Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
126/10.2JBLSB.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: RAPTO
AGRAVANTE
TRATAMENTO DEGRADANTE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
Data do Acordão: 02/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Área Temática:
DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO - DIREITOS HUMANOS / DIREITOS E LIBERDADES.
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL - CRIMES CONTRA A VIDA EM SOCIEDADE / CRIMES DE FALSIFICAÇÃO / FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS.
Doutrina:
- Jeschek, Tratado de Direito Penal, edição espanhola, p. 780.
- Oliveira Ascensão, “Pessoa, Direitos Fundamentais e Direitos da Personalidade”, Revista Mestrado em Direito, OSASCO, Ano 6, n.º1, 2006, p. 145 e ss..
- Rebollo Vargas, Derecho penal, constitución y derechos; Bosch Editor: 2013 Barcelona. España.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 77.º, 158.º, N.º 2, AL. B, 161.º, N.º1, AL. C), N.º 2, ALS. A) E B), 261.º, N.º1.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA PARA A PROTECÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS, DE 4 DE NOVEMBRO DE 1950 (CEDH): - ARTIGO 3.º.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH): - ARTIGO 5.º.
PACTO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS, DE 19 DE DEZEMBRO DE 1966 (PIDCP): - ARTIGO 7.º
Sumário :

I - Tratamento degradante é todo aquele que humilha, avilta e degrada a pessoa da vítima, coisificando-a, numa indiferença perante a sua condição humana.
II - Integra o conceito de tratamento degradante, e de negação da dignidade humana, o corte de cabelo imposto à vítima e o facto de esta ser obrigada a despir-se ou ainda o derrame de um líquido sobre as suas feridas.
III -Se o crime imputado ao arguido é de rapto agravado, as circunstâncias que levaram à qualificação não devem ser tomadas em consideração na medida concreta da pena, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração.

Decisão Texto Integral:

 

                                       Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

                        AA veio interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou a pena de prisão aplicada em sede de primeira instância, e que determinou, em cúmulo jurídico, a pena única de 10 anos de prisão, atenta a pena parcelar de 9 anos e 6 meses de prisão pelo crime de rapto agravado, p. e p. pelos arts. 161.º n.º1 al.c) n.º 2 al.a) ex vi do disposto no art.º 158.º n.º 2 al.b) do C.P., e a pena de 8 meses de prisão pelo crime de utilização de documento de identificação alheio, p.e.p. pelo art.º 261.º n.º 1 do C.P.

As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:

1- O douto e recorrido acórdão entendeu condenar o recorrente na pena de 9 anos e 6 meses de prisão pelo crime de rapto agravado, p. e p. pelos arts.

161.º n.º1 al.c) n.º 2 al.a) ex vi o disposto no art.º 158.º n.º 2 al.b) do C.P.

2 - Sendo a agravação referenciada ao art.º 158.º, n.º , alínea b) do CP, ou seja, sempre que a privação de liberdade “for precedida ou acompanhada de ofensa à integridade física grave, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano”.

3 – O ofendido BB foi efectivamente amarrado, ameaçado, foram-lhe cortadas as tranças do cabelo e foi despejado um líquido por cima do mesmo, conforme consta no douto acórdão recorrido, mas sem consequências graves.

4 - Os factos provados nestes autos devem ser considerados como integradores de um agir ilícito que se subsuma ao crime rapto simples e não crime de rapto agravado.

5 – Consabidamente, há uma distinção entre tortura e tratamento degradante ou desumano, uma vez que existem  níveis decrescentes de severidade das intervenções em que a tortura é o mais grave - pois afecta o núcleo da dignidade humana (podendo causar traumas irreversíveis);

6 – O tratamento desumano - aquele que provoca grande sofrimento mental ou físico - situa-se a um nível intermédio;

7 – E no tratamento degradante, o ser humano é quase que transformado em “coisa”, há humilhação de alguém perante si mesmo e perante os outros (sem, porém, excluir a possibilidade de uma determinada acção ser considerada concomitantemente degradante e desumana).

8- De acordo com o disposto no Ac. do STJ de 18-12-1996, relatado pelo Sr. Conselheiro Lopes Rocha, in Jusnet 8833/1996 “o art.º  3.º da Convenção Europeia é  composto por uma noção central de tortura, abrangendo ainda outros tratamentos (desumanos e degradantes), sendo que “simples brutalidades” escapam ao âmbito do artigo”.

9 – O emprego da força no ofendido BB, com murros, bofetadas e pontapés, assim como corte das tranças e despejar um líquido não têm a gravidade bastante para ser qualificado como um acto de "tortura".

10 – A conduta em apreço também não parece que possa razoavelmente ser qualificada como "tratamento cruel e desumano" uma vez que este, (que também engloba o tratamento degradante), é aquele que provoca grande sofrimento mental ou físico e que na situação específica é injustificável, impondo esforços que vão além dos limites razoáveis (humanos) exigíveis.

11 – Nos autos, não ficou decididamente comprovado qualquer acto de tortura, tratamento desumano ou degradante.

12 - Aliás, o tipo de crime de rapto simples já pressupõe em si próprio a existência de violência e de ameaças e a inerente gravidade dessa mesma violência.

13 -  O crime de rapto simples tem uma moldura penal que 2 anos até 8 anos de prisão, pelo que face ao circunstancialismo e à dinâmica dos factos tida como provada, ter-se-ia como justa e adequada a aplicação ao recorrente de uma pena de prisão de 4 anos e 6 meses de prisão.

Sem conceder,

14 - Caso opere a agravação da actuação do arguido, esta reportar-se-á sempre à forma de "tratamento degradante", ou seja, o nível mínimo na hierarquia dos níveis de sofrimento.

15 –  Não obstante a censurabilidade dos actos praticados, uma vez que não resulta dos autos a existência de sequelas de natureza traumática (quer físicas, quer psicológicas), a pena de 9 anos e seis meses anos de prisão aplicada ao recorrente afigura-se deveras severa.

