Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SIMAS SANTOS | ||
Descritores: | FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA PROCESSO PENAL CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE INTERESSE PROTEGIDO FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO | ||
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Nº do Documento: | SJ200301160006095 | ||
Data do Acordão: | 01/16/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | DR I S-A, Nº 49, DE 27-02-2003, P. 1409 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC FIXAÇÃO JURIS. | ||
Decisão: | FIXADA JURISPRUDÊNCIA | ||
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Sumário : | "No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do art.º 256º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente, tem legitimidade para se constituir assistente". | ||
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Decisão Texto Integral: | Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: I 1.1. ALT, recorrente nos autos de processo crime n.º 725/2001 da Relação do Porto, notificado do acórdão proferido a 24.10.2001, dele interpôs, para este Supremo Tribunal, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, concluindo na sua respectiva motivação: 1.º O presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência é interposto do acórdão proferido em 24/10/2001, pela 4.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto que negou provimento ao recurso interposto pelo recorrente, o qual está em oposição com o acórdão proferido em 10/02/2000 pelo Tribunal da Relação de Lisboa sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação em vigor; 2.º Do acórdão recorrido não é possível recurso ordinário e a mesma decisão já transitou em julgado e em data posterior à data do transito em julgado do acórdão fundamento; 3.º Essas duas decisões são substancialmente opostas e contraditórias entre si, pelo que estão preenchidos os requisitos para a interposição de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência previstos nos art.ºs 400.º, n.º 1 al. c), 437.º, n.º 2 e 438.º, n.º 1 todos do CPP; 4.º O acórdão recorrido violou o art. 256.º, n.º 1, al. a) do Código Penal e art. 68.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal na redacção dada pela Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto. 5.º Nos termos do decidido no Assento n.º 9/2000, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário de República, 1ª Série de 27 de Maio, no recurso de fixação de jurisprudência deve constar, sob pena de rejeição, o sentido em que deve fixar-se jurisprudência cuja fixação é pretendida. Nestes termos e com o douto suprimento dos venerandos juízes conselheiros, deve o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência ser admitido e em consequência deve fixar-se a seguinte jurisprudência: "Quando os interesses, imediatamente protegidos pela incriminação sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares, como acontece com o crime de falsificação de documento, previsto e punido na al. a) do n.º 1 do art. 256º do Código Penal vigente, a pessoa que tenha sofrido danos, em consequência da sua prática, tem legitimidade para se constituir assistente". 1.2. Aposto o visto do Ministério Público, que entendeu mostrarem-se preenchidos os requisitos legais para o prosseguimento dos autos como recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, e colhidos os restantes vistos foram os autos presentes à conferência para conhecer e decidir da questão preliminar. E, por acórdão de 18 de Abril de 2002, decidiu-se pelo prosseguimento do recurso, por se entender que o mesmo fora tempestivo, interposto por quem tem legitimidade e se verifica oposição relevante de acórdãos. 1.3. Pode questionar-se se tem agora lugar uma nova apreciação da questão já decidida da oposição de acórdãos. Já foi respondido negativamente a partir da inexistência no CPP de uma norma idêntica à que então disciplinava semelhante recurso no Cód. de Proc. Civil então em vigor (art. 766.º, n.º 3 - o Tribunal Pleno, ao apreciar um recurso para si interposto, nos termos previstos naquele diploma, começava por conhecer novamente da questão da oposição e só entrava no conhecimento da questão de fundo se concluísse uma outra vez pela existência de oposição (1)). Já no sentido positivo se pronunciou este Tribunal (2), considerando que, apesar do novo Código de Processo Penal ter rompido abertamente com a tradição que, há quase um século, geminou os recursos penais e cíveis, passando aqueles a obedecer a princípios próprios, formando uma estrutura normativa autónoma, onde não se contem uma norma de sentido idêntico à do falado n.º 3 do art.º 766.º do CPC, não faria sentido atribuir carácter definitivo ao julgamento prévio da oposição de acórdãos, dada a diversa composição do tribunal em conferência e em pleno. Com efeito, enquanto na conferência, em que é decidida a questão prévia, intervêm só o presidente da secção, o relator e 2 juízes-adjuntos (419.