Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
517/08.9JACBR.C1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: AGRAVANTE
CÔNJUGE
CULPA
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
FINS DAS PENAS
FRIEZA DE ÂNIMO
HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
ILICITUDE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
MOTIVO FÚTIL
PREVENÇÃO ESPECIAL
PREVENÇÃO GERAL
REFLEXÃO SOBRE OS MEIOS EMPREGADOS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - A jurisprudência do STJ tem-se pronunciado, uniformemente, no sentido de que é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas no n.º 2 do art. 132.º do CP, se bem que valorativamente equivalentes, que revelem a especial censurabilidade ou perversidade do comportamento do agente. E, por outro lado, apesar da descrição dos factos poder apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do preceito, não é só por isso que o crime de homicídio, cometido, se deva ter logo por qualificado (cf. Acs. de 13-02-1997, Proc. n.º 986/96, de 21-05-1997, Proc. n.º 188/97, de 10-12-1997, Proc. n.º 1207/97, de 18-02-1998, Proc. n.º 1086/97, de 03-06-1998, Proc. n.º 301/98, e de 08-07-1998, Proc. n.º 646/98).
II - Mostra-se ultrapassada uma concepção do crime ancorada só num elemento puramente objectivo, correspondente à ilicitude, e outro subjectivo, integrador da culpa, tendo a dogmática penal passado a distinguir, ainda no campo da ilicitude, entre um desvalor da acção e um desvalor do resultado. A ilicitude deixou de ser só a desaprovação pela ordem jurídica, de uma situação criada com a lesão de certo bem jurídico, e passou a incluir, nessa desaprovação, também, a forma como tal situação surgiu, por obra do agente. Ou seja, no desvalor da acção passou a incluir-se um juízo de desaprovação, em abstracto, resultante do modo como o crime foi cometido.
III - Para além da lesão ou da colocação em perigo do objecto da acção, o que integra o desvalor de resultado, a ilicitude compreende ainda, no desvalor da acção, modalidades externas do comportamento do agente, bem como circunstâncias que radicam na individualidade da sua pessoa. Daí até que se tenha passado a falar também, a este propósito, de um desvalor da acção referido ao facto, ao mesmo tempo que de um desvalor da acção referido ao autor.
IV - Caso as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do art. 132.º do CP fossem taxativas e de aplicação automática, estar-se-ia simplesmente perante uma qualificação do homicídio, atenta a ilicitude acrescida. Concretamente por via do desvalor da acção, e não por via de um maior desvalor do resultado, já que, sendo o bem vida um valor absoluto e eminentemente pessoal (para a ordem de valores constitucional e portanto para o direito penal, não pode haver vidas humanas mais valiosas que outras), causar a morte de uma pessoa esgota, só por si, o desvalor do resultado (e tendo em mente o disposto na al. l) do n.º 2 do art. 132.º do CP, o facto da vítima ocupar um cargo especial, traduzir-se-á no aumento do desvalor da acção).
V - Como a estruturação do preceito recorreu a exemplos padrão, no seu n.º 2, meramente ilustrativos da cláusula geral de agravação que está enunciada no n.º 1, fica afastada a concepção, segundo a qual, a qualificação ficaria a dever-se a um acréscimo de ilicitude.
VI - O preenchimento dos exemplos padrão nem é sempre necessário, porque pode a qualificação derivar de um circunstancialismo equivalente também merecedor de especial censurabilidade ou perversidade, nem é suficiente, porque para além do preenchimento de qualquer das alíneas do n.º 2 do art. 132.º em foco, sempre importará verificar, no caso, a tal especial censurabilidade ou perversidade do agente. O que tudo nos confronta com uma qualificação por via da culpa acrescida.
VII - O modo de cometimento do crime, pela motivação que a ele presidiu, a forma ou intensidade como foi executado, ou ainda pelas qualidades pessoais do agente ou da vítima, tornam-no mais grave. E mais grave porque a conduta daquele agente foi mais reprovável, tendo em conta a distância que separa o crime cometido daqueles outros, em relação aos quais se possa dizer que encontra eco “a convicção geral do que são motivos atendíveis ou a que é mais difícil resistir”, nas palavras de Curado Neves.
VIII - Em qualquer caso, a especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido. Traduz também um modo próprio do agente estar em sociedade, e, por tal via, inclusivamente, uma perigosidade merecedora de particular atenção.
IX - Ao direito penal interessam as emoções na medida em que se traduzam em actos externos. Daí que não seja ao direito penal que cabe censurar as emoções (e sentimentos) vividos, antes seja tarefa sua censurar a falta de controlo possível dessas emoções, quando desembocam no acto ilícito. E é pressuposto da culpa a existência de tal controlo, ainda que indirecto e parcial, por parte do agente que não tenha sido declarado inimputável.
X - Tem sido apontada, como via de controlo das emoções, a revisão de crenças e juízos de valor inapropriados, o que implica a revisão dos fins e desejos que lhes estão associados. Na verdade, a emoção é irracional quando se não adequa aos planos de vida do agente, e é socialmente desadequada quando leva ao crime. Por outro lado, como forma de controlo da conduta propriamente dita, provocada pelas emoções, costuma indicar-se a manipulação (alteração ou afastamento) dos contextos que se saiba propiciarem a acção criminosa.
