Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SANTOS BERNARDINO | ||
Descritores: | PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA POSSE POSSE TITULADA POSSE DE BOA FÉ POSSE DE MÁ FÉ CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA COMPRA E VENDA FALTA DE FORMA LEGAL PRESUNÇÕES | ||
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Nº do Documento: | SJ200310090014152 | ||
Data do Acordão: | 10/09/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 6353/02 | ||
Data: | 10/31/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
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Sumário : | I - O Supremo, como tribunal de revista, não conhece, em regra, de questões de facto, devendo acatar a decisão da Relação sobre a matéria de facto; mesmo que haja erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, não lhe é lícito exercer censura sobre a matéria de facto apurada, salvo quando se verifique alguma das excepções previstas no art. 722º/2 do CPC. II - Posse titulada é a que se funda em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico. III - O conceito de posse titulada integra dois requisitos: um positivo - a legitimação da posse através da existência de um título de aquisição do direito em termos do qual se possui - outro negativo, que é, sendo esse título de aquisição um negócio jurídico, a não existência de vícios formais nesse mesmo negócio. IV - Não é titulada a posse fundada num contrato-promessa de compra e venda - que não é, em si mesmo e em abstracto, um modo legítimo de transmitir e de adquirir o direito de propriedade - nem num negócio de compra e venda verbal. V - A distinção entre posse titulada e não titulada releva - tal como a distinção entre posse de boa fé ou de má fé - para efeitos de usucapião, na determinação do prazo a esta conducente. VI - A inexistência de título não significa, sem mais, que a posse não é de boa fé: o que sucede é que, presumindo-se de má fé a posse não titulada, recai sobre o possuidor, se quiser ilidir a presunção, o ónus da prova de que, ao adquirir a posse, ignorava que lesava o direito de outrem. VII - Tendo a Relação concluído que a posse dos recorrentes é de boa fé, não pode o Supremo censurar tal conclusão, porquanto em causa está um conceito puramente psicológico - logo, puramente fáctico, porque reside na ignorância efectiva de que se lesam direitos alheios. VIII - Não pode conhecer-se de conclusões que respeitem a matéria não versada no contexto da alegação. IX - O art. 1268º do CC estabelece uma presunção - a de que, quem está na posse de uma coisa é titular do direito correspondente aos actos que pratica sobre ela. Tal presunção é ilidível. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. "A", viúva, e B, casada, intentaram, no Tribunal Judicial de Caldas da Rainha, contra C e mulher D, acção de reivindicação, em que pedem se declare serem elas, autoras, as legítimas proprietárias de um prédio urbano, sito em Louriçal, freguesia de A-dos-Negros, concelho de Óbidos, inscrito na matriz sob o art. 1301, e de 1/6 do prédio rústico, sito no mesmo lugar e inscrito na matriz sob o art. 7 - Secção Z, e se condenem os réus a reconhecer tal direito de propriedade das autoras e a restituir-lhes os ditos imóveis, livres de pessoas e coisas. Para tanto, alegaram, em síntese, que são proprietárias, em comum e sem determinação de parte, do dito prédio urbano e da indicada fracção do prédio rústico, aquele e esta com inscrição a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Óbidos, encontrando-se, por si e antepossuidores, há mais de 30 anos, na posse dos prédios sem lesar direitos de outrem, à vista de toda a gente, sem violência ou oposição de quem quer que seja e praticando sobre os mesmos actos próprios de um proprietário. Há cerca de oito anos, o marido da segunda autora, E, tencionando emigrar, cedeu gratuitamente ao réu o uso de tais imóveis, com a obrigação de lhos entregar livres e desocupados quando para o efeito fosse interpelado. Tendo desistido do propósito de emigrar, o Olívio solicitou do réu a entrega dos imóveis, mas este recusou, alegando que tinha culturas a crescer no terreno e que a casa estava a servir de arrecadação para palha e outros produtos agrícolas, pelo que não podia abdicar deles de imediato. E vem persistindo na recusa, apesar de a sua detenção ser ilegítima. Os réus contestaram e deduziram reconvenção, alegando