Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05S575
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: ABANDONO DE TRABALHO
CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
Nº do Documento: SJ200505190005754
Data do Acordão: 05/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1438/04
Data: 10/13/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. O abandono do trabalho só pode ser invocado pela entidade empregadora como cessação do contrato de trabalho, depois dela ter comunicado ao trabalhador, através de carta registada com aviso de recepção, dirigida para a última morada conhecida do trabalhador, que considera cessado o contrato por abandono do serviço.
2. Não vale como tal a carta em que a entidade empregadora se limita a informar o trabalhador de que o mesmo se encontra desvinculado do compromisso contratual, sem fazer qualquer referência ao abandono e à ausência ao trabalho.
3. Se a ausência ao trabalho for inferior a quinze dias úteis seguidos, a entidade empregadora não pode invocar a cessação do contrato com base no abandono presumido.
Decisão Texto Integral: Acordam na secção social do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Na presente acção emergente de contrato individual de trabalho proposta por A contra o Partido Socialista, o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar-lhe a indemnização devida por ter sido ilicitamente despedido, através de carta por ele recebida em 25 de Junho de 2001.

O réu contestou, alegando que a relação laboral tinha cessado por abandono do trabalho e pediu que o autor fosse condenado a pagar-lhe a quantia de 1.700,90 euros, a título de indemnização, nos termos do art. 39.º da LCCT.

Na 1.ª instância, a acção foi julgada procedente e a reconvenção improcedente, tendo o réu sido condenado a pagar ao autor a importância de 19.702,52 euros, a título de indemnização por despedimento ilícito.

O réu recorreu da sentença que veio a ser revogada pela Relação, com a sua consequente absolvição do pedido.

O autor interpôs recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:
«- O A, à data de 6 de Junho de 2001 encontrava-se em licença sem retribuição concedida pelo Partido Socialista.
- Errou o douto Acórdão recorrido ao interpretar o despacho de deferimento da licença pedida como reduzida a 3 meses,
- Uma vez que os 3 meses, que constam do despacho, não podem ser interpretados literalmente sem ter em conta o resto do escrito e o conteúdo do pedido pelo A .
- O despacho refere, de facto, duas condições para o pleno gozo da licença sem retribuição por um ano, a saber:
a) No inicio, 3 meses até que o Autor entregasse o trabalho que lhe era pedido.
b) Entregue o trabalho ao fim dos 3 meses, o restante gozo da licença até 5 de Março de 2002.
- Satisfeita esta última condição, estava o A. em licença sem retribuição pelo período de um ano.
Por outro lado,
- o autor nunca abandonou o trabalho e, em 6 de Junho de 2001, não entrou em faltas injustificadas, que o Partido socialista jamais o considerou.
- Limitou-se o Partido Socialista a enviar uma carta ao Autor, em 18 de Junho de 2001, comunicando-lhe que o vínculo contratual tinha cessado em 6 de Junho de 2001, por abandono do trabalho.
- O Partido Socialista nem sequer deixou decorrer o prazo dos 15 dias úteis a que alude o n° 2 do artigo 40 da LCCT.
- Tendo-lhe enviado a carta ao 8 dia útil da presumida "ausência" do Autor.
- Andou mal o Acórdão recorrido quando subverteu os factos de forma errada a sua interpretação e a aplicação do artigo 40 da LCCT.
- Sem prescindir, não podia o Tribunal declarar como cumprido um requisito legal, dos 25 dias úteis de faltas injustificadas, quando tal não ocorreu.
- Precipitou-se erradamente o Acórdão recorrido, ao considerar que o Partido Socialista tinha cessado o contrato de trabalho com o Autor, cumprido os requisitos objectivos da lei, nomeadamente avançando com a ideia precipitada de que quando aquele Partido pôs termo ao vínculo contratual, com efeitos a partir de 6 de Junho de 2001, o tinha feito respeitando o pressuposto dos 15 dias de ausência do autor.
Nos termos, e nos mais doutamente supridos por V. Exa., deverá ser julgado procedente o presente recurso de revista e, em consequência, revogado o douto Acórdão recorrido, com a consequente condenação do Partido Socialista conforme a douta sentença do tribunal da 1.ª Instância.»

