Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
25/10.8MAVRS-B.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
ARGUIDO
DIREITOS DE DEFESA
PRINCÍPIO DA ACTUALIDADE
Data do Acordão: 02/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário : I  -   A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente, «medida expedita», com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes da ilegalidade de detenção ou prisão, taxativamente enunciados no n.º 2 do art. 222.º do CPP.
II -  No caso concreto, o que está em discussão é a questão de saber se o dies ad quem do prazo previsto no art. 215.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do CPP – 6 meses – se deverá fazer coincidir com a data da acusação, ou com o momento em que o arguido toma efectivo conhecimento da peça acusatória. Nesta dicotomia, é de ter como correcta a opção pela data em que é elaborada a acusação.
III - Desde logo, um argumento literal, a extrair da al. a) do n.º 1 do art. 215.º do CPP, quando refere o decurso do prazo sem que tenha sido deduzida acusação e de modo similar nas restantes alíneas, como na b), ao referir o decurso do prazo sem que tinha sido proferida decisão instrutória, e nas als. c) e d), ao colocar o ponto final do prazo sem que tenha havido condenação, em 1.ª instância, ou com trânsito em julgado.
IV - Em todos estes casos é patente a referência à data da prática do acto processual ou elaboração da decisão (acusação, decisão instrutória e condenação) proferida no processo de acordo com cada etapa ou fase processual e não com o momento em que chega ao conhecimento do destinatário da mesma. De contrário, em caso de pluralidade de arguidos, teríamos datas diferentes consoante os diversos momentos em que a decisão fosse chegando ao destino
V -  Por outro lado, furtando-se o destinatário ao recebimento da notícia, descoberto estaria o caminho para se prolongar o prazo, caso se mostrasse pontualmente necessária ou conveniente tal estratégia.
VI - Em conclusão, o termo final do prazo referido na al. a) do n.º 1 do art. 215.º do CPP é a data da dedução da acusação, solução de que não resulta prejudicado o direito de defesa.
VII - De acordo com o princípio da actualidade, é necessário que a ilegalidade da prisão seja actual, sendo a actualidade reportada ao momento em que é necessário apreciar o pedido.
Decisão Texto Integral: O cidadão “AA”, de nacionalidade espanhola, arguido no processo de inquérito n.º 25/10.8MAVRS, a correr termos no Tribunal da Comarca de Vila Real de Santo António, encontrando-se em situação de prisão preventiva, veio requerer, em petição elaborada pelo Exmo. Mandatário, a providência de “Habeas Corpus”, ao abrigo do disposto no artigo 222.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, invocando para tanto o seguinte somatório de razões (em transcrição integral):

“O arguido foi detido no dia 2/8/2010 no âmbito do processo que corre termos na Comarca de Vila Real de Santo António, na única secção daquele Tribunal, sob o n.º 25/10.8MAVRS, ainda na fase de inquérito.

Tendo sido presente a Juiz de Instrução no dia 3/8/2010, sendo que nos encontrávamos em férias.         

Nesse mesmo dia 3/8/2010 foi aplicado ao arguido a medida de coação de prisão preventiva, por fortes indícios de conhecimento de factos integrantes de um ilícito penal p. e p, pelo art°. 21°. do decreto-lei 15/93 de 22 de Janeiro.

No âmbito desse processo foram desencadeadas investigações.

A detenção provisória do extraditando tem uma natureza extraordinária já que têm de ocorrer motivos muito ponderosos para a sua ocorrência e só se justifica quando haja um pedido de extradição não anunciado, ou seja, não se saiba da existência contra aquela pessoa da pendência de um processo, pelo que urge e é necessária a sua detenção, aplicando-se nesse caso os prazos e as normas constantes.

Os arguidos não voltaram a ser interrogados.

Não foi decretado, ou que se saiba requerido especial complexidade.

O processo encontra-se em segredo de justiça.

Contactado o Tribunal foi constatado não existir acusação

O prazo de dedução de acusação preludia no dia 2 de Fevereiro, pelas 00h00.