que em 1981, os autores e A [queriam dizer, as autoras e o marido da autora B] negociaram com eles, réus, a venda, por 250.000$00, de um prédio misto, sito no Louriçal, de que aqueles eram donos, bem como a venda, por 310.000$00, dos prédios referidos na petição inicial. A escritura de compra e venda do primeiro prédio celebrou-se em 26.01.82, vindo os autores, alegando dificuldades documentais, a protelar a escritura de transmissão destes últimos. Todavia, logo em 1981, os réus tomaram posse dos ditos prédios, começando a lavrá-los, semeá-los, plantá-los e a zelar o urbano, o que fizeram até hoje, ininterruptamente, à vista de toda a gente, e sem oposição de ninguém, não chegando a formalizar-se a venda porque os vendedores foram invocando o facto de os prédios estarem em nome do anterior proprietário e alegando dificuldades registrais. Acrescentaram que, desde 1981, fizeram obras na casa, gastando cerca de 280.000$00, e que marcaram no terreno a fracção de 1/6, delimitando-a com marcos colocados juntamente com os vendedores, passando a amanhá-la como prédio absolutamente distinto dos restantes 5/6, e aí plantaram 2000 pés de bacelo e 300 árvores de fruto, no valor de cerca de 1.500.000$00, e que hoje rendem cerca de 300.000$00 anuais, gastando ainda, em 1982, na abertura de uma serventia para acesso ao terreno, cerca de 35.000$00,e na limpeza do terreno, cerca de 200.000$00 - tudo fazendo com a convicção de que eram donos dos referidos prédios, até por sentirem que tinham pago o justo preço à data em que iniciaram essa posse. Concluíram pela improcedência da acção, e pediram que, julgada procedente a reconvenção, fosse declarado que adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre os prédios reivindicados ou, se assim não for entendido, que têm o direito a ser indemnizados pelas benfeitorias efectuadas, no valor de 2.315.000$00. Pediram ainda que os autores fossem condenados como litigantes de má fé, em multa e indemnização. As autoras replicaram, sustentando que não houve qualquer venda dos prédios em causa, e não se verificam os requisitos da usucapião, admitindo que foram feitas algumas benfeitorias e despesas, mas que umas e outras resultam da utilização e exploração que, no seu interesse, os réus vêm fazendo dos prédios, desde há cerca de oito anos. Concluem pela improcedência do pedido reconvencional, pedindo ainda a condenação dos réus como litigantes de má fé. Lavrado o despacho saneador e organizada a selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa, seguiram os autos a sua normal tramitação; e, efectuada a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença, na qual o Ex.mo Juiz - julgou a acção procedente, declarando as autoras legítimas proprietárias dos prédios reivindicados, condenando os réus a reconhecer tal direito de propriedade e a restituir àquelas os ditos prédios, livres de pessoas e coisas; - julgou parcialmente procedente a reconvenção, condenando as autoras a pagar aos réus a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, relativamente às benfeitorias úteis que estes fizeram na parte urbana e rústica dos mesmos prédios. Da sentença interpuseram os réus o pertinente recurso de apelação. Sem êxito, porém, uma vez que a Relação de Lisboa, conhecendo do recurso, negou-lhe provimento, confirmando a sentença apelada. Não conformados, os réus recorreram de revista para este Supremo Tribunal. No remate das respectivas alegações de recurso, formularam um alargado leque de conclusões, que se podem sintetizar pela forma seguinte: 1º - A posse dos recorrentes é titulada, porque tem por base um negócio jurídico celebrado com as recorridas, que consubstancia um contrato-promessa de compra e venda; 2º - As negociações conducentes a esse negócio jurídico iniciaram-se e concluíram-se em 1981, data em que os recorrentes tomaram posse de todos os imóveis prometidos vender; 3º - Para efeitos do disposto no art. 1259º/1 do CC basta a verificação do elemento básico e fundamental a qualquer negócio jurídico sinalagmático: a vontade, e esta existiu por banda de ambas as partes durante, pelo menos, quase dezassete anos. 4º - Sendo titulada, a posse dos recorrentes é, por isso, de boa fé. 5º - E, tendo tido início em 1981, perdurou pacificamente até 1997. 