Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S2368
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
TRABALHADOR INDEPENDENTE
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
RESPOSTAS AOS QUESITOS
MATÉRIA DE DIREITO
JUÍZO DE VALOR
Nº do Documento: SJ200710100023684
Data do Acordão: 10/10/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. Devem ter-se por não escritas as respostas à base instrutória que, referindo-se a «meios de protecção adequados» e a «um trabalhador prudente», contêm matéria substancialmente conclusiva, com um inquestionável sentido jurídico e que se integra no thema decidendum.
2. Não se tendo provado que o acidente resultou da falta da observação de regras sobre segurança no trabalho, não se mostram preenchidos os pressupostos da descaracterização do acidente previstos na alínea a) do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, bem como na alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º da apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes.
3. Não sendo possível concluir, no contexto factual provado, que o sinistrado agiu com comportamento temerário, que o seu comportamento foi temerário em alto e relevante grau e que o acidente ocorreu, exclusivamente, por causa disso, não há lugar à descaracterização do acidente como de trabalho.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Em 22 de Julho de 2005, no Tribunal do Trabalho de Águeda, AA intentou acção, com processo especial, emergente de acidente de trabalho, contra COMPANHIA DE SEGUROS Empresa-A, na qual pede que a ré seja condenada a pagar-lhe: a) a quantia de 5.804,79 euros, a título de indemnização por incapacidade temporária, relativa ao período de 21/9/2003 a 1/7/2004; b) o montante de 693,05 euros, referente a consultas, despesas médicas e medicamentosas, tratamentos de fisioterapia e viagens que efectuou para cura das lesões sofridas; c) a pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, de montante a determinar conforme resultado do exame por junta médica; d) a quantia de 3.123,82 euros, relativa a subsídio por elevada incapacidade permanente, nos termos do artigo 23.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro; e) juros de mora à taxa legal, nos termos do artigo 135.º do Código de Processo do Trabalho.

Alegou que, no dia 20 de Setembro de 2003, quando exercia a actividade de pedreiro, por conta própria, na reconstrução de uma casa de habitação, encontrando-se numa pequena plataforma instalada no telhado, a 7 metros de altura, caiu ao solo, sofrendo vários traumatismos que lhe provocaram incapacidade temporária absoluta para o trabalho de 20 de Setembro de 2003 até 1 de Julho de 2004 e incapacidade permanente parcial de 10%, estando a responsabilidade pela reparação do acidente transferida para a mencionada seguradora.

A seguradora contestou, sustentando que o acidente de trabalho se ficou a dever à violação de regras de segurança por parte do sinistrado, que tinha a obrigação de verificar as condições de segurança antes de começar os trabalhos e devia ter tomado medidas de protecção colectiva adequadas ou, na impossibilidade destas, de protecção individual, tendo agido de forma temerária e com negligência grosseira.

Requereu também exame por junta médica, por discordar da incapacidade atribuída pelo perito médico do tribunal.

Foi proferido despacho saneador, desdobrando-se o processo para realização de exame por junta médica - no respectivo apenso foi decidido fixar ao sinistrado a IPP de 14,5%, desde 2 de Julho de 2004, dia imediato ao da alta -, com selecção da matéria de facto pertinente e, após o julgamento, exarou-se sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido formulado pelo autor, bem como do pedido de reembolso deduzido pelo Centro Distrital de Segurança Social de Aveiro.

2. Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou procedente, tendo revogado a sentença recorrida e condenado a ré «no pagamento ao autor da quantia de € 5.185,04, a título de indemnização por ITA, bem como da pensão anual de € 946,36, a qual é obrigatoriamente remível, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal desde 1-7-2004 (data da tentativa de conciliação na fase conciliatória dos autos) até integral pagamento».

É contra esta decisão da Relação que a ré seguradora se insurge, mediante recurso de revista, ao abrigo das seguintes conclusões:

