Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00032439 | ||
Relator: | FERNANDES MAGALHÃES | ||
Descritores: | HIPOTECA REGISTO PREDIAL EXTINÇÃO INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO TEORIA DE IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO ABUSO DE DIREITO CONHECIMENTO OFICIOSO BOA-FÉ | ||
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Nº do Documento: | SJ199710280004621 | ||
Data do Acordão: | 10/28/1997 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 1102/96 | ||
Data: | 01/23/1997 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Área Temática: | DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR OBG. DIR REGIS NOT. | ||
Legislação Nacional: | CCIV66 ARTIGO 236 N1 ARTIGO 334 ARTIGO 686 N1 ARTIGO 687 ARTIGO 730 A B C D ARTIGO 731 ARTIGO 762 N2. CRP84 ARTIGO 4 N2 ARTIGO 96 N1 A. DL 163/95 DE 1995/07/13 | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO STJ DE 1992/11/11 IN BMJ N421 PAG287. ACÓRDÃO STJ DE 1994/11/22 IN CJSTJ ANOII TIII PAG154. | ||
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Sumário : | I - O registo tem, nas hipotecas, uma eficácia constitutiva. II - A enumeração feita pelo artigo 730 do C.Civil das causas de extinção das hipotecas é exemplificativa, havendo outras resultantes dos princípios gerais, nomeadamente o decurso do prazo que se tenha fixado, para a sua duração, elemento que não conste obrigatoriamente do registo predial. III - O abuso de direito é do conhecimento oficioso. IV - O artigo 236, do C.Civil consagrou a doutrina da impressão do destinatário. V - O princípio da boa fé consiste num procedimento correcto e leal com a outra parte, nomeadamente no cumprimento das obrigações (artigo 762 n. 2 do dito Código). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Secção Cível A, e B e mulher C vieram na execução movida por D, deduzir embargos de executado, que foram contestados por esta, tendo aqueles respondido. Findos os articulados referidos foi proferido despacho saneador-sentença a julgar os ditos embargos parcialmente procedentes só na parte em que eram pedidos juros moratórios, ficou, assim, a execução reduzida de modo a não abranger os juros relativamente aos embargantes. Inconformados com tal decisão dela apelaram sem êxito os embargantes, pelo que recorrem agora de revista. Formulam eles nas suas alegações as seguintes conclusões: 1- As causas de extinção da hipoteca que constam do artigo 730 do Código Civil são meramente exemplificativas, existindo outras causas de extinção que resultam dos princípios gerais entre os quais se conta o decurso do prazo para a hipoteca. 2- As menções obrigatórias que devem constar da inscrição registral da hipoteca são as que vêm, de modo taxativo enumeradas no artigo 93 do Código de Registo Predial, delas não fazendo parte a fixação do prazo da hipoteca, menção esta que não pode ser levada ao registo. 3- A não obrigatoriedade de tal menção bem se compreende atenta a finalidade publicitária do registo, que não é alterada no caso especifico da hipoteca e, no que a ela reporta, da natureza constitutiva do registo. 4- A hipoteca no caso dos autos extinguiu-se por efeito do decurso do prazo estabelecido no contrato para a sua vigência. 5- Essa causa de extinção é admitida por lei, resulta das regras gerais, e é oponível ao credor - no caso a recorrida - pelo que é inexigível a obrigação resultante da hipoteca. 6- De qualquer forma, e a não admitir-se tal forma de extinção, sempre teria de concluir-se que a declaração quanto à fixação do prazo vertida à escritura de hipoteca tem o valor de renúncia à hipoteca, eficaz para o termo daquele prazo, renúncia que foi feita de forma expressa e em documento de valor formal válido e exigível para a constituição da hipoteca. 7- A declaração expressa não supõe que os meios directos de manifestação de vontade tenham de ser tão inequívocos que não haja necessidade de recorrer à interpretação da conduta das partes; o que importa é que se trate de meios destinados, só ou principalmente, a manifestar uma determinada vontade negocial. 8- O abuso de direito abrange o exercício de qualquer direito por forma anormal, quanto à sua intensidade ou à sua execução de modo a poder comprometer o gozo de direitos e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito, por parte do seu titular, o que não acontece no caso "sub judice". 