Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B2728
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: DIREITO DE TAPAGEM
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ200511030027282
Data do Acordão: 11/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 3613/04
Data: 02/22/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Não se pode considerar excessiva uma altura máxima dum muro construído na extrema do prédio, que não atinge um metro a mais daquilo que será a altura média de um indivíduo, quando é certo que um dos objectivos do direito de tapagem é garantir a privacidade e segurança.
II - Se um muro construído nessas condições retira uma hora e meia a duas horas de sol ao prédio contíguo, não estamos perante um abuso de direito, mas num caso de colisão de direitos: o direito de tapagem, por um lado e o direito à salubridade por outro.
III - Sendo direitos da mesma espécie, nos termos do artº 335º do C. Civil, deveriam ceder mutuamente de modo a que ambos produzissem o seu efeito útil.
IV - No entanto, tendo o muro praticamente as dimensões mínimas para que possa garantir a privacidade e segurança, é de aceitar como razoável a referida redução da radiação solar.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
"A" e B moveram a presente acção ordinária contra C e D, pedindo que os réus fossem condenados a :
- indemnizar os autores em quantia a liquidar em execução de sentença, a título de danos patrimoniais;
- a indemnizar os autores em quantia não inferior a 750.000$00, a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros legais a partir da citação e ainda em quantia a liquidar em execução de sentença, referente aos danos não patrimoniais que os autores vierem a experimentar após a propositura da acção;
- a demolir à sua custa as vedações que abusivamente levantaram;
- a desobstruir à sua custa os tubos que abusivamente taparam.
Os réus contestaram.
Os autores apresentaram réplica.
Foram estes convidados a concretizar certos conceitos que usaram na petição inicial, o que fizeram.
Os réus responderam.
Foi ordenada o desentranhamento da réplica.
Os réus agravaram do despacho proferido em audiência preliminar em que foi desatendida a excepção de ineptidão da petição inicial.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente a acção, absolvendo os réus do pedido.

Apelaram os autores.
O Tribunal da Relação negou a apelação, julgando prejudicado o conhecimento do agravo.
Recorrem novamente os autores, os quais, nas suas alegações de recurso, apresentam, em síntese, as seguintes conclusões:


1 O direito de tapagem que os réus defenderam nos autos deveria ter sido exercido de forma racional e equilibrada.
2 Contudo, não é racional e equilibrado, constituindo um abuso de direito, construir-se uma parede com uma altura que vai desde 1,60 metros até 2,40 metros, com o objectivo de delimitar dois prédios e que tapou o tubo que escoava as águas pluviais e as águas restantes do prédio dos autores, com o consequente alagamente do piso térreo da casa dos autores, bem como o privou de uma hora e meia de Sol por dia.

3 Constitui, igualmente, um abuso de direito o facto dos réus terem construindo o muro encostado a uma parede do prédio dos autores, sem a prévia autorização destes.
4 A decisão recorrida violou os artºs 334º e 563º do C. Civil.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Nos termos do artº 713º nº 6 do C. P. Civil, consignam-se os factos dados por assentes pelas instâncias remetendo para o que consta de fls. 374 a 377.

III
Apreciando

Tendo as instâncias concluído pela existência do direito, por parte dos réus, de construir o muro em questão nestes autos, mantêm os recorrentes que a construção do dito muro, pelas suas características, integra um abuso de direito.
O abuso de direito é um instituto do nosso sistema jurídico, que consagra o princípio que os direitos têm de ser exercidos de boa fé. E esta exige, entre outros requisitos, que o titular do direito ao exercê-lo não ultrapasse o fim económico e social que o direito visa abranger. Se ultrapassar, trata-se, nessa medida, de um poder inútil, ou censurável, em qualquer das hipóteses ilícito.
"Para que o exercício do direito seja abusivo é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse direito." - Ac STJ de 22.09.05 - .
O artº 1356º do C. Civil dá ao proprietário o direito de tapagem do seu prédio por qualquer modo, referindo expressamente a faculdade de construir muros.
Este direito, como já se disse, foi reconhecido pelas instâncias aos réus, estando aqui apenas em discussão o problema de se saber se foi exercido de forma abusiva.
No que respeita à interrupção do escoamento de águas do prédio dos autores para o dos réus, reconhecendo-se que este último não estava sujeito a receber as águas, nem existindo servidão de escoamento, é manifesto que os réus não têm de, por qualquer modo, ajudar os autores a resolver o problema das águas existentes no prédio destes. Até porque não há excesso na concretização do direito de murar, uma vez que a questão só se evitava, deixando pura e simplesmente de se exercer o direito, ou seja, não construindo. Logo, na construção em si, não houve um excesso. A que acresce que não lesa direito dos autores juridicamente protegido, uma vez que, como vimos, os recorrentes não tinham o direito de escoar as águas para o prédio dos recorridos.
Questão diferente é a do facto do muro retirar uma hora e meia a duas horas de sol ao prédio dos autores.
Aqui o que está em causa é a altura da dita obra.
É ela a de 1,60 metros a 2,40 metros.

Não se pode considerar excessiva uma altura máxima que não atinge um metro a mais daquilo que será a altura média de um indivíduo, sendo certo que uma das funções da tapagem é garantir a privacidade e a segurança.
Por outro lado, os proprietários de imóveis têm o direito à salubridade dos seus prédios - cf. artºs 1346º e 1347º do C. Civil, para as hipóteses de poluição e de actividades perigosas por parte dos prédios vizinhos - .

E a radiação solar é, na verdade um elemento essencial da salubridade de um imóvel.
Contudo, admitido o carácter não excessivo do muro, o caso não é tanto de abuso de direito, mas da colisão de direitos do artº 335º do C. Civil, o qual determina a cedência mútua, no caso de direitos da mesma espécie, para que ambos produzam por igual o seu efeito.
Os direitos de tapagem e de salubridade encontram-se no mesmo plano de valores: ambos têm um conteúdo económico e pessoal, por respeitarem os dois às boas condições de fruição dos imóveis e à sua consequente valorização.
No caso em apreço, a diminuição de uma hora e meia a duas horas de luz solar afigura-se-nos um redução razoável para que o referido direito de tapagem produza o seu efeito útil. Por outras palavras, essa diminuição do gozo de um prédio é aceitável se derivar da construção de um muro no prédio vizinho com uma altura máxima de 2,40 metros, que será praticamente a dimensão mínima para garantir a privacidade e segurança que constituem o efeito útil do direito de tapagem.
Temos por fim a alegação dos recorrentes de que os recorridos tinham de lhes pedir autorização para construir pegado com a sua propriedade.
O proprietário pode construir na extrema do seu prédio, o que, forçosamente, leva a admitir que pode construir "encostado" ao prédio vizinho, portanto, na linha divisória dos prédios. O que o dispensa de pedir autorização para exercer um direito que lhe assiste.
Outra não pode ser a interpretação a quer nos leva o artº 1370º do C. Civil, quando prevê que o proprietário de prédio confinante com parede ou muro alheio pode, dentro de certas condições, adquirir nele comunhão. Esta possibilidade de comunhão só é aceitável se o muro estiver mesmo na divisória dos prédios, por que senão a comunhão teria de abranger mais.

Termos em que improcede o recurso.

Pelo exposto, acordam em negar a revista e confirmam o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 3 de Novembro de 2005
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida,
Rodrigues dos Santos.