16 - Tendo em atenção a primariedade do recorrente e atentos, por ora, os criteriosos e judiciosos critérios do art.º 70.º e 71.ºdo Código Penal, o recorrente poderia conformar-se com pena de prisão mais próxima do seu limite médio (5 anos e seis meses de prisão).

17 - Considera-se assim ter sido violado, por erro de interpretação, o disposto nos art.ºs 40.º, 70.º e 71.º do C.P., pelo que a pena deve ser reduzida, assegurando-se assim também os fins de prevenção geral e especial.

            Termina pedido a substituição do acórdão recorrido por outro que, considere o cometimento de um crime de rapto simples, e não agravado, sendo que no necessário cúmulo a efectuar, o mesmo não ultrapasse os  4 anos e 6 meses de prisão ou, caso assim não se entenda, e se considere ter sido praticado um crime de rapto agravado, o cúmulo não ultrapasse os 5 anos e 6 meses de prisão.

Respondeu o Ministério Publico referind em sede conclusiva que:

1 - volta o arguido a colocar a questão da qualificação Juridica operada quanto ao crime de rapto, renovando os argumentos adiantados quando Impugnou a decisão da 1ª instância.

2 - Defende que não foram dados como demonstrados factos que permitam o preenchimento da agravante prevista na alinea b), do n° 2, do artIgo 158°, do código Penal,

.- 3 - ou seja, que a privação da liberdade, tenha sido precedida ou acompanhada de ofensa à Integridade fisica grave, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano.-

4 - Tal como resulta do aresto agora censurado, nomeadamente, a fls. 4030/4031, tal questão foi decidida no sentido de se entender que a subsunção jurídica efectuada no acórdão do círculo Judicial do Barreiro era correcta, apelando à fundamentação operada nessa decisão.-

5 - Na verdade, tal como resulta dos "itens" 10,15,17,19,20,21,24,25, 27,28,29,30,31,32 e 33 da matéria de facto provada, mostram-se preenchidos os elementos não só do tipo de rapto simples, como da agravante prevista na alínea b), do n° 2, do artigo 158°, do Código Penal.-

6 - Impõe-se, assim, seja mantida a condenação do arguido pela pratica do crime de rapto agravado.-

7 - No que respeita à questão da medida da pena imposta peta prática do crime de rapto agravado - nove anos e seis meses de prisão - . verifica-se que sobre a mesma se pronunciou o acórdão recorrido, fls. 4029verso/4030 ao dirimir a impugnação efectuada a respeito pelo arguido.

8 - Ali se decidiu que não se verificava a existência de qualquer omissão de pronúncia no que tocava à pena em concreto aplicada.

9 - O arguido coloca agora a questão do "quantum" da pena aplicada em concreto, pretendendo vê-lo reduzido para quatro anos e seis meses no caso de lograr vir a ser condenado por um crime de rapto simples, ou, para cinco anos e seís meses no caso de se manter a qualificação de rapto agravado.-

9 - A forma de colocar esta questão não deixa de se configurar, salvo melhor opinião, como uma questão nova que não foi objecto de decisão no acórdão recorrido, e, como tal, deve considerar-se subtraída ao conhecimento do Tribunal "ad quem”.-

10 - sempre se dirá que, tal como resulta da matéria dada por assente' e confirmada na decisão ora impugnada, a dosimetria da pena aplicada se mostra adequada e respeitadora das previsões contidas nos artigos 40°, 70° e 71º, do Código Penal que o arguido entende terem sido violados.-

11 - Sendo uma pena justa, adequada e proporcional, deve ser mantida, assim se fazendo, justiça 

Nesta instância o Exº Mº Sr. Procurador Geral Adjunto pronunciou-se de forma proficiente, concluindo pela seguinte forma:

            Pelo exposto, e sem necessidade de mais desenvolvidos considerandos, emite-se parecer no sentido de que, na improcedência do recurso, é de confirmar o veredicto condenatório proferido.

                                        Os autos tiveram os vistos legais

                                                               *

Em sede de decisão recorrida encontram-se provados os seguintes factos:

1. Em finais do mês de Setembro de 2010, o arguido CC apresentou ao arguido AA também conhecido como U..., DD, pessoa que conhecia bem por com ele co-habitar, pelo menos desde Março desse ano, partilhando a habitação sita na Rua ...;

2. Ainda no decurso do referido mês de Setembro de 2010, em dia não concretamente apurado, o arguido AA contratou BB para realizar uma viagem ao Brasil e trazer produto estupefaciente, mais concretamente cocaína, no interior do seu organismo, a troco de € 5000,00 (cinco mil euros).

3. Neste contexto e já depois de combinadas as condições do negócio, no dia 1 de Outubro de 2010, os arguidos AA e CC, deslocaram-se ao aeroporto de Lisboa, na companhia de BB, sendo que o arguido AA verificou os preços das passagens aéreas para o Brasil e comprou o respectivo bilhete.

4. Alguns dias mais tarde, em 6 de Outubro de 2010 e já depois de adquirida a passagem aérea, o arguido AA acompanhado de um indivíduo conhecido por “B...”, transportaram BB até ao Aeroporto de Lisboa, tendo este, nesse dia, embarcado no voo da TAP com o número ..., para o Brasil, com destino à localidade de Belo Horizonte.

5. No dia 14 de Outubro de 2010, cerca das 13 horas e 20 minutos, data do regresso de BB do Brasil, o arguido AA foi buscá-lo ao Aeroporto de Lisboa, fazendo-se transportar na viatura que habitualmente conduzia, da marca Volkswagen, modelo Golf, de cor cinzenta e de matrícula ...-NN.

6. Assim que saíram do aeroporto, o arguido AA transportando consigo

BB, deslocou-se, de imediato, à localidade da Serra das Minas, em Rio de Mouro, a fim de ir buscar o referido B..., que ali se encontrava a circular apeado.

