
Área Temática: | DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS / TEORIA GERAL. DIR PROC PENAL - RECURSOS. | ||
Legislação Nacional: | CP82 ARTIGO 40 ARTIGO 71 ARTIGO 72 ARTIGO 131 ARTIGO 132 N1 N2 A C G ARTIGO 136. CPP87 ARTIGO 410 N2. | ||
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Sumário : | A autora de um crime de homicídio voluntário qualificado previsto e punido pelas disposições combinadas dos artigos 131 e 132 ns. 1 e 2, alíneas a), c) e g), do Código Penal de 1982, que matou o seu próprio filho, à nascença deste, desferindo contra ele vários golpes de faca, um dos quais o atingiu na região cardíaca e foi a causa da sua morte, não pode aspirar a ver a sua pena atenuada especialmente se não concorrer qualquer circunstância atenuante que lhe diminua por forma acentuada a culpa e a necessidade da pena. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1- No Tribunal de Círculo do Funchal respondeu A, casada, doméstica, natural da freguesia e concelho de Porto Santo e residente nesta ilha, sob acusação pública de ter praticado um crime de homicídio qualificado previsto e punido nos artigos 131 e 132, ns. 1 e 2, alíneas a), c) e g) do Código Penal, pelo qual, por procedência da mesma acusação veio a ser condenada na pena de 14 anos de prisão (acórdão de 4 de Outubro de 1996, folhas 166-167 dos autos). Inconformada, interpôs recurso para este Supremo Tribunal, em cuja motivação concluiu que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 71, 72 e 73 do Código Penal na medida em que não atendeu ao elevado valor das circunstâncias atenuantes que diminuiram consideravelmente a culpa, que devia beneficiar da atenuação especial da pena e que deve ser condenada em pena inferior a 6 anos de prisão. Admitido o recurso, houve resposta do Ministério Público, na qual concluiu como segue: 1.1. Atenta a factualidade dada como provada, foi correcto o enquadramento jurídico no crime de homicídio qualificado previsto e punido pelo artigo 132 ns. 1 e 2, alíneas a) e c) do Código Penal, pois a morte do recém-nascido foi produzida em circunstâncias que revelam especial censurabilidade e perversidade da arguida. 1.2. A arguida, ao retirar a vida do seu filho, com uma conduta especialmente violenta, além de violar o bem jurídico supremo, pedra angular dos direitos inerentes à pessoa humana, fé-lo em relação a um ser a quem tinha o especial dever de proteger e preservar. 1.3. O motivo apurado que levou à conduta criminosa não é relevante, não podendo explicar e muito menos justificar essas condutas, assumindo um carácter fútil. 1.4. Os fundamentos que levam à qualificação do crime afastam a consideração da atenuação especial da pena. 1.5. Na verdade, não basta a verificação objectiva de algumas circunstâncias favoráveis ao agente do crime, é preciso que elas diminuam acentuadamente a ilicitude do facto, a culpa do agente e a necessidade da pena, podendo-se, pois, concluir que a atenuação especial da pena tem aplicação excepcional. 1.6. Essa diminuição acentuada não se verifica no caso concreto, atento o bem jurídico violado, o modo de execução do crime, a especial relação entre o agente e a vítima e a motivação do primeiro. 1.7. Por outro lado, as exigências de prevenção são grandes, não havendo razões atendíveis que diminuam acentuadamente a necessidade da pena. 1.8. Não sendo suficientes para levarem a uma atenuação especial da pena, as circunstâncias favoráveis invocadas pela arguida apenas podem ser valoradas na determinação da sua medida concreta. 1.9. Atenta a moldura penal abstracta do crime - prisão de 12 a 25 anos - a culpa da arguida e as necessidades de prevenção, entendemos que a pena de 14 anos de prisão levou em conta, de forma preponderante, as circunstâncias que militam a seu favor. 1.10. Em conformidade, a decisão recorrida, porque parece equilibrada, deverá ser integralmente mantida, negando-se provimento ao recurso. 