Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Dizendo-se proprietária, por doação verbal de seus pais, de um prédio rústico, que identifica, onde, com conhecimento e autorização deles, construiu a sua habitação, e usurpada nos seus direitos por parte dos réus, mediante a abusiva inscrição a seu favor e dos próprios autores, em comum e sem determinação de parte ou direito, na Conservatória do Registo Predial, da casa construída, os autores A e marido B pedem a condenação dos réus C e outros
a) - a reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano identificado no artigo 5º da petição;
b) - a reconhecer e respeitar que o direito de propriedade dos autores sobre a casa identificada no artigo 5º e do terreno identificado no artigo 2º da petição, onde a mesma foi edificada, lhes adveio através do instituto da usucapião;
c)- se assim se não entender, sempre a reconhecer e respeitar que por acessão industrial imobiliária os AA adquiriram a propriedade do prédio rústico identificado, mediante o valor que o mesmo tinha antes da construção da casa;
d) - verem cancelados todos e quaisquer registos efectuados a seu favor, designadamente aquele que foi feito com base na relação adicional de bens, por óbito de D, relativamente à casa referida; e
e) - indemnizar os autores por danos morais, no montante de 500.000$00, e patrimoniais a liquidar em execução de sentença.
Na contestação os réus, apresentando diversa versão dos factos, qualificam de "farsa laboriosamente construída" a acção e de "pura fantasia" o pedido indemnizatório, pois nunca os pais da A. lhe deram o identificado terreno nem foi ela, mas sim os pais, quem construiu a casa nele existente.
Saneado e condensado o processo, procedeu-se a julgamento com intervenção do Colectivo que decidiu a matéria de facto perguntada no questionário a que se seguiu sentença a decretar, no essencial, a procedência da acção.
A Relação de Coimbra anulou o julgamento por contradição entre as respostas aos quesitos 13º e 23º, na sequência do que se procedeu a 2° julgamento e foi proferida nova sentença que, julgando procedente a acção, condenou os réus nos pedidos referidos nas alíneas a), b), d) e e), reduziu o montante da indemnização líquida a 400.000$00, e ainda, condenou os RR, como litigantes da má fé, na multa de 200.000$00.
Inconformados, apelaram os RR, mas a Relação confirmou inteiramente o julgado, depois de manter intacta a matéria de facto apurada pelo Colectivo.
Ainda irresignados, pedem os RR revista, insistindo na revogação do decidido por estarem plenamente provados factos que tal determinam, ser exagerado o montante arbitrado por danos não patrimoniais e não terem sido definidos os critérios tidos por relevantes para a determinação da medida da multa
Tudo como se vê da alegação que coroaram com as seguintes Conclusões
1- O doc. de fs. 353, ao contrário do referido no douto Acórdão recorrido, não é a relação de bens - é sim uma declaração feita pela Recorrida, em seu próprio nome (e não a rogo da cabeça-de-casal), na qual a mesma declara que "a favor dos interessados mencionados no termo de declaração de folhas 2 (nos quais se inclui a própria Recorrida) não se operou qualquer outra transmissão de bens a título gratuito, provinda do autor da sucessão".
2 - Esta declaração foi feita perante um oficial público (funcionário da repartição de finanças) em 26/3/1984, pelo que faz prova plena de que a Recorrida esteve no dia 26/3/1984 na Repartição de Finanças e que aí prestou as supra referidas declarações.
3 - Assim, ao contrário do referido no douto Acórdão recorrido, este termo de declaração feito pela Recorrida em 26/3/1984 é um documento autêntico, nos termos dos art. 369º e seguintes do Código Civil, sendo que a certidão constante do processo a fls. 349 e seguintes também terá essa mesma força probatória plena em virtude do disposto no art° 383º do Código Civil.
4 - Deste modo, encontra-se plenamente provada pelo documento autêntico de fs. 353, assinado pela Apelada (em seu próprio nome), a declaração feita por esta em 26/3/1984 de que a seu favor (e dos restantes interessados) não se operou qualquer transmissão de bens a título gratuito, provinda do autor da sucessão (D);
5 - Acresce que não foi arguida a falsidade desse documento pela Recorrida e que esta aceitou que a assinatura aí contida era sua (cfr. fls. 358).
