Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04S1376
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE AGÊNCIA
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: SJ200410270013764
Data do Acordão: 10/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1432/03
Data: 11/20/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : Constitui contrato de trabalho subordinado, e não contrato de agência, aquela em que uma das partes se compromete a vender produtos por conta de outra, mas sem suficiente autonomia, mas antes com sujeição a diversas obrigações que revelam a existência de um vínculo de subordinação jurídica, como é o caso da necessidade de comparência a reuniões quinzenais ou semanais convocadas pelo chefe de vendas, de apresentação de relatórios e de fichas de visitas de clientes, bem como a realização de rotas e circuitos de acordo com as indicações fornecidas pela entidade promotora das vendas.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório.

"A", identificado nos autos, veio propor acção emergente de contrato individual de trabalho contra a "B, Complexo Industrial Gráfico, S.A." pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 81 653,20 Euros, acrescida de juros, por diversas retribuições em dívida no âmbito do contrato de trabalho existente entre ambos.

Por sentença de primeira instância foi julgada parcialmente procedente a acção, vindo a caracterizar-se a relação laboral existente entre as partes como de subordinação jurídica, como alegara o autor, e não como contrato de agência, como pretendia a ré.

Em apelação, o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a sentença recorrida, mantendo a sobredita qualificação de contrato de trabalho.

É contra esta decisão que a ré agora se insurge, mediante de recurso de revista, em que formula as seguintes conclusões:

A) A afirmação constante do nº 28 dos factos provados - «...o chefe de vendas controlava os vendedores, incluindo o autor» - é meramente conclusiva, não podendo, por isso, fazer parte da "matéria de facto" dada como provada ao abrigo do disposto nos art°s 653° do Cód. Proc. Civil e 72° do Cód. Proc.
Trabalho, nem ser atendida como fundamento da decisão recorrida.
B) O acórdão recorrido reconhece expressamente que há situações - como a dos autos - em que a normal autonomia técnica do trabalhador não permite evidenciar a existência do poder directivo, característico do contrato de trabalho.
C) Em manifesto reconhecimento da sua dificuldade em encontrar, na relação contratual entre a Ré e o Autor, algum dos indícios que anteriormente definira como caracterizadores de um contrato de trabalho, o acórdão recorrido vê-se obrigado a "dar um salto em frente", dizendo que, afinal, existe mais um indício, esse sim verdadeiramente caracterizador daquele tipo contratual: sendo o trabalhador um elemento ao serviço dos fins prosseguidos pela unidade produtiva do empregador, existe um contrato de trabalho se se verificar a integração da actividade desenvolvida na organização por ele dirigida.
D) A Ré encontrava-se sediada no Porto, aí se encontrando toda a sua estrutura organizativa, não tendo qualquer instalação ou estabelecimento na zona em que o Autor desenvolvia a sua actividade, a mais de 100 Kms de distância.
E) Em face dos factos dados como provados. a caracterização da relação jurídica que existiu entre o Autor e a Ré é a de um típico contrato de agência. e não de um contrato de trabalho.
F) A subordinação jurídica é o elemento relevante para a distinção entre o contrato de trabalho e os outros contratos que com ele mantêm algumas afinidades, in casu o contrato de agência.
G) A autonomia do agente não é de todo absoluta, devendo a sua actuação conformar-se com as orientações recebidas e adequar-se com a política económica da empresa, prestando regularmente contas da sua actividade (Acórdão do STJ de 25 de Janeiro de 2000 (P. 232/99), em Acs. Dout. do STA, 467, 467, 1519), não sendo a autonomia do agente cega e ilimitada, actuando à margem e com o completo desconhecimento do principal, por conta de quem actua e cujos interesses lhe incumbe defender.
H) A agência é um contrato de gestão de interesses alheios e, nessa medida, um contrato de colaboração ou de cooperação (cfr. doutrina e jurisprudência citadas por António Pinto Monteiro em "Contrato de Agência", 3ª edição actualizada, Almedina, págs. 39 e 40).
I) Nenhum dos factos dados como provados põe em causa a autonomia do Autor enquanto agente da Ré, evidenciam a sua integração na estrutura organizativa desta, sendo ainda certo que aqueles que se traduzem no cumprimento de alguma instrução ou obrigação se inserem dentro dos deveres do agente, consignados no art. 7° do Dec.-Lei nº 176/86.
J) É ilegítimo extrapolar-se do documento que contém o circuito a realizar pelo
vendedor a conclusão de que o Autor se encontrava obrigado a realizar esse
circuito, sendo, aliás, sintomático que, tendo o Autor alegado que estava
"obrigado a seguir a rota e o circuito pré definido pela R." (cfr. art. 61° da
petição inicial), o Meritíssimo Juiz "a quo" apenas tenha considerado provado que o Autor recebia do Chefe de vendas um documento com "a rota e o circuito a realizar". Ou seja, o juiz, da alegação da Ré relativamente a este facto,
entendeu retirar a referência ao facto de o Autor se encontrar obrigado a seguir a rota e o circuito em causa.
L) Não foi dado como provado nenhum dos factos alegados pelo Autor, eventualmente indiciadores da existência de um contrato de trabalho, concretamente os factos alegados nos arts. 3°, 5°, 46°, 61°, 62° e 63° da petição inicial.
M) Os factos dados como provados - e como não provados - afastam qualquer hipótese de a relação jurídica que existiu entre o Autor e a Ré poder ser caracterizada como um contrato de trabalho.
N) De tudo resulta que os factos dados como provados, considerados, quer isoladamente, quer em conjunto, evidenciam que o relacionamento jurídico que existiu entre o Autor e a Ré corresponde a um típico contrato de agência, não evidenciando, ainda que indiciariamente a existência de um contrato de trabalho.
O) Consequentemente, o Autor não tem qualquer crédito sobre a Ré.

O autor, ora recorrido, sustentou o bem fundado do julgado, e neste Supremo Tribunal de Justiça, a Exma representante do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negada a revista, por entender que os elementos que caracterizam a relação contratual, considerados na sua globalidade, apontam com maior consistência para a qualificação como um contrato de trabalho.
Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto.

A Relação confirmou a factualidade dada como assente pelo tribunal de primeira instância, que aqui se tem como reproduzida, nos termos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 713º, n.º 6, e 726º do Código de Processo Civil, sem embargo da necessidade de equacionar oportunamente, em sede de conhecimento dos fundamentos da recurso, os factos que se afiguram ser de maior relevância para a dilucidação da matéria em causa.

3. Fundamentação de direito.

Em debate está a questão de saber se o vínculo jurídico que ligou o Autor e a Ré, desde Janeiro de 1992 até 28 de Fevereiro de 2001 - data em que o Autor, por sua iniciativa, cessou a sua actividade de vendedor -, se caracteriza como trabalho subordinado ou como um contrato de agência.

Nas decisões das instâncias e no bem elaborado parecer da Exma procuradora-geral adjunta já repetidamente se enunciaram os critérios legais de diferenciação entre os dois tipos de contrato e os índices a que cumpre recorrer em caso de não comprovação directa de uma situação de subordinação jurídica e esses aspectos não suscitam qualquer tipo de divergência entre as partes. Nesse ponto, o dissídio circunscreve-se unicamente à aplicação que dos mesmos critérios foi feita ao caso dos autos pelo Tribunal da Relação, em face da factualidade dada como assente.

A recorrente coloca a ênfase na autonomia do agente, que, no contrato de agência, não é de todo absoluta, na medida em que a sua actuação se deverá conformar-se com as orientações recebidas e adequar-se com a política económica da empresa, prestando regularmente contas da sua actividade, não sendo a autonomia do agente cega e ilimitada, actuando à margem e com o completo desconhecimento do principal.

Balizando-se neste traço distintivo do contrato de agência, a recorrente desvaloriza os factos tidos como assentes e, designadamente os que resultam dos n.ºs 24º a 32º da decisão de facto, alegando que a necessidade de comparência do autor às reuniões quinzenais ou semanais convocadas pelo chefe de vendas e os relatórios e as fichas de visitas que o autor carecia de apresentar (n.ºs 25 e 26º da decisão de facto), se inserem no tipo de obrigações a que o agente está vinculado nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 176/86, de 3 de Julho. Por outro lado - acrescenta a recorrente -, a circunstância de as fichas de visitas serem entregues já preenchidas com identificação do cliente e do vendedor, com o volume de facturação anterior e o tipo de produtos comercializados (n.º 27) e ser igualmente entregue diversa outra documentação, de onde constava a "identificação de cada cliente da sua zona, a rota e o circuito a realizar por cada vendedor", a "análise de vendas por vendedor/localidade", a "listagem de encomendas em carteira do vendedor" e a "listagem de clientes do vendedor" (n.ºs 29 a 31º), visavam apenas facilitar o trabalho do autor, constituindo documentação de carácter informativo, que não integra qualquer tipo de ordem ou instrução relativamente à actividade que lhe competia desenvolver.