«1. Considerando os factos carreados para os autos e dados como provados, dúvidas não restam que, ao exercer as suas funções a 7 metros de altura sem utilizar qualquer equipamento de protecção, o Recorrido violou, de forma grave, as mais elementares regras de segurança no trabalho, dando origem ao acidente dos autos que, com a utilização daqueles equipamentos, teria sido evitado;
2. Efectivamente, da matéria provada resulta que o Recorrido violou negligentemente não só os arts. 44.º e 155.º do RSTCC, invocado[s] na sentença em crise, mas [também] o disposto [no] n.º 2 do art. 8.º do D.L n.º 441/91, de 14/11, no art. 11.º da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, e no art. 4.º do D.L n.º 348/93, de 1 de Outubro;
3. Do cotejo dos preceitos legais supra invocados, resulta que o Recorrido tinha obrigação de utilizar os equipamentos de protecção colectiva e/ou individual, sempre que estes dispositivos fossem necessários para garantir a sua própria segurança, sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelos acidentes que, em virtude do seu não uso, ocorram;
4. Mesmo que o local de onde o Recorrido caiu não se considerasse um “telhado”, para efeitos de aplicação do disposto no art. 44.º do RSTCC - o que apenas por hipótese se concede - ainda assim seria evidente que o cinto de segurança era obrigatório e que o Recorrido, ao não utilizá-lo, violou, sem causa justificativa, as regras de segurança no trabalho;
5. Aliás, é da experiência comum da vida e do bom senso que, existindo o perigo de queda em altura, é necessária a utilização de cinto de segurança ou existência de qualquer outro dispositivo de segurança que proteja o trabalhador de uma eventual queda;
6. As circunstâncias em que ocorreu o acidente dos autos (cfr. pontos 2, 3, 21 a 25), designadamente o facto de o Recorrido exercer as suas tarefas a 7 metros de altura e sem qualquer protecção, permitem concluir que a sua atitude foi ostensivamente indesculpável, reprovada por um elementar sentido de prudência, e constituiu a única causa do acidente descrito nos autos;
7. Ficou, pois, mais do que demonstrado que o Recorrido violou as regras de segurança e que agiu de forma temerária e com negligência grosseira, que a conduta do Recorrido foi a única causa do acidente dos autos, tal como ficou demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta do sinistrado e o acidente e lesões sofridas, pelo que não podia deixar de estar, nos termos do disposto no art. 7.º da LAT e art. 4.º das Condições Gerais da Apólice, excluído o direito à reparação;
8. Ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação violou, entre outros, o disposto no art. 7.º da LAT e nos arts. 44.º e 155.º do RSTCC, art. 8.º do D.L. n.º 441/91, de 14/11, no art. 11.º da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, e no art. 4.º do D.L. n.º 348/93, de 1 de Outubro.»

O autor contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta concluiu que a revista deve ser negada, parecer que, notificado às partes, não suscitou resposta.