6 - Assim sendo, estando a autoria reconhecida (art. 371° do Código Civil), o documento supra referido faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor e consideram-se provados os factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses da declarante (art. 376°, n.º 2º do Código Civil);
7 - Tal documento constitui ainda uma confissão expressa, feita pela Recorrida perante os
restantes herdeiros, de que o terreno não lhe tinha sido doado, nos termos do art. 358°, n° 2, do Código Civil, sendo mais uma razão pela qual esse documento e os factos nele contidos têm força probatória plena.
8 - Sendo assim, tal facto devia ter sido julgado provado pelo douto Acórdão recorrido, nos termos do art° 659°, n° 3 e 712°, n° 1, al. b) do C.P.C., por estar plenamente provado por documento e por ter sido alegado pelos Recorrentes, na sua contestação, que não houve qualquer doação do terreno a favor da Recorrida;
9 - Acresce que, em consequência, não devia ter sido julgado provado o quesito 1°, uma vez que aí se dá por provado, com base em prova testemunhal, que o falecido D e mulher C, ora Recorrente, tinham transmitido (doado) à Apelada, a título gratuito, o terreno identificado em C) para esta aí construir uma casa; assim, atento o supra referido documento, não era admissível a prova testemunhal desse quesito 1°, nos termos do art° 393°, n° 2 do C.C. (ou, de qualquer modo, nos termos do art° 394°, n° 1 do mesmo Código);
10 - Pela mesma razão, não devia ter sido julgado provado o quesito 13°, na parte em que diz que a Apelada sempre utilizou o terreno "na convicção de ser dona do mesmo" (animus);
11 - De qualquer modo, sempre o referido documento e as respectivas declarações da Recorrida (fls. 353) constituirão um reconhecimento, perante a cabeça-de-casal e restantes herdeiros, de que o terreno não lhe foi doado e que, como tal, continuava a pertencer à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de D;
12 - Ou seja, sempre provocará a interrupção do prazo de usucapião, nos termos do art° 325° do Código Civil, ex vi do art° 1292° do mesmo Código;
13 - Assim sendo, em 19/6/96, data da interposição da acção, ainda não estavam decorridos os 15 anos necessários para a usucapião (nem posteriormente à interposição da acção tal prazo se completou, uma vez que a instância foi declarada interrompida por despacho de 5/12/97);
14 - Como a usucapião sobre o terreno não pode proceder, mesmo que se considerasse que foi a Autora/Recorrida quem construiu a casa, pagando-a, tal construção foi feita com materiais próprios em terreno alheio, pelo que só pelo fenómeno da acessão industrial imobiliária poderiam os Autores/Recorridos adquirir o direito sobre o terreno e sobre a casa, dependendo do valor de uma e outra;
15 - Como tais valores não se encontram determinados, uma vez que os quesitos 14° e 15° foram julgados não provados, deverá a acção ser julgada improcedente por não provada;
16 - Assim sendo, ao não decidir deste modo, o douto Acórdão recorrido violou o disposto nos art. 358°, 371 °, 376°, n° 2, 383°, 393°, n° 2, 394°, n° 1, 1292°, 325° e 134º do Código Civil e nos arts 653°, n° 2, 659°, n° 3 e 712°, n° 1, al. b) do Código de Processo Civil, como tal devendo ser revogado;
17 - Devia ter sido julgado provado na resposta ao quesito 23° que foi a Autora/Recorrida quem apresentou a relação de bens, ou seja, que foi ela quem esteve na Repartição de Finanças, perante o respectivo funcionário, a apresentar essa relação no dia 26/3/84 (altura em que fez também a declaração supra referida em 1 destas conclusões), uma vez que tal está plenamente provado pelo documento autêntico de fls. 349 e seguintes;
18 - Este facto traduz também um reconhecimento tácito dos direitos da herança ao terreno em disputa, nos termos do art° 325°, n° 2 do C.C., com a inerente interrupção do prazo de usucapião invocado pela Autora/Recorrida, ex vi do art° 1292° do C.C.;
19 - Ao não decidir assim, violou o douto Acórdão recorrido o disposto nos arts 646°, n° 4, 659°, n° 3 e 712°, n° 1, al. b) do C.P.C. e nos arts. 371 °, 325°, n° 2 e 1292 do Código Civil;
20 - Por cautela, refira-se também que o douto Acórdão recorrido, ao decidir manter os danos não patrimoniais arbitrados, violou o princípio da equidade e, consequentemente, o disposto no art° 496°, n° 3, do Código Civil, uma vez que tais danos foram computados em montante exagerado, nomeadamente tendo em conta o nível de vida médio nesta zona rural do país;
21 - O douto Acórdão recorrido, ao manter a condenação em litigância de má-fé e ao não definir (tal como já tinha sucedido na sentença proferida em 1ª instância) os critérios que foram relevantes para a determinação da medida da multa, violou o disposto nos art. 158°, 456° e 457° do Código de Processo Civil e 102° do Código das Custas Judiciais, como tal devendo ser revogado.