º, n.º 1, por força do n.º 3 do art.º 441.º), no plenário intervêm todos os juízes das secções criminais e o Presidente do STJ. Pode, assim, questionar-se, perante composição tão díspar, se a decisão da conferência sobre um pressuposto fundamental deste recurso extraordinário (a oposição de julgados) vincula um tribunal de composição muito mais amplo (3). Mas, como se decidiu e demonstrou no acórdão sobre a questão preliminar, verificam-se os pressupostos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. 1.3.1. Com efeito, no que se refere à legitimidade teve-se em consideração, quer o teor literal do n.º 1 do art. 437.º do CPP, quer o específico desenho do caso sujeito. O recorrente que apresentara queixa crime pelo crime de falsificação, requereu, findo o inquérito, a sua constituição como assistente, pretensão recusada por despacho que, face à natureza do crime participado, entendeu que carecia o requerente de legitimidade para aquela constituição, despacho confirmado pelo acórdão recorrido, que negou provimento ao recurso. Conclui-se que a decisão recorrida foi proferida contra o recorrente, ou ao menos, que este viu o seu direito «afectado» pela decisão [art. 401.º, n.º 1, al.s b) e d) do CPP]. Mas teve-se em atenção o disposto no n.º 1 do art. 437.º do CPP («1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou as partes civis podem recorrer, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.»), que leva à conclusão de que, do elenco daqueles que têm legitimidade para recorrer, à luz do preceito gral do art. 401.º, ficam arredados os referidos na alínea d): «Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão» Ora, não sendo o recorrente assistente, poder-se-ia pôr em causa, face ao teor literal daquele n.º 1, a sua legitimidade para este recurso extraordinário. Sucede, no entanto, que o recurso interposto para a Relação do Porto, onde foi proferido o acórdão recorrido, a questão de fundo é exactamente a da legitimidade do recorrente para se constituir assistente. A questão de fundo confunde-se, pois, com a questão da legitimidade. Daí que se tenha entendido em conferência que o recorrente, que viu denegado o seu direito a constituir-se como assistente, por falta de legitimidade, possa esgotar os expedientes de impugnação das decisões que assim o entenderam, mesmo os extraordinários, sob pena de negação do acesso pleno aos Tribunais. 1.3.2. O acórdão recorrido, de 24.10.2001 da 4.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, proc. n.º 725/2001, decidiu que, em processo crime por crime de falsificação de documento, atendendo à sua natureza, não é admissível a constituição de assistente. Já o acórdão fundamento do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10.02.2000 (4), decidiu que «quando os interesses, imediatamente protegidos pela incriminação, sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares, como acontece com o crime de falsificação de documento, previsto e punido na alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º, do CP vigente, a pessoa que tenha sofrido danos, em consequência da sua prática, tem legitimidade para se constituir assistente». Os acórdãos em causa assentaram, assim, em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito, com o acórdão recorrido a responder negativamente e o acórdão fundamento positivamente à admissibilidade de constituição de assistente em processo crime por falsificação de documento. 1.3.3. Os acórdãos recorrido e fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação: art. 68.º do Código de Processo Penal e art. 256.º do Código Penal, na redacção actual, não tendo ocorrido modificação legislativa no intervalo da sua prolacção (art. 437.º, n.º 3 do CPP). E do acórdão recorrido, proferido em último lugar, não cabe recurso ordinário. II 2.1. O Ministério Público produziu alegações escritas em que concluiu: 1 - Entendendo-se que o aresto recorrido deverá ser revogado e que o conflito que se suscita há-de resolver-se fixando-se jurisprudência no sentido do decidido no acórdão fundamento, 2 - Propõe-se, para tal efeito, a seguinte redacção: "Quando os interesses protegidos pela incriminação forem simultaneamente do Estado e de particulares, como sucede com o crime de falsificação de documento previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do art.º 256º do Código Penal, a pessoa que haja sofrido danos em consequência da sua prática, tem legitimidade para se constituir assistente". 2.2. Por sua vez, o recorrente, para efeitos do disposto no n.º 1 do art. 442.