Pois foi ultrapassado o prazo estatuído pela lei processual penal in casu a alínea c) do n.°. 2 do art°. 22°. do C.P.P.           

Pelo que deverá de imediato o arguido ser colocada em liberdade.

         Conforme é entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, a providência de Habeas Corpus só pode ser concedida quando, por força das circunstâncias, não exista, em abstracto, a possibilidade de recurso da decisão judicial que tenha ordenado a prisão preventiva, pelo que, um pedido de Habeas Corpus respeitante a uma prisão determinada por decisão judicial só poderá ter movimento em casos extremos de abuso de poder ou erro grosseiro de aplicação do direito, ou por extinção de prazos legais.

          São estas as razões que assistem ao Requerente, para fundamentar o presente requerimento de Habeas Corpus, porquanto não há outro meio processual, mostrando-se excedido o prazo de prisão preventiva e, em consequência, devolver-se o arguido à liberdade, com o que se fará justiça”.

                                                            ****

A Exma. Juíza de Instrução Criminal na Comarca de Vila Real de Santo António exarou a informação a que alude o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, consignando:

«1- A pretensão do requerente

“AA”, arguido nos autos, veio requerer providência de Habeas Corpus alegando, em suma, que o prazo de 6 meses de duração máxima da prisão preventiva, a que se encontra sujeito, expirou.

*

2 - Os factos

a) O arguido “AA” bem como o co-arguido “BB”foram detidos no dia 3 de Agosto de 2010, na sequência de flagrante delito da prática de crime de tráfico de estupefacientes;

b) Os arguidos foram sujeitos a primeiro interrogatório judicial no dia 4 de Agosto de 2010 e nesse mesmo dia foi decretada a sua prisão preventiva, por estarem fortemente indiciados da prática de um crime de trafico de estupefacientes, previsto e punido nos termos do disposto no art.° 21° do D.L. 15/93, de 22/01;

c) O estatuto coactivo dos arguidos foi revisto no dia 3 de Novembro de 2010, mantendo-se o seu estatuto coactivo;

d) No dia 2 de Fevereiro de 2101 foi deduzida acusação, que ainda não foi notificada aos arguidos em virtude de ter sido determinada a sua tradução;

e) No dia 3 de Fevereiro de 2011 foi revisto o estatuto coactivo dos arguidos, nos termos do estatuído no art.° 213°, n.° l, al.b) do Código do Processo Penal, mantendo-se o seu estatuto coactivo.

Encontrando-se o arguido sujeito a prisão preventiva o prazo de duração máxima da medida de coacção é o previsto no n.° 2 do art.° 215° do Código do Processo Penal, ou seja e no caso concreto, seis meses sem que haja sido deduzida acusação.

O arguido encontra-se sujeito à medida de coacção de prisão preventiva desde o dia 4 de Agosto de 2010, pelo que tendo sido deduzida acusação no dia 2 de Fevereiro, este despacho foi proferido antes do terminus do prazo de seis meses.

Todavia, e também como resulta do despacho de acusação, foi determinada a sua tradução, porquanto os arguidos são estrangeiros e não têm o domínio da língua portuguesa, sendo que tal também não tem influência quanto à contagem do cômputo do prazo de duração máxima da medida de coacção, pois que para este deverá considerar-se a data da prolação do despacho de acusação e não a data da sua notificação, sendo que neste sentido já se pronunciou o STJ por Acórdão datado de 10/10/2005 (cfr. CJ, XIII, T.3,pág. 186).

Também, não se poderá olvidar que o prazo de duração da medida de coacção se deverá contar desde a data em que a medida de coacção foi aplicada, não relevando para esse efeito da data em que o arguido foi detido, pois que este apenas relevará ao nível do desconto, como preceitua o art.° 80° do Código Penal.

Assim, é manifesto que não se encontra excedido o prazo de duração máxima da medida de coacção e que o arguido deverá manter-se sujeito a prisão preventiva».

                                                    *******

Mostra-se junta certidão do auto de notícia, do auto de primeiro interrogatório de arguidos detidos, da acusação deduzida no processo, e de dois despachos de reapreciação dos pressupostos da prisão preventiva.   