2- Subidos os autos a este Supremo Tribunal efectuou-se o exame preliminar, não tendo sido suscitada qualquer questão obstativa do conhecimento do recurso que nele também se não vislumbram. Requerida a produção de alegações por escrito, foi fixado prazo para o efeito. Nas alegações do Ministério Público concluiu-se pela improcedência das conclusões da motivação da recorrente, devendo manter-se o julgado, por não violação das disposições legais referidas naquela motivação. Nas da recorrente, muito sucintas, alude-se ao "desespero" da arguida e não se conclui de forma diferente da da motivação do recurso. Correram os vistos legais e procedeu-se ao julgamento nos termos e para os efeitos do artigo 435, n. 3, do Código de Processo Penal, passando a decidir-se. A única questão litigiosa a apreciar e a decidir é, como resulta do atrás exposto, a da eventual violação dos artigos 71 a 73 do Código Penal, concretamente a não adequada valoração do circunstancialismo atenuante na perspectiva de atenuação especial da pena e o quantum desta. 3- Matéria de facto apurada na decisão: 3.1. A arguida A, em princípios de 1995, em Porto Santo, conheceu um indivíduo, que dizia chamar-se B, com quem acabou por ter um relacionamento sentimental e sexual. 3.2. Em consequência deste relacionamento a arguida, contra a sua vontade, ficou grávida. 3.3. Conhecida a sua gravidez, a arguida comunicou ao aludido B o seu propósito de abortar, solicitando-lhe, para o efeito, dinheiro. 3.4. Como o referido B lhe tivesse manifestado não só a sua oposição ao aborto, como também o propósito de com ela vir a viver, a gestação do feto prosseguiu. 3.5. Em Dezembro de 1995, o B deslocou-se ao continente, não mais tendo regressado ou dado notícias. 3.6. Entretanto, a arguida procurou ocultar a gravidez, o que conseguiu. 3.7. Durante esta, não recorreu aos serviços do Centro de Saúde do Porto Santo. 3.8. Na noite de 13 para 14 de Março passado, a arguida começou a sentir dores de parto. 3.9. Apesar disso, não solicitou a ajuda de quem quer que fosse, nem se dirigiu ao Centro de Saúde. 3.10. Por volta das cinco horas da madrugada do referido dia 14, na casa de banho da sua habitação, a arguida deu à luz, com vida, uma criança do sexo masculino. 3.11. Com o recém-nascido nos braços, dirigiu-se à cozinha, onde se apossou de uma faca ponteaguda, com um cabo de 12 centímetros e uma lâmina de 14,5 centímetros, medindo a parte mais larga 3 centímetros. 3.12. De novo na casa de banho, a arguida após cortar o cordão umbilical, ofendeu, voluntária e corporalmente, com a descrita faca, o recém-nascido, seu filho. 3.13. Em consequência, este sofreu uma ferida incisiva transversal com 1,5 centímetros no terço superior do nariz, outra ferida incisa transversal, com 1,5 centímetros entre o nariz e o lábio superior, escoriação linear com 4 centímetros na face esquerda, três feridas perfurantes com aproximadamente, 1 centímetro, na face anterior do pescoço, duas feridas perfurantes com 1,5 centímetros oblíquas, na região epigástrica e ferida incisiva, com 0,2/0,3 centímetros, na parte superior da parede posterior da aurícula direita. 3.14. A lesão cardiaca foi causa necessária e directa da morte do recém-nascido. 3.15. Depois, a arguida introduziu-o num saco de plástico, de cor preta, que colocou no seu próprio quarto, atrás de uma cadeira. 3.16. A arguida actuou com o propósito de matar o recém-nascido, seu filho, o que aconteceu. 3.17. Procedeu do modo descrito pelo facto de, contrariamente às suas expectativas, o citado B não ter dado notícias até ao momento do parto. 3.18. Agiu livre e conscientemente. 3.19. Não obstante sabia que a sua conduta era punida por lei. 3.20. Confessou os factos dados como provados, com excepção do número de golpes dados. 3.21. Embora casada, encontra-se separada do marido há cerca de dez anos; casou, confrontada com uma situação de gravidez; tem dois filhos, com catorze e onze anos; abandonou a escola, sem completar a escolaridade mínima que, posteriormente, finalizou, em ensino nocturno, para adultos; a sua experiência profissional limitou-se a trabalhar seis meses, como empregada de limpeza, num parque de campismo; habita com os filhos e pais, em casa a estes pertencente; no mesmo prédio, mas com vida familiar autónoma, reside um irmão, com a respectiva mulher e dois filhos; antes da sua detenção efectuava trabalhos domésticos e, de quando em vez, de bordadeira; as suas necessidades e dos filhos eram asseguradas pelo pai; é pessoa impulsiva. 4- O acórdão revela não se ter provado que a arguida haja planeado detalhadamente a morte do filho ao longo da gestação. E já após a abordagem da questão de direito e na perspectiva da determinação da medida da pena, acrescenta-se: 4.1. A arguida não tem antecedentes criminais. 