O réu não contra-alegou e a Ex.ma Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer a favor da concessão da revista.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Vêm dados como provados os seguintes factos:
1. O A. entrou ao serviço do R. em 02 de Janeiro de 1979, para lhe prestar a sua actividade sob a sua autoridade e direcção, mediante retribuição.
2. Ultimamente, o A. tinha a categoria profissional de técnico-profissional, nível 4, exercendo as funções de responsável do Gabinete de Vídeo do Partido Socialista, auferindo o vencimento base mensal de 158.000$00 (788,10 Euros), acrescido de 12.500$00 (62,35 Euros) a título de diuturnidades.
3. No início do ano de 2001, o A. contactou o Director Geral do R., Dr. B, assim como o Secretário Nacional para a Organização do R., António Galamba, no sentido de lhe ser concedido um período de licença sem vencimento (retribuição) durante um ano, a começar em Março desse ano, e eventualmente renovável até ao limite de três anos.
4. Na sequência do seu pedido e atendendo às responsabilidades funcionais do A., o R. pôs-lhe como condição, para aceder à pedida licença sem retribuição, que o A. apresentasse uma listagem do material existente no Gabinete de Vídeo à sua responsabilidade.
5. A elaboração e entrega dessa listagem já anteriormente havia sido determinada, em Dezembro de 2000, através da Nota de Serviço n.º 3/2000, constante a fls. 102 dos autos (doc. n.º 1 junto com a contestação).
6. No dia 5 de Março de 2001, o A. entregou ao Director Geral do R., Dr. B, o relatório constante a fls. 13 a 15 dos autos (doc. n.º 1), com cópias ao Secretário Nacional para a Organização, C, e ao Coordenador da Comissão Permanente, Dr. D.
7. No início desse relatório, o A. escreveu o seguinte: "No seguimento dos contactos realizados sobre a minha Licença sem Vencimento, venho por este meio deixar em sua posse o relatório do material que existe no Gabinete de Vídeo (...)".
8. Nessa mesma data, 5 de Março de 2001, o A. elaborou, como combinado, o pedido de "Licença sem Vencimento" dirigido ao Director Geral, Dr. B, o qual consta a fls. 17 dos autos (doc. n.º 3 junto com a contestação) e no qual o A. solicita licença sem vencimento pelo período de um ano, com início em 6 de Março de 2001 e termo em 5 de Março de 2002, invocando como fundamento a necessidade de durante esse período ter que se ausentar para os Açores.
9. O Director Geral do R. despachou sobre o aludido pedido, em 5.3.2001, nestes termos: "Tendo em conta as últimas directivas, será concedida a licença sem vencimento pelo período de 3 meses, até que seja entregue o trabalho solicitado pela NS n. 0312000".
10. O A. convenceu-se de que a decisão do R. tinha sido a de lhe exigir, como condição da atribuição da licença sem vencimento por um ano, a apresentação de listagens mais pormenorizadas, no prazo de três meses, ficando entretanto o A. de licença sem vencimento por três meses.
11. O A. entrou de licença sem vencimento no dia 6 de Março de 2001, tendo-lhe sido processado o vencimento relativamente aos cinco primeiros dias desse mês de Março.
12. Em 5 de Junho de 2001, o A. entregou ao Dr. B os inventários constantes a fls. 19 a 35 dos autos (documentos 5 a 7 juntos com a petição inicial), acompanhados da comunicação constante a fls. 103 a 105 dos autos (doc. n.º 2 junto com a contestação) e enviou cópias dos mesmos a C.
13. Nessa ocasião, nada mais foi dito ao A., o qual se convenceu de que, tendo preenchido a aludida condição, continuaria na situação de licença sem retribuição até 5 de Março de 2002.
14. Em 25 de Junho de 2001, o A. recebeu do R. a carta registada com aviso de recepção constante a fls. 36 dos autos (doc. n.º 8 junto com a petição inicial), datada de 18.6.2001, a qual tem o seguinte teor:

"Assunto: Licença sem vencimento:
Caro Camarada
Tendo em consideração a data de 5 de Junho de 2001 como limite da licença sem vencimento que lhe foi concedida por 3 (Três) meses, e tendo ainda em consideração a sua vontade de não regressar ao Partido, como trabalhador, informa-se que se encontra desvinculado do compromisso contratual existente com o Partido Socialista, a partir de 6 de Junho de 2001.
Queremos desejar-lhe as maiores felicidades pessoais e profissionais nas funções que estará a desempenhar por opção sua, manifestando desde já, o nosso apreço pela dedicação que teve ao longo dos anos que nos acompanhou."
15. Surpreendido com o conteúdo da referida carta, o A., após contactar com o Secretário Nacional para a Organização do R., C, enviou-lhe cópia da carta, acompanhada da missiva junta a fls. 37 dos autos (doc. n.º 9 junto com a p.i.), datada de 28.6.2001, a qual tem o seguinte teor:

"Caro Camarada,
Junto envio carta registada que recebi hoje dos recursos humanos do PS, a dizer que deixei por minha vontade de ser funcionário do quadro do Partido Socialista, desde dia 05 de Junho.
Envio também o pedido de licença sem vencimento por 1 ano que entreguei ao Director Geral, que numa 1.ª fase foi aprovado por 3 meses, como o despacho diz, até que entregasse a documentação pedida, o que fiz em 5 de Junho. Os restantes 7 meses do pedido de licença estavam assegurados com essa entrega."
16. C disse ao A. não haver dúvidas de que a licença sem vencimento lhe tinha sido concedida por um ano, pelo que o A. ficou descansado, convencido de que continuava na situação de licença sem retribuição.
17. Em 25 de Fevereiro de 2002, o A. enviou ao Director Geral do R. a carta registada com aviso de recepção constante a fls. 38 dos autos (doc. n° 10 junto com a petição inicial), com o seguinte teor:
"Venho solicitar que a Licença sem Vencimento por um ano, que termina no próximo dia 5 de Março do corrente ano, seja renovada por igual período.
Os motivos pelos quais pedi a Licença sem Vencimento mantêm-se, e como tal preciso de continuar a viver nos Açores."
18. Na mesma data, o A. enviou uma carta idêntica à referida em 17 a C, na qualidade de "Secretário Nacional de Organização e Administração".
19. C não é Secretário para a Organização do R. desde Dezembro de 2001.
20. Em resposta, o R. enviou ao A. a carta registada com aviso de recepção constante a fls. 44 dos autos (doc. n.º 16 junto com a petição inicial), datada de 06 de Março de 2002, a qual tem o seguinte teor:

"Assunto: Licença sem vencimento
Caro Camarada
Em resposta à sua carta de 25 de Fevereiro, informamos que a licença sem vencimento pedida em 5 de Março de 2001, não lhe foi concedida, como é do seu conhecimento, pois foi-lhe enviada uma carta a 18 de Junho de 2001, a qual foi recebida, como consta do Aviso de Recepção. Por esse motivo não existe o vínculo ao Partido Socialista."
21. O Secretário Nacional para a Organização do R. não tem poderes nem competência para conceder licenças sem vencimento ou para decidir sobre a cessação de contratos de trabalho.
22. As competências referidas em 21 cabem ao Director Geral do R..
23. O A. estava convencido de que C, pelos poderes que lhe eram atribuídos na área política, podia influenciar as decisões do Director Geral quanto à concessão da licença sem vencimento.
24. O R. tem concedido, em regra, licenças sem vencimento a trabalhadores que sejam chamados para desempenhar funções de natureza pública; excepcionalmente, antes da solicitação do A., já concedera pelo menos uma licença sem vencimento para o exercício de funções privadas.


3. O direito
Como resulta das conclusões formuladas pelo recorrente, o objecto do recurso restringe-se à questão de saber se in casu ocorreram ou não os requisitos de que depende a cessação do contrato de trabalho por abandono do trabalho.

Ao contrário do que aconteceu na 1.ª instância, na 2.ª entendeu-se que sim, mas o autor continua a defender que não, alegando a inexistência de faltas ao serviço, uma vez que estava de licença sem vencimento e alegando que, quando o réu lhe enviou a carta a comunicar a cessação do contrato, ainda não tinham decorrido 15 dias úteis sobre a data do início da sua alegada ausência. Vejamos se tem razão.

O abandono ao trabalho traduz-se na ausência do trabalhador ao serviço acompanhada de factos que com toda a probabilidade revelam a intenção de não o retomar (1) e é uma forma de cessação do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, que a lei faz equivaler à rescisão sem aviso prévio (2), embora relativamente à entidade empregadora não opera automaticamente, pois para que esta possa invocar a cessão do contrato com fundamento no abandono do trabalho, terá de comunicar isso mesmo ao trabalhador, através do envio de carta registada, com aviso de recepção, para a sua última morada conhecida (3).

Para que se verifique o abandono, não basta, pois, a simples ausência ao trabalho. É necessário que haja factos que fortemente indiciem que a ausência ocorre porque o trabalhador tem a intenção de não retomar o trabalho.