3. O objecto do recurso reconduz-se a saber se o acidente resultou da falta de observância de regras sobre segurança no trabalho por parte do autor e se este agiu com negligência grosseira, ou seja, se não há lugar ao direito à reparação, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II
1. O tribunal recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:
1) O autor, no dia 20 de Setembro de 2003, pelas 14H30, quando procedia às obras de restauração de uma casa de habitação sita em ..., Anadia, pertencente a BB, foi vítima de acidente de trabalho;
2) Naquele dia e hora, o autor encontrava-se no telhado da referida casa de habitação a trabalhar com uma pequena grua fixa ao telhado, a içar os materiais do solo para o 1.º andar;
3) A queda do autor foi, assim, do telhado para o solo, duma altura de cerca de 7 metros;
4) O acidente ocorreu na casa de habitação de BB, em ..., Anadia, quando o autor exercia a actividade de pedreiro na reconstrução da referida casa de habitação;
5) O autor caiu do telhado para o solo e, por causa disso, sofreu traumatismo do dorso lombar, da bacia e das pernas e feridas inciso-contusas no couro cabeludo e na face;
6) Em consequência do acidente, recebeu assistência e tratamento no Hospital José Luciano de Castro, em Anadia, tendo sido transferido para os HUC;
7) Neste Hospital, foi submetido a intervenção cirúrgica em 2/10/2003, com redução da fractura do ilíaco esquerdo e osteossíntese com 2 parafusos;
8) Como consequência directa e adequada, resultaram dores à mobilização da coluna vertebral, da bacia e das pernas, diminuição da força muscular e incapacidade de extensão completa das pernas;
9) Dando origem a que o autor, de acordo com o exame médico de fls. 6[5], efectuado n[o] Tribunal [do Trabalho de Águeda], estivesse com incapacidade temporária absoluta de 20/9/2003 a 1/7/2004;
10) No referido exame, foi-lhe arbitrada, em consequência das lesões relatadas nos artigos 8.º, 10.º e 11.º da petição inicial (5, 7 e 8 supra), incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual e incapacidade permanente parcial para o trabalho em geral com o coeficiente de 10%, a partir da alta conferida a 1/7/2004;
11) No entanto, em consequência das referidas lesões, o autor ficou afectado apenas de incapacidade permanente parcial de 14,5%, a partir de 2/7/2004;
12) Na data do acidente, o autor auferia a remuneração mensal de 776,98 euros;
13) O autor, à data do acidente, havia transferido para a ré a responsabilidade civil decorrente de acidentes de trabalho, por contrato de seguro [de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes] titulado pela apólice [n.º] 11.00841985;
14) Até à presente data, o autor não recebeu da ré qualquer quantia;
15) Em sede de conciliação, a ré reconheceu a existência e caracterização do acidente como sendo de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente e o salário auferido pelo sinistrado à data do acidente;
16) Mas não aceitou o grau de desvalorização, nem a sua qualificação como IPATH, nem o período de incapacidade atribuído pelo Ex.mo Perito Médico;
17) Por isso, não aceitou pagar o montante do subsídio de elevada incapacidade, nem qualquer indemnização ou quantia referente aos valores da pensão anual e vitalícia nem aos períodos de incapacidades temporárias que o autor reclama;
18) O autor AA é beneficiário do Centro Distrital de Segurança Social de Aveiro, com o n.º 11163195121;
19) O beneficiário esteve com baixa médica subsidiada, no período de 20 de Setembro de 2003 a 18 de Setembro de 2004;
20) Pagou o reclamante ao autor, a título de subsídio de doença, a quantia de 2.810,50 euros;
21) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidos em 1) e 2), o autor caiu de uma pequena plataforma, pelo espaço por onde entrava e saía o material para a reconstrução do telhado;
22) A referida plataforma tinha, dos lados, protecção/resguardo em madeira;
23) Da parte da frente, por onde o autor caiu, não era possível a colocação de resguardo, pois era o espaço por onde entrava e saía o material;
24) Não tinham sido montados uma rede de protecção contra quedas e cintos de segurança ligados a uma linha de vida inamovível;
25) Se o autor tivesse utilizado os meios de protecção adequados, designadamente o cinto de segurança, o acidente dos autos não teria ocorrido ou pelo menos não teria tido tão graves consequências;
26) Um trabalhador prudente teria verificado que não era seguro trabalhar na plataforma de um telhado a 7 metros de altura, sem um dispositivo de protecção, designadamente sem cinto de segurança;
27) A baixa médica referida em R) [correspondente ao facto assente 19)] foi consequência das lesões sofridas pelo autor no acidente destes autos, mas apenas até 1/7/2004.

Examinado o acervo factual dado por assente, verifica-se que as afirmações contidas nos factos 25) e 26), referindo-se a «meios de protecção adequados» e a «um trabalhador prudente», contêm matéria substancialmente conclusiva, com um inquestionável sentido jurídico e que se integra no thema decidendum, pelo que não podem subsistir no elenco da matéria de facto a considerar.

Assim, nos termos do n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, as respostas contidas nos factos assentes 25) e 26) devem ter-se por não escritas.

Será, pois, com base no acervo factual anteriormente delimitado que hão-de ser resolvidas as questões suscitadas no presente recurso.

2. A sentença proferida em primeira instância entendeu que «[a]s soluções indicadas no corpo do artigo 44.º do Regulamento citado [Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil] não eram praticáveis nem eficazes para o trabalho na extremidade do telhado onde se fazia a entrada de materiais — e, por isso, não estava protegida pelos guarda-corpos — pelo que se mostrava necessário o uso do cinto de segurança».

E, prosseguindo, logo concluiu: «[é] certo que, no caso concreto, não se mostra “descaracterizado” o acidente, isto é, não se mostra que o sinistrado tenha actuado dolosamente ou com negligência grosseira. No entanto, atendendo ao estatuto “híbrido” do sinistrado, basta a inobservância das regras de segurança com negligência simples para excluir a cobertura dos danos pela seguradora laboral.»

O acórdão recorrido, por seu lado, considerou que, no caso concreto, não se descortinava «norma que impusesse directamente a utilização pelo sinistrado de cinto de segurança, pelo que este não estava obrigado, por lei, a fazê-lo», acrescentando que, «no contexto factual provado, não é possível concluir que o sinistrado agiu com comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, que o seu comportamento foi temerário em alto e relevante grau e que, exclusivamente, por causa disso o acidente ocorreu», tendo concluído não haver lugar à descaracterização do acidente como acidente de trabalho.