4.2. Confessou, no essencial, os factos. 4.3. É de modesta condição social e económica. 4.4. A arguida já fracassou na escola, no emprego e na área sentimental (aqui, por duas vezes) e, provavelmente nunca colheu os benefícios da solidariedade. 4.5. Agiu com a achega da perturbação provocada não pelo parto mas por mais um inequívoco abandono. 5- A factualidade descrita não é contestada no recurso, designadamente pela invocação de qualquer um dos vícios a que se refere o artigo 410, n. 2, do Código de Processo Penal nem eles se representam à análise oficiosa deste Supremo Tribunal. Tem-se por fixada definitivamente. O processo não enferma de nulidades de conhecimento oficioso. Como se expôs acima, a questão a resolver é a da pretendida atenuação especial da pena, pela concorrência de um elenco de circunstâncias fortemente atenuativa e, reflexamente, a medida desta: Não tem razão a recorrente, como se demonstra na motivação e nas alegações do Ministério Público. Quanto a algumas dessas circunstâncias (arrependimento, intenção de ocultar a gravidez visto a arguida ser casada e viver num meio conservador onde ainda prepondera o conceito subjectivo da honra), nenhum traço se encontra na matéria factológica. Também não há factos que permitam concluir ter a arguida cometido o crime sob a influência perturbadora do parto, que atiraria a sua conduta para o tipo privilegiado do artigo 136 do Código Penal. Quanto a este ponto o acórdão é peremptório: "a arguida agiu com a achega da perturbação não pelo parto mas por mais um inequívoco abandono. Bem enquadrada foi, por conseguinte, a sua conduta no tipo qualificado do artigo 132, ns. 1 e 2, alíneas a) e b) do mesmo Código. A pretendida atenuação especial da pena exigiria a existência de circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime ou dele contemporâneas que diminuíssem por forma acentuada a culpa da arguida e a necessidade da pena (artigo 71, n. 1 do referido Código). Mas também aqui a factualidade apurada é manifestamente insuficiente para fundar a pretensão. O preceito em causa, no seu n. 2, enuncia alguns "exemplos-padrão" ilustrativos da cláusula geral de atenuação do n. 1. Nenhum deles encontra eco significativo nos factos. A arguida não actuou sob qualquer influência de ameaça grave ao seu ascendente de pessoa de quem dependesse ou a quem devesse obediência nem a sua conduta foi determinada por motivo honroso. Já se disse que não se provou o arrependimento sincero e não decorreu muito tempo sobre a prática do facto mantendo a arguida boa conduta. É dizer que nem tais exemplos se patenteiam na ordem fáctica nem se vislumbram outras circunstâncias idóneas a um juízo de acentuada diminuição da ilicitude, da culpa e da necessidade da pena, para que possa funcionar a cláusula do citado artigo 72. No quadro da qualificação, que temos por correcta, perfilhada no acórdão impugnado, importa ver se a medida da pena concretamente aplicada é susceptível de discussão. Para o efeito, temos de ponderar os critérios do artigo 71. O grau de ilicitude do facto é notoriamente elevado, como judiciosamente se demonstra nas posições do Ministério Público. E o modo de execução é particularmente censurável. Idem quanto à violação dos deveres impostos à arguida, na sua qualidade de mãe. Intenso é também o dolo (directo). Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos determinantes mereceu particular atenção, a que adiante não referirem. As condições pessoais da arguida suscitam igualmente alguma compreensão: separada do marido há vários anos, é de considerar a particular situação de abandono referida no acórdão recorrido, com as inerentes consequências nos planos psicológico e social. A situação económica é claramente medíocre, como se infere da matéria de facto apurada. A conduta anterior ao facto cifra-se na ausência de antecedentes criminais, situação que, só por si, não revela um comportamento acima do normal das pessoas que vivem em sociedade com o exigível respeito pelo direito. E relativamente à conduta posterior nada de relevante se apurou, em sede atenuativa. O aspecto que se nos antolha decisivamente mais relevante é da personalidade da arguida. Não há razões para se