º do CPPP, veio dar por reproduzidas as motivações que apresentara no recurso para a Relação do Porto em 30.11.01, cujas conclusões se transcreveram já e onde pede seja fixada a seguinte jurisprudência: "Quando os interesses imediatamente protegidos pela incriminação sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares, como acontece com o crime de falsificação de documento, previsto e punido na alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal vigente, a pessoa que tenha sofrido danos, em consequência da sua prática, tem legitimidade para se constituir assistente". III Colhidos os vistos, teve lugar a conferência a que alude o n.º 1 do art. 443.º do CPP, pelo que cumpre conhecer e decidir. E conhecendo. 3.1. Vejamos, desde logo, os dispositivos legais convocados para a decisão do presente recurso extraordinário. Prescreve a Constituição, a propósito da função jurisdicional, que na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (art. 202.º, n.º 2); competindo ao Ministério Público, além do mais, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática (art. 219.º). Dispõe agora igualmente a Lei Fundamental, quanto às garantias de processo criminal, que o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei (n.º 7 do art. 32.º); tendo entendido o Tribunal Constitucional que «a revisão constitucional de 1997 faz-se no contexto da vigência do artigo 68º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal e nada indica que tenha querido outra coisa senão dar dignidade constitucional ao que aí se estabelece» (5). Dispõe o Código de Processo Penal (art. 48.º) que o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos art.ºs 49.º (procedimento dependente de queixa), 50.º (procedimento dependente de acusação particular) a 52.º (concurso de crimes). Neste diploma instrumental definem-se, assim, a posição e atribuições do Ministério Público no processo, competindo-lhe: colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade. em especial: (a) receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a darlhes; (b) dirigir o inquérito; (c) deduzir acusação e sustentála efectivamente na instrução e no julgamento; (d) interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa; (e) promover a execução das penas e das medidas de segurança. E no já falado art. 68.º, dispõe o Código de Processo Penal, sobre o assistente: «1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos; b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento; c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes e a pessoa que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime; d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime; e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção. 2 - Tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, o requerimento tem lugar no prazo de oito dias a contar da declaração referida no artigo 246.º, n.º 4. 3 - Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitandoo no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz: a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento; b) Nos casos dos artigos 284.º e 287.º, n.º 1, alínea b), no prazo estabelecido para a prática dos respectivos actos. 4 - O juiz, depois de dar ao Ministério Público e ao arguido a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento, decide por despacho que é logo notificado àqueles. 5 - Durante o inquérito, a constituição de assistente e os incidentes a ela respeitantes podem correr em separado, com junção dos elementos necessários à decisão.» Completando no art. 69.º, com a disposição sobre a posição processual e as atribuições dos assistentes: «1 - Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei. 2 - Compete em especial aos assistentes: a) - Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias; b) - Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente da acusação particular, ainda que aquele a não deduza; c) - Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério público o não tenha feito.» 3.2. Vê-se, assim, que, no nosso ordenamento, o exercício da acção penal foi confiado a um órgão de Estado - ao Ministério Público, pela forma especificada nos referidos dispositivos do Código de Processo Penal, de acordo com a concepção de que o jus puniendi e o correlativo jus procedendi são de interesse eminentemente público. Mas não se esqueceu que «para uma autêntica protecção da vítima, mais decisivo ainda que o auxílio "social" em sentido amplo que lhe possa ser prestado é o conferir-lhe voz autónoma, logo ao nível do processo penal, permitindo-lhe uma acção conformadora do sentido da decisão final» (6), pelo que manteve a figura do assistente. Na verdade, a consideração de que o crime ofende principalmente interesses da comunidade «não pode fazer olvidar que em grande número de crimes quem primeiro sofre o mal do crime são os particulares e, por isso, a sua participação activa no processo, permite dar-lhes satisfação pela ofensa sofrida convencendo-os da efectivação da justiça no caso, e trazer ao processo a sua colaboração» (7). Referia Luís Osório, que a atribuição da titularidade do exercício da acção penal ao Ministério Público era o resultado de uma evolução regressiva quanto à intervenção