9- A decisão recorrida violou os artigos 217, 334, 687, 730 e 731 do Código Civil e 93 do Código de Registo Predial, pelo que deve ser revogado o dito acórdão e serem julgados procedentes os embargos. Corridos os vistos cumpre decidir. Vejamos antes do mais a matéria de facto provada: 1- Por escritura de 3 de Novembro de 1993 os embargantes B e mulher C, como únicos e actuais sócios gerentes e em representação de A, confessam devedora a sua representada à embargada "D," de 20528682 escudos, a ser paga por aquela em 30 prestações quinzenais e seguidas, sendo a primeira em 15 de Dezembro de 1993 e a última no final de Fevereiro de 1995, sendo que a falta de pagamento de duas das prestações fixadas, implica o vencimento das restantes. 2- Na mesma escritura os embargados B e mulher "agora por si", para pagamento garantiram, constituem a favor da representada do segundo outorgante hipoteca voluntária sobre aquele seu prédio (uma fracção autónoma designada pela letra "D", do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., Foz do Douro, Porto, inscrita na matriz sob o artigo 2773-D, e descrito no registo predial sob o n. 0233-D) pelo prazo de 14 meses. E ali consta ainda, em seguida: "disse o segundo outorgante (representante da D) que aceita para a sua representada a confissão de dívida e constituição da hipoteca nos termos exarados". - (V. certidão a folhas 49 a 51, que se dá por reproduzida). 3- Tal hipoteca foi levada ao registo, não constando dele qualquer referência a prazo de vigência. 4- A acção executiva entrou no tribunal em 3 de Maio de 1995 certidão de folhas 49 e seguintes?). 5- A 1. embargante (sociedade) só pagou à embargada as 3 primeiras prestações a que se obrigara (15 e 31 de Dezembro de 1993 e 15 de Janeiro de 1994, no total de 2100000 escudos, estando em dívida o restante - 18428682 escudos. Delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações dos recorrentes começaremos por dizer, que se estabelece no artigo 686 do Código Civil que: 1- A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis; ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio ou de prioridade de registo. Por sua vez estatui o artigo 687 do mesmo Código que: A hipoteca deve ser registada sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes. É assim a natureza do seu objecto que caracteriza a hipoteca em face de outras garantias reais (como por exemplo o penhor e a consignação de rendimentos) e que explica a importância prática extraordinária que ela reveste em todas as operações de crédito, e justifica a solução excepcional de a eficácia da mesma depender do seu registo mesmo em relação às partes, consagrada no artigo 687 referido (ficando assim o registo a ter uma verdadeira eficácia constitutiva - v. também o n. 2 do artigo 4 da Constituição da República Portuguesa). De salientar de igual modo que se preceitua no artigo 96 do Código de Registo Predial que: 1- O extracto da inscrição da hipoteca deve conter as seguintes menções especiais: a) O fundamento da hipoteca, o crédito e os seus acessórios e o montante máximo assegurado. E que o artigo 730 do Código Civil refere sob a epígrafe "causas de extinção da hipoteca": A hipoteca extingue-se: a) Pela extinção da obrigação a que serve de garantia: b) Por prescrição a favor de terceiro adquirente do prédio hipotecado, decorridos 20 anos sobre o registo da aquisição e 5 sobre o vencimento da obrigação; c) Pelo perecimento da coisa hipotecada, sem prejuízo do disposto nos artigos 692 e 701. d) Pela renúncia de credor. De destacar aqui e agora que, (como se diz no acórdão recorrido), tais causas de extinção da hipoteca são meramente exemplificativas, existindo outras para além delas, resultantes dos princípios gerais que não há razão para excluir do domínio deste instituto, como seja o decurso do prazo fixado para a sua duração (v. Professor Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 752), e que não faz parte da menção obrigatória do seu registo a indicação do seu prazo de duração. Por último há que ter em conta que nos diz o artigo 731 do Código Civil que: A renúncia à hipoteca deve ser expressa e