6º - Assim, os recorrentes adquiriram os imóveis por usucapião, nos termos do art. 1296º do CC. 7º - A decisão recorrida violou os arts. 1258º, 1259º, n.os 1 e 2, 1260º, n.os 1 e 2, 1261º, 1262º, 1263º, al. a) e b), 1268º/1, 1287º, 1288º, 1296º, 1ª parte, todos do CC. 8º - Não obstante não existir registo de posse a favor dos recorrentes, também não existe registo a favor de outrem; 9º - Os recorrentes gozam da presunção da titularidade do direito (art. 1268º do CC). Em contra-alegações, as recorridas pugnam pela manutenção do acórdão recorrido. Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir. 2. São os seguintes os factos provados: I - Mostra-se inscrita a favor das autoras, na Conservatória do Registo Predial de Óbidos, sob o número 1258, o prédio urbano inscrito na matriz sob o art. 1301; II - Mostra-se inscrita a favor das autoras a aquisição de 1/6 do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Óbidos sob o n.º 225 e inscrito na matriz sob o artigo 7, Secção Z; III - No dia 26 de Janeiro de 1982, no Cartório Notarial de Mafra, foi celebrada a escritura de compra e venda entre E e mulher B, e C e mulher D, pela qual aqueles venderam a estes, pelo preço de 250.000$00, um prédio misto, sito no Louriçal, freguesia de A-dos-Negros, descrito na Conservatória do Registo Predial de Caldas da Rainha sob o n.º 42.129, a fls. 131 do Livro B-102; IV - Pelo menos desde meados do ano de 1987, o marido da autora B, E, pensou em emigrar para o estrangeiro; V - Em 1981 as autoras encetaram negociações com os réus para estes comprarem o prédio misto mencionado em III, VI - E encetaram negociações para os réus comprarem às mesmas, por preço não apurado, os prédios mencionados em I e II; VII - Por razões não apuradas a escritura de compra e venda destes prédios foi sendo protelada pelas autoras; VIII - Pelo menos desde 1985 os réus começaram a lavrar os prédios, IX - A semeá-los e a plantá-los - na componente rústica - bem como a zelar pelas paredes e telhado da componente urbana; X - Os réus, pelo menos desde 1985 até ao presente, reconstruíram a casa rural, recuperando paredes, rebocando-as, pondo novo telhado em metal e portas de metal, com o que gastaram quantia não determinada; XI - No terreno, os réus lavraram a parte de 1/6, fazendo um prédio autónomo e distinto do resto, onde foram colocados marcos a delimitá-lo; XII - No terreno, os réus lavraram e tiraram o mato ali existente; XIII - Na fracção de 1/6 e dentro dos marcos, os réus replantaram número indeterminado de bacelos e plantaram cerca de 300 árvores, como pereiras, pessegueiros e ameixieiras; XIV - Essas árvores produzem quantia não determinada de frutos, por ano; XV - Os réus abriram ainda uma serventia para acesso e amanho da propriedade e aí tiveram uma máquina retro-escavadora a trabalhar, em data não apurada, XVI - Com o que gastaram quantia não apurada; XVII - Em data não determinada, após tirarem o mato e silvas, andaram com homens a roçar durante algumas semanas, XVIII - Com o que despenderam quantia não apurada; XIX - Os réus praticaram os actos mencionados em VIII, X e XVII à vista de toda a gente e na convicção de que os terrenos lhes pertenciam, XX - E sem oposição de ninguém, XXI - E sem qualquer lapso de interrupção de tempo; XXII - Em 1981 o prédio valia quantia não determinada; XXIII - Com as obras mencionadas e levadas a cabo pelos réus, o prédio vale actualmente quantia não determinada. 3. Tal como já o haviam feito - sem êxito - no recurso para a Relação, os recorrentes voltam a pôr em causa a matéria de facto apurada, pretendendo que a sua posse sobre os bens reivindicados se iniciou em 1981.Ora, o que vem provado é, tão só, que tal posse se iniciou pelo menos em 1985. E este facto significa apenas que, não se tendo apurado qual o ano em que tiveram início os actos de posse - e, designadamente, que tal aconteceu em 1981, como os réus alegaram - há, pelo menos, a certeza de que esses actos não se iniciaram posteriormente a 1985. Forcejam, porém, os recorrentes, ao longo da sua alegação de recurso, por demonstrar que detêm os prédios em causa desde 1981, e que deve ser esta a data inicial a ter em conta para se determinar o lapso temporal por que durou a sua posse sobre eles. O seu esforço resulta, porém, inglório. O STJ, como tribunal de revista, limita-se a aplicar aos factos materiais apurados pelo tribunal recorrido, o regime jurídico que julga adequado (art. 729º/1 do CPC). Por isso, não conhece, em regra, de questões de facto, devendo acatar a decisão da Relação sobre matéria de facto. Na verdade, como dispõe o n.