XI - A razão de ser da agravação prevista na al. b) do n.º 2 do art. 132.º do CP é a de que, para o comum das pessoas, os laços afectivos estabelecidos, designadamente pela via do casamento, são um factor de refreamento, que não existiria quando a potencial vítima é outra qualquer pessoa. A conduta do arguido é mais censurável se esteve casado com a vítima durante 15 anos e se desse casamento nasceram 4 filhos, então com idades entre os 18 meses e os 10 anos, o que deveria ter funcionado como travão para a sua acção.
XII - Quanto à qualificativa da al. e) do n.º 2 deste dispositivo, para se avaliar se um motivo é fútil tem de se relacionar a gravidade do comportamento com o móbil do crime. E então, se nenhum motivo justifica causar a morte de outrem (daí ser crime), a grande desproporção entre o que se elege como motivo da acção e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das concepções éticas correntes, da sociedade. A razão do cometimento do crime tem um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este.
XIII - Não se verifica esta qualificativa quando o que esteve por detrás da conduta altamente censurável do arguido foi a sua revolta, perante a nova situação para-conjugal da ex-mulher, que se propusera conviver com o novo companheiro e com os filhos do arguido, e na casa que foi a sua. Esta conduta revela baixeza de carácter. No entanto, se o homicídio por motivo fútil pressupõe sempre baixeza de carácter, esta pode muito bem revelar-se noutro contexto, que não o da acção por motivo fútil.
XIV - Mostra-se preenchida a al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP, reveladora de que agiu com reflexão sobre os meios empregados e com grande frieza de ânimo, se resultou apurado que o arguido resolveu voltar a Portugal, logo após se ter instalado em Espanha, que percorreu largas centenas de kms até à sua casa em Portugal, que foi logo buscar a arma do crime que municiou e que se dirigiu em seguida, pela 1 h da manhã, para a casa onde estavam a ex-mulher, o seu novo companheiro e os filhos do arguido.
XV - Acresce que todo o circunstancialismo criado pelo arguido à roda da prática do crime o colocaram numa posição de superioridade, e sobretudo reduziram de modo importante as possibilidades de defesa e resistência das vítimas. Estas não previram que o arguido, recém-chegado a Espanha, voltasse para Portugal nos dias seguintes. Era 1 h da manhã, as vítimas estavam na cama, o arguido começou logo por rebentar a tiro a porta de entrada, depois a que dava acesso ao quarto onde elas se encontravam e disparou em seguida para as matar.
XVI - Como decorre do art. 40.º do CP, a pena assume agora, entre nós, um cariz utilitário, no sentido eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa. Ao julgador não compete retribuir a culpa o que não impede o legislador de agravar um ilícito típico por força de circunstâncias inerentes à culpa.
XVII - Quanto aos fins utilitários da pena, importa referir que, se o art. 40.º do CP, optou por cumular a defesa dos bens jurídicos com a reintegração do agente na sociedade, não podemos deixar de ver, nesta última, uma finalidade especial preventiva, em versão positiva, e, na dita defesa de bens jurídicos, um fim último que se há-de socorrer do instrumento da prevenção geral.
XVIII - Se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reintegração do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar, por um lado, exclui que a expressão “em função da culpa do agente”, constante do n.º 1 do art. 71.º do CP, possa ser vista, como uma recuperação de propósitos retributivos enquanto tais.
XIX - Por outro lado, reflecte, de um modo geral, a seguinte lógica: a partir da moldura penal abstracta encontra-se uma “submoldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos com atenção às expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual, nas palavras de Figueiredo Dias, “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar”. Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva actuam os pontos de vista de reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico-normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A prevenção geral negativa ou intimidatória surge como uma consequência de todo este procedimento.
XX - O comportamento do arguido, traduzido nos crimes de homicídio perpetrados, com arma de fogo que não estava autorizado a usar, revela uma intensidade dolosa grande, em termos de dolo directo. Deve, todavia, ser feita uma clara distinção entre a pena a aplicar pelo homicídio que vitimou a ex-mulher do arguido e o que vitimou o seu companheiro, por concorrer em relação a ela a qualificativa da al. b) do n.º 2 do art. 132.º do CP e por a circunstância que vitimou o companheiro não mostrar a mesma intensidade dolosa. Assim, ao crime que vitimou a ex-mulher do arguido é de aplicar a pena de 18 anos de prisão, enquanto que é de fixar em 15 anos de prisão a pena a aplicar ao outro crime de homicídio.
Decisão Texto Integral:


AA, divorciado, operador de máquinas, nascido a 4/12/1970, em S João da Lourosa, Viseu, residente antes de preso em Oliveira de Barreiros, Viseu, foi julgado em processo comum e por tribunal colectivo, na única Secção Tribunal Judicial de Nelas, e condenado como autor de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts 131º e 132º, nºs 1 e 2, als b), e) e j) do C P, na pena de 20 anos de prisão, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts 131º e 132º, nºs 1 e 2, als e) e j) do C P, na pena de 18 anos de prisão, e como autor de um crime de detenção de arma ilegal, p. e p. pelo art 86 nºs 1 al c) da Lei nº 5/2006, de 23/2 (versão em vigor à data dos factos) na pena de 2 anos de prisão.
Em cúmulo, o arguido foi condenado na pena conjunta de 25 anos de prisão.
Foi ainda condenado a pagar, a título de indemnização cível, quantias que perfazem um total de € 85 000, acrescidas de juros de mora.
Interpôs recurso para o Tribunal da Relação que manteve o decidido, negando provimento ao recurso.
Interpôs novamente recurso para este Supremo Tribunal, que cumpre conhecer.

A – DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

A matéria de facto dada por provada quanto à matéria crime foi:

1. O arguido e a ofendida BB casaram entre si em 7.8.1993, tendo vividos juntos cerca de quinze anos, até 16.10.2008, data em que se divorciaram.

2. Deste casamento nasceram quatro filhos: J...M..., actualmente com onze anos de idade, as gémeas D...M... e D...M..., de seis anos, e M...J..., de dois anos de idade.

3. A relação conjugal sempre se pautou por comportamentos violentos por parte do arguido em relação à esposa, queixando-se esta, não raras vezes, pelo menos à sua mãe, das atitudes do marido e do receio de novos episódios de agressões físicas e psicológicas.

4. Era frequente a ofendida apresentar hematomas no corpo, resultantes das agressões infligidas pelo arguido.

5. Após o divórcio, o arguido mudou-se para uma casa sita na Rua Principal, nº 89, em Oliveira de Barreiros.

6. Na noite de 26.10.2008, o arguido viajou para Espanha, a fim de começar a trabalhar nesse país ao serviço da EPSA, tendo para tal arrendado um apartamento sito em Artojona, Navarra.

7. No dia 29.10.2008, o ofendido CC deslocou-se para casa da ofendida BB, a fim de aí pernoitar, pois com esta tinha iniciado uma relação amorosa, sendo intenção de ambos iniciarem uma vida comum, juntamente com os quatro filhos da ofendida.

8. Por diversos contactos telefónicos com a ofendida, o arguido teve conhecimento da nova relação da sua ex-mulher, bem como da deslocação do ofendido a Moreira de Baixo e das intenções da sua ex-mulher e de CC, que implicava uma permanente vivência deste com os seus filhos.

9. Nessa altura, o arguido já mantinha um relacionamento amoroso com DD, residente na Irlanda, encontrando-se aquela à data grávida de gémeos do arguido.

10. Ainda assim, revoltado com a nova vida que a ofendida tencionava levar e das implicações para os filhos, movido pelo ciúme e preocupado com o destino da casa de morada de família e com os seus filhos, o arguido logo decidiu regressar a Portugal, o que fez no dia 29 de Outubro de 2008, ao volante do seu veículo de marca BMW, de cor azul, com a matrícula ...-BS-....

11. Chegado a Portugal nessa noite, o arguido dirigiu-se à sua casa em Oliveira de Barreiros, onde se muniu de uma espingarda caçadeira, semi-automática, de calibre 12, de um cano, marca "Browning", modelo 2000, com o nº 621 RN30486, guardada naquela casa, bem como de vários cartuchos de calibre 12, introduzindo 3 cartuchos no carregador, e de imediato deslocou-se à residência da ofendida e dos seus filhos.

12.Chegado ao local, por volta da 1.00 hora da manhã do dia 30 de Outubro de 2008, o arguido estacionou o carro defronte à entrada principal do nº 76, e empunhando a caçadeira - que carregou com mais um cartuxo na câmara, levando os restantes cartuchos nos bolsos -, dirigiu-se à porta de entrada e, indiferente à hora tardia e ao descanso dos filhos, efectuou sem hesitar um disparo em direcção à fechadura da porta de entrada, introduzindo de imediato novo cartucho na câmara da espingarda, após o que empurrou a porta, conseguindo entrar em casa.

13. Dentro da moradia, e empunhando a arma, mantendo sempre o dedo no gatilho, o arguido dirigiu-se ao quarto da ofendida.

14. Encontrando a porta do quarto trancada, o arguido bateu violentamente com a arma contra a porta perto da fechadura, furando a primeira folha de madeira, e depois efectuou um disparo em direcção ó fechadura, que atingiu, no interior do quarto, com vários chumbos o ofendido CC, na zona abdominal.

15. De seguida, o arguido empurrou a porta e entrou no interior do quarto, onde encontrou a ofendida deitada com o filho, à data com 18 meses, e o seu actual companheiro.

16.Indiferente ao alarme provocado pela violência da sua chegada e pela exibição da caçadeira, sempre apontada, ordenou ao ofendido que ficasse imóvel, encostado a um canto do quarto.

17. Seguidamente, dirigiu-se à ofendida para que retirasse o braço de cima do filho, apontando-lhe a arma, o que esta fez, e retirou a criança da cama da mãe, segurando-a contra o seu peito com o seu braço esquerdo, mantendo em simultâneo a arma apontada, com o seu braço direito, sempre com o dedo no gatilho.

18. Aterrorizada, e temendo pela vida do filho, a ofendida levantou-se, cobriu-se com um lençol e dirigiu-se ao arguido, de braços esticados, pedindo-lhe o filho.

19. Então, o arguido apontou-lhe a arma, encostando-a ao peito da ofendida e, de imediato, na tentativa de defender a companheira, o ofendido CC ergueu-se e empurrou a cómoda existente no quarto na direcção do arguido, que a amparou com um pé.

20. Nessa altura, inesperadamente, o arguido, a curta distância da ofendida, disparou um tiro, atingindo-a na face, fazendo-a cair de imediato.

21. Acto seguido, e sempre com o filho ao colo, o arguido apontou a espingarda em direcção do ofendido CC, que conseguiu agarrar no cano da espingarda, puxando-a e tentando retirá-la ao arguido.

22. A determinada altura, o arguido conseguiu que o ofendido largasse o cano da espingarda, e disparou um tiro, atingindo-o no braço esquerdo, tendo-se de seguida desequilibrado.

23. Seguidamente, e sem qualquer constrangimento, o arguido disparou mais um tiro a curta distância do ofendido, atingindo-o na zona cervical, deixando-o prostrado no chão.

24. Seguidamente, dirigiu-se ao exterior da casa e disparou os restantes cartuchos que ainda tinha e, após, regressou ao interior, cobriu com um cobertor o corpo de CC e colocou a arma em cima do mesmo.

25. Dirigiu-se de seguida ao quarto onde se encontravam os restantes 3 filhos e, indiferente ao seu estado de pânico - em consequência do barulho dos diversos disparos e vozes da mãe ainda em vida -, ordenou-lhes que se vestissem para irem para casa da avó materna.
26. Após tudo isto, o arguido abandonou a residência, acompanhado pelos quatro filhos, levando-os no seu veículo para a casa da avó materna, sita na Rua das Amoreiras, nº..., em Moreira de Baixo.

27. Indiferente ao estado de pânico e permanente choro das crianças, o arguido deixou-as entregues à avó e encaminhou-se, a pé, em direcção a Canas de Senhorim, tendo entretanto sido interceptado nesse percurso por uma patrulha da GNR, que havia sido chamada ao local.