nessa área dos particulares de sorte que, primitivamente a eles pertencendo tal exercício, a evolução se deu no sentido de lhes restringir esses poderes, mas não de os extinguir, pois que não deixando de ter presente que «o indivíduo que foi ofendido com um crime não parece a pessoa mais própria para incarnar o interesse geral da repressão do crime», é certo, no entanto, que «os motivos que levaram o nosso legislador a manter o sistema existente e afastar-se dos outros geralmente referidos no estrangeiro, baseia-se na demonstração que a experiência nos patenteia do quanto é eficaz e benéfica a ampla colaboração dos particulares na acusação, pois que se bem que eles possam, muitas vezes, levar para o processo uma natural paixão que desvirtua a função da acusação, essa paixão pode e deve ser eficazmente contrabalançada pela imparcialidade tanto do Ministério Público como do Juiz» (8). A Novíssima Reforma Judiciária interveio no sentido de evitar a complexidade da instrução e do julgamento das causas com a múltipla intervenção de representantes forenses das partes acusadoras (9). E a reforma do processo penal empreendida pelo Decreto n.º 35007 de 13 de Outubro de 1945 deixou de se referir à "parte acusadora", que passou a designar como assistente, vincando assim o seu carácter de parte acessória (10). Reafirmou, então, o legislador que «o exercício da acção penal pertence ao Ministério Público como órgão do Estado. O direito de punir é um direito exclusivo do Estado e por isso os particulares podem, nos termos que a lei determina, colaborar no exercício da acção penal pelo Ministério Público, mas não exerce-la como direito próprio» (Preâmbulo do Decreto-Lei n.° 35007). O que retomou na Lei de Autorização Legislativa do actual Código de Processo Penal (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro) indicando (art. 2°, n.º 1, 7), o sentido da mesma: Fixação da competência exclusiva do Ministério Público para promover o processo penal, ressalvado o regime dos crimes semipúblicos e particulares, e da subordinação estrita da intervenção processual dos assistentes, salvo nos crimes particulares e semipúblicos, à actuação do Ministério Público, sem prejuízo do direito de recorrerem autonomamente das decisões que os afectem (art. 2.º, n.º 1, 11). Na sequência tem-se afirmado que a figura do assistente corresponde a uma especificidade do processo penal português, sem correspondência no direito comparado (11) E a nossa Doutrina, sem deixar de advertir para o factor eventualmente perturbador que pode representar a intervenção do particular nesta sede, uma vez que dele não será de esperar a objectividade, a imparcialidade, o que impõe especiais cautelas na sua intervenção, não deixa de reconhecer os benefícios decorrentes dessa mesma intervenção (12) . Do estatuto de assistente destacam-se, pois, a sua qualificação como sujeito processual, mesmo quando se trate de processos por crimes públicos e os poderes processuais alargados que lhe são conferidos, nomeadamente o direito de recurso relativamente a todos os tipos de crimes (13). Foi definido como «o sujeito processual que intervém no processo como colaborador do Ministério Público na promoção da justa aplicação da lei ao caso e legitimado em virtude da sua qualidade de ofendido ou de especiais relações com o ofendido pelo crime ou da natureza deste (art. 69.º, n.º 1)» (14). E, na verdade, a concepção legal de assistente acolhida pela lei traduz-se na qualificação dele como um sujeito processual, um mero colaborador do Ministério Público (15), podendo «co-determinar, dentro de certos limites e circunstâncias, a decisão final do processo» (16), subordinado à actuação do Ministério Público (17). O que não quer dizer que não possam ocorrer conflitos (18). Mas, «o assistente está legitimado a agir no processo penal, enquanto detentor de um específico interesse na questão de direito sujeita a apreciação judicial. Sendo que esse interesse, embora particular, é um elemento de ponderação na concreta decisão do caso, pelo que a intervenção do assistente é também uma exigência de ordem pública (pois que a decisão justa é aquela que tem por suporte a consideração de todos os pontos juridicamente relevantes - incluindo o do assistente)» (19). 3.3. Como se vê dos textos transcritos, o Código de Processo Penal (CPP) não providencia directamente um conceito de assistente, limitando-se a indicar quem se pode constituir como tal e a estruturar a sua posição processual e atribuições. Podem, assim, constituir-se assistentes: as pessoas e entidades a quem leis especiais (20) conferirem esse direito (corpo do n.º 1 do art. 68.º); qualquer pessoa em determinados crimes expressamente indicados (21) [al. e) do n.º 1 do art. 68.º] (22); as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento (23) [al. b) do n.º 1 do art. 68.º]; os representantes (24) do ofendido falecido, não renunciante, incapaz ou menor de 16 anos [als. c) e d) do n.