A A. Recorrida respondeu em defesa do decidido.
Correram os vistos de lei.
Os Recorrentes suscitam-nos as questões de saber se:
I - O termo de declaração junto a fs. 353 é documento autêntico e, como tal, prova plenamente a declaração feita pela ora A. Recorrida de que a seu favor (e mais herdeiros) não se operou qualquer transmissão de bens a título gratuito, provinda do autor da sucessão D - conclusões 1ª a 6ª;
II - Tal documento constitui confissão expressa da Recorrida perante os restantes herdeiros de que o terreno não lhe tinha sido doado - conclusão 7ª -
III - pelo que tal facto (não houve doação do terreno a favor da Recorrida), alegado pelos Recorrentes na contestação devia ter sido julgado provado pelo Tribunal recorrido (8ª), e não provados os quesitos 1º - por ser inadmissível a prova testemunhal a facto provado por documento ou confissão (9ª) e 13º, na parte tocante ao animus - (conclusão 10ª).
IV - Sempre o referido documento (e respectivas declarações da Recorrida) constitui reconhecimento perante a cabeça de casal e restantes herdeiros de que o terreno não lhe (à Recorrida) foi doado, provocando a interrupção do prazo em curso e a improcedência da usucapião por à data da propositura da acção ainda não terem decorrido os quinze anos necessários para tanto (11ª a 13ª);
V - Também a acção não pode proceder por via da acessão industrial imobiliária dado que os quesitos 14º e 15º a tal atinentes foram julgados não provados - conclusões 14ª e 15ª.
VI - Devia ter sido julgado provado, na resposta ao quesito 23º, que foi a A. quem apre-sentou a relação de bens, facto plenamente provado pelo documento de fs. 349 e ss - conclusão 17ª - o que traduz reconhecimento tácito dos direitos da herança ao terreno em disputa com inerente interrupção do prazo de usucapião invocado pela A. Recorrida - 18ª.
VII - Os danos não patrimoniais foram computados em montante exagerado (20ª).
VIII - Se é de manter a condenação por má fé (21ª).
Para tal decidir é mister ver que a Relação teve por assentes os seguintes Factos
1. A A. e RR. E, F, G e H são filhos da R. C e de D, falecido em 22 de Março de 1984 (al. A);
2. A A. celebrou casamento católico com B no dia 23 de Dezembro de 1995, conforme resulta do documento de fls. 21 (al. B);
3. O terreno de mato sito à Barranha, a confrontar do norte com I, de nascente com J herdeiros e outro, sul com caminho e poente com I, com a área de 180 m 2, inscrito sob o art. 850 da Freguesia de Avô, concelho de Oliveira do Hospital, está inscrito na matriz (1). predial da freguesia de Avô, Oliveira do Hospital, a favor de D, conforme resulta do documento de fs. 8 (al. C);
4. A casa de habitação composta de rés do chão esquerdo e r/c direito amplos, que medem 34 m2 e 35 m2; 1º andar com 4 divisões, cozinha e uma casa de banho, e 2º andar com 4 divisões, cozinha e uma casa de banho iguais às do 1º andar, e sótão amplo, a confrontar do norte com E, sul com caminho público, nascente com L e do poente com I, está inscrita na matriz sob o artigo 596 da freguesia de Avô concelho de Oliveira do Hospital, a favor da A. (al. D) e
5. encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Hospital com o n° 657/960514, da freguesia de Avô, a favor de C e herdeiros de D, em comum e sem determinação de parte ou direito, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão na herança de D - fs. 23 a 25 (al. E);
6. O terreno identificado em C) e a casa descrita em D) fazem parte, o primeiro da relação de bens, e o segundo da relação adicional de bens, efectuadas por óbito de D (al. F);
7. A A. pagou a contribuição autárquica e a contribuição predial referentes à casa descrita em D), nos anos de 1990 a 1995, inclusive (doc. de fls. 14 a 19) e de 1985 a 1989 (doc. de fls. 152 a 156), respectivamente (al. G);
8. E requereu a ligação eléctrica e a ligação da água à rede pública para a casa identificada em D) (al. H);
9. E solicitou à Câmara Municipal de Oliveira do Hospital a aprovação do projecto e licenciamento necessários à construção da referida casa (al. I);
10. o projecto inicial de construção e a alteração posterior foram executadas por J residente em Arganil ( al. J);
11. Em data não determinada anterior ao ano de 1979, D e mulher C, entregaram à A., sem pagamento de preço, o terreno identificado em C) e autorizaram-na a ali construir uma casa. ( resposta ao Quesito 1°).