º 2 do citado art. 729º, a decisão da 2ª instância quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo quando se verifique alguma das excepções previstas no n.º 2 do art. 722º. É dizer: mesmo que haja erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, não é lícito ao Supremo exercer qualquer censura sobre a matéria de facto apurada, salvo no caso de ofensa de alguma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (cit. art. 722º/2). Não se mostra verificada in casu - nem os recorrentes o alegam - qualquer das indicadas excepções. Constitui também jurisprudência pacífica a de que o Supremo não pode censurar o não uso, pela Relação, dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 712º do CPC. E assim, por tudo quanto se deixa exposto, a matéria de facto a ter em conta é a que, apurada nas instâncias, acima se deixou arrolada - e designadamente, no que ora importa, a que situa o início dos actos de posse praticados pelos réus pelo menos desde 1985. Esclarecida esta questão, avancemos agora para a apreciação das questões suscitadas nas conclusões da alegação dos recorrentes. Relacionam-se essas questões com as características da posse invocada pelos recorrentes - posse que, no dizer destes, legitima a sua pretensão de aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre os bens reivindicados pelas recorridas. 3.1. Ao contrário do que sustentam os recorrentes, a posse que invocam sobre os prédios em causa não é titulada. Diz-se titulada - art. 1259º n.º 1 do CC (1) - a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico. Como ensina o Prof. Orlando de Carvalho (2), o conceito de posse titulada integra dois requisitos, um positivo - a legitimação da posse através da existência de um título de aquisição do direito em termos do qual se possui - outro negativo, e que é, sendo esse título de aquisição um negócio jurídico, a não existência de vícios formais nesse mesmo negócio. Os vícios de forma - a não observância, no titulus adquirendi negocial, de formalidades ad substantiam - determinam inequivocamente a falta de título da posse. Idêntico entendimento vem perfilhado pelo Prof. Menezes Cordeiro, que, discordando embora da solução, de jure condendo, escreve, reportando-se ao conceito definido no art. 1259º n.º 1: O título equivale a um acto jurídico aquisitivo, abstractamente idóneo mas que, em concreto, pode ser inválido, desde que a invalidade não seja formal. A lei afasta a hipótese do título putativo: o n.º 2 do art. 1259º exige que o título seja provado por quem o invocar. E no mesmo sentido vai a generalidade da doutrina (3) e da jurisprudência (4). Ora, parece poder inferir-se das alegações dos recorrentes que estes filiam a sua posse num contrato-promessa de compra e venda - conclusão que retiram dos factos acima indicados no n.º 2, sub VI e VII (as encetadas negociações com as autoras, para a estas comprarem os prédios em causa). Mas, desde logo, de um qualquer contrato-promessa apenas resulta a obrigação de efectuar o contrato prometido - o que vale dizer que o contrato-promessa de compra e venda não é, em si mesmo e em abstracto, um modo legítimo de transmitir e de adquirir o direito de propriedade. E, por outro lado, o contrato-promessa de compra e venda de bens imóveis é um contrato formal - deve ser celebrado em documento escrito - pelo que, não se mostrando cumprida, in casu, esta formalidade ad substantiam, sempre seria evidente a falta de título da posse dos recorrentes. A idêntica conclusão (falta de título) se chegará - e igualmente com fundamento na não observância de formalidade ad substantiam - se se entender que a posse dos recorrentes se funda, não num mero contrato-promessa, mas num negócio de compra e venda verbal, apenas não formalizado por as autoras alegarem dificuldades documentais, como defenderam os recorrentes na sua contestação/reconvenção (cf. arts. 5º e 19º deste articulado). Uma venda verbal não transfere a propriedade, por ser nula, e a posse do adquirente, se a coisa lhe foi entregue, é não titulada. É errónea, pois, a afirmação dos recorrentes de que, para efeitos do disposto no art. 1259º n.