Convocada a secção criminal e notificado o Ministério Público e o Defensor, teve lugar a audiência.

Realizada a audiência, cumpre apreciar e decidir.

       *

Constam dos autos os seguintes elementos fácticos que interessam para a decisão da providência requerida:

I – O requerente, de nacionalidade espanhola, foi detido em 3 de Agosto de 2010, cerca das 18 horas.

II - Submetido a primeiro interrogatório no dia seguinte, com início pelas 16,45 horas, no Tribunal de Vila Real de Santo António, conforme auto de fls. 42 a 48, seguiu-se a validação da detenção e por haver indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º  1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, com referência à Tabela I-C, anexa ao mesmo diploma (foram apreendidos 1500 Kg de haxixe), foi determinado que o arguido aguardasse os ulteriores termos dos autos em prisão preventiva.

III – Por despacho de 03-11-2010 foi decidida a manutenção da medida de coacção de prisão preventiva (fls. 287-289).

IV - Em 2 de Fevereiro de 2011 foi deduzida acusação contra o requerente e outro co-arguido, sendo imputada ao peticionante a prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, com referência à Tabela I-C, anexa ao mesmo diploma

IV – O despacho de acusação foi mandado notificar aos arguidos, acompanhado de tradução para a língua espanhola, bem como aos Exmos Defensores.

V – Por despacho de 03-02-2011 foi novamente feita a reapreciação dos pressupostos que determinaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, nos termos do artigo 213.°, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, sendo decidida a manutenção da medida de coacção de prisão preventiva (fls. 355-356)

VI - Por despacho de 04-02-2001 foi nomeado outro tradutor face a indisponibilidade da já nomeada.

Apreciando.                                                                

Incluída no capítulo «Direitos, liberdades e garantias pessoais», a providência de habeas corpus é uma garantia fundamental privilegiada (no sentido de que se trata de um direito subjectivo «direito – garantia» reconhecido para a tutela do direito à liberdade pessoal, cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág. 296) e citando este e J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, a figura do habeas corpus é historicamente uma instituição de origem britânica, remontando ao direito anglo - saxónico, mais propriamente ao Habeas Corpus Amendment Act, promulgado em 1679, passando o instituto  do direito inglês para a Declaração de Direitos do Congresso de Filadélfia, de 1774, consagrado pouco depois na Declaração de Direitos proclamada pela Assembleia Legislativa Francesa em 1789, sendo acolhido pela generalidade das Constituições posteriores e introduzido entre nós pela Constituição de 1911, tendo como fonte a Constituição Republicana  Brasileira de 1891, muito influenciada pelo direito constitucional americano.  A Constituição de 1933 consagrou igualmente o instituto que só veio a ser regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 35043, de 20-10-1945, cujas disposições vieram a ser integradas no Código de Processo Penal de 1929 pelo Decreto-Lei n.º 185/72, de 31-05, sendo que no pós 25 de Abril de 1974 teve a regulamentação constante do Decreto-Lei n.º 744/74, de 27-12-1974 e Decreto-Lei n.º 320/76, de 04-05-1976.

A Lei n.º 43/86, de 26-09 - lei de autorização legislativa  a cujo abrigo foi elaborado o Código de Processo Penal vigente - estabeleceu a garantia no artigo 2.º, n.º 2, alínea 39.

Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade.

Trata-se de uma garantia do direito à liberdade com assento na Lei Fundamental que nos rege, prevista no artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa, dispondo o n.º 1, na redacção dada pela 4.ª revisão constitucional – artigo 14.º da Lei Constitucional n.º 1/97, publicada no DR-I.ª Série - A, de 20-09-1997 - que «haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente».

            Sendo o direito à liberdade um direito fundamental – artigo 27.º, n.º 1, da CRP - e podendo ocorrer a privação da mesma, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», apenas nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência em causa constitui um instrumento reactivo dirigido ao abuso de poder por virtude de prisão ou  detenção ilegal.

Ou, para utilizar a expressão de Faria Costa, apud acórdão do STJ de 30-10-2001, in CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 202, atenta a sua natureza, trata-se de um «instituto frenador do exercício ilegítimo do poder».

