Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
520/13.7PCRGR.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: RECURSO PENAL
REINCIDÊNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
PENA ÚNICA
FUNDAMENTAÇÃO
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
PLURIOCASIONALIDADE
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECLARADO NULO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO PENAL - SENTENÇA ( NULIDADES ) - RECURSOS.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES.
Doutrina:
- Anabela Rodrigues, A determinação da Medida de Pena Privativa de Liberdade, 120, 369.
- Eduardo Correia, Direito Criminal, II, 320 e ss..
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993, 241, 291, 270, § 381, 273, § 387, 274, § 389, 291, § 421.
- Helena Susano, Reincidência Penal (da teoria à prática judicial), Coimbra: Almedina, 2012, 113-4.
- Maria João Antunes, Consequências jurídicas do crime, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 54.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 97.º, N.º 5, 374.º, N.º 2, 375.º, N° 1, 379.º, N.º 1, AL. C), 410.º, N.º 2, 412.º, N.º 1, 414.º, N.º3, 425.º, N.º 4, 432.º, N.º 1, AL. C).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, 71.º, 75.º, 76.º, N.º 1, 2.ª PARTE, 77.º, N.ºS 1 E 2.
Sumário :

I - O arguido foi condenado como reincidente, sendo certo que, apesar de o tribunal a quo ter verificado se existia o necessário pressuposto material de “conexão íntima” entre os crimes, anterior e posteriormente praticados, e apesar de ter verificado que estava cumprido o designado “prazo de prescrição da reincidência”, ainda assim é completamente omisso quanto ao disposto no art. 76.º, n.º 1, 2.ª parte, do CP.
II - Para tanto devia ter referido quais as penas em que o arguido tinha sido condenado no âmbito do processo X quanto aos crimes de roubo e aos diversos crimes de furto qualificado em que foi condenado e, depois, comparando com as penas concretas atribuídas nestes autos, verificar que a diferença entre cada uma daquelas e cada uma destas nunca era superior à pena mais grave anteriormente aplicada, assim demonstrando estar também preenchido o requisito do art. 76.º, n.º 1, 2.ª parte, do CP. Sendo omisso quanto a este aspecto, verifica-se uma nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
III - Na determinação da pena única, para além das exigências de prevenção geral e especial, é ainda necessário proceder a uma avaliação global dos factos e da personalidade do arguido. A decisão é completamente omissa quanto à fundamentação de direito no que respeita à medida da pena única: a fundamentação deve ser a necessária e a adequada para apreender a imagem global do facto, para escrutinar se os diversos crimes cometidos pelo condenado são fenómenos ocasionais ou motivados por factores conjunturais, ou se, pelo contrário, radicam em uma personalidade com apetência para a criminalidade, fazendo do crime o seu modo estrutural de actuação. Nada sendo referido no acórdão recorrido, encontra-se o mesmo ferido de nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. Nestes autos foi condenado, por acórdão, de 14 de maio de 2015, do Tribunal de --- (Inst. Central — 1.ª Sec. Cível e Criminal — J2), da Comarca ----, o arguido AA, pela prática, como reincidente, em concurso efetivo,

- de um crime de roubo agravado, previsto e punido pelos arts. 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), e 204.º, n.º 2, al. f), todos do Código Penal (doravante CP), e art. 86.º, n.º 3, da lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de prisão de 7 (sete) anos,

- de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos art. 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, al. e), todos do CP, na pena de prisão 4 (quatro) anos, e

-  em cúmulo, na pena única de prisão de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses.

2. Inconformado, o arguido AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, apresentando as seguintes conclusões:

«I — As penas parcelares impostas ao ora recorrente são excessivas e devem ser reduzidas para medidas que se aproximam dos respectivos limites mínimos.

II — A pena única resultante do cúmulo jurídico deverá, consequentemente, ser reformada e substancialmente reduzida.

III — Ao decidir como decidiu, violou, o Tribunal “a quo” os artigos 40.º e 71.º do Código Penal.»

               3. O Ministério Público, junto do Tribunal da Comarca dos Açores, respondeu, tendo entendido que:

« Vertendo ao caso em apreço, temos que o crime de roubo agravado praticado pelo arguido é, em face da reincidência, punido com pena de 4 a 15 anos de prisão e o crime de furto qualificado, como reincidente, punido com pena de 2 anos e 8 meses a 8 anos de prisão.

Concretamente no que respeita à questão que mais parece suscitar a reacção do recorrente, que se traduz no facto das penas parcelares e unitária aplicadas se mostrarem excessivas, ao contrário do alegado pelo arguido, o Tribunal a quo teve em conta para a determinação das penas a aplicar, aos seguintes elementos:

- as exigências de prevenção geral serem bastante elevadas

- o grau de ilicitude dos factos ser elevado

- a quantia monetária subtraída ao ofendido BB ser elevada (3.000,00€)

- terem sido provocadas lesões físicas no ofendido

- ter agido o arguido com dolo directo

- quanto ás exigências de prevenção especial, baseou-se o Tribunal

- no teor do relatório social do arguido (na circunstância do arguido não ter rede de suporte familiar ou profissional, mantendo uma vida à margem da sociedade);

- na análise do certificado de registo criminal do arguido, onde avultam condenações pela prática de crimes de idêntica natureza (contra a propriedade).

Na determinação da medida da pena unitária será ponderado o conjunto dos factos praticados e descritos no acórdão recorrido, bem como a personalidade do arguido, assim como a natureza dos crimes praticados - é, assim, uma visão conjunta, não tida em consideração nas condenações parcelares que emerge nessa personalidade a considerar, pelo que, por essa razão, a pena de cúmulo é decidida ex novo.

Essencial é considerar que na fixação da pena única se deve ponderar que na "avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto do factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo a uma "carreira") criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, só no primeiro caso sendo cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)" - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 521.