7. Após, o arguido AA e o B... transportaram BB para a morada de residência do referido arguido à data, sita na Praceta ..., a fim de que aí este último ingerisse uma substância que o fizesse expelir o produto estupefaciente que supostamente trazia no interior do seu organismo.

8. Por não ter cumprido a sua tarefa no acordo celebrado, não trazendo estupefaciente consigo e receando, por esse motivo, pela sua integridade física e vida, BB invocou que teria de ir colocar a sua bagagem a casa, com o intuito de se afastar do arguido AA e do B....

9. Tendo conseguido permissão para sair da residência do arguido AA BB dirigiu-se à habitação da sua companheira EE, sita na Rua ..., local onde se refugiou por recear represálias daqueles, em virtude de não ter trazido qualquer produto estupefaciente do Brasil, conforme combinado.

10. Contudo, ao fim de algum tempo, e porque BB não atendera quaisquer chamadas telefónicas, cerca das 17 horas do mesmo dia 14 de Outubro de 2010, o arguido AA acompanhado do B... e de outro indivíduo não identificado, conseguiram apurar o paradeiro daquele e partiram a porta da residência de EE, forçando a sua entrada no interior da tal residência.

11. Em seguida, levaram BB para o 4º andar esquerdo do mesmo edifício, que correspondia ao domicílio do arguido CC, mas este não estava em casa.

12. Já no interior da residência em questão, o arguido AA e o B... confrontaram BB, tendo este admitido que afinal não teria trazido qualquer produto estupefaciente do Brasil, conforme tinha sido combinado.

13. Cerca de dez minutos mais tarde e depois de uma chamada telefónica efectuada por EE para a PSP do Barreiro, os agentes FF e GG, viriam a deslocar-se à residência sita na Rua ..., pertencente ao arguido CC.

14. Todavia, os referidos elementos da PSP, ali chegados e após troca de palavras com BB, e de terem ido com este ao 6º andar do mesmo prédio, casa da sua namorada, vieram subsequentemente a abandonar tal local, sem que tivessem identificado qualquer dos intervenientes,

15. Após a PSP ter abandonado o local, pouco depois das 17h00, o arguido AA acompanhado do B... e do outro indivíduo amarraram BB contra a vontade deste e transportaram-no para a residência sita na Praceta ..., pertencente ao primeiro arguido, fazendo-o mediante o uso da força.

16. No interior da residência em questão encontrava-se já o arguido HH, aí também residente, outros indivíduos não identificados, tendo subsequentemente surgido II, e depois LL.

17. Durante o período em que permaneceu, contra a sua vontade, no interior da residência sita na Praceta ..., pertencente ao arguido AA este acompanhado do arguido HH, do B... e do outro indivíduo, actuando em comunhão de esforços e intentos, amarraram BB pela zona dos cotovelos, e o B... e o outro individuo não identificado atingiram BB com diversos murros, bofetadas e pontapés, em diversas partes do corpo deste último.

18. Quando a certa altura surgiu o arguido II, este veio em defesa do BB, convencendo os outros a parar com as agressões.

19. BB permaneceu no interior da residência sita na Praceta ..., onde se encontravam também os arguidos AA HH, o B... e um outro indivíduo, até cerca das 22 horas do referido dia 14 de Outubro de 2010, tendo durante esse período sido privado da sua liberdade de locomoção, contra a sua vontade.

20. Nessa altura e na sequência de plano previamente gizado por AA B... e pelo outro indivíduo, estes, acompanhados do arguido HH forçaram BB, através do recurso a força física e sob ameaças, a entrar novamente no veiculo de marca e modelo Volkswagen Golf, de cor cinzenta e de matricula ...-NN.

21. Após, circularam por diversas localidades da margem sul, tendo durante o trajecto, o arguido AA e o B... insistido, num tom intimidatório, que BB teria de os ressarcir dos prejuízos causados, ao mesmo tempo que diziam que o matavam e que o atiravam ao rio da ponte Vasco da Gama.

22. Temendo pela sua integridade física e vida, BB disponibilizou-se a angariar o dinheiro exigido por aqueles, no caso € 15.000 (quinze mil euros), tendo com essa finalidade e utilizando o seu telemóvel com o cartão SIM número ..., contactado JJ, seu conhecido com o telemóvel com o cartão SIM número ..., e combinado um encontro na zona da Baixa da Banheira, para a entrega da referida quantia, em numerário.

23. Tal encontro no entanto não ocorreu, por motivos que não se logrou apurar, tendo os arguidos AA e HH, acompanhados do B..., decidido então rumar em direcção a Lisboa, depois de deixar sair do carro o outro indivíduo não identificado.

24. Já nessa localidade (Lisboa), os arguidos AA e HH, acompanhados do B..., encetaram diversos contactos no sentido de localizar indivíduos, seus conhecidos, que pudessem auxiliá-los no seu propósito de, com recurso a agressões, obrigarem BB a entregar-lhes a aludida quantia, em numerário.

25. Nessa localidade, mais concretamente na zona conhecida por Bairro Alto, os aludidos arguidos aliciaram 6 (seis) indivíduos africanos, cuja identificação não se logrou porém apurar, a colaborar consigo, com vista à concretização dos seus intentos, tendo dois deles, entrado no veículo em que era transportado BB, e os restantes quatro, apanhado um táxi.

26. Subsequentemente, o veículo Volkswagen e o táxi dirigiram-se ambos para zona erma, próxima de Mem Martins, nas Mercês, junto à estrada de Mercês-Algueirão, onde chegaram cerca das 2:40 / 3:40 do dia 15 de Outubro de 2010, tendo durante o percurso deixado o B... em casa.