Reconhecendo, certamente, que não era tarefa fácil apurar a existência de factos reveladores daquela intenção, o legislador estabeleceu uma presunção legal no sentido de que a ausência do trabalhador ao serviço faz presumir o abandono, quando se prolongue durante, pelo menos, 15 dias úteis seguidos, sem que a entidade empregadora tenha recebido comunicação do motivo da ausência (4) .

Trata-se, todavia, de uma presunção iuris tantum, dado que pode ser ilidida pelo trabalhador mediante prova de que não comunicou o motivo da ausência, por ter sido impedido de o fazer por razões de força maior (5).

Analisado o conceito e o regime jurídico do abandono do trabalho, importa reverter, agora, ao caso em apreço. E levando em conta a matéria de facto dada como provada, a primeira questão que se coloca é a de saber se o teor da carta enviada pelo réu ao autor, informando-o da cessação do contrato de trabalho, pode ser considerado suficiente para efeitos do disposto no n.º 5 do art. 40.º da LCCT. Entendemos que não, uma vez que ela não contém qualquer referência ao abandono do trabalho. Na verdade, o réu limita-se a informar o autor que se encontra desvinculado do compromisso contratual, sem dizer que tal desvinculação resulta da sua ausência ao trabalho. Limita-se a dizer que "tendo em consideração a data de 5 de Junho de 2001, como limite da licença sem vencimento que lhe foi concedida por 3 (Três) meses, e tendo ainda em consideração a sua vontade de não regressar ao Partido, como trabalhador, informa-se que (...)" (6).

De qualquer modo, mesmo que se entendesse que a carta formalizava a comunicação referida no n.º 5 do art. 40.º, coloca-se a questão de saber se o abandono tinha efectivamente ocorrido, em termos reais ou presumidos e a resposta a dar a essa questão é claramente negativa, por duas razões.

Em primeiro lugar, porque, como resulta da matéria de facto, o autor nunca teve intenção de não retomar o trabalho (vide, nomeadamente, os n.ºs 10, 11, 12, 13 da matéria de facto) e porque não foram alegados, nem muito menos foram provados, factos que com toda a probabilidade permitissem concluir que ele tinha tido aquela intenção, não podendo, por isso, afirmar-se que tivesse ocorrido uma situação de real abandono do trabalho.

Em segundo lugar, porque o abandono presumido também não podia ser invocado, uma vez que quando recebeu a carta do réu (em 25.6.2001) a ausência ao trabalho por parte do autor ainda não tinha atingido os 15 dias úteis seguidos. Com efeito, estando ele, na versão do réu, de licença sem vencimento até 5 de Junho de 2001 (terça-feira), é evidente que em 25.6.2001 ainda só tinham decorrido 12 dias úteis, dado que os dias 9, 16 e 23 foram sábados, os dias 10, 17 e 24 foram domingos, o dia 13 foi feriado municipal em Lisboa (local de trabalho do autor) e o dia 14 foi feriado nacional.

4. Decisão
Nos termos expostos decide-se conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e condenar o réu a pagar ao autor a quantia de 19.702,52 euros que fora condenado a pagar na sentença, a título de indemnização por despedimento ilícito.
Custas pelo recorrido.

Lisboa, 19 de Maio de 2005
Sousa Peixoto,
Vítor Mesquita,
Fernandes Cadilha.
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(1) - Vide n.º 1 do art. 40 da LCCT (Regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho aprovado pelo DL n.º 64-A/89, de 27/2).
(2) - Vide n.º 4 do art. 40 da LCCT, cujo teor é o seguinte: "4. O abandono do trabalho vale como rescisão do contrato e constitui o trabalhador na obrigação de indemnizar a entidade empregadora de acordo com o estabelecido no artigo anterior."
(3) - Vide n.º 5 do art. 40, cujo teor é o seguinte: "5. A cessação do contrato só é invocável pela entidade empregadora após comunicação registada, com aviso de recepção, para a última morada conhecida do trabalhador."
(4) - Vide n.º 2 do art. 40.º da LCCT, cujo teor é o seguinte: "2. Presume-se abandono do trabalho a ausência do trabalhador ao serviço durante, pelo menos, quinze dias úteis seguidos, sem que a entidade empregadora tenha recebido comunicação do motivo da ausência."
(5) - Vide n.º 3 do art. 40.º, cujo teor é o seguinte: "3. A presunção estabelecida no número anterior pode ser ilidida pelo trabalhador mediante prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação da ausência."
(6) - Vide n.º 14 da matéria de facto.