Devem, pois, considerar-se como critérios ou factores a ponderar na determinação da pena única os seguintes:

- apreciação da globalidade dos factos em interligação com a personalidade do arguido;

- avaliação da gravidade da ilicitude global dos factos;

- valoração do conjunto dos factos, que fornece a imagem global do facto, o grau

de contrariedade à lei e a grandeza da ilicitude;

- apreciação da personalidade do agente, revelando esta se o facto exprime uma tendência ou mesmo uma carreira criminosa ou é antes uma mera emanação de pluriocasionalidade.

Aplicando tais critérios ao caso em apreço e considerando as circunstâncias acima descritas, atinentes, em conjunto, aos factos e à personalidade do arguido, entende-se que o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelos crimes, a recuperação do arguido para a sociedade e a personalidade deste manifestada nos factos, considerou o Tribunal a quo ajustada a pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.

Ponderadas a gravidade e as circunstâncias existentes na globalidade dos factos praticados, a personalidade do arguido ora recorrente, o teor do CRC, bem como o seu percurso de vida, se conclui, que o Tribunal recorrido, alicerçado nos critérios oferecidos pelo legislador penal, doseou bem a medida das penas parcelares, bem como da pena unitária e aplicou ao recorrente a pena justa e adequada aos fins a que se destina.

Não foram assim violados os arts. 40 e 71 do CP.

Termos em que, não deverá merecer procedência o recurso interposto pelo recorrente, antes devendo manter-se a douta decisão recorrida. »

4. Subidos os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, o Magistrado do Ministério Público neste Tribunal, “subscrevendo inteiramente os fundamentos da resposta do Ministério Público”, propugnou pela improcedência de todos os recursos e a subsequente manutenção do decidido no acórdão recorrido, dispensando-nos de quaisquer considerações adicionais”.

5. Por despacho do relator no Tribunal da Relação de Lisboa, de 5 de outubro de 2015, foi decidido que, tratando-se de um recurso exclusivamente em matéria de direito, restrito à medida da pena, e tendo sido o arguido condenado em pena de prisão superior a 5 anos, seria competente para a sua apreciação o Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com o disposto no art.  432.º, n.º 1, al. c), do CPP. Em consequência os autos foram remetidos a este tribunal.

6. Uma vez subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, no uso da faculdade concedida pelo art. 416.º, n.º 1, do CPP, o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça apresentou parecer concluindo:

«2 - Do mérito do recurso:

2.1 – Emitindo parecer[1], como nos cumpre, cabe dizer que acompanhamos e secundamos as considerações aduzidas pela Ex.ma colega junto da 1.ª Instância, na resposta constante da peça processual exarada a fls. 242/246, sendo que a clareza e pertinência da argumentação ali desenvolvida, bem como dos fundamentos e elementos (nomeadamente factuais e normativos) aduzidos – nos quais genericamente nos louvamos –, nos dispensa, porque de todo desnecessário e redundante, do aditamento de mais desenvolvido esforço de contra-argumentação em defesa do decidido.

Apenas nos permitimos por isso, “ex abundanti”, enfatizar ainda o seguinte:

2.1.1 – Quanto às penas parcelares:

Muito embora convocando, genericamente, as mesmas circunstâncias que a decisão recorrida havia enunciado, e ponderado, no exercício de determinação da medida de cada uma das duas penas parcelares em que o condenou, limita-se o recorrente a tecer sobre as mesmas meras e conclusivas afirmações de discordância, dizendo – nomeada e fundamentalmente – que o tribunal não teve em devida conta, citamos, «[…]que foram escassos os factos provados sobre as concretas circunstâncias da prática dos crimes, bem como a notória insuficiência das competentes alusões ou considerações quer aos sentimentos manifestados no seu cometimento e os fins ou motivos que o determinaram – quer sobre a personalidade do agente, a sua integração social, as suas condições pessoais, nomeadamente familiares – que deverão pender a favor do arguido, seja por aplicação do princípio “in dubio pro reo”, seja pela falta de fundamentos para penalizar o arguido».

Mas não tendo impugnado, como vimos, a decisão de facto proferida[2],segue-se que tal crítica, para além de desacompanhada de qualquer suporte factual que lhe dê respaldo, é totalmente infundada. Desde logo porque, como decorre da motivação oferecida, o recorrente pouco mais fez do que transcrever a matéria de facto dada por assente, dela ensaiando retirar, mas sem qualquer sucesso, ilações diferentes daquelas a que chegou o Tribunal. O que vale por dizer pois que, bem ao contrário do que sustenta o recorrente, foram sopesados todos os fatores relevantes, entre os quais os que ele próprio ora convoca. E, também ao contrário do que sugere, não vemos onde é que o recorrente funda a alegação de que são escassos, mesmo nesta matéria e para este efeito, os factos provados e todos os demais considerandos sobre a sua personalidade.

Convirá é não esquecer também, como parece querer fazer o recorrente, o peso concreto, muito significativamente elevado, das circunstâncias, apuradas na decisão, que depõem contra si.      

A graduação da medida concreta da pena deve ser efectuada, como é sabido, em função da culpa do agente[3] e das exigências de prevenção no caso concreto (art. 71.º, n.º 1 do CP), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2).

Nos termos do art. 40.º, n.º 1, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na ordem jurídico-penal (prevenção geral positiva) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial positiva), sendo certo que, como também se sabe, a referência (legal) aos bens jurídicos conforma uma exigência de proporcionalidade entre a gravidade de pena e a gravidade do facto praticado, a qual, desta forma, integra o conteúdo e o limite da prevenção[4].

Mas, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º 2 do mesmo art. 71.º), sendo certo que “disso já cuidou, em primeira mão, o legislador, quando estabeleceu a moldura punitiva” (Ac. STJ de 10/4/96, CJ-STJ 96, II, 168).

Ora, In casu:  

- Não há dúvida de que a matéria de facto apurada preenche efectivamente, como se decidiu, os elementos constitutivos dos dois apontados crimes: um de roubo agravado, subsumível à previsão normativa acima indicada e a que corresponde, no quadro da reincidência, a moldura penal abstracta de 4 a 15 anos de prisão; e outro de furto qualificado, subsumível à previsão normativa também acima indicada e a que corresponde, ainda no quadro da reincidência, a moldura penal abstracta de 2 anos e 8 meses a 8 anos de prisão.

