Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | URBANO DIAS | ||
Descritores: | CONTRATO CHEQUE OBRIGAÇÕES | ||
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Nº do Documento: | SJ200602210040921 | ||
Data do Acordão: | 02/21/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
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Sumário : | Decorre da celebração do contrato de cheque, a obrigação para o cliente de vigiar a sua conta, e para o banco a obrigação de pagar os cheques que lhe forem apresentados a pagamento desde que haja provisão. Tendo o cliente sido avisado pelo banco com vista à regularização do depósito correspondente ao contrato de cheque firmado e que motivou a devolução de cheque precisamente porque não tinha a provisão devida, forçoso é concluir que foi ele a violar o contrato, não lhe assistindo qualquer direito a indemnização por eventuais prejuízos sofridos com a revogação do contrato de cheque por parte do banco. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1 - "AA", intentou, no tribunal cível de Lisboa, acção ordinária contra Empresa-A, e Empresa-B, pedindo a sua condenação no pagamento a título de indemnização a da quantia de € 149.639,37. Como fundamento de tal pedido, alegou danos sofridos por ter sido incluída pelo Empresa-C numa listagem de utilizadores de risco de cheque, facto apenas ocorrido porque os RR., sem fundamento e por negligência dos respectivos serviços, terem considerado sem provisão cheques por ela emitidos. Em articulados separados os RR. contestaram, negando qualquer responsabilidade nos factos alegados pela A.. Após julgamento, a acção veio a ser julgada improcedente. A A. não se conformou com tal decisão e para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas sem êxito. De novo, inconformada recorreu para este Supremo Tribunal, pedindo a revogação do julgado. Para o efeito, apresentou as devidas alegações que rematou com as seguintes conclusões: - Segundo os artigos 73º e 74º do DL 298/92 de 31/12, os Bancos devem assegurar aos seus clientes, em todas as suas actividades, elevados níveis de competência técnica, dotando a sua organização empresarial com os meios, materiais e humanos necessários para realizar condições apropriadas de qualidade e eficiência, bem assim devem, na sua relação com os clientes, proceder com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados; - A análise dos autos evidencia a violação por parte do Recorridos dos deveres acima referidos, tendo as suas condutas determinado a inclusão, injusta e injustificada, da A. na Listagem de Utilizadores de Risco do Empresa-C, inclusão essa que durou dois anos e lhe acarretou danos que a própria Relação reconheceu e confirmou. - O funcionário da Empresa-A ao efectuar o processamento dos cheques, trocou o valor do cheque n.º 60934503, de 12.842$00 sobre o Empresa-B pelo valor do cheque n.º 5540288071, de 49.800$00 sobre a CCAM. O cheque n.º 60934503 foi apresentado na compensação pelo valor de 49.800$00 e foi devolvido por falta de provisão e o cheque n.º 5540288071 foi apresentado na compensação pelo valor de 12.842$00 e foi pago por esse valor; - A Empresa-A ao detectar o erro voltou a apresentar o cheque n.º 60934503, em 25/5/99, desta feita pelo valor correcto de 12.842$00, tendo este cheque sido novamente devolvido por falta de provisão, mas agora pela diferença irrisória de 218$00; - Não é preciso ser-se muito versado em práticas bancárias para perceber que nenhum banco faz incluir um seu Cliente de muito anos, na Listagem de Utilizadores de Risco do Empresa-C, por pouco mais de duzentos escudos; - A questão torna-se fácil de perceber pela análise do documento n.º 3, junto com a p.i., no qual consta o cheque n.º 60934503 do valor de 49.800$00, emitido em 18/5/99, apresentado à compensação em 19/05/99 pela Empresa-A e devolvido por falta de provisão; - E consta também, relativamente a esse mesmo cheque n.º 60934503, do valor de 49.800$00, ter sido feita a notificação em 2/6/99 e ter sido dado como regularizado, tão-somente, em 14/7/99; - As instâncias, incompreensivelmente, ignoraram por completo o referido documento nº 3 junto com a p.i. e por isso não puderam aperceber-se do real encadeamento dos factos e das suas consequências; - A análise do documento em causa permite tornar claro que circulavam virtualmente no sistema bancário dois cheques com o n.º 60934503 sobre o Empresa-B, um do valor de 49.800$00 e outro do valor de 12.842$00. Isto porque o primeiro, como demonstra o documento acabado de referir, não foi anulado, não foi eliminado do sistema bancário, porque a Empresa-A não procedeu a essa anulação, antes pôs em circulação (reapresentou) o mesmo cheque, agora com outro valor, provocando a coexistência no sistema informático dos dois cheques; - Não se trata, evidentemente, de dois cheques em sentido físico, até porque à compensação não são levados cheques em sentido físico, mas sim de dois cheques escriturais, inseridos no sistema informático, com o mesmo número e valores diferentes, levados ambos à compensação, primeiro o de 49.800$00 e depois o de 12.841$00; - Mais ainda: lê-se no citado documento n.º 3 junto com a p.i. que o cheque nele mencionado, repete-se, com o n.º 60934503, do valor de 49.800$00, notificado em 2/6/99, só foi regularizado em 14/7/99. Ou seja, a Empresa-A só vem a regularizar este cheque já depois de expirada a data em que a Autora deveria ter regularizado o cheque devolvido em segundo lugar; - A Empresa-A devia ter de imediato providenciado a anulação do cheque primeiramente apresentado, do valor de 49.800$00 e devolvido (por erro seu) por falta de provisão. Não o tendo feito, deixou que circulassem no sistema bancário os dois cheques, o primeiro devolvido por falta de provisão, facto que motivou a devolução do segundo cheque; - Esta foi, verdadeira e inegavelmente, a causa da devolução efectuada pelo Empresa-B que confrontado com um primeiro cheque, do valor de 49.800$00, sem provisão, que devolve, se vê de novo confrontado com um segundo cheque, agora de 12.842$00, em que a insuficiência de provisão é de apenas 218$00, e devolve-o por arrastamento; - Tal facto foi confirmado pelo próprio funcionário do Empresa-B (ponto 17 dos factos provados), que disse à A. haver "um outro cheque igualmente com o n.º 60934503 no valor de 49.800$00 que havia sido devolvido por falta de provisão (o que estaria a provocar toda a confusão!) e que embora pudesse entender a aflição da A., a 2ª Ré era alheia a qualquer acto menos competente da 1ª Ré"; - Para além de não ter procedido à anulação da primeira apresentação, a Empresa-A não teve o cuidado de fazer qualquer comunicação ou fornecer uma explicação ao Empresa-B e à A.; - Foi a A. quem, pessoal e individualmente, logrou obter os documentos indispensáveis à reconstituição do puzzle provocado pela troca dos valores dos cheques pelo funcionário, que de simples erro não passaria se essa instituição bancária o tivesse desde logo reconhecido, assumido e corrigido; - A Empresa-A não cometeu um erro, cometeu três: o seu funcionário trocou os valores dos cheques n.º 5540288071 e n.º 60934503; ao aperceber-se da devolução do cheque com o valor errado não providenciou pela anulação dessa apresentação; e não comunicou nem explicou, à A. ou ao Empresa-B, o erro cometido; - Foram estes três erros que determinaram a devolução do segundo cheque e a consequente inclusão da A. na Listagem de Utilizadores de Risco do Empresa-C, provocando avolumados danos, nomeadamente, lesando-a no seu bom-nome, na sua reputação e na sua estabilidade emocional; - O Empresa-B, por sua vez violou os deveres impostos a todas as instituições bancárias, acima referidos, bem assim o disposto no artigo 1º do DL 316/97 de 19/11, ao revelar uma total indiferença aos sucessivos apelos e avisos da A. para todo o imbróglio causado pela Empresa-A; - O Empresa-B teve inteiro e oportuno conhecimento dos factos - vejam-se os pontos 15, 16, 17, 18 e 24 dos factos dados como provados na sentença - e limitou-se a remeter a solução para a Empresa-A, quando podia e devia, também ele, ter tentado evitar as consequências da comunicação ao Empresa-C; - Sabendo o Empresa-B que a sua Cliente estava a ser vítima de um erro da Empresa-A, não lhe era lícito desencadear o mecanismo da rescisão da convenção de cheque e consequentemente comunicação ao Empresa-C, com o seu cortejo de consequências; - Não podia pois presumir o Empresa-B que a A. punha em causa o espírito de confiança que deve presidir à circulação do cheque, porquanto conhecia perfeitamente as razões que a levaram a não regularizar a situação, nomeadamente por não se sentir responsável pela mesma; - O Empresa-B ao dar um tratamento estandardizado à devolução e não regularização do cheque n.º 60934503, pelo valor de 12.842$00, quando tinha perfeito conhecimento de que se tratava de situação anómala e irregular, originada por erro de outra instituição bancária, pôs em causa os interesses legítimos da sua Cliente e colocou em crise a relação de confiança fundamental entre Banco/Cliente; - A Empresa-A e o Empresa-B defendem-se ainda dizendo que a inclusão na Listagem de Utilizadores de Risco do Empresa-C se deveu à incúria da Autora, revelada na não regularização do segundo cheque devolvido (recorde-se, pela diferença de 218$00...), no prazo e pelas formas estipuladas no doc. 4. Tal argumento também não pode proceder; - O funcionário do Empresa-B ao informar a A. de que o cheque n.º 60934503 do valor de 12.842$00 tinha sido devolvido devido à confusão gerada pelo erro da Empresa-A, conjugado com o facto de a conta se encontrar já com provisão suficiente, deixou a Autora convencida de que a devolução do segundo cheque viria a ser justificada pelo próprio Banco, o Empresa-B, e que nunca este a penalizaria por um erro que sabia não ser da sua Cliente; - A Empresa-A e o Empresa-B violaram, não só as normas a que estão obrigadas nas suas relações com os clientes (artigos 73º e 74º do DL 298/92 de 12/31), como as normas que protegem o direito à integridade moral da pessoa humana, ao seu bom-nome, honra e reputação (artigo 70º do C. Civil); - Como se reconheceu no Acórdão recorrido, teve um impacto negativo no bom-nome e na reputação da A., a inclusão durante dois anos na referida Lista, pois viu a convenção de cheque celebrada com o Empresa-D rescindida e viu pessoas das suas relações terem conhecimento da sua inibição do uso de cheques; - Estão pois preenchidos todos os pressupostos para a existência de responsabilidade civil: as Recorridas violaram direitos e interesses relevantes da A.; a sua conduta foi ilícita; como cabalmente demonstrado, existe um vínculo de imputação dos actos aos respectivos agentes; a existência de danos é inegável; e, como foi exaustivamente exposto e demonstrado, existe um nexo de causalidade entre os factos descritos e os danos verificados; - Os factos dados como provados nos autos, bem assim os documentos juntos aos mesmos são suficientes para julgar os Bancos Recorridos responsáveis pelos danos morais sofridos pela A., devendo ser dado provimento ao presente recurso de revista e revogado o Acórdão recorrido; - As instâncias, com as suas decisões, violaram frontalmente os normativos que regulam a responsabilidade civil, nomeadamente o art. 483º do C. Civil; As recorridas, por sua vez defenderam a manutenção do acórdão sob censura, sendo que a recorrida Empresa-A. fez notar que a recorrente se limitou a reformular o expandido nas conclusões da apelação, pretendendo com este recurso nova pronúncia sobre a prova produzida e aos factos dados como provados relativos ao nexo de causalidade, matéria esta insindicável pelo Supremo. 2 - As instâncias fixaram os seguintes factos como provados: 1. Em 18/05/99, a A. deslocou-se ao Centro de Formalidades das Empresas em Lisboa, a fim de proceder a diligências respeitantes à constituição de uma sociedade por quotas a pedido de BB, ausente na Rússia. 2. A 1ª R. tem um balcão de atendimento ao público no Centro referido no número anterior. 3. Foram emitidos três cheques pessoais da A., a saber: Nº 60934503, no valor de 12.842$00, s/Empresa-B, conta à ordem nº 21533969; Nº 60934504, no valor de 10.100$00, s/Empresa-B, mesma conta à ordem; Nº 5540288071, no valor de 49.800$00, s/C.C.M. de Loures, conta à ordem conjunta com Idalina Graça nº 40089741670; 4. Os três referidos cheques foram depositados no balcão da 1ª R. sito naquele Centro; 5. Em cada balcão da 1ª Ré, como em geral em todos os balcões das ICs abertos em Portugal, existem leitores ópticos de cheques que fazem automaticamente a leitura do Banco sacado e o nº do cheque; 6. A quantia do cheque é, porém, digitada manualmente pelo funcionário do balcão; 7. Ao digitar as quantias dos 2 cheques em causa, o funcionário da Empresa-A trocou as quantias, imputando ao cheque CCAM a quantia do cheque Empresa-B nº 60934503 e vice-versa; 8. O cheque nº 5540288071, sacado sobre a CCAM de Loures, foi aí debitado na conta nº 40089741670, pelo valor de 12.842$00 em 19.05.99; 9. A digitação manual é sujeita a um controlo, em cada departamento de compensação dos Bancos, como aconteceu no presente caso; 10. Foi em tal controlo que a 1ª R. se apercebeu da troca de valores dos cheques e voltou a apresentar à compensação, agora em 25/5, o cheque Empresa-B de 12.842$00; 11. Aquando da apresentação tal cheque veio devolvido pelo Banco sacado, por falta de provisão; 12. Em 25.05.99, a conta em causa apenas apresentava um saldo de 12.623$20; 13. A A. recebeu carta com referência DEO/DIC e datada de 02.06.99, da autoria da 2ª R., na qual esta a notificava para até 07.07.99, proceder à regularização do cheque nº 60934503, no valor de 12.842$00, o qual, apresentado a pagamento em 25.05.99, foi devolvido por falta de provisão; 14. Em momento não apurado, a A. voltou a dirigir-se uma ou duas vezes ao balcão da 1ª R. no Centro supra referido, na tentativa de perceber o que se tinha passado, mas não ficou esclarecida; 15. Deslocou-se então a A. ao balcão de Cascais da 2ª R., onde foi informada que de facto seria possível ter acontecido qualquer falha no lançamento dos dados do cheque por parte da 1ª R., mas que o assunto teria de ser, necessariamente, resolvido na sua origem, ou seja junto da 1ª R.; 16. A conta do Empresa-B foi provisionada em 24 de Maio com 7.000$00 e no dia 27 de Maio com a quantia de 153.840$00; 17. Confirmou, então também, o funcionário da 2ª R. que um outro cheque igualmente com o nº 60934503, no valor de 49.800$00, havia sido devolvido por falta de provisão (o que estaria a provocar toda a confusão) e que embora pudesse entender a aflição da A., a 2ª R. era alheia a qualquer acto menos competente da 1ª R.; 18. O nome da A. foi incluído, por comunicação da 2ª R., na listagem de utilizadores de cheques que oferecem risco, organizada pelo Empresa-C e por este comunicada a todas as instituições de crédito; 19. Em 09.07.99, o Empresa-D comunicou à A. que tendo recebido do Empresa-C uma listagem de utilizadores de cheques que oferecem risco, na qual se incluía o nome da A., rescindia a convenção de cheques que tinha com esta; 20. Em 22.05.01, a Empresa-A enviou ao então patrono da A. uma carta em que afirmava ter procedido à análise da situação e ter constatado a ocorrência de lapso no processamento dos cheques do Empresa-B e da CCAM apresentados à compensação e em que informava já ter solicitado ao Empresa-C, fundamentadamente, que o nome da A. fosse retirado da listagem dos utilizadores de cheques que oferecem risco; 21. Quando escreveu a carta referida no número anterior, a Empresa-A desconhecia a situação referida supra no nº 12; 22. Tal carta surge como resposta a carta dirigida pelo advogado da A. à Empresa-A, em 26.03.2001 - quase dois anos após a ocorrência dos factos - carta em que narra uma versão em tudo idêntica à p.i., mas se omite a junção de dois documentos essenciais: o extracto junto como doc. 5 à p.i., de onde resulta a falta de provisão, e o doc. 3 de onde resulta que o cheque com o montante errado de 49.800$00 não gerou qualquer comunicação ao Empresa-C; 23. A verdadeira natureza e dimensão do lapso, bem como a sua correcção pela 1ª Ré foram devidamente explicadas à A. e ao seu advogado pela 1ª R., quer no balcão quer na Assembleia Jurídica; 24. A A. ficou na lista de utilizadores de risco do Empresa-C durante, pelo menos, dois anos. 25. Em 05.04.2001, a A. adquiriu uma quota na sociedade Empresa-E; 26. Uma amiga da A. tentou abrir uma conta bancária para a filha desta e o funcionário bancário a informou que a A. estava inibida do uso de cheque; 27. Nos anos de 1999, 2000 e 2001, a A. padeceu de patologia depressivo-ansiosa, com emergência de alguns sinais psicóticos, e esteve períodos sem trabalhar com baixa médica. 3 - Bem vistas as coisas, o recurso interposto pela A. para este Supremo Tribunal está condenado ao insucesso. Ao Supremo, como tribunal de revista, apenas compete apreciar questões de direito, ex vi arts. 721º, nº 2 do C.P.C. e 26º da L.O.T.J.), tendo competência para apreciar a questão-de-facto nos limitados casos previstos nos arts. 722º e 729º do C.P.C.. Daí que, em relação à quase totalidade das conclusões apresentadas - porque versam apenas sobre a questão-de- facto - não caiba a este Tribunal censurar o que as instâncias decidiram. Não ignoramos as dificuldades de distinção entre facto e direito: como sublinha Castanheira Neves, "«a questão-de-facto» e a «questão-de-direito» não são duas entidades em si, de todo autónomas e independentes, antes mutuamente se condicionam, além de também mutuamente se pressupõem e remetem uma para a outra: a questão de direito é o desenvolvimento explicitante e judicativo do problema jurídico do caso jurídico decidendo e, como tal, não pode pensar-se e resolver-se senão numa solução desse problema, em unitária referência a ele; questão de facto ocupa-se da objectivação e da comprovação da relevância objectiva de um concreto problema jurídico e, como tal, não pode pensar-se nem resolver-se senão na perspectiva da problemática da juridicidade concreta que exige aquela objectivação e comprovação" (in R.L.J., Ano 129, pág. 166; de qualquer modo, sempre se poderá dizer que facto é o acontecimento ou circunstância exterior que pode repostar-se ao passado ou ao presente e deve ser concretizado e definido, no espaço e no tempo, apresentando-se no processo com as características de objecto, seja na alegação processual seja da prova feita em juízo - apud Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, pág. 44). Mas para o caso que nos preocupa, pertinente é a distinção que Antunes Varela faz entre factos e juízos de facto. Os factos abrangem principalmente as ocorrências concretas da vida real e os juízos de facto estão situados "a meia encosta entre os puros factos e as questões de direito". Em relação a estes, há que distinguir "entre aqueles cuja emissão ou formulação se há-de apoiar em simples critérios próprios do bom pai de família, do homo prudens, do homem comum, e aqueles que, pelo contrário, na sua formulação apelam especialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador" (in R.L.J., Ano122, pág. 219 e ss.). Ora, a recorrente, limita-se a, de um modo geral, em sede de conclusões de alegações de recurso para este Supremo Tribunal, como bem salienta a recorrida Empresa-A, reclamar nova pronúncia sobre a prova produzida, e a tirar efeitos não legítimos do contexto global probatório. Resta-nos, pois, saber se foi violado o disposto no artigo 483º do C. Civil. Está definitivamente fixado pelas instâncias que