pensar que o facto tenha relação directa com uma eventual propensão para o crime", "não obstante ter-se provado que a arguida é "pessoa impulsiva". O mesmo é dizer que não é fundada convicção de que o crime se deveu a uma falta de preparação para manter conduta lícita, manifestada no facto, que mereça ser censurada através da aplicação da pena. Tudo indica que estamos perante uma delinquente ocasional, que terá sucumbido à pressão de circunstâncias exógenas a que não soube resistir, entre as quais releva a situação de abandono a que foi votada, quer pelo marido quer pelo presumível pai da criança que contrariamente às suas expectativas, se ausentou sem ter dado notícias até ao momento do parto. É importante considerar que se deu como provado que a arguida nunca colheu os benefícios da solidariedade, pormenor de relevo numa sociedade como a nossa em que a mulher é ainda vítima de exclusões e a parte mais débil no relacionamento conjugal ou em situações equiparadas. É a esta luz, por conseguinte, que temos de avaliar os "sentimentos" manifestados no cometimento do crime e os "fins ou motivos" que o determinaram. Para além disto, a arguida confessou os factos e tal confissão foi tida como relevante, dado que o tribunal, no estabelecimento daqueles, disse que formou a sua convicção também no "depoimento da arguida", pormenor que merece particular atenção. E não se tendo provado, contra o que constava da acusação, que a arguida tivesse planeado detalhadamente a morte do filho ao longo da gestação, pode inferir-se que a decisão de praticar o crime não foi uma decisão amadurecida e tem alguma relação com a vivência concreta do momento do parto, embora não constitutiva da situação a que se refere o citado artigo 136. A arguida já tinha dois filhos e essa circunstância não pode deixar de ser valorada tendo em conta a sua precária situação económico-familiar. Todo este conjunto circunstancial aconselha alguma benevolência na determinação da medida concreta da pena, sem que tenhamos de recorrer a um critério aritmético baseado na preponderância das agravantes sobre as atenuantes. De acordo com o disposto no artigo 40 do Código Penal, a aplicação da pena criminal visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Estas finalidades são complementares, daí a necessidade de encontrar um justo equilíbrio em ordem a que uma não comprometa excessivamente a outra. Certo que o bem jurídico violado é muito valioso, é mesmo o mais valioso dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal. Mas a finalidade da reintegração na sociedade tem o seu peso e não deve ser comprometida pela aplicação de uma pena desproporcionada à culpa e às exigências de prevenção. Quanto a estas e na situação concreta em análise, atentos os dados disponíveis em tema da personalidade, afigura-se-nos que incidem mais na chamada prevenção geral de reintegração, conquanto o crime praticado não seja daqueles mais frequentes no panorama criminológico português, nos termos estatísticos. Relativamente à prevenção especial, não temos razões para pensar que haja necessidade de uma pena marcada pela severidade, para além do critério geral da política criminal que comandou um agravamento substancial relativamente à punição estabelecida no Código de 1982. O mesmo é dizer que não se divisam fundados receios de que a arguida venha a cometer novos crimes da mesma natureza, na base de um prognóstico de comportamento futuro desfavorável. Assim, ponderando as circunstâncias peculiares do facto e a personalidade da arguida, estamos convencidos de que a fixação de uma pena em medida coincidente com o mínimo da moldura penal aplicável, satisfará adequadamente as finalidades do artigo 40 do Código Penal. 6- Termos em que, dizendo não terem sido violadas as disposições legais invocadas na motivação da recorrente, decide-se conceder parcial provimento ao recurso, condenando-a na pena de doze anos de prisão, no mais mantendo a douta decisão recorrida. Pagará a arguida 4 UCS de taxa de justiça e as custas que couberem, fixando-se a procuradoria no mínimo. Fixam-se em 20000 escudos os honorários da defensora oficiosa. Lisboa, 12 de Março de 1997 Lopes Rocha, Augusto Alves, Leonardo Dias, Virgílio Oliveira. Decisão Impugnada: Acórdão de 4 de Outubro de 1996 do Círculo do Funchal. |