- É muito elevada, também aqui ao contrário do que sustenta o recorrente, a intensidade da culpa e directo o dolo com que agiu.

- Por outro lado, e como lucidamente observa a decisão impugnada, o grau de ilicitude revelado é também consideravelmente elevado, tendo em conta o modo de execução dos crimes e atendendo em particular, por um lado ao grau e violência exercido sobre o ofendido, a quem provocou lesões físicas, no que toca ao roubo, e contra a habitação no que diz respeito ao furto; e por outro lado à relativamente elevada quantia monetária subtraída no caso do roubo.

- Por último, e para além das diversas outras condenações anteriores que já sofreu, pela prática de crimes idênticos, o ora recorrente foi condenado no âmbito do Processo n.º 232/06.8PCRGR, por um crimes de roubo e vários crimes de furto qualificado, numa pena única de 6 anos de prisão, sendo de sublinhar que praticou os crimes dos autos quando se encontrava em liberdade condicional, que lhe tinha sido concedida em 22-10-2012.

Ponderando, pois, as apontadas circunstâncias; tendo ainda em conta que, bem ao contrário do que sugere, foram também devidamente sopesadas todas as demais que o Tribunal teve por assentes, nomeadamente as que invoca a seu favor (mas, como é bom de ver, não tinham valor atenuativo suficiente para que o Tribunal se devesse decidir por reacção criminal diversa da adoptada); e não olvidando por outra banda as acentuadas exigências quer de (i)prevenção geral inerentes a este tipo de crimes, pela repulsa social que merece e sentimento de insegurança que provoca; quer de (ii)prevenção especial decorrentes do risco, muitíssimo acentuado, de nova reincidência[5], tudo considerando e a tudo atendendo, estamos em crer que será ajustada a medida concreta das sobreditas penas. Isto é, e por outras palavras, entendemos que não só razões de prevenção especial, mas também necessidades de prevenção geral positiva – [que se aferem tendo em conta, como ensina Figueiredo Dias[6], a forma concreta de execução do facto, a sua específica motivação e as consequências que dele resultaram, a situação da vítima e a conduta anterior do agente] – impõem uma censura penal com uma dimensão suficiente para reforçar na comunidade a ideia de efectiva vigência da norma violada e, do mesmo passo, pacificar os sentimentos de incompreensão, e até de revolta, que um comportamento como o do arguido, assumido dentro de um meio muito fechado, necessariamente suscita.

2.1.2 – Quanto à pena única do concurso:

Como é por demais sabido e vem sendo repetidamente afirmado, aliás, pela Jurisprudência e pela doutrina, a medida concreta da pena do concurso – que se constrói, dentro da moldura abstrata aplicável definida no n.º 2 do art. 77.º do CP, a partir das penas aplicadas aos diversos crimes – é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em linha de conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente (art. 77.º, n.º 1, segundo segmento, do CP).

O que vale por dizer, pois, que à visão atomística inerente à determinação das penas singulares, sucede agora uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global enquanto enquadrada na personalidade unitária do agente. Isto é, e como ensina Figueiredo Dias[7], «tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique».

Nesta sede, e como bem ponderou também o tribunal, há que considerar que o “ilícito global” – constituído por dois crimes, um de roubo agravado e outro de furto qualificado, cometidos nas circunstâncias já acima evidenciadas, não pode deixar de assumir significativa gravidade, denotando um considerável desvio em relação aos valores da vida comunitária e revelando por parte do arguido uma personalidade potencialmente perigosa para a ordem jurídica, indiciadora de alguma falta de assimilação dos valores fundamentais da comunidade, mormente na área de bens jurídicos de índole pessoal e patrimonial, cuja tutela a incriminação respetiva visa assegurar. E não pode olvidar-se ainda, como igualmente bem ponderou o tribunal, a culpa do arguido pelo conjunto dos factos, cujo grau de censura se situa num patamar bem acima da média, a permitir portanto que a pena única se possa fixar pelo menos próximo e/ou até um pouco acima, do ponto intermédio da moldura penal abstrata. Tal como não pode igualmente deixar de ter-se em conta que são muito elevadas, quer as necessidades de prevenção especial; quer as exigências de prevenção geral.

Neste quadro, tendo em conta que a moldura penal do concurso de crimes tem como limite mínimo 7 anos de prisão [pena parcelar mais elevada], e como limite máximo 11 anos de prisão [soma de todas as penas parcelares], estamos em crer que a pena fixada – 8 anos e 6 meses de prisão – se mostra ajustada à gravidade do ilícito global, já devidamente salientada, e à personalidade revelada pelo arguido na sua referência à totalidade dos crimes, não se nos afigurando muito elevada em face quer daqueles limites e das exigências de prevenção, quer da medida da culpa, enquanto englobadas naquela totalidade. Dentro da apontada moldura abstrata, estamos em crer que não poderia deixar de optar-se, como se decidiu, por uma pena claramente situada no limiar médio da respetiva moldura penal abstrata, o mesmo é dizer próximo dos 9 anos de prisão. O tribunal ficou mesmo ligeiramente aquém desse limiar ao fixar a pena, como vimos, em 8 anos e 6 meses.»

              7. Foi este parecer notificado ao arguido que, ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não respondeu.

8. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

A. Matéria de facto

1. Matéria de facto assente nas instâncias:

«- Da prova produzida resultou assente a seguinte factualidade:

 1.

