Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
00P2745
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: PODERES DE COGNIÇÃO
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONVOLAÇÃO
PECULATO
BURLA
ABUSO DE CONFIANÇA
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/08/2001
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Área Temática: DIR PROC PENAL * RECURSOS * DIR PENAL
Sumário : 1 - O acórdão uniformizador de jurisprudência n.° 4/95, de 7.6.95 (DR IS-A de 6-7-95 e BMJ n.º 448 pág. 107) que decidiu: "o Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus", e assento n.º 2/93 do STJ, em cuja senda aquele se situa, reformulado, na seguinte forma (Assento n.º 3/2000, 15-12-1999, DR IS-A de 11-2-2000.): "Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo, ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a respectiva defesa." fundam-se na ideia de que constitui núcleo essencial da função de julgar, o enquadramento jurídico dos factos apurados, a determinação do direito, pelo que não está limitada por errado enquadramento que haja sido feito pelos interessados ou pelas partes.
2 - Ideia reafirmada no mencionado acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95 com redobrado valor, tratando-se já não de pronúncia, mas de sentença penal condenatória que potencia o exame e crítica em via de recurso e que ganha ainda maior sentido tratando-se, como se trata, de um recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, cuja natureza e funções tornariam incompreensível que, detectado um erro de direito em relação a uma condenação submetida a recurso, se abstivesse de o corrigir, mesmo tratando-se de fazer respeitar a sua jurisprudência obrigatória, defesa cuja importância justifica, só por si, a existência de um recurso extraordinário próprio - o do art. 446.º do CPP.
3 - Ainda que o recorrente não ponha concretamente em causa a incriminação definida pelo Colectivo (no caso, o objecto do recurso circunscreve-se à questão da medida da pena aplicada), não pode nem deve o STJ - enquanto tribunal de revista e órgão, por excelência e natureza, mentor de direito - dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções.
4 - Sendo o Supremo Tribunal um tribunal de revista, só conhece de direito e estando em causa a medida da pena irá sindicar a aplicação da lei punitiva curando de saber da sua legalidade. Mas para poder exercer esse controlo necessário se torna saber se a lei aplicada ou cuja aplicação é solicitada é a que cabe ao caso. O mesmo é dizer que só pode apreciar da subsunção dos factos ao direito se a norma em causa for a aplicável. Se chegar à conclusão que não é a norma aplicável não pode ficcionar a sua aplicabilidade para apreciar a aplicação que teve em concreto lugar.
5 - Se está em causa não a possibilidade de reformatio in pejus, mas sim de reformatio in melius, uma vez que está equacionada a possibilidade de se entender que a matéria de facto apurada não integra o tipo legal do crime em causa, diversamente do que foi entendido pelo Tribunal a quo, isso significa que uma vez que o arguido foi acusado (e até condenado) como autor de dois desses crimes, foi exercido o princípio do contraditório na acepção mais exigente, pelo que está completamente afastada a ocorrência de surpresa para a defesa, que foi indicada, como limite à apreciação da subsunção.
6 - Como vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça, no crime de peculato o funcionário apropria-se ilegitimamente, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções.
7 - Trata-se de um delito específico em que a lei exige a intervenção de pessoas de um certo círculo, no caso, um funcionário, diversamente do que sucede com os tipos legais de crime, em geral, nos quais os factos podem ser levados a cabo por qualquer pessoa.
8 - O peculato pode-se apresentar como um crime de abuso de confiança qualificado, face à evidência das semelhanças na delineação do tipo, posta a nu pela confrontação do n.º 5 do art. 205.º do C. Penal com o n.º 1 do art. 375.º, estabelecendo-se uma relação de especialidade que conduz a um concurso aparente.
7 - São elementos do crime de burla:
- intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;
- por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;
- determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.
8 - Se o funcionário, tesoureiro do organismo público, podia movimentar as contas bancárias deste e endossou a si mesmo cheques, as entidades bancárias pagaram esses cheques por tal razão e não por terem sido induzidas astuciosamente em erro, além de se não demonstrar um prejuízo autónomo diverso do causado pelo peculato.
9 - E se foi a acessibilidade, conferida pelas funções de tesoureiro do organismo, que o arguido aproveitou, apropriando-se dos valores em seu benefício, os estratagemas de que se serviu podem integrar a prática de outros crimes mas não se singularizam como manobras astuciosas com vista à prática do crime de burla em face das entidades bancárias - as pretensas burladas.
Decisão Texto Integral: