Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A009
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA RAMOS
Nº do Documento: SJ200302180000091
Data do Acordão: 02/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2907/02
Data: 06/11/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
1. A 3.2.94, no Tribunal da Comarca de Lisboa, "A, Lda.", propôs acção com processo ordinário contra "B, Lda.", pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe, a título de honorários devidos pela elaboração de um projecto de engenharia hidráulica, a quantia de 2.748.842$00, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de 435.109$00, e vincendos.
A ré contestou e, em reconvenção, pediu a modificação do contrato nos termos do artigo 437º do Código Civil, no sentido de os honorários devidos à autora serem reduzidos para 310.410$00.
Após tramitação que ao presente recurso não interessa, realizou-se julgamento e, a 15.7.99, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de 2.215.104$00, acrescida de juros de mora, absolvendo-a quanto à parcela de 195.260$00 (fls. 152).
Tendo autora e ré arguido nulidades, essa sentença foi substituída por outra que:
- julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de 2.553.582$00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos;
- absolveu a ré do pedido reconvencional (cfr. fls. 216).
Ré e autora (esta, subordinadamente), apelaram para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão 11.06.2002, julgou improcedente a apelação da ré, confirmando a sentença na parte impugnada, e declarou prejudicado o conhecimento das questões suscitadas na apelação subordinada e no agravo interpostos pela autora (fls. 262).
2. Deste acórdão interpuseram recurso de revista ré e autora (esta subordinadamente, recurso subordinado que veio a ser julgado deserto, por falta de alegações, por despacho de fls. 271).
Das alegações que ofereceu, a ré extraiu as seguintes conclusões:
"1ª Aquando da apresentação da sua defesa, a ora recorrente deduziu pedido reconvencional, com fundamento na alteração das circunstâncias em que as partes basearam o contrato, pedindo a modificação do mesmo nos termos permitidos pelo artigo 437º do Código Civil, em concreto, a redução dos honorários reclamados pela autora para o valor correspondente ao trabalho efectivamente realizado;
2ª Em sede de reconvenção, a ré alegou que havia sido abolida a fase de estudo prévio e que a apresentação do projecto de execução em três blocos fora substituída por um único (artigos 81º a 89º da contestação);
3ª Da matéria fáctica apurada resulta que após a celebração do contrato "por imposição do dono da obra (o "C") houve necessidade de alterar o faseamento inicialmente previsto para o estudo da A., designadamente, eliminando a fase de estudo prévio e elaborando o projecto de execução num bloco único, em vez de três blocos previstos no inicio";
4ª Ora, é notório e inevitável que a alteração verificada favoreceu a posição da autora, traduzida num menor volume de trabalho a realizar, menos tempo na execução e redução de custos, pelo que, os honorários fixados inicialmente deverão ser objecto de alteração ao abrigo do artigo 437º do Código Civil;
5ª Caso o Tribunal recorrido entendesse como insuficiente para avaliar das alterações ao contrato, a matéria constante da referida alínea da especificação, deveria o mesmo formular novos quesitos nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 650º, nº 1, alínea f), e 653º, nº 1, ambos do CPC, designadamente, através da matéria vertida nos artigos 44º, 47º e 53º da contestação, para apuramento exacto das repercussões no trabalho desenvolvido pela autora, proveniente da alteração do faseamento do projecto;
6ª E se, ainda assim, se entendesse serem tais quesitos vagos ou conclusivos, sempre poderiam os mesmos ser objecto de concretização através do recurso à figura da liquidação em execução de sentença (artigo 661º, nº 2, do CPC);
7ª A resposta negativa dada aos quesitos 28º, 29º e 30º não permite, por si, o apuramento de tal matéria até por contraposição à resposta dada ao quesito 8º;
8ª O acórdão recorrido violou por erro de interpretação e aplicação, os artigos 437º e 1216º, nº 3, do Código Civil, os artigos 650º e 653º do CPC, devendo, em consequência, ser revogado".

A recorrida pugnou pela confirmação do julgado (fls. 297-302).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1. Não obstante as referências várias a quesitos e à suficiência da prova para aquilatar da pedida modificação do contrato, certo é que, em rigor, a matéria de facto que o acórdão recorrido deu como provada não vem impugnada.
Assim sendo, e porque também se não vislumbra motivo para se proceder, oficiosamente, à sua alteração, para ela se remete nos termos do disposto nos artigos 713º, nº 6, e 726º, do CPC.
2. Prosseguindo, começaremos por salientar que as conclusões apresentadas pela recorrente neste recurso de revista reproduzem textualmente, ipsis verbis, conclusões oferecidas com o recurso de apelação (cfr. fls. 167-169 e 236-237).