            A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: em caso de detenção ilegal, nos casos previstos nas quatro alíneas do n.º 1 do artigo 220.º do CPP e quanto ao habeas corpus em virtude de prisão ilegal, nas situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal.

Sendo a prisão efectiva e actual o pressuposto de facto da providência e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico, esta providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, pág. 297) há-de fundar-se, como decorre do artigo 222.º, n.º 2, do CPP, em ilegalidade da prisão proveniente de (únicas hipóteses de causas de ilegalidade da prisão):

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

                                                             *

       Vejamos se a pretensão do requerente se enquadra no referido preceito.

       No essencial, no caso concreto, o que está em discussão é a questão de saber se a prisão do requerente é ilegal, cabendo indagar da razão do argumento invocado – excesso de prisão preventiva.

Do excesso de prazo de duração da prisão preventiva 

       O requerente fundamenta a providência em prisão ilegal, invocando ultrapassagem do prazo estatuído pela alínea c) do artigo 222.º do Código de Processo Penal.

       No fundo o que está subjacente à dedução da pretensão é excesso de prazo de prisão preventiva, por não ter sido notificado da acusação, quando o prazo de dedução da mesma precludia, em seu entendimento, no dia 2 de Fevereiro transacto.

       O requerente alude a detenção provisória em processo de extradição, que aqui não tem qualquer aplicação, mostrando-se perfeitamente anódina tal referência.  

       Como resulta do exposto, foi determinada a prisão preventiva do arguido por contra ele haver indícios de ter cometido, em co-autoria, um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, a que cabe a moldura penal abstracta de 4 a 12 anos de prisão, o que cai no campo de previsão do artigo 202.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, configurando caso de “criminalidade altamente organizada”, definida na alínea m) do artigo 1.º do Código de Processo Penal, relevante para efeitos de preenchimento da previsão do n.º 2 do artigo 215.º do mesmo Código.  

Sendo assim, há que considerar o prazo a observar no caso concreto, na fase da acusação, atendendo à real situação processual no presente momento.

Estabelece o artigo 215.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto:

            “1. A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;

d) ..........................................................................................................

            Por outro lado, certo é que, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para 6 meses, 10 meses, 1 ano e 6 meses e 2 anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, … ou ainda por crimes elencados nas alíneas a) a g).

O requerente coloca a questão da ultrapassagem do prazo de seis meses relativamente à fase da acusação, pois já teria decorrido tal prazo sem ter sido notificado da acusação.

            Como se viu, o requerente encontra-se em prisão preventiva, à ordem dos autos, desde 4 de Agosto de 2009, tendo sido detido no dia anterior, e não como erroneamente indica (como tendo sido detido no dia 2 e interrogado em 3), sendo que a acusação foi deduzida em 2 de Fevereiro de 2011, antes, pois, de se perfazerem os seis meses.

No essencial, no caso concreto, o que está em discussão é a questão de saber se o dies ad quem do prazo previsto no artigo 215.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do CPP – seis meses - se deverá fazer coincidir com a data da dedução da acusação, ou com o momento em que o arguido toma efectivo conhecimento da peça acusatória.

O requerente coloca a questão de excesso de prisão preventiva, por se ter atingido o prazo de seis meses de duração máxima consentida, nos termos daqueles preceitos, em 02-02-2011, pelas 00,00 horas, pondo o enfoque na circunstância de não ter tido conhecimento de a mesma ter sido proferida até então: “Contactado o Tribunal foi constatado não existir acusação”.

Atendendo à natureza e moldura penal cabível ao crime imputado ao requerente, o prazo de duração máxima da prisão preventiva, sem que tenha sido deduzida acusação, é de seis meses, nos termos do artigo 215.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do CPP.

O referido prazo de seis meses, aqui aplicável face ao crime cuja prática é indiciariamente imputada ao requerente, e considerando que se encontra preso desde 4 de Agosto de 2010, terminava em 4 de Fevereiro de 2011.

A peça acusatória foi deduzida em 02 de Fevereiro de 2011, ou seja, dentro do referido prazo de 6 meses.

O que é discutível é saber se é de ter em conta a data em que a acusação é elaborada, ou a data em que chega ao conhecimento do seu destinatário.

Na dicotomia data da prolação da acusação/data da notificação da acusação como elemento aferidor da determinação do momento relevante para se estabelecer o marco que importa ter em atenção na definição do dies ad quem do prazo de duração máxima de prisão preventiva, é de ter como correcta a opção pela data em que é elaborada a acusação.

Desde logo um argumento literal, a extrair da alínea a) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP, quando refere o decurso do prazo sem que tenha sido deduzida acusação e de modo similar nas restantes alíneas, como na b), ao referir o decurso do prazo sem que tenha sido proferida decisão instrutória e nas alíneas c) e d), ao colocar o ponto final do prazo sem que tenha havido condenação, em 1.ª instância, ou com trânsito em julgado.

Em todos estes casos é patente a referência à data da prática do acto processual ou elaboração da decisão (acusação, decisão instrutória e condenação) proferida no processo de acordo com cada etapa ou fase processual e não ao momento em que chega ao conhecimento do destinatário o teor da mesma.

De contrário, em caso de pluralidade de arguidos, teríamos datas diferentes consoante os diversos momentos em que a decisão fosse chegando ao destino.

            Por outro lado, furtando-se o destinatário ao recebimento da notícia, descoberto estaria o caminho para se prolongar o prazo caso se mostrasse pontualmente necessária ou conveniente tal estratégia.

No caso em apreciação cumpriu-se a garantia de que a acusação é deduzida dentro do prazo de seis meses.

Este Supremo Tribunal já tomou posição sobre a questão, defendendo-se no acórdão de 11-10-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 186, que para o efeito previsto no artigo 215.º do CPP, releva a data da acusação e não a notificação ao arguido dessa peça processual, podendo ver-se neste sentido ainda os acórdãos de 14 e 22 de Março de 2001, in Sumários do Gabinete de Assessores, n.º 49, págs. 62 e 81; de 15-05-2002 e de 11-06-2002, ibid., n.º 61, pág. 84 e n.º 62, pág. 81; de 13-02-2003, processo n.º 599/03-5.ª; de 22-05-2003, processo n.º 2159/03-5.ª; de 18-06-2003, processo n.º 2540/03-3.ª; de 13-11-2003, processo n.º 3943/03-5.ª; de 08-06-2005, processo n.º 2126/05-3.ª; de 19-07-2005, processo n.º 2743/05-3.ª; de 10-05-2007, processo n.º 1689/07-5.ª; de 24-10-2007, processo n.º 3977/07-3.ª; de 12-12-2007, processo n.º 4646/07-3.ª; de 13-02-2008 no processo n.º 522/08 -3.ª, infra mencionado; de 10-12-2008, processo n.º 3971/08-3.ª; de 06-01-2010, processo n.º 28/09.5MAPTM-B.S1-3.ª e de 30-12-2010, processo n.º 4/09.8ZCLSB-A.S1-3.ª, o mesmo se passando com a decisão instrutória, como decidiu o acórdão de 28-06-1989, processo n.º 18/89-3.ª: “ Os prazos de prisão preventiva referidos no art. 215º, n.º 1, al. b), do CPP contam-se até ao momento em que é proferida a decisão instrutória, e não até ao momento em que ela é notificada”.

Como se colhe dos acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 404/2005, de 22-07 e n.º 208/2006, de 22-03, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 31-03-2006 e de 04-05-2006, em que se questionava a alínea c) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP:

“2.4. Recordada a jurisprudência relevante do Tribunal Constitucional sobre a matéria, importa salientar que o legislador processual penal de 1987 adoptou modelo diverso do até então vigente quanto à fixação dos limites máximos de prisão preventiva.

Na vigência do Código de Processo Penal de 1929 e suas diversas modificações, adoptou-se o sistema de fixação de prazos máximos de prisão preventiva directamente correspondentes a cada fase processual. Esses prazos eram, na redacção do artigo 308.° dada pelo Decreto-Lei n.°377/77, de 6 de Setembro, e do artigo 273.°, na redacção do Decreto-Lei n.° 402/82, de 23 de Setembro: 1.° - desde a captura até à notificação ao arguido da acusação ou do pedido de instrução contraditória pelo Ministério Público: 40 dias por crimes a que caiba pena de prisão maior; 90 dias por crimes cuja investigação caiba exclusivamente à Polícia Judiciária ou que legalmente lhe seja deferida; 2.° - desde a notificação ao arguido da acusação ou do pedido de instrução contraditória pelo Ministério Público até ao despacho de pronúncia em l.ª instância: 4 meses, se ao crime couber pena a que corresponda processo de querela; 3.° — após a formação da culpa: 3 anos (ou, se terminarem antes, quando se igualar metade da duração máxima da pena correspondente ao crime mais grave imputado ao arguido, ou, no caso de recurso da decisão condenatória, quando se atingir a duração da pena de prisão fixada na decisão recorrida). Neste regime, não havia “transferências” de tempos de prisão preventiva: se esta fosse determinada apenas após a notificação da acusação, aplicava-se o prazo indicado em 2.° lugar, sendo indiferente que na fase precedente o arguido tivesse estado em liberdade.

O regime instituído pelo Código de Processo Penal de 1987 é diverso, pois não há contagens separadas de prazos para cada fase. O prazo conta-se sempre do início da prisão preventiva, mas não pode exceder certos limites (acumulados) reportados a quatro marcos processuais: 1.° - dedução da acusação; 2.° - prolação de decisão instrutória quando tenha havido instrução; 3.° - condenação em l.ª instância; 4.° - trânsito em julgado da condenação.

A estes quatro marcos aplicam-se três regimes: o normal (6, 10 e 18 meses e 2 anos), o especial atendendo à gravidade dos crimes (8 meses, 1 ano, 2 anos e 30 meses) e o excepcional quando a essa gravidade dos crimes acresce a excepcional complexidade do procedimento (12 e 16 meses e 3 e 4 anos) — n.°s 1, 2 e 3 do artigo 215.° do CPP. Como refere GERMANO MARQUES DA SILVA (Curso de Processo Penal, vol. II, 2.ª edição, Lisboa, 1999, p. 289):

“Não há um prazo de prisão preventiva para cada fase processual, há é um limite máximo de duração da prisão preventiva até que se atinja determinado momento processual. Por isso, se o início da prisão preventiva só se verificar já na fase de instrução ou na de julgamento, os limites máximos até à decisão instrutória, condenação em l.ª instância ou decisão transitada continuam a ser os mesmos. Por idêntica razão, se numa determinada fase se tiver esgotado o limite do prazo de duração da prisão, o arguido pode voltar a ser preso se se passar a outra fase e se se mantiverem as razões para determinar a sua prisão, desde que se não tenha ainda atingido o máximo da correspondente fase.”

Na base desta alteração de sistema terá estado o propósito de promover o andamento sem delongas do processo, incentivando os respectivos responsáveis a respeitar os prazos de conclusão de cada fase, sob risco de insubsistência de uma prisão preventiva tida por essencial para a prossecução dos objectivos da justiça criminal.”

Já na vigência da nova redacção dada ao artigo 215.º pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, decidiu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 2/2008 (publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Fevereiro de 2008):

“Segundo o regime do citado artigo 215° do Código de Processo Penal, o prazo de duração da prisão preventiva conta-se sempre do seu início e não pode exceder certos limites (acumulados) que se reportam a quatro marcos processuais: 1.° - dedução da acusação; 2.°- prolação de decisão instrutória quando tenha havido instrução; 3.° - condenação em l.ª instância; 4.° — trânsito em julgado da condenação. Aos prazos fixados para cada uma dessas fases processuais aplicam-se, consoante os casos, três diferentes regimes: o normal (4 meses, 8 meses, 1 ano e 2 meses e 1 ano e 6 meses); o especial, em que se atende à gravidade dos crimes (6 meses, 10 meses, 1 ano e 6 meses e 2 anos); e o excepcional, quando a essa gravidade dos crimes acresce a excepcional complexidade do procedimento (1 ano, 1 ano e 4 meses, 2 anos e 6 meses e 3 anos e 4 meses) — n.°s 1, 2 e 3 do artigo 215.° do CPP.