28. Com o disparo que efectuou sobre a ofendida BB, o arguido provocou-lhe múltiplas lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e da face, designadamente: solução de continuidade na região infra-orbitária esquerda, estrelada, medindo no total 6 cms. de eixo maior e 2,5 cms. de eixo menor, apresentando área central de formato arredondado, com bordos irregulares, invertidos e com contusão, medindo 2,5 cms. de diâmetro (orifício de entrada de projéctil de arma de fogo tipo cano longo), através do qual se visualizavam a cavidade bucal e o pavimento orbitário esquerdo; solução de continuidade ao longo da inserção do pavilhão auricular direito (região pré-auricular), orientada longitudinalmente, medindo 2,5 cms. de comprimento e 1,5 cms. de afastamento máximo dos bordos; mobilidade anormal e deformação ao nível de todos os ossos do crânio e face - fractura linear, com afundamento, estendendo-se da metade direita do osso frontal através da escama do osso temporal homolateral, até à metade direita do osso occipital; fractura linear com afundamento em "Y" de abertura direita do osso parietal esquerdo, estendendo-se à escama do osso temporal homolateral, onde termina; fractura multiesquirolosa de todos os ossos da base, com destruição completa do corpo do osso esfenóide, onde se encontrava uma bucha plástica da arma caçadeira; presença na massa encefálica, nomeadamente nos lobos temporal e occipital direitos, de múltiplos grãos de chumbo; múltiplas lacerações das meninges; extensa laceração dos lobos temporais, pedúnculos cerebrais, 3º ventrículo e pavimento dos ventrículos laterais, estendendo-se ao lobo occipital direito, visualizando-se esquírolas ósseas e múltiplos grãos de chumbo na massa encefálica, em maior número ao nível dos lobos temporal e occipital direitos; amolecimento acentuado do cerebelo e tronco vertebral; fractura multiesquerolosa de todos os ossos da face e da coroa do dente 25 (cf. relatório de autópsia de fls. 572 e segs.), as quais se dão aqui como integralmente reproduzidas, que foram causa directa e necessária da respectiva morte.

29. A BB apresentava ainda equimoses nos membros inferiores.

30. Com os disparos que efectuou sobre o ofendido CC o arguido provocou-lhe as seguintes lesões traumáticas: no pescoço, solução de continuidade de formato arredondado no terço médio da região cervical posterior (metade esquerda), com bordos invertidos e enegrecidos nos quadrantes superior, lateral esquerda e inferior, medindo 2,5 cms. de diâmetro (orifício de entrada de projéctil de arma de fogo); solução de continuidade de formato irregular, interessando as regiões cervicais anterior e lateral esquerda, medindo 11.5 cms. de eixo maior por 8 cms. de eixo menor (orifício de saída de projéctil de arma de fogo), com visualização de músculos, vasos sanguíneos e nervos cervicais lacerados; presença de bucha plástica de arma caçadeira e vários grãos de chumbo nessa região; laceração da veia jugular interna esquerda e da bainha carotídea esquerda, com extensa infiltração sanguínea subjacente; fissuras transversais da íntima da artéria carótida comum esquerda, imediatamente abaixo da sua bifurcação, e fissuras longitudinais ao nível do seu terço inferior; laceração do bordo lateral do músculo esternocleidomastoideu esquerdo, com extensa infiltração sanguínea adjacente; laceração do músculo escaleno posterior e extensa infiltração sanguínea dos músculos escalenos anterior e médio. Membro superior esquerdo: solução de continuidade irregular nos terços médio e inferior da região braquial anterior esquerda, com orla equimótica arroxeada nas suas vertentes proximal e lateral e orla escoriada, nos quadrantes distal e medial direitos, medindo 17 cms. de eixo maior por 10 cms. de eixo menor; visualização, através da solução de continuidade descrita, do úmero (íntegro), de extensa laceração do músculo bicipital, bem como de estruturas tendinosas e vásculo-nervosas; presença de um grão de chumbo no plano subcutâneo da solução de continuidade no quadrante supero-meclial direito; 4 escoriações lineares, paralelas entre si, oblíquas ínfero-lateralmente, nos terços proximal e médio da região braquial posterior esquerda, ocupando uma área com 15 cms, de eixo maior por 3,5 cms, de eixo menor; secção completa do nervo mediano e da artéria braquial do braço esquerdo. Estas lesões traumáticas cervicais e braquiais esquerdas (cf. relatório de autópsia de fls. 587 e segs., que se dá aqui como integralmente reproduzido), foram causa directa da morte de CC.