º 1 do art. 68.º]; e os ofendidos, maiores de 16 anos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (25) [al. a) do n.º 1 do art. 68.º]. Centremos, agora, a nossa atenção sobre esta última categoria determinante para a solução da questão de direito colocada no presente recurso extraordinário: o ofendido, titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Constata-se, desde logo, que não se trata de todo e qualquer ofendido, quando é sabido que o Código de Processo Penal também utiliza esse vocábulo com um sentido mais vasto (26), mas só do que for titular daqueles interesses. Retomou-se assim a fórmula usual no nosso direito processual anterior (27), e que o Código Penal de 1982 consagrara no n.º 1 do art. 111.º (28), e afastou-se o conceito lato de lesado ou ofendido de que o CPP também se socorre: «todas as pessoas civilmente lesadas pela infracção penal» No domínio daquela legislação ponderava-se: «o que deve entender-se pela expressão partes particularmente ofendidas? Penso que devem assim considerar-se os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma penal. Quando prevê e pune os crimes, o legislador quis defender certos interesses: o interesse da vida no homicídio, o da integridade corporal nas ofensas corporais, o da posse ou propriedade no furto, no dano ou na usurpação de coisa alheia. Praticada a infracção, ofenderam-se ou puseram-se em perigo estes interesses que especialmente se tiveram em vista na protecção penal, podendo também prejudicar-se secundariamente, acessoriamente, outros interesses. Os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger quando previu e puniu a infracção e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas, ou directamente ofendidas e que, por isso, se podem constituir acusadores» (29). O vocábulo «especialmente» usado pela Lei, significa, pois, de modo especial, num sentido de «particular», como se referiu, e não «exclusivo». Estas considerações mantêm validade, tanto mais que, como se viu, o legislador actual adoptou a mesma formulação, devendo entender-se, pois, que se adoptou o conceito estrito, imediato ou típico de ofendido. Nesse sentido se tem pronunciado a Doutrina (30) e a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, designadamente deste Supremo Tribunal de Justiça (31). Importa, assim, reter que deriva da própria expressão da lei que não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois que não se integram no âmbito do conceito de ofendido, da al. a) do n.º 1 do art. 68.º do CPP, os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os seus próprios e específicos. A legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa, designadamente em caso de concurso de infracções, em que se pode ser ofendido por um só dos crimes. Deve atender-se ao Código Penal, à sistemática da sua Parte Especial (32), e, em especial, interpretar o tipo incriminador em causa (33) em ordem a determinar caso a caso se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a constatação da natureza pública ou não pública do crime. A tarefa, que é fácil em muitos casos, como o homicídio, as ofensas contra a integridade física, os crimes contra a liberdade, oferece já dificuldades em relação aos crimes agrupados em determinados capítulos, como os crimes de perigo comum ou os crimes contra a realização da Justiça em que «o interesse protegido por ser claramente um interesse de ordem pública, no sentido mais forte do termo e, portanto aparentemente, não é possível encontrar a pessoa concreta, individual, que se possa dizer ofendida» (34). Mas, só caso a caso, e perante o tipo incriminador, se poderá afirmar, em última análise, se é admissível a constituição de assistente. E esta análise do tipo legal interessado deve ter presente que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente (35). Mas não se pode esquecer que, como refere Jescheck (36), «o direito penal tem por missão proteger bens jurídicos. Em todas a normas juridico-penais subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais que são indispensáveis para a convivência humana na comunidade e que consequentemente devem ser protegidos, pelo poder coactivo do Estado através da pena pública. (...) Todos os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos. O desvalor do resultado radica na lesão ou o colocar em perigo de um objecto da acção (ou do ataque) (v.g. a vida de uma pessoa ou a segurança de quem participa no tráfico), que o preceito penal deseja assegurar, do titular do bem jurídico protegido» (sublinhado agora). O que significa que poderá um só tipo legal proteger «especialmente», mais do que um bem jurídico, questão a dilucidar, perante cada tipo e cada acção dele violadora. 3.4.1. Antes de entrar na análise do tipo legal em causa, lembremos os termos da divergência tal como ela surge das decisões em oposição. se, em determinado caso concreto (como será o dos autos), a falsificação visou efectivamente causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, a esta não poderá negar-se legitimidade para se constituir assistente. 