A seguradora aduz, porém, que «[f]icou, […], mais do que demonstrado que o Recorrido violou as regras de segurança e que agiu de forma temerária e com negligência grosseira, que a conduta do Recorrido foi a única causa do acidente dos autos, tal como ficou demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta do sinistrado e o acidente e lesões sofridas, pelo que não podia deixar de estar, nos termos do disposto no art. 7.º da LAT e art. 4.º das Condições Gerais da Apólice, excluído o direito à reparação».

2.1. O direito dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde recebeu expresso reconhecimento constitucional na alínea c) do n.º 1 do artigo 59.º da Lei Fundamental, prevendo a alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito constitucional, o direito dos trabalhadores à assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou doenças profissionais.

O acidente dos autos ocorreu em 20 de Setembro de 2003, por isso, no plano infraconstitucional aplica-se o regime jurídico da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2000, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 41.º, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (Regulamento da Lei de Acidentes de Trabalho), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A /99, de 22 de Setembro.

O sinistrado, à data do acidente, trabalhava como pedreiro, por conta própria, sendo, pois, um trabalhador independente, nos termos do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 100/97, e tinha transferido para a ré a responsabilidade civil por acidentes de trabalho (n.º 13 da matéria de facto assente), por força do disposto nos artigos 3.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, e 1.º do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio, que estabelecem que os trabalhadores independentes são obrigados a efectuar um contrato de seguro de acidentes de trabalho que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na citada Lei n.º 100/97 para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares.

Refira-se que o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 159/99 dispõe que «[o] seguro de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes rege-se, com as devidas adaptações, pelas disposições da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e diplomas complementares, salvo no que adiante especificamente se refere» e que diz respeito, em concreto, ao âmbito territorial do seguro (artigo 3.º), meios de prova (artigo 4.º), condições de resolução (artigo 5.º), conceito de acidente (artigo 6.º), simultaneidade de regimes (artigo 7.º), participação do acidente (artigo 8.º), remuneração (artigo 9.º), actualização das pensões (artigo 10.º) e contra-ordenação relativa ao não acatamento da obrigatoriedade de seguro (artigo 11.º).

O n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, com a epígrafe «Descaracterização do acidente», estabelece que não dá direito a reparação, entre outros casos, o acidente «[q]ue for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei» [alínea a)] e aquele «[q]ue provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado» [alínea b)].

Também a apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes, aprovada pela Norma n.º 14/99-R, de 16 de Dezembro, estipula na alínea g) do n.º 1 do seu artigo 4.º que, além dos acidentes excluídos pela legislação aplicável, não ficam, em caso algum, abrangidos por aquele contrato de seguro «os acidentes que sejam consequência de falta de observância das disposições legais sobre segurança, higiene e saúde no local de trabalho».

Por sua vez, o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99 esclarece que «[p]ara efeitos do disposto no artigo 7.º da lei, considera-se existir causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pela entidade empregadora da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la» (n.º 1) e que deve entender-se por negligência grosseira «o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão» (n.º 2).

Em geral, considera-se temerário, um comportamento perigoso, arriscado, imprudente, audacioso, arrojado, intrépido, que não tem fundamento (cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. XXXI, Editorial Enciclopédia, L.da, Lisboa, Rio de Janeiro, Agosto de 1978, p. 175, e Dicionário da Língua Portuguesa, Dicionários Editora, 8.ª edição, Porto Editora, 1998, p. 1578).

A mera culpa ou negligência traduz-se na violação de um dever objectivo de cuidado ou diligência, sendo comum distinguir os casos em que o agente prevê a produção do resultado lesivo como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação (representa um puro vício de vontade), daqueles que, por inconsideração, descuido, imperícia ou ineptidão, o agente não concebe a possibilidade do resultado lesivo se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação (representa um vício de representação e de vontade).

No primeiro caso fala-se de negligência consciente, no segundo de negligência inconsciente.

A par das apontadas modalidades de negligência, é tradicional a distinção entre negligência grave, leve e levíssima, em função da intensidade ou grau da ilicitude (a violação do cuidado objectivamente devido) e da culpa (a violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais).

Nesse mesmo plano de consideração, a lei acolheu a figura da negligência grosseira que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.

Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares.

A negligência grosseira, que corresponde à anteriormente denominada «falta grave e indesculpável» [alínea b) do n.º 1 da Base VI da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965], deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta.

Assim, para que se verifique a apontada exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um acto ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento.

2.2. Importa examinar, por ordem cronológica, as regras sobre segurança no trabalho que a recorrente aponta como tendo sido violadas.

2.2.1. O Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, que foi aprovado pelo Decreto n.º 41.821, de 11 de Agosto de 1958, prevê as normas de segurança a observar no trabalho da construção civil.

A recorrente invoca os artigos 44.º e 155.º do referido Regulamento.

O artigo 44.º respeita às medidas de protecção a adoptar nas obras em telhados, inserindo-se no título III, epigrafado «Obras em telhados».

Segundo o artigo 44.º, «[n]o trabalho em cima de telhados que ofereçam perigo pela inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas, tomar-se-ão medidas especiais de segurança, tais como a utilização de guarda-corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador e tábuas de rojo» (n.º 1), sendo que, «se as soluções indicadas no corpo do artigo não forem praticáveis, os operários utilizarão cintos de segurança providos de cordas que lhes permitam prender-se a um ponto resistente da construção» (§ 2.º).

Por seu turno, o artigo 155.º prevê que, «[o] pessoal das obras tomará as precauções necessárias em ordem à segurança própria ou alheia, abstendo-se de quaisquer actos que originem situações de perigo».

2.2.2. O Decreto-Lei n.º 441/91, de 14 de Novembro, conforme resulta da respectiva nota preambular, trata-se de uma lei quadro, que visou, não só dotar o País de um quadro jurídico global que garantisse uma efectiva prevenção de riscos profissionais, mas também dar cumprimento às obrigações do Estado decorrentes da ratificação da Convenção n.º 155 da OIT, sobre segurança, saúde dos trabalhadores e ambiente de trabalho, e adaptar a ordem jurídica interna à Directiva do Conselho (89/391/CEE), de 12 de Junho de 1989, relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho.

Este diploma contém os princípios que visam promover a segurança, higiene e saúde no trabalho, nos termos do disposto nos artigos 59.º e 64.º da Constituição (artigo 1.º), aplica-se a todos os ramos de actividade, nos sectores público, privado ou cooperativo e social [artigo 2.º, n.º 1, alínea a)], aos trabalhadores por conta ou ao serviço de outrem e aos respectivos empregadores [artigo 2.º, n.º 1, alínea b)] e aos trabalhadores independentes [artigo 2.º, n.º 1, alínea c)], considerando-se como tal «a pessoa singular que exerce uma actividade por conta própria» [artigo 3.º, alínea b)].

Ora, extrai-se do seu artigo 8.º que «[o] empregador é obrigado a assegurar aos trabalhadores condições de segurança, higiene e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho» (n.º 1), devendo aplicar as medidas necessárias para prevenir a ocorrência de acidentes ou para atenuar as suas consequências (n.º 2), sendo que o trabalhador independente é equiparado ao empregador, «[p]ara efeitos do disposto no presente artigo e com as devidas adaptações» (n.º 6).

Nos termos do n.º 2 daquele artigo 8.º, o empregador deve: na concepção das instalações e processos de trabalho, proceder à identificação dos riscos previsíveis, combatendo-os na origem, anulando-os ou limitando os seus efeitos, de forma a garantir um nível eficaz de protecção [alínea a)]; integrar no conjunto das actividades da empresa, estabelecimento ou serviço e a todos os níveis a avaliação dos riscos para a segurança e saúde dos trabalhadores, com a adopção de convenientes medidas de prevenção [alínea b)]; dar prioridade à protecção colectiva em relação às medidas de protecção individual [alínea f)]; dar instruções adequadas aos trabalhadores [alínea n)]; ter em consideração se os trabalhadores têm conhecimentos e aptidões em matéria de segurança e saúde no trabalho que lhes permitam exercer com segurança as tarefas de que os incumbir [alínea o)].

Por outro lado, comanda o mesmo artigo 8.º que, na aplicação das medidas de prevenção, deve o empregador mobilizar os meios necessários, bem como o equipamento de protecção que se torne necessário utilizar, tendo em conta, em qualquer caso, a evolução da técnica (n.º 3).

Em suma, o Decreto-Lei n.º 441/91 consagra uma explícita obrigação do trabalhador independente de aplicar as medidas necessárias para prevenir a ocorrência de acidentes, devendo adoptar as medidas de protecção colectiva e de protecção individual que se mostrem adequadas.