É apodíctico, porém, que toda essa factualidade, como concluíram as instâncias, revela uma ingerência praticamente absoluta, por parte da ré, quer na organização, quer no conteúdo e no modo de exercício da actividade do autor, que, de nenhum modo, se compadece com a caracterização típica de um contrato de agência.

Sendo certo que a autonomia do agente, em face do principal, não é absoluta, pois ele deve sujeitar-se a certas obrigações (que estão elencadas no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 176/86), estas só são admissíveis, no âmbito de um contrato de agência, desde que preservem, no essencial, essa autonomia, não podendo ir ao ponto de interferir na organização e método de trabalho do agente (António Pinto Monteiro, Contrato de Agência. Anotação, 3ª edição, Coimbra, págs. 40-41 e 62-63).

No caso, como bem pondera a Exma procuradora-geral adjunta, "não é verosímil que a Ré se desse ao trabalho de entregar aos seus vendedores, designadamente ao Autor, documentação em que constava a identificação de cada cliente da respectiva zona, o circuito e a rota a realizar por cada vendedor para que, depois, cada um dos vendedores tivesse a liberdade de realizar o circuito e a rota que bem entendesse e promovesse a venda dos produtos apenas junto de clientes cuja identificação não constasse da documentação entregue."

Esses factos são, portanto, elucidativos de que o autor não actuava como mero agente, mas se encontrava antes sujeito às ordens e à direcção da ré, enquanto sua entidade patronal.

A recorrente alega ainda que a afirmação constante do nº 28 da decisão de facto - «...o chefe de vendas controlava os vendedores, incluindo o autor» - é meramente conclusiva, e que, por outro lado, o autor não logrou provar os factos articulados sob os n.ºs. 3°, 5°, 46°, 61°, 62° e 63° da petição inicial, que, segundo entende, seriam essenciais para demonstrar a existência de um contrato de agência.

Quanto àquele primeiro aspecto, importa observar que a formulação do n.º 28 da matéria de facto é bastante mais ampla, consignando, na sua integralidade, o seguinte: «Para além dessas reuniões, o chefe de vendas controlava os vendedores, incluindo o autor, quer através de telefone, quer pessoalmente.» Interpretada no seu contexto verbal, a expressão referenciada pela recorrente não deixa de exprimir um juízo de facto, pretendendo significar que o chefe de vendas vigiava ou fiscalizava a actividade dos vendedores, incluindo o autor, através de telefone ou pessoalmente. Aquele ponto da decisão de facto não contém, portanto, simples matéria de direito, mas constitui antes um facto indiciário, entre outros, que permite concluir que o autor exercia a sua actividade "sob a autoridade e direcção" da entidade empregadora. Não há, por isso, motivo para deixar de considerar a referida matéria para efeitos probatórios
Por outro lado, convém notar que o tribunal não elaborou a base instrutória, passando desde logo à fase de julgamento, após a apresentação dos articulados (fls 109), pelo que a circunstância de os factos alegados sob os n.ºs. 3°, 5°, 46°, 61°, 62° e 63° da petição inicial não constarem da decisão de facto, não significa que eles devam ser tidos como não provados. Na verdade, o tribunal não formulou uma resposta negativa quanto a esses factos (nem o poderia ter feito, visto que não foram levados à base instrutória), bem podendo ter sucedido que essa matéria só não integrou a decisão de facto, por ter sido considerada matéria de direito ou por não ter sido considerada relevante para a decisão do pleito.

Seja como for, não é possível afirmar que tais factos se não provaram, mas apenas que existe quanto a eles um non liquet probatório, nada obstando que de toda a restante materialidade que se incluiu na decisão de facto se retire a ilação, no plano do direito, de que existiu uma relação de subordinação jurídica entre as partes.

4. Decisão

Termos em que acordam em negar a revista e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 27 de Outubro de 2004
Fernandes Cadilha
Mário Pereira
Salreta Pereira