o facto determinante de a A. ter sido incluída na listagem de utilizadores de cheques que oferecerem risco foi apenas e só o ter a mesma passado um cheque sem cobertura, no valor de 12.842$00 (a sua conta estava apenas aprovisionada com 12.623$00). O referido cheque foi passado sobre o então Banco Totta que, perante o sucedido a notificou para regularizar a situação e foi na sequência desta comunicação (que, pelos vistos não obteve a resposta adequada da A. em termos de regularização da situação) que foi o facto participado ao Empresa-C e a A. incluída na listagem referida. Ao não ter a provisão devida, a A. violou o contrato de cheque que firmou com o Totta. Desse contrato de cheque - sinalagmático por natureza - nasceram obrigações para com a A. e para com o Banco. Naturalmente que subjacente ao contrato de cheque há uma outra relação, a relação de provisão. A 1ª pode consistir num depósito, num abertura de crédito, numa conta corrente, num desconto, tendo como efeito caracterizador a disponibilidade de certos fundos que se conservam na posse do banco. "A provisão aparece, assim, como requisito interno típico do contrato de cheque", sendo que para o surgimento deste não basta apenas a provisão, mas também é necessário o contrato de cheque, "id est, é necessário que entre o banco e o titular da provisão se celebre um novo acordo por via do qual o segundo mobilize, por meio de emissão de cheques, os fundos em relação aos quais detém um direito de crédito" (vide Correia Gomes, in A Responsabilidade civil dos bancos pelo pagamento de cheques falsos ou falsificados, pág. 13 e ss.). Para Sofia Galvão, não há confusão possível entre o contrato de cheque e a relação de provisão, "desde logo porque pode estabelecer-se a relação de provisão, sem que se convencione a utilização de cheques, mas também porque quando se celebra um contrato de cheque, tal implica um universo totalmente novo de direitos e deveres recíprocos que a relação de provisão nunca poderá dispensar" (in Contrato de Cheque, pág. 35). Também José Maria Pires distingue a disponibilidade de fundos e a convenção de cheque, sendo que a 1ª pode resultar de diversos contratos (depósitos, aberturas de crédito, empréstimos) registados em conta bancária, funcionando segundo as regras da escrituração da conta corrente, a 2ª, para além, do direito do sacador a dispor dos fundos provisionados e do correlativo dever do banco de os pagar, inclui outros direitos e outros deveres (in O Cheque, pág. 29). Da celebração do contrato de cheque, nascem para uma e outra partes direitos e obrigações. Assim e desde logo, o cliente obriga-se, inter alia, a vigiar a sua conta e o banco, entre outras, tem a obrigação de pagar os cheques que lhe forem apresentados desde que haja provisão. Antes de entramos numa análise mais detalhada da alegada responsabilidade dos bancos, importa trazer à colação o seguinte: De acordo com o nº 1 do art. 1º do D.-L. 454/91, de 28 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo D.-L. 316/97, de 19 de Novembro, "as instituições de crédito devem rescindir qualquer convenção que atribua o direito de emissão de cheques, ..., por quem , pela respectiva utilização indevida, revele pôr em causa o espírito de confiança que deve presidir à circulação". E, logo o nº 2 do mesmo artigo, estipula uma presunção de que quem põe em risco a aludida confiança para quem "não proceder à regularização da situação, nos termos previstos no artigo 1º-A". Este artigo, no seu nº 1 prescreve o seguinte: "Verificada a falta de pagamento do cheque apresentado para esse efeito, nos termos e prazos a que se refere a Lei Uniforme Relativa ao Cheque, a instituição de crédito notifica o sacador para, no prazo de 30 dias consecutivos, proceder à regularização". E o nº 2 textua: "A notificação a que se refere o número anterior deve, obrigatoriamente conter: a) A indicação do termo do prazo e do local para a regularização da situação; b) A advertência de que a falta de regularização da situação implica a rescisão da convenção do cheque e, consequentemente, a proibição de emitir novos cheques sobre a instituição sacada, a proibição de celebrar ou manter convenção de cheque com outras instituições de crédito nos termos do disposto no artigo 3º, e a inclusão na listagem de cheque que oferecem risco". Importante, ainda, para a compreensão de toda a questão aqui em debate é o preceituado na al. a) do art. 2º do diploma legal citado: "As instituições de crédito são obrigadas a comunicar ao Empresa-C, no prazo e pela forma que este lhes determinar, todos os casos de rescisão de convenção de cheques". Ora, de tudo o que ficou referido, ressalta a ideia de que a A. foi devidamente avisada para regularizar a sua situação perante o banco com quem tinha celebrado o contrato de cheque e que motivou a devolução precisamente porque não havia a provisão devida. Ou seja, quem não cumpriu as obrigações inerentes à celebração de um contrato de cheque foi, definitivamente, a A.. Mais: apesar de avisada para regularizar a situação, continuou em transgressão aos seus deveres, ficando ciente das implicações que a não normalização da situação acarretava, como acabou por acarretar. Perante o comportamento reprovável da A., o Banco, ultrapassado o prazo de 30 dias supra referido, outra solução não tinha, em obediência a um comando legal, que não fosse a comunicação ao Empresa-C. De todo este comportamento omissivo por parte da A. resultou a sua inclusão na listagem de utilizadores de risco. Apenas e só: sibi imputat, portanto, toda esta situação. É verdade que, por meio de tudo isto, houve um erro dum funcionário da C.G.D., mas este, como ficou firmado pelas instâncias, não foi causa determinante da inclusão da A. na referida listagem. Determinante e única - repete-se - foi a falta de fundos na conta subjacente ao contrato de cheque, ou seja, Disse-o de forma clara o acórdão impugnado: "Não foi, portanto, o comportamento culposo do funcionário da apelada Empresa-A a causa do dano, mas sim a falta de provisão da conta sacada". Prescreve o art. 483º, nº 1 do C. Civil: "Aquele que, como dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação". A responsabilidade pressupõe assim os seguintes elementos: facto, ilicitude, imputação do facto ao lesante, dano e nexo de causalidade entre o facto e do dano. A decisão da 1ª instância negou qualquer direito a indemnização à A. com fundamento no facto de não ter ficado provado qualquer dano. Mas a Relação, embora mantendo a decisão de não atribuir à A. qualquer indemnização, navegou noutras águas, entendendo "não se verificar o indispensável nexo causal entre o facto e o dano". Pela nossa parte, respeitando as opiniões expressas, entendemos, sim, que à A. não assiste qualquer direito de reparação por parte dos Bancos. A razão está, contudo, no seguinte: Como vimos, para que nasça a obrigação de indemnizar por violação de direitos absolutos (reais, de personalidade, direitos de auto, etc., etc.) é mister que, inter alia, haja uma conduta ilícita por parte do agente a quem é imputada a responsabilidade. Ora, a actuação dos Bancos não foi dirigida à personalidade da A., mas resultou pura e simplesmente do cumprimento de directivas legais, ou seja, uma actuação lícita. Como bem salientam Pires de Lima e Antunes Varela, "a violação do direito de outrem só é ilícita quando reprovada pela ordem jurídica" (in Código Civil Anotado, Volume I - 4ª edição -, pág. 472). Admite-se, sem grande dificuldade, que a A. tenha tido prejuízos com toda esta situação, mas a mesma - repete-se - deveu-se a sua obra e graça. Que não a factos ilícitos dos RR., pois estes, como já ficou referido, limitaram-se a cumprir os ditames da lei. Ou, dito de outra forma, não houve numa acção concertada pelos RR. com vista à atingir a A. nos seus sagrados direitos de