12. Foi a A. que custeou as despesas inerentes à elaboração da planta de construção, aquisição de materiais necessários à edificação da casa e pagamento aos trabalhadores (Quesito 2°);
13. Em 1979, depois de obtido o respectivo alvará de construção, esta iniciou - se relativamente à casa cujo projecto era composto de r/c e 1 ° andar, destinando-se o r/c a lagar de vinho e zona de apoio às actividades agrícolas. (Quesito 4°);
14. O projecto inicial foi alterado com um acrescento de um 2° andar ( Quesito 5°);
15. As referidas obras de construção ficaram concluídas no Verão de 1980, ficando apenas por finalizar a colocação de madeiras no chão dos quartos e da sala do 2° andar - serviços estes que ainda hoje não se encontram realizados ( Quesito 7°);
16. Em data não apurada, os pais da A. passaram a residir junto de si (Quesitos 8°, 10° e 11°);
17. E a partir do ano lectivo de 1981/1982 a A. passou a viver na casa referida em D) continuando a viver ali sozinha com a sua mãe após a morte do pai e até 23 de Dezembro de 1995 (Quesito 12°)
18. Desde 1978, a A. sempre utilizou o terreno identificado em C) e a casa descrita em D), à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, de forma continuada e ininterrupta, na convicção de ser dona dos mesmos. (Quesito 13.°);
19. Desde o casamento da A., os RR passaram a hostilizá-la e a votá-la ao ostracismo (Quesito 16°)
20. E começaram a afirmar que a dita casa era pertença do pai, que lhes cabia por herança (Quesito 17°);
21. Os RR sabiam que a referida casa pertencia à A. (Quesito 19.°);
22. Os AA sentiram-se vexados e humilhados com a actuação dos RR (Quesito 20°);
23. Os RR impediram e impedem os AA de usar livremente o prédio e de o vender, provocando-lhe continuamente grandes prejuízos económicos (Quesito 21°);
24. Após a doença que atingiu o pai, em Dezembro de 1983, a A. participou a construção da casa, inscrevendo-a na respectiva matriz (Quesito 22°);
25. Foi M, solicitador de Oliveira do Hospital, quem elaborou a relação de bens do falecido D, que consta do doc. de fls. 101 e 102, a qual foi assinada pela Autora, a rogo da Ré, cabeça de casal, C, por esta não saber assinar (Quesito 23°);
26. O pai da A. recebia uma pensão mensal por invalidez e era pessoa activa e trabalhadora, dedicando-se a várias actividades, nomeadamente agrícolas, como, por exemplo, cultivava os alimentos necessários ao seu consumo, fazia vinho, trabalhava no lagar de S. Sebastião da Pedreira, limpava oliveiras e fazia cobranças nas feiras de Avô e Lourosa (resposta ao quesito 25º);
27. A mãe vendeu todos os bens que possuía em Anseriz, bens que tinha herdado por óbito de seus pais (quesito 26º).
Tendo em vista as questões a decidir e aplicando a estes factos o Direito
Começaremos por dizer que, ao menos de acordo com o alegado, o Tribunal recorrido errou na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa por violação do disposto nos art. 358º, 371º, 376º, n.º 2 , 393º, n.º 2 e 394º, n.º 1, do CC.
Porque estas normas fixam o valor probatório de documentos e confissão, aquele suposto erro é censurável por este Tribunal, nos termos da segunda parte do n.º 2 do art. 722º do CPC.