está sujeita à forma exigida para a sua constituição; mas não carece, para produzir efeitos de aceitação do devedor ou do autor da hipoteca. Isto na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei 16395 de 13 de Julho, então em vigor. E esta referência tem interesse já que os recorrentes alegam, em suma e, além do mais, que a hipoteca no caso dos autos se extinguiu por efeito do decurso do prazo estabelecido no contrato para a sua vigência, e que, de qualquer modo, a não se admitir tal forma de extinção, sempre se teria de concluir que a declaração quanto à fixação do prazo vertida à escritura de hipoteca tem o valor de renúncia a esta, eficaz para o termo daquele prazo, renúncia assim feita de forma expressa e em documento de valor formal válido e então exigível para a constituição da dita hipoteca. De chamar à atenção também, face ao decidido no acórdão recorrido, que no artigo 334 do Código Civil se refere que: "É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito". Adopta-se aqui uma concepção objectiva do abuso de direito, o qual, como é jurisprudência unânime, é de conhecimento oficioso (cfr. entre outros o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de 1992, B.M.J. 421 página 287), sendo nessa base que se moveu o acórdão recorrido para concluir pela sua existência e pela improcedência dos embargos de executado deduzidos pelos ora recorrentes. Com tal solução não concordam estes, já que alegam que aquele abrange o exercício de qualquer direito por forma anormal, quanto à sua intensidade, ou à sua execução de modo a poder comprometer o gozo de direitos e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito, por parte do seu titular, o que não acontece no caso "sub judice", tendo por isso o acórdão recorrido violado o citado artigo 334 do Código Civil. Ora sabe-se, que o abuso de direito é um limite normativo imanente ou interno dos direitos subjectivos - pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativo-jurídicos do direito particular invocado, que são ultrapassados - (Professor Baptista Machado, C.J. 1984, 2, 17, citando Professor Castanheira Neves, Questão de facto e Questão de Direito). Feitas todas estas considerações, por uma razão puramente metodológica, acrescentar-se-á que se preceitua no artigo 236 n. 1 do Código Civil que: "A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele". E isto porque também se coloca aqui, para solução do objecto do presente recurso, um problema de interpretação de um negócio jurídico. Como se sabe a interpretação do negócio jurídico (ou da declaração negocial) tem por objectivo fixar o seu sentido e alcance juridicamente decisivos. Como também diz, Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Conclundente no Negócio Jurídico, página? 199, a interpretação jurídica em geral, incluindo a dos negócios jurídicos, visa a apreensão de um sentido pelo qual se vai pautar a conduta de certas pessoas, aspecto que a distingue de outras formas de interpretação. Aliás, sabe-se que toda a interpretação jurídica tem uma função constitutiva de jurisdicidade e uma índole normativa incompatíveis com a sua caracterização como uma pura hermenêutica... E nesta sede de interpretação se consagra no aludido artigo 236 do Código Civil a doutrina da impressão do destinatário, concedendo-se, pelo menos em tese geral primazia ao ponto de vista do destinatário, a partir do qual a declaração deve ser focada. A lei não se basta, contudo, com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste), concedendo primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia (sentido objectivo para o declaratário). E não olvidamos aqui que no respeitante à linguagem que se emprega a sua "clareza" já tem de ser o resultado da interpretação por mais fácil que esta seja, e que só depois de determinado o significado da declaração negocial se pode saber se este diverge do significado que o declarante lhe atribui, e, portanto, da sua vontade. Como se não esquece, que haverá sempre controvérsia sobre a declaração tácita sempre que o ponto de partida mesmo da declaração de vontade não for fixado com segurança. E agora é tempo de se referir o princípio da autonomia privada, entendendo-se por esta última a possibilidade de os sujeitos