personalidade. Aceita-se que a honra da A. tenha sido atingida por toda esta situação. Todos temos direito à honra, ou seja, no dizer de De Cupis, tanto ao valor íntimo do homem, como à estima dos outros, à sua consideração (in Os Direitos da Personalidade, pág. 110), ou, na lição de Capelo de Sousa, ao bom nome e reputação, "enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo e pelos demais valores pessoais adquiridos pelo indivíduo n o plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político"(in O Direito Geral de Personalidade, pág. 304). Perante a situação criada, a A., como pessoa de bem, naturalmente que ficou afectada não só consigo própria, mas com todos os que a rodeiam nos mais diversos planos da vida hodierna. Teve, naturalmente, prejuízos. Mas, pelo que ficou provado, a si própria deve imputar tudo o que lhe aconteceu e não aos Bancos RR. que nenhuma "culpa" tiveram em todo este processo. Afastada a ilicitude, perde-se a sequência no iter que a lei exige com vista à responsabilização de alguém no âmbito da responsabilidade civil extra-contratual. Apenas mais duas notas para encerrar a discussão sobre o problema que foi trazido à nossa consideração. A 1ª para, mais uma vez, sublinhar que do contrato de cheque nascem direitos e obrigações recíprocos entre banco e cliente. Sem dúvida que aos Bancos se exige uma conduta rigorosa no cumprimento dos seus deveres - a um banco, qualquer ele que seja, exige-se capacidade, diligência, trabalho consciente e árduo, competindo-lhe "mais do que a ninguém, assegurar por todos os meios ao seu alcance do cabal e rigoroso exercício da actividade a que se votou" (apud José António Lopes Cardoso, Alguns Aspectos da Responsabilidade do Banqueiro - Temas de Direito Comercial -, pág. 222). Ora, foi precisamente no rigoroso cumprimento das suas obrigações que os RR. actuaram, nomeadamente, o Totta ao participar a não regularização da situação criada pela A. ao Empresa-C. Em relação ao episódio do lapso do funcionário da R. Empresa-A, esta escreveu, em respeito pelas suas obrigações profissionais, uma carta explicativa à A., sendo certo que, na altura em que o fez, desconhecia a situação que determinou a comunicação por parte do Empresa-A ao Banco Central. De uma vez por todas, temos de assentar que só a conduta da A. é que determinou todo este processo. A 2ª nota é para referir, também mais uma vez, que da celebração do contrato de cheque, decorrem para com os bancos deveres vários, o principal dos quais é o de pagar, e, como acessório, entre outros, o de revogar o contrato. Mas só poderá o banco pagar se no mesmo houver fundos: se tal não se verificar, ainda que a diferença entre o titulado e o numerário depositado seja de pouca monta, há sempre motivo legítimo para a recusa de pagamento. Como se viu, com a situação criada pela falta de fundos o banco é legalmente obrigado a dar conhecimento ao cliente com vista à regularização da mesma. Inaplicável, pois, aqui a doutrina imposta pelo nº 2 do art. 802º do C. Civil que assenta na ideia básica de toda a regulamentação contratual, qual seja a de procederem as partes de acordo com os ditames da boa fé, como o exige, aliás, o nº 2 do art. 762º do mesmo código. Esta ideia, como vimos, sai reforçada com a obrigação legal imposta ao banco de comunicar ao cliente a situação verificada, com a cominação de, não sendo a mesma regularizada em devido tempo, importar a revogação do contrato e a comunicação ao Empresa-C para efeitos de integração nas listas de utilizadores de cheques que oferecem risco. Está, pois, explicada a razão da improcedência da pretensão da A.-recorrente. 4 - Em conformidade com o exposto e sem necessidade de qualquer outra consideração, decide-se, mui embora por razões diferentes das instâncias, confirmar a decisão impugnada, negando a revista, com custas pela recorrente. Lisboa, 21 de Fevereiro de 2006 Urbano Dias Faria Antunes Paulo Sá |