I - Ao contrário do que se diz no Acórdão recorrido, o documento de fs. 353 não é a relação de bens, junta a fs. 101 e, agora, a fs. 355/356. O questionado documento é o Termo de Declaração tomado (nos termos do art. 64º do Código do Imposto sobre as Sucessões e Doações) no processo de imposto sucessório n.º 17547, instaurado em 26 de Março de 1984, por óbito do pai da A. e seus irmãos, ocorrido quatro dias antes.
De tal Termo de Declaração consta que aos 26 de Março de 1984, na Repartição de Finanças de Oliveira do Hospital, compareceu A ... na qualidade de herdeira e disse que a favor dos interessados mencionados no termo de declaração a fs. 2 não se operou qualquer outra transferência de bens a título gratuito, provinda do autor da sucessão.
Este Termo de Declaração mostra-se assinado pela referida A e pelo técnico tributário e foi elaborado na sequência de notificação efectuada no mesmo dia à declarante - que na qualidade de herdeira prestara as declarações iniciais, dando conta do falecimento de seu pai e relacionando os herdeiros, cônjuge e filhos, sua mãe e irmãos - para declarar, em 60 dias e em conformidade com o art. 63º do referido Código, se tem ou não conhecimento de que a favor dos interessados por ele mencionados se operou outra transmissão por título gratuito provinda do autor da sucessão e, em caso afirmativo, qual a natureza do acto e sua data, bem como a Repartição de Finanças onde foi instaurado o processo respectivo.
O referido Termo de Declaração constitui documento - objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto, como se exprime o art. 362º do CC - lavrado por técnico tributário encarregado do processo de liquidação do imposto devido pela sucessão mortis causa do pai de A. e seus irmãos, com as formalidades legais e dentro do círculo de actividades que é atribuído a tais funcionários de finanças. É, pois, documento autêntico, como definido nos art. 363º, n.º 2 e 369º, n.º 1, ambos do CC.
Nos termos do art. 371º do CC, o documento autêntico faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo e dos que no documento são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
Conforme ensinamento do Senhor Professor Almeida Costa (2) decorre linearmente do art. 371º, nº 1, CC, que "a força probatória plena do documento autêntico não abrange tudo o que nele se diz ou contém, havendo antes que estabelecer distinções de modo a precisar os limites dentro dos quais aquele valor probatório é reconhecido. Assim, de acordo com o aludido preceito, o documento autêntico só faz prova plena:
a) - Dos factos que o documento refere como praticados pela própria entidade documentadora;
b) - Daqueles que, não tendo sido praticados pelo documentador, foram por ele atestados com base nas suas percepções.
O documento autêntico prova, pois, plenamente, os factos que foram objecto das acções ou percepções da entidade documentadora. Porém, como é evidente, tal força probatória só poderá ir até onde alcançam as percepções do documentador. Deste modo se compreende que os meros juízos pessoais (as simples apreciações) do documentador sejam excluídos por lei da força probatória plena, já que transcendem a área das percepções do oficial público. Por idêntica razão, quer dizer, por não se tornar possível ao documentador aperceber-se disso pelos seus próprios sentidos, o documento também não prova plenamente a sinceridade ou veracidade dos factos atestados, nem a validade e eficácia jurídica dos actos e declarações documentados.
Trata-se de posições desde há muito sustentadas no direito português e que derivam do próprio fundamento da atribuição de uma tal eficácia probatória aos documentos autênticos: a fé pública de que se encontra revestida a entidade documentadora, incumbida por lei de imprimir certeza e autenticidade a determinados actos, a qual, por sua vez, se baseia nas garantias de veracidade proporcionadas pelo cuidado que é posto na sua nomeação e na fiscalização do exercício das respectivas funções. Como se afigura natural, essa fé pública só pode abranger os factos de que o funcionário foi agente ou testemunha.
Tomemos a hipótese, mais comum, de uma escritura pública em que o notário atesta que, perante ele, os outorgantes emitiram determinadas declarações. De acordo com a doutrina exposta, aquele documento autêntico faz prova plena de que, na presença do notário, foram proferidas tais declarações; mas já não prova plenamente que essas declarações sejam sinceras e verdadeiras ou que sejam válidas e eficazes (3). Não fica, portanto, plenamente provado que as declarações dos outorgantes não se encontrem afectadas por vícios do consentimento ou que não se tenha verificado uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real dos outorgantes.