No dia 5 de Setembro de 2013, cerca das 1 h30, quando o ofendido BB se encontrava no interior da sua viatura de matricula ... no Largo da Vila, ----,---- o arguido AA abeirou-se do mesmo e, empunhando numa das mãos uma faca de cozinha, disse-lhe "dá-me vinte euros!";

Perante a recusa do ofendido em dar ao arguido o dinheiro que lhe exigia e após alguma luta entre ambos, o arguido golpeou o ofendido com a referida faca, provocando-lhe dores e escoriações superficiais, lineares, rectilíneas, paralelas entre si, como as produzidas por unhadas, na região dorsal à esquerda, escoriação com 4 cm de extensão por 2 cm de largura no ombro direito, corte superficial com 7 cm de extensão e sem afastamento dos bordos, na face anterior do terço inferior do braço direito, escoriações na face dorsal do punho direito, corte superficial descontínuo, ocupando uma extensão de 9 cm, com cada um dos dois trechos do corte medindo 2 cm na palma da mão esquerda, escoriação superficial na região suprapatelar e ferida puntiforme na face medial do joelho direito e escoriações na face anterior da perna esquerda desde o joelho até ao tornozelo, lesões que demandaram 7 dias para cura sem afectação da capacidade para o trabalho geral e com 3 dias de afectação da capacidade para o trabalho profissional;

Quando finalmente conseguiu imobilizar o ofendido, o arguido agarrou numa mochila que aquele tinha às costas, a qual continha a quantia de €3.000,00 (três mil euros), e abandonou o local:

O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, pretendendo fazer seu o dinheiro e a mochila pertencentes ao ofendido, bem sabendo que os mesmos lhe não pertenciam e que agia contra a vontade do legítimo proprietário e, ainda, que a sua conduta  era socialmente desvaliosa e criminalmente punível;

2.

No dia 9 de Outubro de 2013, entre as 16h40 e as 17h30, o arguido AA dirigiu-se à residência de CC e DD sita na Rua ----, estroncou o fecho de uma janela da referida residência, entrou na mesma e de lá retirou e fez seus, contra a vontade dos proprietários, €40,00 (quarenta euros) em dinheiro e um par de argolas em ouro detendo suspenso em cada argola um golfinho também em ouro no valor de €100,00 (cem euros), dinheiro e objetos com os quais abandonou o local;

O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, pretendendo fazer seu o dinheiro e objectos pertença dos ofendidos, bem sabendo que os mesmos lhe não pertenciam e que agia contra a vontade dos legítimos proprietários e, ainda, que a sua conduta era socialmente desvaliosa e criminalmente punível;

3.

O arguido foi condenado pela prática dos sequintes crimes:

a. no processo 200/98.1 PCRGR: por decisão de 26.6.2001, transitada em julgado em 13.7.2001, pela prática em 30.10.2000 de vários crimes de furto e tráfico de estupefaciente na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão;

b. no processo 96/01.8PEPDL: por decisão de 3.6.2002, transitada em julgado em 19.6.2002, pela prática em 9.9.2001 de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade na pena de 4 meses de prisão;

c. no processo 1052/00.9PBPDL: por decisão de 30.10.2002, transitada em julgado em 15.11.2002, pela prática em 9.5.1998 de um crime de furto qualificado na pena de 8 meses de prisão;

d. no processo 274/02.2TAPDL: por decisão de 4.7.2003, transitada em julgado em 18.9.2003, pela prática em 28.6.2002 de um crime de ofensas à integridade física na pena de 100 dias de multa;

e. no processo 211/05.2PCRGR: por decisão de 18.5.2006, transitada em julgado em 7.6.2006, pela prática em 19.4.2005 de um crime de receptação na pena de 4 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos;

f. no processo 86/05.1 PCRGR: por decisão de 2.11.2006, transitada em julgado em 2.11.2006, pela prática em 19.2.2005 de um crime de furto na pena de 150 dias de multa;

g. no processo 64/99.8PCRGR: por decisão de 15.11.2006, transitada em julgado em 4.12.2006, pela prática em 29.1.1999 de um crime de furto qualificado na pena de 10 meses de prisão suspensa na sua execução por 3 anos;

h. no processo 308/06.1PARGR: por decisão de 17.1.2007, transitada em julgado em 2.2.2007, pela prática em 8.7.2006 de um crime de furto qualificado na pena de 2 anos de prisão;

i. no processo 232/06.8PCRGR: por decisão de 24.9.2008, transitada em julgado em 21.1.2009, pela prática entre 19.7.2006 e 25.2.2007 de um crime de roubo e vários crimes de furto qualificado na pena de 6 anos de prisão, tendo-lhe sido concedida liberdade condicional em 22.10.2012;

j. no processo 221/11.0TARGR: por decisão de 9.3.2012, transitada em julgado em 14.3.2012, pela prática em 28.1.2010 de um crime de falsidade de testemunho na pena de 100 dias de multa;

               Todas as condenações supra elencadas não foram suficiente advertência contra a prática de crimes contra o património por parte do arguido AA, tendo o mesmo, dentro do prazo de cinco anos após a sua libertação do estabelecimento prisional depois de ter cumprido parte da pena de prisão em que foi condenado no processo 232/06.8PCRGR, praticado os factos acima apontados que constituem crime;

Resulta do relatório social do arguido e do seu CRC:

4.