jurídico-privados livremente governarem a sua esfera jurídica, conformando as suas relações jurídicas e exercendo as suas posições activas reconhecidas pela ordem jurídica. A autonomia privada liga-se ao valor da auto-determinação da pessoa, e, mais em geral, à sua liberdade positiva, entendida, na feliz expressão de Orlando de Carvalho, como o "direito de conformar o mundo e conformar-se a si próprio". Outros princípios estão aqui em causa para se dar uma solução correcta e justa ao caso "sub judice", como seja o da protecção das expectativas, da confiança do declaratário (sabe-se que uma das missões do direito consiste em assegurar e estabilizar expectativas (cfr. J. Baptista Machado, Tutela da Confiança e "venire contra factum proprium") e o da protecção da segurança do tráfico jurídico, ou seja, do interesse geral na certeza das transacções, de suma importância para a realidade económica. Ora norteando-nos por tudo aquilo que deixamos traçado é momento de dizer que a declaração feita pelos executados B e mulher C, na confissão de dívida com hipoteca (escritura pública de folhas 6 e seguintes?) de que para garantia do pagamento da dívida de "A" constituem a favor da "D" hipoteca sobre o seu descrito prédio imóvel pelo prazo de catorze meses só pode ser entendida no sentido de que este prazo começa a correr termo a partir da data da última prestação, isto é, do último dia do mês de Fevereiro de 1995. O que desde logo significa que quando a presente acção executiva foi intentada (Maio/1995) a hipoteca constituída (na dita escritura pública de 30 de Novembro de 1993) se mantinha válida, e não extinta como pretendem os recorrentes. Não pode, na verdade, ser aceite o entendimento defendido por estes de que o prazo da hipoteca teve o seu termo em 31 de Janeiro de 1995, isto é, numa data anterior à do vencimento da última prestação. Seria ele assim um tão apertado prazo que nem cobriria todo o tempo do fraccionado pagamento da dívida que quis garantir pela hipoteca do prédio imóvel dos executados, e que seria o revelar de uma declaração negocial quase platónica... Haveria um manifesto frustar de expectativas por parte de quem aceitou emprestar uma avultada quantia em dinheiro a outrem, que uma correcta interpretação de modo algum permite. Têm aqui, pois, que funcionar os falados princípios legais e as pertinentes normas jurídicas a que se fez alusão, para nos levarem a uma solução justa do caso "sub judice", concluindo-se, em suma, pela não extinção da hipoteca ao tempo da propositura da acção executiva. Como nota final a este propósito o dizer-se que um dos princípios que perpassa o direito civil é o da boa fé, que, objectivamente, ou como regra de conduta, consiste num procedimento correcto e leal com a outra parte, designadamente, no cumprimento de obrigações, como se expressa no n. 2 do artigo 762 do Código Civil. Trata-se (como também se diz no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Novembro de 1994, C.J., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, Tomo III, página 154) de um princípio normativo em cuja aplicação devem ponderar-se os valores fundamentais do direito em face da situação concreta e em que, como directrizes, se deverá atender em especial, não só à confiança das partes no sentido global das cláusulas, processo de formação do contrato, seu teor e outros elementos atendíveis, como também ao objectivo que as partes visam atingir negocialmente à luz do tipo de contrato utilizado, o que tudo se traduz pela tutela da confiança e pela primazia da materialidade, subjacente à questão, em luta contra um estrito formalismo (Professor Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, 2. volume, páginas 1234 e 1252). E a defesa da boa fé aponta, sem dúvida, para a solução que apontamos para decisão do caso "sub judice". Por tudo o exposto, e sem necessidade de outras considerações, "maxime" relativas à renúncia à hipoteca, referida pelos recorrentes, e ao abuso de direito em que se alicerçou a decisão proferida no acórdão recorrido, se consideram improcedentes as conclusões das alegações dos recorrentes. Decisão 1- Nega-se a revista. 2- Condenam-se os recorrentes nas custas. Lisboa, 28 de Outubro de 1997 Fernandes Magalhães, Tomé de Carvalho, Silva Paixão. |