º 1 basta a verificação da vontade, só perante a total inexistência jurídica se podendo afirmar a posse não titulada. O que afirma Orlando de Carvalho - que os recorrentes citam sem entenderem o seu pensamento - é que dos vícios substanciais do negócio ou titulus adquirendi só alguns determinam a falta de título da posse (o que acontece em todas as situações de inexistência do negócio jurídico por falta de vontade de acção, falta de vontade ou consciência da declaração ou falta completa de vontade de efeitos ou vontade negocial - v.g., nos casos de coacção física ou vis absoluta, declarações não sérias, contrato sob o nome de outrem); fora destes casos, os vícios não formais do negócio ou titulus adquirendi não afectam o título de posse. "Os vícios de forma (não observância de formalidades ad substantiam) é que determinam, sem dúvida, a falta de título da posse, como se vê do art. 1259º/1, a contrario" (5). É, assim, seguro que a posse dos recorrentes não é, in casu, titulada, improcedendo tudo quanto, ex adversu, vem por eles referido nas conclusões da sua alegação de recurso. 3.2. A distinção entre posse titulada e posse não titulada releva para efeitos de usucapião. Na verdade, esta obedece a prazos diversos, consoante a posse que a fundamenta é titulada ou não titulada. Relevante é também, para o mesmo efeito, determinar se a posse é de boa ou má fé, como facilmente se intui do disposto nos arts. 1294º a 1296º, quanto à usucapião de imóveis, e 1298º e 1299º, no que concerne à usucapião de móveis. A inexistência de título não significa, sem mais, que a posse não é de boa fé, pois que esta (a boa fé) pode existir independentemente do título. O que sucede é que, presumindo-se de boa fé a posse titulada (art. 1260º/2), beneficia o respectivo possuidor dessa presunção, impendendo sobre a parte contrária o ónus de prova dos factos com virtualidade para a ilidir. Ao contrário, não sendo a posse titulada, presume-se de má fé (cit. art. 1260º/2), incumbindo, por isso, ao possuidor, ilidir a presunção, e demonstrar que a sua posse é de boa fé - o que significa que terá de fazer a prova de que, ao adquirir a posse, ignorava que lesava o direito de outrem (art. 1260º/1). Se o não fizer, terá de concluir-se que a sua posse é de má fé. A Relação concluiu, no caso em apreço, que a posse dos recorrentes era de boa fé. Estando em causa um conceito puramente psicológico - logo, puramente fáctico, porque reside na pura ignorância, ou ignorância efectiva, de que se lesam direitos alheios - não cabe ao Supremo censurar aquela conclusão da Relação. Tal significa que, no caso em apreço, a posse dos recorrentes terá de haver-se como não titulada, mas de boa fé. O que significa que, para conduzir à usucapião, tal posse teria de perdurar por quinze anos (art. 1296º). A posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar (art. 1257º/1). Mas o decurso do prazo para efeitos de usucapião pode sofrer interrupção ou suspensão (art. 1292º), o que significa que logram aqui aplicação, com as necessárias adaptações, entre outras, as regras dos arts. 323º e seguintes. Ora, tendo de situar-se o início da posse em 1985, é patente que o aludido prazo de 15 anos ainda não tinha decorrido quando os ora recorrentes (em 13.06.97) foram citados para a acção, pelo que, por efeitos de tal acto interruptivo (art. 323º/1), ficou inutilizado, para efeitos de usucapião, todo o tempo até então decorrido (art. 326º/1) - o que conduz à inevitável conclusão de que o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre os imóveis em causa, fundado na sua aquisição por usucapião, que os réus/recorrentes deduziram, por via reconvencional, teria necessariamente de improceder. 3.3. O que consta nos n.os 8º e 9º da acima indicada síntese conclusiva das alegações dos recorrentes, sobre não ter interesse para a decisão do litígio, foi por eles acrescentado na sequência do despacho do relator, de fls. 277, que os convidou a apresentarem novas conclusões, dada a extensão e prolixidade das que rematavam as mencionadas alegações. Os recorrentes, para além de persistirem na elaboração de um alargado leque conclusivo (41 conclusões), claramente despropositado, tendo em conta as questões concretas que suscitaram na parte expositiva da alegação, ainda aditaram conclusões que anteriormente não haviam formulado, e que nem sequer são suportadas na motivação apresentada no corpo da alegação. Vem o Supremo entendendo que não pode conhecer-se de conclusões que respeitem a matéria não versada no contexto da alegação (cf., neste sentido, o Ac. de 06.06.91, BMJ 408/431). O que justificaria que se silenciasse, hic