Oriundo da ---, ---, ---, de um agregado familiar numeroso de condição socioeconómico desfavorecida, AA é o oitavo de uma descendência de catorze. A sua infância e adolescência decorreram em ambiente familiar desestruturado e condicionado pelos comportamentos violentos do progenitor, sendo recorrentes os episódios de violência doméstica contra todos os elementos do agregado, que frequentemente fugiam de casa. O progenitor, figura que se revelou de influência negativa no processo educativo da prole, conotado como indivíduo socialmente conflituoso e com hábitos etílicos, veio a falecer, vítima de homicídio ocorrido na sequência de uma briga, quando o arguido tinha 11 anos. A progenitora, doméstica, assumiu desde então a gestão familiar e o processo educativo dos descendentes, adotando uma postura permissiva e desculpabilizante face aos comportamentos desajustados dos mesmos. AA iniciou percurso escolar em idade própria, tendo contudo registado significativas dificuldades de adaptação, quer em termos comportamentais, quer de aprendizagem, associado a elevado absentismo, fatores que comprometeram a aquisição de competências básicas de leitura e escrita, não tendo consequentemente merecido aprovação a nenhum nível escolar. Apresenta um percurso profissional irregular, sobretudo dedicado à atividade piscatória, para a qual está habilitado com cédula profissional marítima, registando ainda curta experiência profissional como carpinteiro. A iniciação ao consumo de drogas durante a infância, designadamente de canabinoides pelos 10 anos e de heroína aos 14 e, mais tarde, de cocaína, em contexto de grupo de pares, com quem partilhou uma subcultura de desvio, que terá sido propulsora de uma trajetória de toxicodependência e de práticas ilícitas, com conduziram à intervenção do sistema de justiça penal, aos 20 anos, sendo condenado em três penas de prisão, cumprindo integralmente pena única de 3 anos e 3 meses, entre dezembro 2000 a Março de 2004. Em Fevereiro de 2007 iniciou o cumprimento de nova pena de prisão, que veio a ser englobada no cúmulo jurídico realizado no processo n°.232/06.8PCRGR, na pena única de 8 anos de prisão e 150 dias de multa, pela prática de vários crimes de furto e roubo, resistência e coação e dano agravado. O cumprimento desta pena evoluiu de um registo de instabilidade comportamental, com diversas punições disciplinares verificadas na fase inicial da pena, para um comportamento institucional adequado e isento de medidas disciplinares, com desenvolvimento de atividade laboral como faxina, bem como pela adesão a tratamento à toxicodependência. Veio a merecer a concessão de liberdade condicional a 22 outubro de 2012 e atingido o termo da pena a 25 de fevereiro de 2015. Acrescenta-se a existência de outros elementos do agregado que também se envolveram em práticas criminais tendo dois dos seus irmãos cumprido penas de prisão. À data dos alegados factos o arguido encontrava-se em liberdade condicional e havia regressando aos Açores, integrando o agregado de origem, que incluía a progenitora, duas irmãs e respetivos cônjuges e uma sobrinha de menoridade, passando a residir numa habitação tipo moradia, T5, com adequadas condições de habitabilidade e conforto, atribuída à família poucos anos antes, no âmbito de um projeto de realojamento da Secretaria Regional da Habitação e Equipamentos. A subsistência da família era então assegurada pela pensão de sobrevivência que a progenitora beneficiava, no valor de €140,00 e complementado pela prestação de Rendimento Social de Inserção que o arguido passou a beneficiar, por ter integrado o agregado da irmã, titular desta prestação. Procedeu à sua inscrição para emprego, na Agência de Qualificação e Emprego de --- e realizou diligências de procura de emprego, não tendo todavia concretizado este propósito. Não obstante em meio livre tenha dado continuidade ao programa de substituição opiácea por metadona, com acompanhamento pela Associação ARRISCA, o arguido assume a ocorrência de recaída volvidos cerca de quatro meses de liberdade condicional, designadamente do consumo de crack, substância reconhecida pelo poder viciante. Tendo tomado consciência das dificuldades em prosseguir processo de mudança, designadamente em manter o afastamento das práticas de consumo de estupefacientes e comportamentos acoplados inserido naquele contexto residencial, associado à trajetória criminal que protagonizou, e considerando necessário promover a rutura com aquele território, AA solicitou o apoio necessário com vista à integração em Comunidade Terapêutica (C.T.), que veio a concretizar-se em março de 2014, na "Clinica do Outeiro", em Vila do Conde. Decorridos treze meses do internamento na Clinica do Outeiro, o arguido AA apresenta uma evolução lenta mas gradual, pese embora o registo de avanços e recuos, verificando-se na atualidade uma gestão emocional mais eficaz, bem como uma comunicação mais assertiva, mantendo a abstinência de substâncias psicoativas ilícitas desde a sua entrada na Comunidade Terapêutica. Mantém terapêutica de substituição opiácea, que tem vindo a reduzir progressivamente, bem como medicação psicofarmacológica, cuja administração cumpre com rigor. Naquele contexto institucional de cariz terapêutico, o seu quotidiano está estruturado em função das atividades ocupacionais, sessões de terapia individual e grupal, bem como pela prática de exercício físico e atividades de vida diária, a que tem correspondido favoravelmente. Beneficiando do apoio financeiro do governo regional dos Açores e do apoio da segurança social, no que se refere às despesas pessoais, aguarda-se no presente resposta ao pedido de prorrogação do internamento por mais 6 meses, com vista a consolidar os objetivos do tratamento e promover a sua reinserção social, no continente, atendendo a que AA afirma não pretender voltar aos ---, à exceção de eventuais visita à família, transmitindo convicção em prosseguir, no continente, com estilo de vida normativo, sem drogas e assente na inserção laboral. Atendendo ao défice cognitivo acentuado (de acordo com avaliação neuropsicológica realizada no decurso do atual internamento), à ausência de competências de leitura e que acrescentam dificuldades à inserção laboral, o arguido, juntamente com a Equipa Técnica da C.T., equacionam a possibilidade de o mesmo, numa fase posterior, integrar resposta social semelhante à de apartamento de reinserção social, onde possa beneficiar de apoio na fase de transição, sobretudo ao nível residencial e profissional. Tendo atingido há cerca de dois meses o termo da liberdade condicional, cujo desfecho aguarda a decisão do presente processo, AA tem pendente o processo nO.604/13.1 PCRGR, da Comarca dos --- - --- – lnst. Local - Secção criminal - J1, no qual está acusado da prática de um crime de furto simples, a 12.10.2013, cuja audiência de julgamento está agendada para dia 11.5.2015. Aquando da tomada de conhecimento do presente processo AA registou uma fase de acentuada instabilidade emocional e comportamental, refletida na alteração no relacionamento interpessoal e com as regras institucionais associadas ao tratamento, situação que mais recentemente parece ter sido superada, não obstante mantenha particular apreensão pela atual situação jurídico-penal, tendo consciência das possíveis consequências. Perante a factual idade constante dos autos, o arguido apresenta juízo de censura. Apresentando um percurso vivencial marcado pela precariedade económica e disfuncional da família de origem, bem como pela fragilidade dos modelos parentais e inadequada supervisão educativa, associada à inserção em contexto socio-residencial dessensibilizado face a uma subcultura juvenil associada a práticas desviantes do grupo que integrou e consumo de estupefacientes, AA veio a ser confrontado, já idade adulta, com as consequências jurídico-penais da trajetória desviante até então exibida, iniciando aos 20 anos o cumprimento da primeira pena de prisão, a que se lhe seguiram outras, tendo cumprido até à data cerca de 8 anos de reclusão. AA, atualmente com 35 anos, transmite ter adquirido consciência da sua incapacidade em romper com o estilo de vida e com os [aços que o unem no meio social de origem, reconhecimento que o levou a afastar-se da família e das suas origens, em prol de um processo de mudança, que enfrenta com o apoio técnico especializado, e que pretende prosseguir. Não obstante os inúmeros obstáculos com que se depara o seu processo de reinserção social, e dos quais se destacam as necessidades nas áreas da educação e emprego, bem como a importância de manter afastamento de pares com condutas associais a par da promoção de relações pró-sociais, importa continuar a reforçar as competências pessoais e sociais adquiridas em contexto de tratamento à toxicodependência, que poderiam ser consolidadas no âmbito de medida de execução na comunidade, atendendo a todo o processo de mobilização e de investimento pessoal que AA tem imprimido desde que integrou a Comunidade Terapêutica da qual, na sequência de comportamentos desajustados que adotou, foi expulso e abandonou a Comunidade Terapêutica "Clinica do Outeiro" no dia 5.5.5015, com possível regresso aos Açores;

