Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SILVA SALAZAR | ||
Descritores: | PRESTAÇÃO DE CONTAS ABUSO DE DIREITO | ||
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Nº do Documento: | SJ200303310006806 | ||
Data do Acordão: | 03/31/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 4044/03 | ||
Data: | 10/16/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
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Sumário : | Não há abuso do direito de exigir prestação de contas quando o titular desse direito deixa decorrer vários anos sem exigir tal prestação nem contestar a indicação do obrigado respectivo quanto aos montantes dos rendimentos entretanto produzidos pelos bens administrados. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Em 26/10/00, A propôs contra sua irmã, B, acção com processo especial de prestação de contas, pedindo que esta apresente contas dos exercícios de 1992 a 2000, relativas à exploração do estabelecimento de fotografia vitrificada sobre esmalte instalado no rés-do-chão do prédio sito na Rua de Costa Cabral, ...., Porto, que gira sob a denominação "C (cabeça de casal da herança de)", integrado na herança aberta por óbito dos pais de autora e ré, que detém a respectiva administração, pois, segundo ela autora, as quantias que lhe vêm sendo entregues pela ré como sendo a parte que lhe cabe a título de lucros produzidos pela exploração do mesmo estabelecimento têm sofrido grande redução, tendo-se tornado muito inferiores à parte a que tem direito dos lucros realmente produzidos. A ré contestou impugnando a invocada obrigação de prestação de contas, por essa obrigação já ter sido devidamente satisfeita de forma extrajudicial, sem reclamação da autora. Esta respondeu negando ter sido satisfeita tal obrigação. Produzida prova documental e testemunhal, foi proferida decisão sobre a matéria de facto considerada assente, após o que teve lugar sentença que determinou a prestação de contas pela ré apenas em relação ao exercício de 2000. Apelou a autora, tendo a Relação, por acórdão, concedido provimento à apelação e alterado a decisão ali recorrida no sentido de determinar a prestação de contas pela ré em relação aos exercícios de 1992 a 2000. Inconformada, é a ré que, agora, desse acórdão interpõe a presente revista, formulando, em alegações, as seguintes conclusões: 1ª - Nos termos do art.º 687º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil, em consonância com o n.º 4 do art.º 1014º-A do mesmo Código, deve ser admitido o presente recurso de revista com efeito suspensivo, atendendo à sua especialidade e ao facto de simplesmente estar em causa aferir da obrigatoriedade de prestação ou não de contas, sob pena de o recurso de revista perder o seu efeito útil; 2ª - No caso sub judice impõe-se cuidar uma análise mais atenta em ordem à aplicação correcta do direito e, consequentemente, da apreciação do enquadramento jurídico consubstanciado na norma do abuso de direito e correlativo princípio geral de direito da boa fé; 3ª - Com efeito, atenta a factualidade apurada, que não foi impugnada, e atendendo ao comando expresso do art.º 334º do Cód. Civil, é inequívoco resultar matéria suficiente que torna ilegítima a pretensão da recorrida quanto à apresentação de contas desde o ano de 1992 a 2000; 4ª - O comportamento da recorrida ao intentar a presente acção contraria frontalmente a atitude que adoptou ao longo de tantos anos com a recorrente; assim, ao vir invocar como fundamento uma irregular prestação de contas para que seja exercido o seu direito, consubstanciado em factos por si consentidos, a recorrida viola o princípio da confiança; 5ª - O abuso de direito emerge da violação de princípios, como a tutela da confiança legítima e a primazia da materialidade subjacente, bem assim, o venire contra factum proprium, enquanto manifestação de abuso de direito, pressupõe a existência de uma situação objectiva de confiança, de um investimento na confiança e irreversibilidade desse investimento e de boa fé da parte que confiou; 6ª - A actuação da recorrida durante anos, aceitando as contas que lhe eram apresentadas, bem como os lucros a que tinha direito após as receitas apuradas, manifestou uma atitude concludente face ao procedimento adoptado para apresentação de contas; 7ª - A prestação de contas assume carácter de regularidade devendo acontecer anualmente (art.º 2093º, n.º 1, do Cód. Civil); da factualidade apurada resulta que a prestação de contas efectuada, embora não fosse a mais correcta tecnicamente, sempre se verificou, sendo certo que as contas prestadas nunca foram impugnadas, presumindo sempre a anuência da recorrida relativamente ao que lhe era apresentado; 8ª - O decurso do tempo, por si só, inviabiliza, actualmente, um apuramento rigoroso da apresentação das contas de anos tão longínquos, uma vez que as mesmas se poderão ver prejudicadas, desde logo, porque alguns dos elementos contabilísticos podem, eventualmente, já não se encontrar guardados pela recorrente, atendendo a que já tenha expirado o prazo de obrigatoriedade da conservação dos mesmos relativamente a determinados anos; 9ª - Tal facto prende-se com a circunstância de o estabelecimento funcionar com base na confiança familiar, fundando legítimas expectativas de que o procedimento adoptado era conforme à vontade da recorrida e sedimentando a convicção da recorrente de que aquela não lhe iria exigir uma prestação de contas mais rigorosa; 10ª - A Relação, ao decidir contrariamente, incorreu em erro de interpretação quanto à norma, in casu, enquadrável e justificada, do abuso de direito (art.º 334º do Cód. Civil) e que inviabiliza a pretensão da recorrida, nomeadamente por ferir a integridade do princípio da boa fé. Termina pedindo a fixação de efeito suspensivo ao presente recurso e a revogação do acórdão recorrido por forma a ficar a valer o decidido na 1ª instância. Em contra alegações, a autora sustentou dever ser atribuído ao recurso efeito meramente devolutivo, e pugnou pela confirmação do acórdão recorrido. Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que os factos assentes são os como tais declarados no acórdão recorrido, para o qual nessa parte se remete ao abrigo do disposto nos art.ºs 726º e 713º, n.º 6, do Cód. Proc. Civil, uma vez que não houve impugnação da matéria de facto nem há fundamento para a sua alteração. A questão respeitante ao efeito do recurso foi já decidida no despacho liminar do relator, no sentido da manutenção do efeito meramente devolutivo. Resta a questão de mérito, que se traduz em saber se há da parte da autora, ora recorrida, abuso de direito que torne ilegítimo o exercício do direito de prestação de contas que se arroga. A sentença da 1ª instância considerou ter a ré obrigação de prestar à autora contas como administradora do estabelecimento em causa por este se encontrar integrado na herança aberta por óbito dos pais de ambas, mas que havia abuso de direito pela autora ao exigir essa prestação por ter deixado decorrer mais de vinte anos sem questionar a ré sobre a aderência à realidade dos lucros que esta lhe indicava, recebendo sem fazer qualquer reparo a metade dos montantes que a irmã lhe indicava como lucros. Dessa forma, deu aso a que a ré se tivesse convencido de que ela autora aceitava a prestação de contas da forma habitual, ou seja, mediante envio de uma nota sumária, indicativa dos lucros obtidos, no final de cada mês de exercício, e que nunca viria a exercer o direito de exigir a prestação de contas contabilisticamente rigorosas. Ou seja, a conduta da autora constituiria, segundo aquela decisão, um venire contra factum proprium que tornava ilegítimo o exercício do direito de exigir a prestação de contas. Em contrário, a Relação entendeu não se mostrar configurado o abuso de direito. E com razão, pelos fundamentos que constam do acórdão recorrido, com os quais se concorda, a que se adere e para que se remete ao abrigo do disposto naqueles art.ºs 726º e 713º, este no que respeita ao seu n.º 5, o que conduz à confirmação total do dito acórdão, quer no tocante ao nele decidido, quer no respeitante aos fundamentos que inclui. Com efeito, não pode ser considerada prestação de contas a simples remessa, pela ré à autora, no final de cada mês de exercício, de uma nota sumária indicativa do montante dos lucros obtidos nesse mês, e de metade da quantia assim indicada, pois uma prestação de contas, mesmo sem obedecer a regras contabilísticas, sempre implicaria a especificação de receitas e despesas, a indicação da proveniência daquelas e do destino destas, independentemente do facto de a autora, porventura, até por depositar confiança na ré, sua irmã, dispensar a apresentação dos documentos comprovativos respectivos. Por isso, e desde logo, não é possível sustentar que a ré se podia ter convencido de que a autora aceitava a prestação de contas na forma habitual: a forma habitual não traduzia prestação de contas, pelo que dos factos assentes não podia resultar que a autora se conformasse com uma prestação de contas efectuada por uma forma qualquer, técnica ou não. Quando muito, poderia a ré ter-se convencido de que a autora nunca viria a exercer o direito de exigir prestação de contas, mas da conduta da autora não se pode extrair que contivesse fundamento bastante para a ré formar uma tal convicção, pois sempre teria de ter em conta que a autora poderia, em determinado período, confiar nela, mas acabar por perder essa confiança, quer em relação ao futuro, quer em relação aos exercícios passados, até com base na diminuição do montante dos lucros, invocada pela autora e aceite pela ré. Isto é: para a conduta omissiva da autora, ao não exigir prestação de contas durante vários anos e ao aceitar os montantes que a ré lhe atribuía a título de lucros, originar justificadamente aquela convicção da ré, dando origem a que a exigência de prestação de contas pudesse integrar abuso de direito, seria necessário que tal conduta omissiva fosse acompanhada por algum outro facto que tornasse impossível ou altamente improvável ser ela interpretada com significado diferente do de implicar renúncia ao direito de exigir aquela prestação ou de obter o pagamento de quantias a que a autora sentisse ter direito, coisa que na hipótese dos autos não se verifica, pois a descrita conduta pode significar apenas, diferentemente, que a autora nunca tinha exigido prestação de contas nem pagamento de qualquer quantia além das pagas pela ré, por, devido à confiança que porventura depositava na irmã, se encontrar ela própria na convicção de que a nada mais tinha direito. E tal possibilidade de significado diverso basta para implicar o entendimento de que não se encontra provado que ocorra o excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito de exigir a prestação de contas, que seria necessário para se verificar abuso de direito nos termos do art.º 334º do Cód. Civil. Sendo tal abuso matéria de excepção peremptória, caberia à ré (art.º 342º, n.º 2, do Cód. Civil) a prova de factos susceptíveis de demonstrar o apontado excesso manifesto, factos esses que não se mostram provados. Na verdade, para se concluir por esse excesso manifesto seria necessário demonstrar-se, pelo menos, não existir qualquer fundamento capaz de originar perda de confiança da autora na ré, coisa que não foi feita. Em tais condições, tem sempre de se admitir a possibilidade de perda dessa confiança, não só para futuro mas também em relação a períodos passados, o que mostra que o exercício tardio do direito de exigir prestação de contas, pela própria natureza dessa prestação, não se pode considerar, ao menos na hipótese dos autos, clamorosamente ofensivo dos ditames de lealdade e correcção que presidem à nossa ordem jurídica, reflectidos entre outros no disposto no art.º 227º do Cód. Civil, e impede que, com base em abuso de direito, se retire à autora o direito que esta se arroga, só pelo facto de ela nunca o ter pretendido exercer, por não ter tido antes, porventura, motivos para tal e mesmo que acabe por se mostrar não ter razão quanto às suas suspeitas. Quanto ao eventual extravio de documentos, trata-se de questão nova, que por isso não pode, como é sabido, ser conhecida neste recurso, havendo porém que salientar que nem mesmo agora a recorrente sustenta que os tenha efectivamente perdido, destruído ou extraviado, pelo que tal facto, não articulado oportunamente, não pode aqui ser considerado (art.º 664º do Cód. Proc. Civil). De todo o modo, os documentos comprovativos são apenas um meio de prova a produzir em fase de apresentação das contas e que pode até vir a ser dispensado, por exemplo no caso do n.º 5 do art.º 1017º do Cód. Proc. Civil. Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido. Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido. Lisboa, 31 de Março de 2004 Silva Salazar Afonso Correia Ponce de Leão |