27. Na zona erma em questão, os arguidos AA e HH, acompanhados dos aludidos 6 (seis) indivíduos aliciados no Bairro Alto, actuando em comunhão de esforços e intentos, transportaram, através do recurso a força física, BB para um local com alta vegetação, a fim de dissimularem a sua presença naquele local e dessa forma mais facilmente concretizarem os seus propósitos.

28. Aí, o arguido AA ordenou a BB que se despisse, o que o mesmo fez, receando pela sua integridade física e vida, e em seguida puseram-no de joelhos.

29. Após, a mando do arguido AA amarraram os braços de BB atrás das costas.

30. Seguidamente e pelo menos durante 90 (noventa) minutos, os indivíduos não identificados, a mando do arguido AA atingiram BB com diversos murros e bofetadas, bem como com pontapés, em diversas partes do corpo, e com uma pedra na cabeça.

31. No mesmo período, os arguidos AA e HH e os aludidos seis indivíduos, actuando nos mesmos moldes, cortaram também todas as tranças do cabelo de BB.

32. Em seguida, o arguido AA ausentou-se do local e voltou poucos minutos depois, trazendo consigo um bidão contendo um líquido desconhecido, e derramou o aludido líquido sobre BB, o que lhe provocou dor, pois o líquido em causa, em contacto com os ferimentos, ardia.

33. Já depois das 5 horas do dia 15 de Outubro de 2010, os arguidos HH e AA acompanhados de apenas dois daqueles seis indivíduos, forçaram BB, mais uma vez através do recurso a força física, a entrar na viatura da marca Volkswagen, com matrícula ...-NN.

34. Após, transportando BB no banco traseiro de tal veículo, no lugar central, entre o arguido HH e um dos indivíduos aliciado no Bairro Alto, a fim de lhe impossibilitar qualquer fuga, os arguidos rumaram em direcção a Lisboa, tendo deixado numa localidade próxima, um daqueles dois indivíduos.

35. De seguida regressaram ao ..., dirigindo-se concretamente à Praceta ..., sita nessa localidade.

36. Aí chegados, cerca das 10 horas do dia 15 de Outubro de 2010, os arguidos AA e HH, através de força física, forçaram BB a acompanhá-los ao RIC Direito da Praceta ..., fracção que correspondia à residência do arguido AA onde pelo menos este último, o arguido HH e BB permaneceram.

37. Naquela habitação viria posteriormente a comparecer o arguido CC.

38. Somente entre as 16 e as 17 horas do dia 15 de Outubro de 2010, logrou BB libertar-se dos seus agressores, encetando fuga pela janela da casa de banho, dirigindo-se depois a casa de uma amiga de nome Catarina.

39. No período que mediou entre as 4:30 do dia 15 de Outubro de 2010, até cerca das 16:00 117:00 desse mesmo dia, BB efectuou diversas chamadas, através do seu telemóvel com o cartão SIM com o número ..., para JJ, com o telemóvel com o cartão SIM número ..., solicitando a entrega de uma quantia monetária para entregar aos seus raptores para assim o libertarem.

40. Após a fuga daquele, entre as 16 e as 17 horas do dia 15 de Outubro de 2010, da residência sita na Praceta ..., o arguido AA encetou esforços com outros indivíduos no sentido de localizar novamente BB para assim procederem a um “ajuste de contas”, mas sem êxito.

41. Designadamente, pelas 18 horas e 45 minutos do dia 15 de Outubro de 2010, através do seu telemóvel com o cartão SIM com o número ..., o arguido AA contactou JJ, com o telemóvel com o cartão SIM número ..., dizendo que BB ainda estava consigo e solicitando que este último fosse ter com ele, pedido a que o mesmo não acedeu por saber não corresponder à verdade.

42. Entre as 22 horas do dia 14 de Outubro de 2010 e as 7 horas do dia 15 de Outubro de 2010, JJ recebeu também diversos telefonemas e mensagens de texto provenientes de telemóvel com o cartão SIM com o número ..., cujo titular não se logrou todavia apurar, em que era exigido o pagamento de cerca de €15.000,00 (quinze mil euros) sob pena de “acabarem com o BB”.

43. Em data que não se logrou porém determinar, mas correspondente aos dias que se seguiram ao dia 15 de Outubro de 2010, indivíduo não identificado cruzou-se na via pública com EE, namorada de BB, e dirigindo-se-lhe, afirmou que se este aparecesse, era um homem morto.

44. Após a sua fuga, pela tarde do dia 15 de Outubro de 2010 e por temer pela sua integridade física e vida, BB manteve-se isolado, tendo evitado sair à rua, sob risco de ser encontrado pelo arguido AA que o procurava incessantemente com vista a proceder a um ajuste de contas.

45. Em 12 de Abril de 2011 e aquando do cumprimento dos mandados de busca domiciliária à residência sita na Praceta ..., pertencente ao arguido AA naquela data, detinha os seguintes objectos:

45.1. Um cartão de cidadão em nome de ... com o número  ...;

45.2. Uma carta de condução portuguesa em nome de ... com o número ...;

45.3. No interior do bolso de umas calças, no interior do roupeiro, 100 (cem) notas de vinte Euros, perfazendo a quantia total de € 2.000,00 (dois mil Euros);

45.4. Na gaveta do lado direito do roupeiro, um documento da Western Union com o mtcm ..., comprovativo da transferência no valor de 65.595,70 de francos senegaleses; e ainda,

45.5. Na mesa-de-cabeceira do quarto, um telemóvel da marca Nokia, modelo N8 com o IMEI ..., contendo no seu interior o cartão sim com o número ... cartão 64 a que corresponde o número ....

46. Por período não concretamente apurado e até 12 de Abril de 2011, o arguido AA usou a documentação da qual constava o nome ..., como sua fosse, por se encontrar ilegalmente em território nacional e assim conseguir ludibriar as autoridades policiais, facilitando-lhe o exercício da actividade de tráfico de produto estupefaciente.