Além das condenações referidas em 3. não conta outros antecedentes.»

B. Matéria de direito

1.1. Cumpre salientar que, apesar de o recurso interposto ter sido admitido sem quaisquer restrições por parte do tribunal a quo, esta decisão não vincula este Supremo Tribunal, conforme decorre do disposto no n.º 3 do art. 414.º do CPP.

1.2. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente aquando da interposição do recurso, nos termos do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo do conhecimento oficioso de nulidades e dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP.

Tendo em conta as conclusões apresentadas, o arguido apenas recorre da medida das penas parcelares e da medida da pena única. Tratando-se de penas parcelares superiores a 5 anos de prisão e de uma pena única conjunta também superior a este limite, nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP é admissível recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça.

Antes mesmo de analisar as penas concretas que foram aplicadas, cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre as eventuais nulidades de que padeça o acórdão recorrido.

1.2.1. No que respeita às penas parcelares verificamos que o arguido foi condenado como reincidente. Assim sendo, cabe determinar a pena tendo em conta as especificidades constantes do disposto no arts. 75.º e 76.º, do CP.

Sabemos que o Tribunal a quo determinou a pena a partir das molduras abstratas agravadas em função da reincidência, e por isso considerou que a moldura abstrata para o crime de roubo agravado era de pena de prisão entre 4 e 15 anos, e para o crime de furto qualificado era de prisão entre 2 anos e 8 meses e 8 anos (assim cumprindo o disposto no art. 76.º, n.º 1, 1.ª parte, do CP. Porém, o art. 76.º, n.º 1, do CP, determina ainda que “A agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores”.

São várias as fases de determinação da pena em sede de reincidência. Em primeiro lugar, terá que se determinar a pena concreta para cada um dos crimes individuais, como se o arguido não fosse reincidente — constitui uma “operação duplamente instrumental” (Maria João Antunes),  indispensável “por duas razões: para assim determinar se se verifica um dos pressupostos formais da reincidência, qual é o de o crime reiterado ser punido com prisão efectiva; e para tornar possível  a última operação, imposta pela 2.ª parte do art. 77.º-1”[8] [actual art. 76.º, n.º 1]. Nesta última operação “o tribunal tem de comparar a medida da pena a que chegou sem entrar em linha de conta com a reincidência (...) com aquela que encontrou dentro da moldura da reincidência (...). Isto porque a agravação determinada pela reincidência não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores (...), em nome de uma ideia de proporcionalidade. Trata-se aqui, em bom rigor, de um limite absoluto e externo (...) que pode levar a que a medida concreta da pena do reincidente fique aquém do limite mínimo da moldura penal da reincidência”[9]. Ou, por outras palavras, a “justificação de uma tal doutrina deriva do desejo compreensível de evitar que uma condenação anterior numa pena pequena possa, por efeito da reincidência, ir ter a consequência de agravar desproporcionadamente a medida da pena pelo crime anterior”[10] assim pretendendo evitar-se “agravamentos demasiado severos da pena da reincidência”[11].

Ora, apesar de o Tribunal a quo ter verificado se existia o necessário pressuposto material de “conexão íntima” entre os crimes, anterior e posteriormente praticados, e apesar de ter verificado que estava cumprido o designado “prazo de prescrição da reincidência”, ainda assim é completamente omisso quanto ao disposto no art. 76.º, n.º 1, 2.ª parte, do CP. Para tanto devia ter referido quais as penas em que o arguido tinha sido condenado no âmbito do processo n.º 232/06.8PCRGR quanto aos crimes de roubo e aos diversos crimes de furto qualificado em que foi condenado e, depois, comparando com as penas concretas atribuídas nestes autos, verificar que a diferença entre cada uma daquelas e cada uma destas nunca era superior à pena mais grave anteriormente aplicada, assim demonstrando estar também preenchido o requisito do art. 76.º, n.º 1, 2.ª parte, do CP.

Sendo, pois, omisso nesta parte, entendemos estar perante uma nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

               1.2.2. E, no que respeita à determinação da medida da pena o acórdão recorrido deliberou:

               «BB - Determinação da medida da pena:

Os crimes praticados pelo arguido são, em razão da reincidência, puníveis com penas de prisão de 4 a 15 anos de prisão (roubo agravado) e de 2 anos e 8 meses a 8 anos de prisão (furto qualificado).

