Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SIMAS SANTOS | ||
Descritores: | PECULATO ABUSO DE CONFIANÇA CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES FALSIFICAÇÃO CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME BEM JURÍDICO PROTEGIDO | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 01/18/2001 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | N | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Área Temática: | DIR PENAL | ||
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Sumário : | 1 - Como vem entendendo o STJ, no crime de peculato o funcionário apropria-se ilegitimamente, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções. 2 - Trata-se de um delito específico em que a lei exige a intervenção de pessoas de um certo círculo, no caso, um funcionário, diversamente do que sucede com os tipos legais de crime, em geral, nos quais os factos podem ser levados a cabo por qualquer pessoa, podendo apresentar-se como um crime de abuso de confiança qualificado, face à evidência das semelhanças na delineação do tipo, posta a nu pela confrontação do n.º 5 do art. 205.º do C. Penal com o n.º 1 do art. 375.º, estabelecendo-se uma relação de especialidade que conduz a um concurso aparente. 3 - São elementos do tipo legal do crime de burla: - intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; - por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou; - determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial. 4 - Comete o crime de peculato, e não de burla, a arguida, ajudante do Cartório Notarial encarregada de calcular e pagar periodicamente os montantes de imposto de selo devidos pelo Cartório, que procedia da seguinte forma: - preenchia as guias de pagamento do imposto de selo com valores inferiores aos efectivamente devidos, pagava e validava essa guia na Repartição de Finanças, e no Cartório acrescentava os montantes até fazer corresponder ao montante efectivamente devido pelo imposto e emitia então um cheque do Cartório no montante respectivo, cheque que não descontava, mas antes inutilizava. Desdobrava depois a quantia titulada nesse cheque em vários cheques do Cartório (de que assim se apossava ilegitimamente), que emitia em seu nome ou ao portador, depositando os mesmos em seu nome ou levantando em numerário; ou - fabricava guias de pagamento fictícias, que eram arquivadas no Cartório Notarial, como efectivamente pagas, quando nada tinha sido pago a título de imposto, levantando da conta do Cartório Notarial, em seu proveito, o dinheiro nelas referido; e - em relação à apropriação do dinheiro, aproveitou?se quer do facto de poder movimentar livremente a conta da CGD pertença do Cartório Notarial (quer em levantamentos de numerário, quer em cheques). 5 ¾ Com efeito, o dinheiro de que se apropriou ilicitamente proveio da CGD, onde o serviço a que a arguida pertencia tinha aberta uma conta de depósito, não se mostrando assim verificado, em relação ao crime de burla, um prejuízo patrimonial sofrido pela CGD por virtude da prática de actos determinada pela arguida por meio de erro ou engano astuciosamente provocado por esta. O único prejuízo causado pela conduta da arguida foi o já referido do Estado Português. 6 - Depois, as entregas e os pagamentos efectuados à arguida pela CGD tiveram lugar no quadro da conta de depósito que o Serviço, a que pertencia a arguida, tinha aberta na CGD, sendo que esta podia movimentar tal conta, circunstância de que se aproveitou e que determinou a prática daqueles actos, não tendo a arguido tido necessidade de lançar mão de manobras fraudulentas junto dos funcionários daquela instituição bancária. 7 - Perante o texto da lei e os interesses subjacentes ao tipo legal - a postura da funcionária em face do dinheiro ou qualquer coisa móvel que esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções - é secundário o aspecto de esse dinheiro se encontrar depositado na CGD, pois, em virtude de, por força do seu ofício, estava o funcionário autorizado a movimentar tal depósito, o dinheiro está-lhe acessível em razão das suas funções. 8 - Sendo diferentes os bens jurídicos tutelados pelos artigos 375.º , n.º 1, e 256.º ,n.º 1, do Código Penal de 1995 e não existindo neste diploma qualquer disposição que ressalve o concurso do peculato com a falsificação (enquanto meio de realização daquele) do regime geral estatuído no art. 30.º, n.º 1: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Logo, sendo distintos os bens jurídicos tutelados pelos tipos legais de crime de peculato (o interesse do Estado e dos organismos públicos na honestidade dos seus funcionários e agentes) e de falsificação de documento (a fé pública dos documentos ou a verdade intrínseca do documento enquanto tal, ou ainda a verdade da prova documental enquanto meio que consente a formulação de um juízo exacto, relativamente a factos que possam apresentar relevância jurídica) e não se verificando, entre eles, qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível deve a concluir-se que a conduta do agente que falsifica um documento e o usa, para lograr a apropriação ilícita (suposta, evidentemente, a verificação de todos os elementos essenciais de cada um dos tipos) comete, efectivamente, em concurso real, um crime de falsificação de documento e um crime de peculato. | ||
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Decisão Texto Integral: |