A ideia central do sistema é a de fazer coincidir, ao menos tendencialmente, a duração máxima (acumulada) de prisão preventiva com o termo das sucessivas fases processuais. Os prazos de 4 meses, 8 meses e 1 ano de limite máximo de prisão preventiva até dedução de acusação correspondem são indicativos da duração do inquérito em cada um dos circunstancialismos definidos no artigo 215°, n.°1, alínea a), e n.°s 2 e 3 (cfr. artigo 276.°, n.°1, primeira parte, e n.°2, alíneas a) e c)). O acréscimo de 4 meses ao limite máximo de prisão preventiva, em todas as situações, até prolação da decisão instrutória, toma em atenção os prazos máximos de 2 e 3 meses para conclusão da instrução, que só se inicia com o requerimento para abertura de instrução, a apresentar no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação e a que acresce o prazo de 10 dias para prolação do despacho de pronúncia (cfr. artigos 306.°, n.°s 1, 2 e 3, 287.°, n.°1, e 307.°, n.° 3, todos do CPP). É dentro desta lógica que se fixou o prolongamento da duração máxima da prisão preventiva por mais 6 meses, 10 meses e 22 meses, tempo estimado como eventualmente necessário para conclusão do julgamento em l.ª instância, e por mais 4 meses, 6 meses e 10 meses, tempo estimado para conclusão das fases de recursos até se atingir o trânsito em julgado.

Como se verifica, os prazos de duração máxima de prisão preventiva são pré-determinados segundo a fase processual, a gravidade do tipo legal de crime e a complexidade do procedimento.”

Decidindo sobre a invocada inconstitucionalidade da norma do artigo 215.º, n.º 1, alínea a), do CPP, estando em causa questão similar à presente, no âmbito do processo n.º 522/2008, de que fomos relator, pronunciou-se o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 280/2008, processo n.º 295/08-1.ª secção, de 14-05-2008.

Estava em causa a inconstitucionalidade do artigo 215.º, n.º 1, alínea a), do C.P.P., interpretado no sentido de que para os efeitos nele previstos os prazos se contam da prolação da acusação e não da sua notificação, por violação do disposto nos artigos 28.º, n.º 4, 31.º e 32.º, n.º 1, todos da C.R.P.

Como pode ler-se em tal acórdão, « (…), como resulta do citado artigo 28.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa, “a prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei”, significando que não pode, face à sua natureza de “ultima ratio”, de deixar de estar temporariamente limitada. Cabendo à lei a fixação de prazos de prisão preventiva, dispõe, consequentemente, o legislador ordinário de uma relativa margem de liberdade de conformação, sem embargo de dever ser respeitado o princípio da proporcionalidade, conforme salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição revista, I volume, Coimbra, página 490 e, no mesmo sentido Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2005, página 321, e Acórdãos deste Tribunal n.°s 137/92 e 246/99 (o primeiro disponível em www.tribunalconstitucional.pt e o segundo publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1999)».

E depois de afirmar não se detectar razão de ser para emitir um juízo de inconstitucionalidade, adianta: «Com efeito, estamos perante a fixação do termo de um prazo fixado na lei, de acordo com uma interpretação desta que "não se mostra incongruente com a aventada justificação do sistema instituído de duração de prisão preventiva, não desrazoável, tendo em atenção os factores relevantes de estar em causa crime de especial gravidade (...)." (Acórdão n.° 208/2006, já citado).

Na verdade, o legislador não está impedido de tomar em conta como termo final do prazo da primeira fase da prisão preventiva a data de acusação, uma vez que este momento se revela congruente com propósito de promover sem delongas o normal decurso do processo.

Não é assim desrazoável a opção do legislador».