3.4.2. Vejamos, agora, o tipo legal em causa, à luz das considerações expendidas. Inserido no Título IV da Parte Especial do C. Penal Crimes contra a vida em sociedade, Capítulo II Dos crimes de falsificação, Secção II Falsificação de documentos, prescreve o art. 256.º (falsificação de documento): «1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo; a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso; b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou c) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa; é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2. A tentativa é punível. 3. Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 268.º, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias. 4. Se os factos referidos nos n.ºs 1 e 3 forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.» O título IV foi objecto de alteração na Reforma de 1995, passando de crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social, para crimes contra a vida em sociedade, podendo dizer-se que uma das duas alterações importantes que produziu foi a «redução do âmbito deste título à incriminação de condutas que digam respeito a valores supra-individuais» (37). Tem acordado este Tribunal, como se viu, em que o crime de falsificação de documento é um crime contra a vida em sociedade, em que é protegida a segurança e confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal, como bem jurídico (38). E no mesmo sentido vai o entendimento da Doutrina (39) (40). É um crime de perigo (o mero acto de falsificação põe em perigo a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório) abstracto (basta que o documento seja falsificado para que o agente possa ser punido). Um crime intencional em que o agente necessita de actuar com «intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo» não se exigindo no entanto, uma específica intenção de provocar um engano no tráfico jurídico. Mas é um crime em que deve ser devidamente enfatizada a essencialidade da existência ou possibilidade de um prejuízo a outra pessoa ou ao Estado (41), sendo que o benefício e o prejuízo podem ser de ordem económica ou moral (42). E é sublinhado que «exigindo-se que o agente actue com intenção de causar um prejuízo ou de obter um benefício ilegítimo mantém-se o crime de falsificação de documentos ainda em estreita ligação com o crime de burla» (43). Com efeito, é um crime intencional: para que as condutas desenhadas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do art. 256.º sejam puníveis é necessário que o agente tenha actuado com «intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo». É, pois essa especial inclinação da vontade do agente que faz toda a diferença, determinando (se existente) a punição que, assim, fica dela dependente. Não pode, assim, dizer-se que com o tipo legal em causa só se quis proteger o bem jurídico público acima referido. Afirma-se em relação ao crime de falsificação de documento público no direito brasileiro (44): «sujeito passivo é o Estado, a colectividade e, de maneira secundária, a pessoa física ou jurídica lesada com a falsificação. Muito embora seja a fé pública, em primeiro plano, a violada no delito de falso, também é sujeito passivo aquele que tem seu interesse atacado pelo cometimento do falso. Desde que da prática resulte ofensa para o particular, tem este legitimidade para figurar como assistente da acusação» (45). «Nos crimes de falsidade o sujeito passivo eventual é sempre o Estado, titular da fé pública. Como a objectividade jurídica é múltipla, em alguns casos, a par do Estado como sujeito passivo principal, surge outro secundário: a pessoa física ou jurídica que vem a sofrer o dano ou a potencialidade de sua ocorrência. Ex.: na falsidade ideológica, além da fé pública, a conduta pode ofender direito de terceiro. Em alguns casos, entretanto, a objectividade jurídica é única. Ex.: o delito de petrechos para falsificação de moeda que lesa somente a fé pública.» (46) No direito espanhol fala-se em falsidades, o que «chama a atenção para a heterogeneidade que oferecem, tanto no que se refere aos objectos de protecção, quanto aos díspares objectos materiais sobre que recaem as acções descritas» (47). 3.4.3. O Supremo Tribunal de Justiça já teve ocasião de se pronunciar negativamente sobre a admissibilidade da constituição de assistente no crime de falsificação ou uso de documento falso: (1) A perseguição pelos crimes de falsificação e uso de documento falso incumbe ao Ministério Público. (2) Com efeito, nos crimes de falsificação, o bem jurídico protegido é a segurança e a confiança do tráfico jurídico, especialmente do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal e não protege a confiança na verdade do conteúdo do documento, nem o património. (Ac. do STJ de 13-3-91, AJ n.