O documento apenas certifica a emissão da declaração (a materialidade dos factos ocorridos na presença do notário) e não a veracidade do seu conteúdo ou a ausência de qualquer vício ou anomalia. Deste modo, se, por exemplo, numa escritura pública de compra e venda, o vendedor declara ter recebido do comprador o preço convencionado, essa escritura só faz prova plena de que o vendedor emitiu a declaração perante o notário, nada impedindo que mais tarde se prove a existência de erro ou de simulação e que o preço ainda não foi efectivamente pago".
O mesmo ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, I, nota 1 ao art. 371º, Vaz Serra, na RLJ 110-83 e ss, e variadas decisões dos Tribunais Superiores, como indicado naquelas obras e na RLJ 129-352, nota 10.
No caso em apreço, o documento de fs. 353, o tal Termo de Declaração prova plenamente que no dia 26 de Março de 1984 compareceu na Repartição de Finanças de Oliveira do Hospital a ora A. e Recorrida A, na qualidade de herdeira de seu falecido pai, que disse ao funcionário documentador, o técnico tributário encarregado do processo de liquidação do imposto sucessório, que a favor dos interessados por si indicados como herdeiros - ela mesma, sua mãe e irmãos - não se operou qualquer outra transmissão de bens a título gratuito, provinda do autor da sucessão.
Provado fica, pois - mas não mais - a comparência e esta declaração da herdeira que tem de ser entendida no contexto em que foi produzida, no âmbito do processo de liquidação do imposto sucessório, numa altura em que estava já construída e participada à matriz a casa começada a erguer no terreno litigado em 1979.
Não resulta provado de tal documento que não ocorreu a doação do terreno em apreço nem a declaração documentada a tal se referia.
A tratar-se de documento particular assinado pela declarante - 363º, n.º 2, parte final, 373º, n.º 1, 374º, n.º 1, do CC - ficariam plenamente provados, apenas, a declaração prestada e os factos nela compreendidos, na medida em que forem contrários aos interesses da declarante (art.376º, n.º 2, CC).
A declaração prestada será, quando muito, omissa quanto àquela doação anterior a 1979, mas dela não resulta provado que tal doação não ocorreu.
Pelo que improcede o concluído de 1ª a 6ª.
II e IV - Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art. 352º CC) e diz-se extrajudicial sempre que feita por qualquer modo diferente da confissão judicial (art. 355, n.os 1, 2 e 4, CC).
A declaração confessória deve ser inequívoca - art. 357º, n.º 1 - e se vertida em documento (autêntico ou particular) considera-se provada nos termos aplicáveis a tal documento; feita à parte contrária ou a quem a represente, a confissão tem força probatória plena - art. 358º, nos 1 e 2, CC.
Ora, a declaração prestada perante o técnico tributário encarregado do processo de liquidação do imposto sucessório de que a favor dos interessados por si indicados como herdeiros - ela mesma, sua mãe e irmãos - não se operou qualquer outra transmissão de bens a título gratuito, provinda do autor da sucessão, não traduz reconhecimento expresso nem tácito, muito menos feito perante os restantes herdeiros, de que seu pai não lhe doara o terreno em que, ao longo de vários anos, construiu a casa já então inscrita na matriz em nome dela. E à vista deste anterior comportamento da declarante, sempre seria equívoca a declaração confessória que se pretendesse extrair daquela declaração.
Manda a lei (art. 1292º CC) aplicar à usucapião (a antiga prescrição aquisitiva) com as necessárias adaptações e entre outras, as disposições relativas à interrupção da prescrição.
A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo - art. 326º, n.º 1, CC - e ocorre, além do mais (art. 323º e 324º CC), pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular, por aquele contra quem o direito pode ser exercido.
O reconhecimento pode ser expresso ou tácito, mas este só releva quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam - art. 217º, n.º 1, 2ª parte, e 325º, n.º 2, do CC.
Ora, a por demais referida declaração não foi feita nem à cabeça de casal nem aos restantes herdeiros, nem pode extrair-se dela qualquer reconhecimento pela A., nem sequer tácito, de que o terreno onde construíra a casa não lhe fora doado pelos pais e que, por isso, continuava a pertencer à herança indivisa.