47. Em 12 de Abril de 2011 e aquando do cumprimento dos mandados de busca domiciliária à residência sita na Praceta ..., pertencente ao arguido AA o arguido HH aí também residente, detinha no interior do seu quarto:

47.1. Três documentos da agência de viagens Abreu, em nome de HH, um relativo a uma viagem a iniciar a 13/04/2011 para a Guiné-Bissau com regresso a 9/5/2011, o outro relativo a uma viagem realizada a 30 de Março de 2011, com destino a Barcelona e regresso a 3/4/2011;

47.2. Em cima da mesa de cabeceira, um comprovativo de transferência da Western Union com o mtcm ... datado de 11/3/2010 relativo a uma transferência no valor de €100 (cem Euros), um outro comprovativo de transferência da Western Union datado de 1/2/2011 com o mtcm ... relativo a uma transferência no valor de € 100,00 (cem euros); e ainda,

47.3. No interior de uma mala de viagem, dentro de um saco cor-de-rosa, o montante de € 1.360,00 (mil trezentos e sessenta euros), composto por 63 (sessenta e três) notas de € 20,00 (vinte euros) e 2 (duas) de € 50,00 (cinquenta euros).

48. Naquela mesma data e segundo se apurou na decorrência de revista efectuada, o arguido HH detinha um telemóvel da marca LG com o IMEI ..., associado a um cartão SIM da operadora TMN com o número ....

(…)

50. Durante o período de tempo em que os factos em questão ocorreram, os arguidos AA e HH não exerceram qualquer actividade profissional conhecida, nem a exercem na presente data, provendo ao seu sustento com os lucros obtidas pelo primeiro através da actividade relacionada com produtos estupefacientes.

51. Na sequência da descrita actuação conjunta dos arguidos AA com outros indivíduos não identificados, e com a ajuda de HH, BB sofreu feridas inciso-contusas de ambas as regiões do cotovelo, contusões múltiplas da região dorsal, ferida do couro cabeludo na região parietal esquerda e escoriações da face anterior da perna esquerda, que lhe determinaram por forma directa, necessária e adequada oito dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho.

52. Ao actuarem da forma descrita, agiram os arguidos AA e HH em comunhão de esforços e intentos com o referido B... e outros indivíduos não identificados, com vista a privarem o BB de livremente se movimentar e assim mais facilmente aceder aos seus intentos, privação essa que se manteve até à fuga deste último, na tarde do dia 15 de Outubro de 2010, da residência sita na Praceta ....

53. Actuaram os arguidos AA e HH em comunhão de esforços, com vista a obterem de BB e de JJ o pagamento de cerca de € 15.000,00, como contrapartida da libertação do primeiro.

54. Ao utilizar, por período não concretamente apurado, e até 12 de Abril de 2011 a documentação na qual constava o nome de ..., como se sua fosse, agiu o arguido AA no intuito concretizado de lograr ludibriar as autoridades competentes, visto se encontrar ilegalmente em território nacional e assim conseguir mais facilmente exercer a actividade de comercialização a terceiros indiscriminados de produto estupefaciente, a que se dedicava.

55. (…)

56. Os arguidos AA e HH agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se inibindo assim de as realizar.

57. O arguido AA não praticou anteriormente em Portugal qualquer facto pelo qual tenha sido criminalmente punido.

58. O arguido HH não praticou anteriormente em Portugal qualquer facto pelo qual tenha sido criminalmente punido.

(…)

63. O arguido AA é natural da Guiné-Bissau, onde viveu até ao ano de 2005, integrado na sua família de origem. Tem dois filhos menores, da companheira com quem vive, estando um na Guiné e o outro consigo em Portugal. Após a vinda para Portugal efectuou alguns trabalhos esporádicos, em restaurantes em Lisboa, até se mudar para a zona da Moita. À data dos factos estava desempregado, mas a sua companheira trabalha desde 2007. Reside em casa arrendada, que compartilha com o arguido HH. No estabelecimento prisional está a frequentar o 2º ciclo do ensino básico, com empenho e assiduidade.

64. O arguido HH é natural da Guiné-Bissau, onde viveu no seio da família até aos 15 anos de idade. Aí concluiu o 9º ano de escolaridade. À data dos factos estava sem trabalhar e sem estudar, e antes de ir viver com o arguido AA estava sozinho porque o seu pai tinha ido trabalhar para França. No estabelecimento prisional está a frequentar um curso de inglês.

(…)

No mesmo acórdão deram-se como não provados os seguintes factos:

1. Naquela habitação viria posteriormente a comparecer o arguido CC o qual dirigindo-se a BB, afirmou “Dei-te o contacto, deixaste-me na merda. Se vocês não o matarem, mato-o eu!”.

2. Cerca de uma hora depois, deslocou-se à referida residência, o arguido MM, acompanhado de NN e, o qual voltou a confrontar BB acerca do produto estupefaciente que deveria ter trazido do Brasil.

3. Os arguidos AA, CC, II, HH, LL e MM constituem grupo altamente organizado, integrado por membros com funções próprias e comandado pelo primeiro e por NN é, tendo actuado em conjugação de esforços e intentos, no sentido de obterem de BB, mediante violência física e intimidação, estupefaciente que este deveria ter trazido do Brasil.

                                                              *

I

A questão fundamental em apreço nos presentes autos centra-se na qualificação do crime de rapto ou seja na consideração de  existência de factos que fundamentem a conclusão de que nos encontramos perante actos de tortura ou de outro tratamento cruel, degradante ou desumano.

            A indagação sobre tal integração implica uma prévia definição do conteúdo que se deve atribuir àquela forma de tratamento.