Posto isto, importa determinar a medida concreta das penas a aplicar ao arguido.

Nos termos do disposto pelo art. 40.º do CP, a finalidade primeira das penas reside na tutela dos bens jurídicos, devendo traduzir, a sua aplicação, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma violada, sem perder de vista, na medida do possível, a reinserção social do arguido, ou seja, as exigências de prevenção e de repressão geral da criminalidade, por um lado, e, por outro, as exigências específicas de socialização e de prevenção da prática de novos crimes.

Do disposto no art. 71.º, n.º 1 do CP decorre que a determinação da medida da pena é, dentro dos limites estabelecidos na lei, feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, estabelecidas no citado art. 40.º.

Encontrada a moldura da pena, fixada em função das exigências de prevenção geral positiva, devem então funcionar as exigências de prevenção especial, em particular as exigências de prevenção especial positiva ou de socialização, para a determinação concreta da pena, tendo sempre presente que a culpa representa o limite inultrapassável da mesma.

Sendo estes os postulados de que devemos partir, cumpre dar realização prática aos mesmos, o que faremos nos termos do art. 71.º, n.º 2 do CP.

Em conformidade com o disposto neste último normativo, na determinação concreta da pena devemos atender "a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele".

No caso vertente as exigências de prevenção geral são bastante elevadas. Com efeito, estamos perante delitos que são alvo de grande censura comunitária e com os quais somos frequentemente confrontados na comarca. Ademais, o forte sentimento de insegurança gerado por situações desta natureza denota a necessidade de transmitir um sinal claro à comunidade no sentido da afirmação da validade da norma violada, restabelecendo o sentimento de segurança abalado pelo crime.

O grau de ilicitude deve ser considerado elevado, atendendo ao grau de violência exercido sobre o ofendido, a quem provocou lesões físicas, no que toca ao roubo e contra a habitação no que respeita ao furto, bem como às consequências da sua conduta, atendendo à elevada quantia monetária subtraída no roubo, que não foi recuperada... e o facto das argolas, atinentes ao furto terem sido recuperadas.

A intensidade do dolo corresponde ao dolo directo.

No que se refere aos antecedentes criminais, importa considerar a longa lista de condenações já sofridas pelo arguido, por crimes idênticos, donde se infere que a presente conduta não representou um episódio isolado na sua vida, antes denota uma personalidade insensível perante as normas jurídicas que regulam a vida em sociedade e revela resistência em se deixar influenciar positivamente pelas penas sofridas, o que resulta também evidenciado no relatório social.

Ainda ao nível da prevenção especial, há também a considerar a circunstância do arguido não ter rede de suporte familiar ou profissional, mantendo uma vida à margem da sociedade, pautada pelo aditismo que não consegue ou não quer combater... o que ressalta de forma clara do facto de ter sido, recentemente, expulso da comunidade terapêutica em que se encontrava, não denotando crítica sobre os seus actos, nem revelando abertura à intervenção de estruturas de apoio, pelo que são as mesmas elevadas.

Tudo visto e ponderado, entendem-se adequadas em função da reincidência;

- a pena de 7 anos de prisão para o crime do ponto 1.; e

- a pena de 4 anos de prisão para o crime do ponto 2.

Tendo em conta a moldura do concurso que vai de 7 anos a 11 anos de prisão, fixar a pena única em 8 anos e 6 meses de prisão.»

              Se nada nos afigura problemático no que diz respeito à determinação das penas parcelares atribuídas a cada um dos crimes, o mesmo já não podemos dizer quanto à determinação da pena única.

              Na verdade, o dever de fundamentação, expressamente consagrado no art. 97.º, n.º 5, do CPP, impõe que sejam especificados os motivos de facto e de direito da decisão, impondo, por um lado, que se descreva expressamente os factos provados e a motivação de facto e, por outro lado, que se exponha os motivos de direito — subsunção do caso à previsão legal, argumentação jurídica, justificação de um certo sentido da interpretação da lei — que estiveram na base da decisão tomada. Este dever de fundamentação é, ao longo de todo o Código de Processo Penal, invocado em inúmeros atos processuais. É o que acontece na sentença (cf. art. 374.º, n.º 2, do CPP), mas também, por exemplo, na aplicação de medidas de coação privativas da liberdade e como forma de demonstrar o cumprimento do princípio da subsidiariedade em matéria de medidas de coação (cf. arts. 193.º, n.ºs 2 e 3, 201.º, n.º 1 e 202.º, n.º 2, do CPP), ou quando se procede à apreciação da prova (cf. art. 365., n.º 3, do CPP). E o mesmo se aplicando aos acórdãos proferidos em sede de recurso, por força do art. 425.º, n.º 4, do CPP.

Ora, também no caso de uma decisão sobre a aplicabilidade de uma pena única conjunta em sede de conhecimento superveniente esta fundamentação deve existir em cumprimento do art. 374.º do CPP, e ainda do art. 71.º, n.º 3, do CP, onde expressamente se diz que "na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena" — o que nos permite considerar que o legislador entendeu que havia uma necessidade de fundamentação da decisão judicial também na parte respeitante à escolha e determinação da medida da pena, quer se trate de pena singular, quer de uma pena única conjunta, quer em casos de conhecimento "originário" do concurso de crimes, quer em situações de conhecimento superveniente. E neste seguimento o CPP estabelece no art. 375.º, n° 1, que "a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da pena da sanção aplicada, indicando, nomeadamente, se for caso disso, o início e o regime do seu cumprimento, outros deveres que ao condenado sejam impostos e a sua duração, bem como o plano individual de readaptação social".

              Ora, nada é referido no acórdão recorrido quanto aos fundamentos da atribuição da pena única de 8 anos e 6 meses, limitando-se a uma referência à moldura a partir da qual aquela pena tem que ser calculada. Porém, na determinação da pena única, para além das exigências de prevenção geral e especial, é ainda necessário proceder a uma avaliação global dos factos e da personalidade do arguido. A decisão é completamente omissa quanto à fundamentação de direito no que respeita à medida da pena única: a fundamentação deve ser a necessária e a adequada para apreender a imagem global do facto, para escrutinar se os diversos crimes cometidos pelo condenado são fenómenos ocasionais ou motivados por fatores conjunturais, ou se, pelo contrário, radicam em uma personalidade com apetência para a criminalidade, fazendo do crime o seu modo estrutural de atuação, porém nada é referido no acórdão recorrido.