No desenvolvimento da regulamentação anunciada no n.º 2 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 441/91, foi editado o Decreto-Lei n.º 348/93, de 1 de Outubro, que visou transpor para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 89/656/CEE, do Conselho, de 30 de Novembro, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de protecção individual, que constitui a terceira directiva especial, na acepção do n.º 1 do artigo 16.º da Directiva n.º 89/391/CEE, do Conselho, de 12 de Junho, e atende aos princípios orientadores da Comunicação da Comissão n.º 89/C328/02, de 30 de Novembro, relativa à avaliação do ponto de vista de segurança dos equipamentos de protecção individual.

De harmonia com o Decreto-Lei n.º 348/93, entende-se por equipamento de protecção individual todo o equipamento, bem como qualquer complemento ou acessório, destinado a ser utilizado pelo trabalhador para se proteger dos riscos, para a sua segurança e para a sua saúde (n.º 1 do artigo 3.º), o qual deve ser utilizado quando os riscos existentes não puderem ser evitados ou suficientemente limitados por meios técnicos de protecção colectiva ou por medidas, métodos ou processos de organização do trabalho (artigo 4.º), devendo todo o equipamento de protecção individual, segundo o n.º 1 do seu artigo 5.º, «[e]star conforme com as normas aplicáveis à sua concepção e fabrico em matéria de segurança e saúde» [alínea a)], «[s]er adequado aos riscos a prevenir e às condições existentes no local de trabalho, sem implicar por si próprio um aumento de risco» [alínea b)], «[a]tender às exigências ergonómicas e de saúde do trabalhador» [alínea c)] e «[s]er adequado ao seu utilizador» [alínea d)].

De acordo com o artigo 7.º seguinte, a descrição técnica do equipamento de protecção individual, bem como das actividades e sectores de actividade para os quais aquele pode ser necessário, é objecto de portaria do Ministro do Emprego e da Segurança Social, tendo a Portaria n.º 988/93, de 6 de Outubro, dado execução a esse preceito.

Consoante o Anexo II daquela Portaria, intitulado «Lista indicativa e não exaustiva dos equipamentos de protecção individual», são adequados à protecção contra quedas, os equipamentos ditos «antiquedas», os equipamentos com travão «absorvente de energia cinética» e os dispositivos de preensão do corpo (cintos de segurança).

2.2.3. Posteriormente, a Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, editada ao abrigo do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho (alterado pela Lei n.º 113/99, de 3 de Agosto, e revogado pelo Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro), veio estabelecer as prescrições mínimas de segurança e de saúde nos locais e postos de trabalho dos estaleiros temporários ou móveis, ou seja, nos locais onde se efectuam trabalhos de construção de edifícios e de engenharia civil, estipulando no n.º 11 que «[s]empre que haja risco de quedas em altura, devem ser tomadas medidas de protecção colectiva adequadas e eficazes ou, na impossibilidade destas, de protecção individual, de acordo com a legislação aplicável, nomeadamente o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil» e que, «[q]uando, por razões técnicas, as medidas de protecção colectiva forem inviáveis ou ineficazes, devem ser adoptadas medidas complementares de protecção individual, de acordo com a legislação aplicável».

Por conseguinte, resulta globalmente das normas destinadas a garantir a segurança no trabalho que o uso do cinto de segurança é obrigatório, para além dos casos especialmente previstos, quando o trabalhador estiver exposto a um risco efectivo de queda livre e esse risco não possa ser evitado ou suficientemente limitado por meios técnicos de protecção colectiva.

3. No que releva para o caso em apreço, provou-se que, à data do acidente, o autor «procedia às obras de restauração de uma casa de habitação» [facto assente 1)] e quando se encontrava «no telhado da referida casa de habitação a trabalhar com uma pequena grua fixa ao telhado, a içar os materiais do solo para o 1.º andar» [facto assente 2)], caiu «duma altura de cerca de 7 metros» [facto assente 3)].

Mais se apurou que «[n]as circunstâncias de tempo e lugar referidos em 1) e 2), o autor caiu de uma pequena plataforma, pelo espaço por onde entrava e saía o material para a reconstrução do telhado» [facto assente 21)], que «[a] referida plataforma tinha, dos lados, protecção/resguardo em madeira» [facto assente 22)], que «[d]a parte da frente, por onde o autor caiu, não era possível a colocação de resguardo, pois era o espaço por onde entrava e saía o material» [facto assente 23)] e que «[n]ão tinham sido montados uma rede de protecção contra quedas e cintos de segurança ligados a uma linha de vida inamovível» [facto assente 24)].