Não tendo havido qualquer reconhecimento de que o terreno onde fora implantada a casa continuava a pertencer à herança indivisa não se verificou interrupção do prazo da usucapião iniciada antes de 1979 e já haviam decorrido, à data da propositura da acção, mais de quinze anos de posse boa para usucapião (art. 1296º CC).
Improcede o concluído em 7ª e 11ª a 13ª.
III - Não estando plenamente provado - por documento ou confissão - que não houve qualquer doação do terreno a favor da Recorrida, é claro que não podia o Tribunal recorrido dar esse facto como provado, a coberto do disposto na al. b) do n.º 1 do art. 712º do CPC, nem estava vedado o recurso à prova testemunhal para prova dos quesitos 1º e 13º.
Com efeito, nos termos do art. 392º do CC, a prova por testemunhas é admitida em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada e é proibida quando - art. 393º, n.º 2 - o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena, como é a confissão feita à parte contrária, nos termos do n.º 2 do art. 358º CC.
No nosso caso, não estando plenamente provado que não houve doação do terreno à Autora, bem podia esta recorrer a prova testemunhal para demonstrar a doação (quesito 1º) e, manifestamente, o animus de proprietária perguntado no quesito 13º, animus que, como é sabido, se presume em quem exerce o poder de facto (art. 1252º, n.º 2, do CC e AUJ no DR, II, de 24.6.96 e BMJ 457-55).
De resto, os RR não só se não opuseram a que a A. produzisse prova testemunhal a estes quesitos como eles próprios ouviram várias testemunhas a esta matéria.
Pelo que se desatende o concluído de 8ª a 10ª.
V - Verificada a aquisição da propriedade do terreno por usucapião {(art. 1287º, 1296º, 1ª parte, 1316º e 1317º, al. c)}, não interessa apreciar a improcedência do pedido subsidiário (art. 469º, n.º 1, CPC) de aquisição da propriedade por acessão (1316º, 1317, d), e 1340º do CC), em consequência de terem resultado não provados os quesitos 14º e 15º, atinentes aos valores do terreno antes e depois das obras. Com o que se desatende o concluído em 14ª e 15ª e não se mostram violadas as normas ditas em 16ª.
VI - Entendem os Recorrentes que se devia ter sido julgado provado na resposta ao quesito 23° que foi a Autora/Recorrida quem apresentou a relação de bens, ou seja, que foi ela quem esteve na Repartição de Finanças, perante o respectivo funcionário, a apresentar essa relação no dia 26/3/84 (altura em que fez também a declaração supra referida em 1 destas conclusões), uma vez que tal está plenamente provado pelo documento autêntico de fls. 349 e seguintes. O que traduz reconhecimento dos direitos da herança ao terreno em disputa e inerente interrupção do prazo de usucapião.
O documento de fls. 349 e ss é a certidão, por fotocópia, emitida pela Repartição de Finanças de Oliveira do Hospital, de fs. 1 a 7, inclusive, do Processo de Liquidação do Imposto Sobre as Sucessões e Doações, certidão constituída por fotocópia do respectivo requerimento (fs. 349) e certificação da fotocópia (349 v.º) capa do processo (fs. 351), termo de declaração de óbito do de cuius e seus herdeiros (351 e 352), termo de declaração de que não se operou qualquer outra transmissão de bens a título gratuito provinda do autor da sucessão (fs. 353) - estes dois termos subscritos pela aqui Recorrida - termo de apresentação da relação de bens e relação de bens subscrito aquele e esta pela A. aqui Recorrida a rogo de C (a viúva e cabeça de casal) por não saber assinar.
Já foi dito (Ac. da Relação, de 30.5.2000, a fs. 276 e 277) e redito (Ac. da Relação ora em apreciação, a fs. 432 e verso) que a relação de bens é documento particular, da autoria da cabeça de casal e não da A. Recorrida que a assinou mas a rogo da dita cabeça de casal, por esta não saber escrever (art. 373º, n.º 1, CC).
Certamente por isso os Recorrentes mudam ligeiramente o seu discurso e insistem agora que, de acordo com o documento autêntico - que seria toda a fotocópia - foi a Autora quem apresentou a relação de bens, ou seja, quem esteve na repartição de Finanças perante o respectivo funcionário a apresentar essa relação.
As certidões de teor extraídas de documentos arquivados nas repartições públicas, quando expedidas pelo depositário público autorizado, têm a força probatória dos originais (art. 383º e 387º CC).