              É certo que o acórdão começa por apresentar os critérios de determinação da medida da pena de acordo com o estipulado nos arts. 40.º e 71.º, do CP. Porém, a determinação da medida da pena, em sede de concurso de crimes, apresenta especificidades relativamente aos critérios gerais do art. 71.º do CP.

Nos casos de concurso de crimes[12], a determinação da pena única conjunta tem que obedecer (para além daqueles critérios gerais) aos critérios específicos determinados no art. 77.º do Código Penal. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem todavia exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

A partir desta moldura, é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1 do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados, deve proceder-se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique"[13]). Na avaliação da personalidade ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime, ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever-se-á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva).

              Ora, não existindo qualquer fundamentação nesta parte, estamos impossibilitados de fazer qualquer escrutínio da decisão recorrida.

Assim sendo, consideramos o acórdão recorrido nulo. E não se diga que o este Tribunal poderia suprir esta lacuna. Ao fazê-lo estaria a impossibilitar o arguido de recorrer dos fundamentos que presidiriam à determinação da pena única, inviabilizando um grau de recurso a que tem direito nos termos gerais.

              Pelo que entendemos que decisão recorrida está ferida de nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP; e porque se trata de nulidade do conhecimento oficioso, entendemos que devem os autos ser remetidos ao tribunal recorrido para que sejam supridas as deficiências da decisão.

1.3. Por fim, cumpre salientar que na matéria de facto provada no ponto 3.i. se refere “no processo 232/06.8PCRGR: por decisão de 24.9.2008, transitada em julgado em 21.1.2009, pela prática entre 19.7.2006 e 25.2.2007 de um crime de roubo e vários crimes de furto qualificado na pena de 6 anos de prisão, tendo-lhe sido concedida liberdade condicional em 22.10.2012” (negrito nosso), e no ponto 4 é referido “Em Fevereiro de 2007 iniciou o cumprimento de nova pena de prisão, que veio a ser englobada no cúmulo jurídico realizado no processo n° 232/06.8PCRGR, na pena única de 8 anos de prisão e 150 dias de multa, pela prática de vários crimes de furto e roubo, resistência e coação e dano agravado.” — dada a discrepância deve o lapso ser corrigido.

               2. Por tudo o exposto, toda a matéria referente à avaliação da determinação da medida concreta das penas parcelares e da pena única, que seria objeto desta decisão, está prejudicada pelas conclusões a que chegámos nos pontos anteriores.

III

Decisão

Nos termos expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em declarar nulo o acórdão recorrido, nos termos do art.  379.º, n.º 1, al. c), ambos do CPP, que deve ser reformulado de harmonia com o suprimento das nulidades apontadas e corrigido o lapso referido, sem prejuízo do princípio da proibição da reformatio in pejus  (art. 409.º, do CPP).

Porque o recurso obteve provimento parcial não são devidas custas, de harmonia com o disposto no art. 513.º, n.º 1 do CPP.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de dezembro de 2015

Os juízes conselheiros,

(Helena Moniz)

(Nuno Gomes da Silva)


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[1] - E sem entrar na controvérsia que actualmente divide as secções Criminais do STJ a propósito da competência para conhecimento de recursos quando, nos casos de concurso de crimes, a pena única ultrapassa os 5 anos de prisão e o recorrente pretenda o reexame de penas parcelares inferiores àquele limite: como é sabido, é praticamente uniforme, nesta 3.ª Secção, o entendimento no sentido da competência do STJ.
[2] - Nesta caso para a Relação, bem entendido. O STJ apenas conhece de matéria de direito (art. 434.º do CPP).
[3] - O vocábulo culpa não é aqui utilizado no sentido estrito de elemento constitutivo da infração, mas num sentido amplo, abrangente de todos os elementos do crime que nela se perspetivem e que podem ser tomados em conta para graduar a censura que por ela deva ser feita ao agente, aí incluindo a ilicitude, a culpa propriamente dita e a influência da pena sobre o criminoso (cfr., neste sentido Eduardo Correia, Direito Criminal, II, págs. 320 e segs., e Anabela Rodrigues, A determinação da Medida de Pena Privativa de Liberdade, 120).
[4] - Anabela Miranda Rodrigues, obra cit. pág.369.
[5] - Sendo de evidenciar aqui, com o decidido, «a circunstância de o recorrente não ter qualquer rede de suporte familiar ou profissional, mantendo uma vida à margem da sociedade, pautada pelo aditismo que não consegue ou não quer combater …o que ressalta de forma clara do facto de ter sido, recentemente, expulso da comunidade terapêutica em que se encontrava, não denotando crítica sobre os seus atos, nem revelando abertura à intervenção de estruturas de apoio […]».
[6] - In “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 241.
[7] - In “Direito Penal Português – As Consequência Jurídicas do Crime”, pág. 291.
[8] Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 381 (p. 270).
[9] Maria João Antunes, Consequências jurídicas do crime, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 54. Também no sentido da necessidade de proceder a uma determinação da pena concreta como se não houvesse reincidência para determinar em seguida a pena com reincidência, de modo a permitir verificar o quantum da agravação, cf. Helena Susano, Reincidência Penal (da teoria à prática judicial), Coimbra: Almedina, 2012, p. 113-4.
[10] Figueiredo Dias, ob. cit. supra, § 387 (p. 273).
[11] Idem, § 389 (p. 274).
[12] Ou seja, em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, a pena única apenas pode ser aplicada caso estejam verificados os seus pressupostos de aplicação, isto é, caso estejamos perante uma situação de concurso efetivo de crimes.
[13] Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 421 (p. 291).