Em sede de decisão recorrida refere-se que:

Por concordarmos com a análise feita pelo Tribunal recorrido, damos aqui por reproduzido tudo o que ali se disse quanto às circunstâncias agravantes. Repare-se que o ofendido não é apenas agredido. Como pretendem que ele lhes devolva o estupefaciente ou o dinheiro, o ofendido é agredido, ameaçado e ainda despido, colocado de joelhos, são-lhe cortadas todas as tranças do cabelo e derramam-lhe um líquido desconhecido no corpo, o que constitui, sem dúvida alguma, tortura e tratamento degradante, já que se traduzem em sofrimento psicológico grave, com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima.

A subsunção jurídica é, portanto, correcta.

É indubitável que a consagração da inadmissibilidade da tortura ou do tratamento degradante está directamente relacionado com o tem da consagração dos direitos humanos.           Na verdade, existe um entendimento uniforme no sentido de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de Dezembro de 1948 inicia uma era de afirmação consistente dum espaço essencial no respeito dos direitos humanos. Refere a mesma, no seu artigo 5, que ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento cruel, desumano ou degradante. Decorridos dois anos a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950 (CEDH) reforça aquele normativo ao consagrar no seu artigo 3 que ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratamento desumano ou degradante.

O artigo 7 º do  Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 19 de dezembro de 1966 (PIDCP ) literalmente reproduz o texto da DUDH  proclamando que : "Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento cruel , desumano ou degradante ... ",

Como refere Rebollo Vargas estão em causa bens essenciais da pessoa como é o caso da integridade moral o qual se desenha como um bem pessoalíssimo com autonomia legal e independente do direito à vida e à integridade física ou à honra e, ainda que, constitucionalmente, encontre o seu reconhecimento junto a outros direitos, deve ser interpretado com a autonomia que lhe é típica, e não como uma manifestação da integridade física.[1]

Para alguma doutrina a integridade moral configura um bem jurídico etéreo e aberto o que poderá suscitar riscos para segurança jurídica. Porém, tal como refere o Autor citado, a integridade moral não só é susceptível de ser delimitada face aos bens jurídicos tradicionais como também é exacto que num Estado de direito não se pode admitir que, com o argumento da sua complexidade, ou indeterminação, existam áreas escuras quando o objeto da proteção recai sobre um direito legal de nível constitucional.

Em última análise, o atentado à integridade moral implica prima facie uma intervenção envolvendo a disposição, ou utilização, da pessoa, ainda que possa não consubstanciar uma agressão material à própria integridade física, quando o titular do bem não consinta em tal intervenção. Assim, os delitos que convoquem aquele tipo de tratamento envolvem sempre um atentado contra a dignidade humana com o qual a integridade moral está directamente conexionada e contra a qual se atenta quando se nega ao sujeito a sua condição de pessoa e se converte o mesmo em simples objecto, pois que se trata duma situação em que a vítima se encontra num estado de aviltamento e sujeita à vontade de terceiro. Estes ataques à inviolabilidade pessoal caracterizam-se pela degradação a que se encontra sujeita a vitima isto é pela degradação com que é tratada.

Kant afirmava que “as coisas têm preço e o homem dignidade. Esta supõe que o homem não pode ser tratado como um animal ou como coisa” .

Tratamento degradante é todo aquele que humilha, e avilta, e não pode conceber-se actividade mais humilhante do que aquela que coisifica a pessoa. Por outro lado, como se referiu, entre a dignidade humana e a integridade moral existe uma extensa relação e ambos os bens dispõem dum âmbito material comum com núcleos diferenciados.  Assim, a integridade moral é um bem jurídico autónomo e independente do direito à vida, á integridade física à liberdade ou a honra os quais são juridicamente autónomos, e independentes, e têm áreas de proteção correspondentes no Código Penal. A integridade moral está relacionada com a dignidade da pessoa na medida em que o reconhecimento da dignidade da pessoa é a base de todos os direitos fundamentais

O conceito de tratamento degradante caracteriza-se, assim, pelo vexame e humilhação da vítima. É a integridade moral, consubstanciando um conceito amplo de integridade, que está em causa e que se encontra violado quando a pessoa está “coisificada “, quando tratada como um objeto, ou seja, quando é confinado a uma realidade física pura que é instrumentalizada, rompendo assim, um conjunto indivisível que é inerente à sua condição de uma pessoa em que coexistem o aspecto físico e moral; este tratamento como um objeto sem vontade é o que caracteriza a violação da integridade física e moral.

Assumindo tal interpretação como a mais correcta, nomeadamente da convergência da ofensa da integridade moral e da dignidade, não podemos deixar de equacionar diferentes perspectivas sobre a genética da protecção concedida. Na verdade, como refere Jurgen Habermas   A noção de dignidade humana constitui a charneira concetual que liga a moral do igual respeito por todos ao direito positivo e à legislação democrática de modo a que a sua conjugação permita, em condições históricas favoráveis, o surgimento de uma ordem política baseada na dignidade humana. Embora as clássicas declarações dos direitos humanos, com as suas referências a direitos «inatos» ou «inalienáveis», «inherent» ou «natural rights», «droits naturels, inaliénables et sacrés», ainda revelem a sua origem em doutrinas religiosas ou metafísicas «<We hold these Truths to be self-evident, that alI men are [ ... ] endowed with certain analienable rights [ ... ]»), num Estado com uma mundividência imparcial, estes predicados têm sobretudo o papel de substitutos; eles evocam o modo cognitivo, independente da autoridade estatal, de uma justificação capaz de aceitação universal do conteúdo moral superior destes direitos.

Os direitos humanos, independentemente do seu conteúdo exclusivamente moral, têm a forma de direitos subjetivos positivos, cujo desrespeito é punido, o que garante ao indivíduo espaços de liberdade e direitos. Eles são concebidos de forma a concretizar-se através da legislação democrática, especificados, caso a caso, através da jurisprudência e impostos através de sanções estatais. Portanto, os direitos humanos descrevem precisamente a parte de uma moral esclarecida que pode ser traduzida no veículo do direito coercivo e tornar-se uma realidade política na forma robusta de direitos fundamentais concretizados.