Apenas há a registar:
- na última conclusão, o aditamento da referência ao artigo 1216º, nº 3, do CC (1), e a supressão da referência aos artigos 659º, nºs 1 e 2, e 660º, nº 2, do CPC;
- o aditamento de uma nova conclusão, a 6ª.
Conclusão esta que, em rigor, traduz e envolve uma questão nova - logo, de conhecimento vedado a este STJ.
Como quer que seja, sempre se revelaria manifestamente improcedente - na verdade, a situação que se recorta do quadro factual provado não se subsume, claramente, à previsão do nº 2 do artigo 661º do CPC (a doutrina e jurisprudência são unânimes no entendimento de que o comando deste nº 2 só é de aplicar quando se não chegarem a coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, o objecto ou a quantidade da condenação - Alberto dos Reis, "CPC Anotado", vol. V, 1952, pp. 70-71; Rodrigues Bastos, "Notas ao CPC", vol. III, pp. 232-233; entre os mais recentes, os acórdãos do STJ de 13.11.2001, Proc. nº 2913/01, 19.12.2001, Proc. nº 1761/01, 19.02.2002, Proc. nº 3379/01 e de 01.10.2002, Proc. nº 2027/02).
Como, também, se nos afiguram improcedentes todas as demais conclusões, em que a recorrente se limita a insistir na sua discordância em relação ao decidido, sem que tivesse tido o cuidado de ponderar e procurar rebater a argumentação desenvolvida pelo acórdão recorrido, confrontado que ele foi com as mesmas questões ora submetidas à nossa apreciação - argumentação que, em nosso entender, se revela correcta e base de apoio bastante para a decisão tomada.
Vejamos com um pouco mais de pormenor.
III
O raciocínio da recorrente pode ser decomposto em etapas (que se traduzirão em outras tantas questões a abordar), assim sintetizadas:
- a matéria de facto provada é suficiente para se decidir a modificação do contrato, nos termos do artigo 437º do CC;
- mas se o tribunal entendia que era insuficiente, então deveria ter formulado novos quesitos nos termos do disposto nos artigos 650º, nº 1, f), e 653º, nº 1, do CPC, designadamente através da matéria vertida nos artigos 44º, 47º e 53º da contestação;
- a resposta negativa aos quesitos 28º, 29º e 30º não permite, por si, o apuramento da tal matéria, até por contraposição à resposta ao quesito 8º.
Apreciando.
1ª questão
Deu-se como provado que, após a celebração do contrato, "por imposição do dono da obra (o "C") houve necessidade de alterar o faseamento inicialmente previsto para o estudo da autora, designadamente, eliminando a fase de estudo prévio e elaborando o projecto de execução num bloco único, em vez de três blocos previstos no início" (alínea D) da especificação).
Daqui, a recorrente retira a conclusão de que é notório e inevitável que a alteração verificada favoreceu a posição da autora, traduzida em:
- menor volume de trabalho a realizar;
- menos tempo na execução;
- redução de custos.
Donde, os honorários fixados inicialmente deverem ser objecto de alteração do abrigo do artigo 437º do CC.
Mas não tem razão.
1. O artigo 437º admite a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, desde que:
- haja uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar;
- a exigência das obrigações assumidas pela parte lesada afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
Como escreveu Antunes Varela (2), "não basta, para afectar a estabilidade da trama negocial, a modificação de quaisquer elementos que impressionem a sensibilidade do julgador: é necessário que estejam em crise as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar. Não chega mesmo, para o efeito, qualquer alteração; há-de tratar-se de uma alteração anormal".
Observam Pires de Lima e Antunes Varela, "CC Anotado", vol. I, 1967, p. 290, que, embora a lei não exija que a alteração seja imprevisível, o requisito da anormalidade conduzirá praticamente quase aos mesmos resultados.
Como segundo requisito torna-se ainda necessário que, face às novas circunstâncias, a exigência das obrigações assumidas pelo lesado afecte gravemente os princípios da boa fé - "o que importa, pois, é ver se as circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar se alteraram de modo a desaparecer a base do contrato" (Mário de Brito, ob. e loc. cits., p. 78).
2. Os elementos recenseados bastam para demonstrar que não estamos perante uma situação de anormalidade, susceptível de ser subsumida à estatuição do artigo aqui em causa.
Certo que foi eliminada a fase de estudo prévio, e a elaboração do projecto de execução foi feito num bloco único, em vez de três.
Factos, porém, manifestamente insuficientes para preencherem o condicionalismo do citado preceito.
Aliás, como sublinha o acórdão, deles nem sequer decorre, necessariamente, "que tal alteração tenha importado para a autora menor trabalho ou menos custos, ignorando-se mesmo se a autora já teria desenvolvido alguma actividade na preparação do projecto inicialmente previsto ou se a reformulação do projecto implicaria maior concentração de trabalho" (como observa a recorrida, esses factos só permitem extrair a conclusão segura de que o dono da obra dispensou essas fases, mas já não a de que a autora não tenha tido a necessidade de as elaborar para chegar ao projecto final).