et nunc, sobre as mencionadas "conclusões". Sempre se dirá, porém, que é irrelevante que não exista registo de posse a favor das autoras. Elas têm a seu favor o registo da propriedade; o registo da mera posse só interessava aos recorrentes, possuidores dos imóveis, que, se tivessem registo da posse, mesmo não sendo esta titulada, poderiam valer-se dos prazos aludidos no art. 1295º para efeitos da usucapião. E não faz sentido dizer - como o fazem os recorrentes - que a falta do registo da mera posse "não (lhes) poderá ser imputável", porque "tecnicamente tal hipótese estava-lhes vedada", uma vez que os prédios não se encontravam registados na Conservatória do Registo Predial competente a favor das recorridas, só vindo a sê-lo em 1997. O registo da mera posse, previsto na al. e) do n.º 1 do art. 2º do CRPredial, faz-se mediante sentença transitada, proferida em acção de justificação judicial, na qual se reconheça que o possuidor tem possuído, pacífica e publicamente, por tempo não inferior a cinco anos (arts. 1295º/2 do CC e 118º do CRPredial). Se os recorrentes não intentaram tal acção, sibi imputant ... Quanto ao art. 1268º, ele estabelece, na verdade uma presunção - a de que, quem está na posse de uma coisa, é titular do direito correspondente aos actos que se praticam sobre ela. Mas trata-se de uma presunção ilidível. E ilidida no caso em apreço. Na verdade, sustentaram os réus que adquiriram os prédios por negócio de compra e venda que efectuaram com as autoras e o falecido marido de uma delas - todavia nulo, porque não formalizado por escritura pública; e um contrato de compra e venda nulo não tem virtualidade para transferir o direito de propriedade. E acrescentaram que, logo na ocasião daquele negócio, entraram na posse dos ditos prédios, de forma pública, pacífica, ininterrupta, e com a convicção de serem seus donos, pelo que adquiriram por usucapião o respectivo direito de propriedade. Provou-se, porém, que a sua posse não perdurou pelo lapso temporal necessário para conduzir à aquisição do aludido direito por usucapião. Assim, demonstrado que está que os réus recorrentes não são proprietários dos prédios em causa, por qualquer das formas de aquisição do direito - derivada, uma, originária, a outra - que invocaram, ilidida se acha a presunção decorrente da posse, que nada aproveita, por isso, aos recorrentes. Nota final: no termo das conclusões da sua alegação, os recorrentes produzem esta afirmação: Mais deve o pedido reconvencional deduzido pelos réus na sua contestação ser julgado totalmente procedente. A referência ao pedido reconvencional só pode ter aqui em vista o pedido de indemnização por benfeitorias. Todavia, na parte expositiva da alegação de recurso, nada vem referido a respeito deste pedido indemnizatório, pelo que se ignoram as razões por que vem pedida, nesta parte, a revista - é dizer, as razões da discordância, neste particular, com a decisão recorrida e os fundamentos da solução propugnada. Ora, é no corpo das alegações de recurso que têm de ser indicadas as razões de discordância com o julgado. Se aí o recorrente nada diz em contrário do decidido sobre determinada questão, é porque se conforma com tal decisão, a qual transita em julgado, mesmo que as conclusões aflorem essa questão (cf. ac. deste Tribunal, de 21.10.93, Col. Jur./Acs. STJ, I, 3, 81). Nem, aliás, estamos aqui perante a enunciação de uma verdadeira conclusão - i.e., de um resumo, explícito e claro, da fundamentação de uma questão suscitada no recurso - mas apenas da indicação do efeito jurídico que os recorrentes pretendem obter com o recurso. Não cabe, pois, sobre tal indicação emitir pronúncia. 4. Face a tudo quanto vem de ser exposto, nega-se a revista.Custas pelos recorrentes. Lisboa, 9 de Outubro de 2003 Santos Bernardino Bettencourt de Faria Moitinho de Almeida --------------------------------- (1) A este Código pertencem os normativos citados na exposição subsequente sem indicação da respectiva origem. (2) Introdução à Posse, in RLJ, ano 122º, pág. 265. (3) Cf. P. Lima/A. Varela, Cód. Civil Anotado, vol. III, pág. 17, Mota Pinto, Direitos Reais (lições ao 4º ano jurídico de 1970-71), pág. 199; Oliveira Ascensão, Direitos Reais, Lisboa /1978, pág. 278; (4) Cf. Ac. Rel. C.ª, de 09.10.84, Col. Jur. IX, 4, 46, e Acs. do STJ, de 06.07.76, BMJ 259/227 e de 19.03.81, BMJ 305/294. (5) Cf. estudo citado na nota 2, pág. 264/265. |