 Esta categoria, então completamente nova, de direitos associa, novamente, dois elementos que, no início da Idade Moderna, se libertaram da simbiose de factos e normas, existente no direito natural, se tornaram independentes e começaram por se diferenciar em sentidos opostos. De um lado, está a moral interiorizada, ancorada na consciência subjetiva e justificada racionalmente, que no pensamento de Kant se retira completamente para o domínio do inteligível; do outro, está o direito coercivo, regulamentado positivamente, que serve aos soberanos absolutos e às velhas assembleias parlamentares constituídas por Estados como instrumento organizativo gerido pelo poder para criar o Estado moderno e para a circulação de mercadorias capitalista. O conceito de direitos humanos deve-se a uma síntese improvável destes dois elementos. E esta ligação concretizou-se através da charneira concetual da «dignidade humana».

Diferente é a posição de Oliveira Ascensão que, admitindo que a dignidade da pessoa humana se traduziu históricamente pela afirmação dos direitos fundamentais, questiona sobre a identidade entre direitos fundamentais e direitos de personalidade e, ainda, se a consagração constitucional da dignidade humana e dos direitos fundamentais representa a garantia dos direitos de personalidade.

            Para o mesmo Autor não há identificação de categorias. Afirma que Os direitos fundamentais vão muito mais longe. Atribuem direitos a organizações, que não são já pessoas. Espraiam-se por direitos sociais, económicos e culturais, que não são direitos de personalidade. Abrangem as garantias, que em si não são direitos de personalidade.

Na mesma lógica, no centro do direito de personalidade deve estar a defesa da pessoa humana como tal. Assim, ainda no entender de Oliveira Ascensão, semelhante objectivo só lateralmente pode ser prosseguido pelos direitos fundamentais o que pode significar que nem sequer se pode dizer que todo o direito de personalidade, materialmente assim considerado por representar imposição da personalidade ôntica, deva por isso ser acolhido como direito fundamental.[2][3]

II

 Como quer que seja é linear que, quer se encontre o seu fundamento imediato numa dignidade do Homem de natureza constitucional de que irradia directa e imediatamente a protecção de direitos fundamentais, quer nos reportemos a uma mediação dos direitos da personalidade, de ADN juriscivilista, o certo é que tal potencial diferente genética não determina qualquer alteração naquilo que consideramos constituir o valor jurídico protegido com a qualificação em causa.

            Está em causa o aviltamento e a degradação da pessoa isto é a sua transformação em coisa numa indiferença perante a sua condição humana. Dito por outras palavras, e na sua aplicação ao caso vertente, o que importa é definir se o corte de cabelo imposto à vítima;  o facto de a mesma ser obrigada a despir-se ou o derrame de um liquido que provocava ardor consubstanciam, ou não, tal indiferença pela pessoa, ou seja, tal desprezo pela sua dignidade.

            A resposta é, em nosso entender, indubitavelmente afirmativa e nem sequer é necessário recorrer a grandes significações simbólicas para traduzir o desprezo pela dignidade da vítima que aqueles actos consubstanciam.

Não descuramos a circunstância de o conceito de degradação poder assumir uma diferente tonalidade consoante a forma como a ofensa se concretize e que a intensidade do menosprezo inscrito na conduta do agente pode apresentar-se duma forma policromática. Desde as situações que pouco relevo apresentam, e integradoras de situações de fronteira, até à abissal negação da condição humana vai toda uma panóplia de circunstâncias que, como é evidente, devem ser valoradas diferentemente. Porém,  os actos a que a vítima foi sujeito contêm o gérmen e  sentido que integram aquela mesma negação da dignidade.

II

Importa agora definir a medida da pena em função dos factos considerados provados e necessariamente em função da culpa e da ilicitude reveladas no acto ilícito praticado

Revisitando o pensamento já expresso em anteriores decisões deste Supremo Tribunal de Justiça, e tomando como referência Jeschek, o ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação. Aqui, é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, compreendendo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena.

Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial. Por consequência a pena deve ponderar, também, a forma de contribuir para a reinserção social do arguido e de não prejudicar a sua posição social para além do estritamente inevitável.

Por fim a prevenção geral é um fim indispensável da pena pois que esta deve ser ponderada por forma a neutralizar os efeitos do delito como exemplo negativo para a comunidade e deve contribuir, simultaneamente, para fortalecer a sua consciência jurídica assim como a satisfazer o pedido de justiça por parte do círculo de pessoas afectadas pelo delito e pelas suas consequências (confirmação da ordem jurídica).

Nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena, ao invés da preponderância que alguns, entre os quais Jakobs, outorgam á prevenção geral, colocando-a acima da retribuição da culpa pelo delito quando é esta, na realidade, que justifica a intervenção penal. Na verdade, as normas deveriam “ser reafirmadas na sua própria existência como um fim em si mesmas” enquanto o agente, pelo contrário, tem direito a esperar, e espera, sobretudo uma resposta ao facto injusto e culposo que cometeu. Realçando-se a prevenção como critério fundamental desvanece-se, com prejuízo da justiça individual, a orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção.

A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente uma finalidade da mesma. 

……………               Em termos dogmáticos é fundamento da individualização da pena a importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo delito (conteúdo da culpa).

Não obstante, estes dois factores básicos para a individualização da pena não se desenvolvem paralelamente sem relação alguma. A culpa jurídico-penal afere-se, também, em função da ilicitude; na sua globalidade aquela encontra-se substancialmente determinada pelo conteúdo da ilicitude do crime a que se refere a culpa.

A ilicitude e a culpa são, assim, conceitos graduáveis entendidos como elementos materiais do delito. Isto significa, entre outras coisas, que a intensidade do dano, a forma de executar o facto a perturbação da paz jurídica contribuem para dar forma ao grau de ilicitude enquanto que a desconsideração; a situação de necessidade; a tentação as paixões que diminuem as faculdade de compreensão e controle; a juventude; os transtornos psíquicos ou erro devem ser tomados em conta para graduar a culpa.