Por outro lado, prossegue o acórdão, "das respostas negativas aos quesitos 29º e 30º decorre que a ré não logrou provar que a alteração tenha permitido à autora realizar o seu trabalho em 60 dias, nem que tenha reduzido o seu estudo apenas a um caderno de encargos, a uma posição de peças desenhadas e um conjunto de peças escritas, como alegara nos artigos 50º e 51º da contestação".
Improcedem, assim, as 4 primeiras conclusões.
2ª questão
Conclui a recorrente que, a entender-se que a matéria assente na referida alínea D) da especificação era insuficiente para avaliar das alterações ao contrato, deveria o tribunal formular novos quesitos nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 650º, nº 1, f), e 653º, nº 1, do CPC, "designadamente através da matéria vertida nos artigos 44º, 47º e 53º da contestação, para apuramento exacto das repercussões no trabalho desenvolvido pela autora, proveniente da alteração do faseamento do projecto".
Dir-se-á, desde logo, que a invocação daqueles dois normativos, neste momento processual, se revela deslocada, mesmo incompreensível.
Na verdade, aquela alínea f) permite a ampliação, por iniciativa oficiosa do juiz presidente, da base instrutória na audiência final - a que se seguiria a proposição de provas pelas partes, respeitando o contraditório -, enquanto o nº 1 do artigo 653º faculta que o tribunal, encerrada a discussão, oficiosamente complete a prova, ouvindo as pessoas que entender e ordenando, até, novas diligências probatórias.
Como quer que seja, é bom de ver que o que se pretende é, ao fim e ao cabo, uma ampliação da matéria de facto, vertente em que o acórdão recorrido tratou, bem, a questão, a propósito ponderando:
"Sucede que se trata de matéria puramente vaga e conclusiva, que se limita a afirmar, em abstracto, que teria havido 'menor quantidade de trabalho, menor tempo de execução e, consequentemente, uma acentuada redução de custos' (artigo 44º), liberando ‘meios humanos, técnicos e de equipamento, susceptíveis de integrarem outras acções produtivas da empresa da autora’ (artigo 53º). Não alegou, pois, a ré os factos concretos em que baseia tais afirmações genéricas, salvo o que foi vazado nos quesitos 29º e 30º, que obtiveram respostas negativas, como ficou dito".
Assim se entendeu, como também agora se entende, que não há qualquer razão para que deva ter lugar uma ampliação da matéria de facto.
Improcede a conclusão 5ª.
3ª questão
Esta questão prende-se intrinsecamente, e de modo indissociável, com as duas já apreciadas.
Por isso se compreenda que as considerações desenvolvidas acerca delas permitam já concluir que, também sobre a questão ora em causa, não assiste razão à recorrente.
Mas, vejamos ainda.
Se bem se pensa, a recorrente entende que a matéria de facto que releva para decidir se houve ou não uma alteração de circunstâncias, nos termos exigidos pelo artigo 437º, não resulta apurada da resposta negativa aos quesitos 28º a 30º, até por contraposição à resposta ao quesito 8º.
Entendimento que não pode ser sufragado.
Basta atentar em que no quesito 8º - provado - se perguntava sobre as fases e os tempos de execução previstos (cfr. fls. 114).
Ora, o que importa não é tanto o que se previa no contrato, mas o que, depois, veio a ocorrer na vida do contrato.
Precisamente quanto a isso, foi respondido ‘não provado’ aos quesitos 29º e 30º.
E no que concerne ao quesito 28º, em que se perguntava se, "dos 186 dias inicialmente previstos para a realização do trabalho, a autora logrou economizar 126 dias", foi respondido "provado apenas o que consta da resposta ao quesito 3º" (3), ou seja:
"que, a pedido da ré, a autora reduziu o prazo contratualmente fixado para a execução do projecto" (cfr. fls. 134-135)
Improcede, pois, a conclusão 7ª, não se verificando ofensa de qualquer das normas indicadas na conclusão 8ª (4).

Termos em que se nega a revista e confirma o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2003
Ferreira Ramos
Garcia Marques (dispensei o visto)
Pinto Monteiro
________________
(1) Aditamento seguramente motivado pela referência feita no acórdão a tal disposição legal (acórdão que, a propósito, considerou, bem, que a ré não fez prova, como lhe competia, de factos que integrassem a previsão dessa norma).
(2) Citado por Mário de Brito, "CC Anotado", vol. II, 1969, p. 78.
(3) E não, como diz a recorrente, a resposta de não provado.
(4) Em que se não inclui, refira-se, o artigo 661º, nº 2, apontado na conclusão 6ª.