Ora, os originais agora em apreço - termo de apresentação da relação de bens e relação de bens - estão, repete-se, assinados pela Autora mas a rogo de sua mãe, então cabeça de casal, que não sabia assinar.
E do termo de apresentação da relação de bens consta expressamente que no dia 26 de Março de 1984 e na Repartição de Finanças de Oliveira do Hospital compareceu C, viúva, na qualidade de cabeça de casal e disse que a transmissão ... se compõe dos bens que constam da relação junta ...
Portanto, não podia a Relação - nem podemos nós - alterar o decidido quanto ao quesito 23º, julgando provado que é da autoria da Recorrida a relação de bens ou que foi a A. quem a apresentou. E falhando esta premissa, cai por terra o pretendido reconhecimento dos direitos da herança e inerente interrupção do prazo de usucapião.
Improcede o concluído em 17ª e 18ª e não foram violadas as normas ditas em 19ª.
VII - Foi pedida, há mais de seis anos, a condenação dos RR a indemnizar, por danos não patrimoniais, em 500.000$00. A sentença fixou a indemnização em quatrocentos mil escudos (fs. 387) e o Acórdão recorrido manteve a condenação depois de analisar o disposto nos art. 496º, n.º 3, 494º e 564º, n.º 2, todos do CC, com expresso apelo à equidade e sopesados os seguintes factos: a humilhação, vexame e desconfiança sociais incidentes sobre os autores e ao estratégico ataque aos seus direitos pela presunçosa inscrição da casa, no registo predial, a favor de todos os herdeiros do de cuius, presuntiva da existência e titularidade do direito inscrito, há que juntar as preocupações, ansiedades e angústias de quem teve de instaurar uma (sempre) interminável e algo aleatória acção judicial para fazer valer o seu direito.
Nada temos a acrescentar ao assim dito com que se desatende o concluído em 20º.
VIII - Não sofre dúvida ser devida a condenação dos RR por litigantes de má fé. Bem sabendo eles que a casa em questão pertencia à Autora (resposta ao quesito 19º) sua filha e irmã, deduziram oposição cuja falta de fundamento bem conheciam, visando apoderar-se do que não lhes pertencia. Mostram-se, por isso, incursos nas previsões das al. a), b) e d) do n.º 2 do art. 456º do CPC.
A sentença condenou os RR, solidariamente, na multa de 200.000$00. O Acórdão recorrido manteve a condenação e seu montante, desatendendo alegação dos Recorrentes de que a sentença tinha omitido a definição dos critérios relevantes para fixação da multa. Na presente revista mantém-se a acusação, dizendo-se violado o disposto nos art. 158º, 456º e 457º do CPC e 102º do CCJ.
Não é para aqui chamado o disposto no art.. 457º do CPC que só à indemnização se refere porque não foi proferida condenação a indemnizar.
As decisões judiciais devem ser fundamentadas, que assim o impõe o art. 158º do CPC e, antes dele, o comando fixado no art. 205º, n.º 1, da Constituição.
Ora, se a sentença era omissa quanto aos critérios de determinação do montante da multa que, nos termos do art. 102º, al. a), do CCJ, varia, para os litigantes de má fé, entre 2 e 100 unidades de conta, já o Acórdão em crise entendeu adequada ao grau de culpa dos RR a condenação imposta depois de ponderar que a multa para cada um era de cerca de 22.500$00, menos que o limite legal mínimo de duas UC.
Também nós temos por razoável o montante fixado, visto o elevado grau de culpa dos condenados e os vistos limites mínimo e máximo da multa.
Assim se desatende o concluído em 21ª.
Decisão
Termos em que se nega a revista e se condena os Recorrentes nas custas, por vencidos, nos termos do art. 446º, n.os 1 e 2, do CPC.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003
Afonso Correia
Afonso de Melo
Fernandes Magalhães
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(1) Como se vê do documento de fs. 8 e resulta de todo o processo, a inscrição do terreno é na matriz e não no registo predial, como se diz no Acórdão e consta da al. C) da especificação.
(2) Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 129º-351, em comentário a Ac. do STJ, de 4.6.96.
(3) Exemplo e doutrina retomados em Ac. do STJ (Sousa Inês), de 3.6.99, na Col. Jur. (STJ) 1999-II-136 a 139.