A dimensão da lesão jurídica mede-se desde logo pela magnitude e qualidade do dano causado, devendo atender-se, em sentido atenuativo ou agravativo, tanto as consequências materiais do crime como as psíquicas. Importa, ainda, considerar o grau de colocação em perigo do bem jurídico protegido quer na tentativa quer nos crimes de perigo.

A medida da violação jurídica depende, também, da forma de execução do crime. A vontade, ou o empenho empregues na prática do crime são, também, um aspecto subjectivo de execução do facto que contribui para a individualização. A tenacidade e a debilidade da vontade constituem valores angulares do significado ambivalente da vontade que pode ser completamente oposto para o conteúdo da ilicitude e para a prevenção especial. Conf. Jeschek Tratado de Direito Penal” ed espanhola pag 780

                                                                    *

Face a esta explanação de natureza teórica, e que apenas pode relevar como premissa na lógica que nos leva á individualização da pena no caso concreto, impõe-se, agora, a consideração das circunstâncias singulares que este revela.

            No que concerne a esta matéria impõe-se em primeiro lugar atribuir um carácter vincante, na medida da pena, às necessidades de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de infracções em que está em causa o valor nuclear da própria liberdade. É imperioso que a comunidade esteja certa de que as violações dos laços mais básicos de relação social sejam penalizados com adequada punição.

            No caso concreto o crime imputado-artigo 161 nº2 alínea b) do Código Penal- é punido com pena entre três e quinze anos. As circunstâncias que levam á qualificação do crime e que, consequentemente, integram o tipo não devem ser tomadas em consideração na medida pois que a tal conduz o princípio da dupla valoração. Como refere Figueiredo Dias  Sob esta sua mais simples formulação, o princípio tem urna justificação quase evidente: não devem ser utilizadas pelo juiz para determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto; e portanto não apenas os elementos do tipo-de-ilícito em sentido estrito, mas todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena. Desta perspectiva se toma claro que o princípio da proibição de dupla valoração surge só, na sua forma de aparecimento imediata, como urna consequência necessária do sistema.-

             Para além das referidas razões de prevenção a nível geral os elementos constantes dos autos são parcos em qualquer referência susceptível de ser valorado em função dos critérios que devem nortear a medida da pena. Na verdade, o percurso de vida do recorrente é linear, anotando-se que na origem dos presentes autos está o tráfico de estupefacientes e o acordo existente com a vítima para esta ser “correio de droga”, o que não invalida a circunstância de o mesmo recorrente não ter qualquer condenação a onerar o seu perfil criminal.

    O arguido, e recorrente, não prestou declarações o que, não o podendo prejudicar, implica que não seja susceptível de valoração qualquer atitude de colaboração.

            A culpa revelada no dolo é uma culpa intensa que se projetou numa conduta ilícita que se prolongou no tempo, por mais de vinte e quatro horas, durante as quais ao cerceamento da liberdade se associou a ofensa à integridade física. A ilicitude global retratada nos factos é grande e é exponenciada pelo número de pessoas envolvidos e pela motivação que animava os intervenientes.

            Ponderando os concretos factores de medida da pena estamos em crer que uma pena que se aproxime sensivelmente do meio da moldura legal aplicável se adequa às finalidades da punição o que, quantificando, indicará uma pena de oito anos e seis meses de prisão pela prática do crime de rapto agravado, p. e p. pelos arts. 161.º n.º1 al.c) n.º 2 al.a) ex vi o disposto no art.º 158.º n.º 2 al.b) do C.P. a qual se entende por adequada.

            Operando o necessário cúmulo jurídico com a pena aplicada pela prática do crime de falsificação previsto e punido nos termos do artigo 261-oito meses de prisão-e em cumprimento do disposto no artigo 77 do Código Penal entende-se por adequada a pena de nove anos de prisão.

                             

Termos em que se julga parcialmente procedente o recurso interposto por  AA aplicando-se ao mesmo a  pena de 8 anos e 6 meses de prisão pelo crime de rapto agravado, p. e p. pelos arts. 161.º n.º1 al.c) n.º 2 al.a) ex vi o disposto no art.º 158.º n.º 2 al.b) do C.P. Operando o cúmulo jurídico da mesma pena com a pena de 8 meses de prisão pelo crime de utilização de documento de identificação alheio, p.e.p. pelo art.º 261.º n.º 1 do C.P. condena-se o mesmo recorrente na pena única de 9 anos de prisão,

Sem custas

Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes

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[1] Derecho penal, constitución y derechos;  Bosch Editor: 2013  Barcelona. España

[2] Pessoa, Direitos Fundamentais e Direitos da Personalidade Revista Mestrado em Direito OSASCO Ano 6 ; nº1 2006 pag 145 e seg
[3] Para Manuel Pita  invariavelmente, o artigo 70º do Código Civil é dos mais importante para efeitos da juspersonalistica levando  a cabo uma distinção relevante entre personalidade física e moral. é inequívoco que o artigo 70º protege quer os bens ligados à realidade física de cada homem (como a sua vida e a sua integridade física), quer os bens resultantes da sua específica racionalidade, que lhe atribui a categoria de centro autónomo, livre paritário e capaz de concepção e assunção de finalidades de acção (como a sua existência moral, a sua liberdade e a sua honra). Contudo, segundo Capelo de Sousa «o nosso legislador ao empregar a expressão «personalidade física e moral» tem subjacente como bem jurídico unitário e global a personalidade humana, que, com aquelas designações pretende tão só concretizar e explicitar melhor»; isto é apesar da dualidade física e moral, ser fenoménico e ser nouménico, essa dualidade sintetiza-se no carácter unitário da natureza humana.