Como resulta da aludida factualidade, provou-se que o sinistrado, na ocasião do acidente, executava actividade laboral sujeita a um efectivo risco de queda.

Mas também ficou demonstrado que, no local do acidente, foram instalados meios de protecção colectiva, concretamente, uma plataforma de trabalho que tinha, dos lados, protecção/resguardo em madeira, o que afasta a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança estipulada no § 2.º do artigo 44.º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, a qual só emerge quando as soluções indicadas no corpo do mesmo artigo não forem praticáveis.

Aliás, no mesmo sentido comanda o n.º 11 da Portaria n.º 101/96.

Por outro lado, a instalação no telhado da referida plataforma de trabalho está em consonância com o disposto nas normas acolhidas no artigo 8.º, n.os 1 e 2, alíneas a), b) e f), do Decreto-Lei n.º 441/91, sendo que o equipamento de protecção individual, conforme o estatuído no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 348/93, deve ser utilizado quando os riscos existentes não puderem ser evitados ou suficientemente limitados por meios técnicos de protecção colectiva ou por medidas, métodos ou processos de organização do trabalho.

É certo que a referida plataforma de trabalho, na parte da frente, por onde o autor caiu, não dispunha de resguardo, pois era o segmento por onde entrava e saía o material para a reconstrução do telhado, e que não foram montados rede de protecção contra quedas e cintos de segurança ligados a uma linha de vida inamovível.

Sucede, porém, que apenas se apurou que o sinistrado, quando se encontrava na plataforma de trabalho, que tinha resguardos laterais, caiu ao solo de uma altura de 7 metros, desconhecendo-se a razão dessa queda, que, por si, abarca realidades muito mais amplas do que uma queda motivada por desequilíbrio do sinistrado.

Não se pode, por isso, sustentar que a queda do sinistrado foi causada pela alegada inobservância de regras de segurança no trabalho, dada a já sublinhada falta de prova da dinâmica do acidente.
Cabia à recorrente alegar e provar os factos conducentes a essa conclusão, ónus que não se mostra cumprido (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).

Não se tendo provado que o acidente resultou da falta da observação de regras sobre segurança no trabalho, não se mostram preenchidos os pressupostos da descaracterização do acidente previstos na alínea a) do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, bem como na alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º da apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes.

4. Resta ajuizar se, no caso, se verifica a descaracterização do acidente com fundamento em negligência grosseira do sinistrado, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.

A este propósito, o acórdão recorrido teceu as considerações seguintes:

«Para chegar à descaracterização pela negligência grosseira era necessário percepcionar o modo concreto como o acidente ocorreu e que conduziu à queda.
Desconhece-se, todavia, como sucedeu. Aquilo que precipitou a queda do sinistrado e que permitiria analisar o grau de exposição ao risco genérico de queda, a partir da sua actuação concreta - se temerária, se casual, se precipitada por causas concorrentes.
Assim, não é possível concluir pela culpa grave, apenas pela não adopção de cinto de segurança.
Por outro lado, desconhecendo-se aquelas causas concretas (o “filme” completo do evento não foi alegado), não é possível também detectar no comportamento do sinistrado a causa exclusiva do acidente (tal como o n.º 2 do artigo 7.º exige para que seja possível a descaracterização).
Assim, no contexto factual provado, não é possível concluir que o sinistrado agiu com comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, que o seu comportamento foi temerário em alto e relevante grau e que, exclusivamente, por causa disso o acidente ocorreu.
Era à ré seguradora, como facto impeditivo do direito do autor, que cabia o ónus da alegação e prova da correspondente matéria excludente (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
Por isso não há lugar à descaracterização do acidente como acidente de trabalho.
O que significa que o sinistro tem de ser qualificado como acidente de trabalho, face ao preceituado no artigo 6.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, por remissão do artigo 2.º do DL n.º 159/99, de 11 de Maio.»

Tudo ponderado, considera-se que o entendimento acabado de transcrever respeita as normas legais ao caso aplicáveis, concretamente, o disposto no artigo 7.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 100/97, pelo que não há motivo para alterar o julgado.
III
Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente (artigo 446.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 10 de Outubro de 2007
Pinto Hespanhol (relator)
Vasques Dinis
Bravo Serra