Da marcação da data da prolação da acusação como termo final do prazo de duração máxima de prisão preventiva nesta 1.ª fase do processo decorre que, no dia seguinte, se inicia o novo prazo de duração máxima correspondente à fase que se segue, que igualmente deverá ser observado, não se violando qualquer prazo nem ferida resultando qualquer garantia de defesa.

O despacho de acusação existe, tem existência legal e foi determinada a sua tradução e notificação.

Em conclusão: o termo final do prazo referido na alínea a) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP é a data da dedução da acusação, solução de que não resulta prejudicado o direito de defesa, sendo certo que a acusação foi prolatada dentro do prazo máximo previsto.

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Há que ter em conta que apenas releva a prisão efectiva e actual e a ilegalidade deve ser aferida em função da situação presente.

De acordo com o princípio da actualidade, é necessário que a ilegalidade da prisão seja actual, sendo a actualidade reportada ao momento em que é necessário apreciar o pedido – neste sentido, cfr., i.a. acórdãos deste Tribunal de 06-01-1994, in BMJ n.º 433, pág. 419; de 21-01-2000, in BMJ n.º 493, pág. 269; de 24-10- 2001, processo n.º 3543/01-3.ª; de 26-06-2003, in CJSTJ 2003, tomo 2, pág. 224; de 30-01-2003, processo n.º 378/03-5.ª; de 19-10-2006, processo n.º 3950/06-5.ª; de 20-12-2006, processo n.º 4731/06-3.ª; de 01-02-2007, processo n.º 350/07-5.ª; de 15-02-2007, processo n.º 526/07-5.ª; de 19-04-2007, processo n.º 1440/07-5.ª; de 13-02-2008, processos n.ºs 435/08 e 522/08; de 02-04-2008, processo n.º 1154/08; de 22-10-2008, processo n.º 3447/08; de 10-12-2008, processo n.º 3971/08; de 19-12-2008, processo n.º 4140/08, todos da 3.ª secção.

Neste momento, encontra-se dada a acusação, encontrando-se precludida tal fase.

O artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa.

O motivo aduzido pelo requerente não cabe no elenco contemplado no artigo 222.º, n.º 2, do CPP, inexistindo, nomeadamente, o fundamento da alínea c), nos termos que invocado vem.

Na situação presente a prisão do requerente foi ordenada por entidade competente, no caso pelo juiz de instrução criminal com jurisdição na área da Comarca de Vila Real de Santo António e com fundamento na existência de indícios da prática pelo arguido de crime que justifica a aplicação da medida de prisão preventiva, por cair na previsão dos artigos 1.º, alínea m) e 202.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, sendo que o requerente foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva em 4 de Agosto de 2010, não estando em causa qualquer excesso de prazo, tendo sido já deduzida acusação, de que o arguido será notificado, encontrando-se o processo numa nova fase.

Não se verifica, pois, a ilegalidade da prisão, inexistindo o invocado fundamento da alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal, ou qualquer outro, o que inviabiliza desde logo a providência, por ausência de pressupostos, já que a violação grave do direito à liberdade, fundamento da providência impetrada, há-de necessariamente integrar alguma das alíneas daquele n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Sendo assim, é de indeferir a providência por manifesta falta de fundamento bastante - artigo 223.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal.

Decisão

Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a presente providência de habeas corpus relativa ao cidadão “AA”, por manifesta falta de fundamento.

Custas pelo requerente, com taxa de justiça de 2 unidades de conta, nos termos do artigo 8.º e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais (Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26-02, com as alterações introduzidas pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31-12), sem prejuízo da isenção subjectiva que venha a ser detectada, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea j), do mesmo diploma, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24-04.

Nos termos do artigo 223.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, vai o requerente condenada na taxa sancionatória de 10 UC (unidades de conta).

O valor da compensação ao defensor do requerente é a estabelecida na Portaria n.º 1386/2004, de 10 de Novembro, aplicável nos termos do artigo 25.º, n.º 1, da Portaria n.º 10/2008 de 3 de Janeiro, na redacção dada pelo artigo 1.º da Portaria n.º 210/2008, de 29 de Fevereiro.

Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2011 
Raul Borges (relator)
Henriques Gaspar
Pereira Madeira