º 17, Processo n.º 41437) (1) O denunciante do crime de falsificação de documentos cometido por funcionário, do art. 228° n°s 1 a) e 3 do C. Penal, não tem legitimidade para se constituir assistente. (2) Trata-se de crime contra os fundamentos ético-sociais da vida social, crime contra a vida em sociedade, em que o bem jurídico protegido é a segurança e confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal, pelo que é crime público, cuja perseguição pertence ao M°P.º. (Ac. do STJ de 25-1-96, proc. n.º 48716, Acs do STJ IV, 187) (6) - No crime de falsificação o bem jurídico protegido é a segurança e a confiança do tráfego probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal. (...) (8) Assim, o lesado não tem legitimidade para se constituir assistente, por o interesse público ser preponderante, nos crimes referidos em (...) 6. (Ac. do STJ de 20.1.98, proc. n.º 1326/97). No mesmo sentido se pronunciaram as Relações, do Porto em Acs. de 15.3.2000, proc. n.º 9941282, de 25.4.2000, CJ XXVIII, 2, 142 e de 24.10.2001, proc. n.º 725/2001 (acórdão recorrido), de Coimbra de 3.5.2000, BMJ 497, proc. n.º 642/2000 e de 2.7.2000, BMJ 499, proc. n.º 1425/2000 Já em sentido contrário decidiu a Relação do Porto em Ac. de 12-02-1990, CJ XV, 1, 251, e a Relação de Lisboa em Ac. de 10.2.2000 CJ XXV, 1, 154 (acórdão fundamento). Recentemente, este Supremo Tribunal de Justiça (51) começou a inflectir o caminho anteriormente percorrido, que se sintetizou, e decidiu que «sendo o objecto mediato da tutela jurídico-penal sempre de natureza pública (sem o que não seria justificada a incriminação), o imediato poderá também ter essa natureza ou significar, isolada ou simultaneamente com aquele, o fim de tutela de um interesse ou direito da titularidade de um particular.» Posição que vai no sentido que se adiantou, de que «especial» não significa «exclusivo», mas sim «particular» e que um só tipo legal pode proteger mais do que um bem jurídico, questão a resolver face, ao mesmo tempo, ao caso concreto e ao recorte do tipo legal interessado. Daí que tenha então este Tribunal julgado: «e pensamos não dever entender-se que em relação a cada crime só possa ter-se por especialmente prosseguida a protecção de um interesse. Não está excluído poder resultar do objectivo e natureza da incriminação que esta visa proteger especialmente mais do que um interesse.». Nesse aresto, este Tribunal a partir da análise da globalidade e da regulamentação específica do tipo do crime de denúncia caluniosa (52) admitiu a constituição como assistente do ofendido, por entender que, além do interesse na boa administração da justiça como interesse imediato que a lei quer especialmente proteger com a incriminação, quando os factos objecto da falsa imputação são lesivos do bom nome e honra do visado, está também em causa a tutela de direitos fundamentais da pessoa, que não deverão deixar de considerar-se como também queridos especialmente proteger com a incriminação daquele artigo, independentemente da possibilidade ou não de diferente incriminação da ofensa do interesse particular, mesmo que porventura numa relação de concurso efectivo e não aparente com aquela (53) (54). Ora, este raciocínio cabe igualmente no crime de falsificação de documento e no caso dos autos. Assim, se num caso concreto, o agente visou com a falsificação causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, esta poderá constituir-se assistente. (55) Na verdade, a análise do tipo legal de falsificação de documento do art. 256.º do Código Penal, permite concluir que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afastou, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, aquele cujo prejuízo o agente visava, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente. IV Pelo exposto, os Juízes que compõem o Plenário das Secções criminais acordam em decidir da seguinte forma o presente conflito jurisprudencial: "No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do art.º 256º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente". E, em consequência, revogam o acórdão recorrido na parte em que não admitiu o recorrente a intervir como assistente, devendo o Tribunal da Relação proferir nova decisão, ordenando que a 1.ª Instância o admita. Sem custas. Lisboa, 16 de Janeiro de 2003 Simas Santos (Relator) Borges de Pinho Franco de Sá Costa Pereira Dias Bravo Armando Leandro Virgílio Oliveira Flores Ribeiro Abranches Martins Lourenço Martins Dinis Alves Pereira Madeira (voto o acórdão no pressuposto de que, no caso sujeito, a norma incriminatória «protege especialmente os dois bens jurídicos a que no texto se faz referência, não sendo possível estabelecer naquele incriminação qualquer hierarquica quanto ao objecto de tal tutela penal») Carmona da Mota Oliveira Guimarães (Subscrevendo a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Pereira Madeira) _________________________________ |