31. O ofendido apresentava ainda, na zona do abdómen, as seguintes lesões: equimose arroxeada na região dorsal (metade esquerda) medindo 4 cms. de eixo maior por 3 cms. de eixo menor; presença de escoriação na mesma região, medindo 1,S cms. de eixo maior por 1 cm. de eixo menor; área escoriada, dura, seca, deprimida e enegrecida, interessando o hipocôndrio esquerdo e flanco esquerdo do abdómen, medindo 20 cms. de eixo maior por 18 cms. de eixo menor; presença de múltiplas soluções de continuidade dispersas, de formato elíptico, medindo cada uma cerca de 5 mms. de eixo maior por 3 mm. de eixo menor, localizadas imediatamente acima e à direita da área anteriormente descrita ­orifícios de entrada de grãos de chumbo; tais grãos de chumbo, localizados no plano subcutâneo, apresentavam um trajecto da esquerda para a direita, de trás para a frente, sendo horizontal nos de localização superior e sensivelmente de cima para baixo nos de localização inferior; infiltração sanguínea do tecido celular subcutâneo e da aponevrose do músculo oblíquo externo esquerdo, nas áreas correspondentes às soluções de continuidade descritas.

32. Em consequência da acção violenta do arguido, ao longo do percurso por si percorrido, desde a entrada na habitação até ao quarto da ofendida, e no interior deste, foram encontrados vários cartuchos deflagrados, buchas de plástico, chumbos e esquírolas de madeira.

33. Os factos foram praticados no quarto ao lado do das três crianças, tendo aquelas vivenciado os sons violentos dos diversos disparos e conversas mantidas entre o arguido e as vítimas, sendo uma delas a sua mãe.

34. Os menores tiveram sempre plena consciência de que o intruso era o pai, e que abatera a mãe e actual companheiro, na presença do seu irmão de 18 meses.

35. Ao agir da forma descrita, o arguido sabia que atingia os corpos dos ofendidos em zonas vitais para a vida humana.

36. Sabia igualmente o arguido que, ao disparar aquela arma - que conhecia - àquelas curtas distâncias, em direcção às zonas corporais descritas, como desejou e fez, tiraria a vida a BB e a CC, o que também quis e conseguiu.

37. Nas circunstâncias supra descritas, o arguido disparou subitamente e de surpresa sobre as vítimas, que não puderam defender-se.

38. No momento dos disparos, os ofendidos não se encontravam munidos de qualquer tipo de arma, de fogo ou outra, nem tão-pouco de qualquer outro instrumento que pudesse servir como meio de agressão nem de defesa, do que tinha perfeito conhecimento o arguido.

39. Para atingir o seu objectivo, que conseguiu, o arguido surpreendeu as vítimas, ao introduzir-se na residência à hora e modo como o fez, indiferente à presença dos quatro filhos menores, e sempre alheio ao desespero e à agonia das vítimas.

40. Ao longo das suas acções, o arguido manteve o filho de 18 meses ao colo, enquanto disparava os diversos tiros sobre as vítimas, e sabia da presença dos três filhos menores, de seis e dez anos de idade, num quarto próximo.

41. O arguido quis e conseguiu tirar a vida a BB e a CC pelo facto daquela ir iniciar nova vida e este ir viver com a sua ex-mulher e com os seus filhos.

42. O arguido não é portador de licença de uso e porte de arma.

43. Quis, não obstante, trazer consigo e usar, nas condições atrás descritas, a aludida arma, para o que sabia não estar legalmente habilitado.

44. Agiu o arguido de forma livre e voluntária, ciente de ser a sua descrita conduta proibida e punida por lei.

Mais se provou:

45. Do certificado do registo criminal do arguido junto a fls. 655 a 660, consta o seguinte:
- em 20/12/1995 foi julgado e condenado nos autos de Processo Comum Singular nº 291/93 do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, por um crime de ofensas corporais simples e de dano, tendo o primeiro sido extinto por amnistia e no segundo na pena de 30 dias de multa à taxa diária de 500$00, ou em alternativa 20 dias de prisão, que seria perdoada nos termos do artº 8º, nº 1, aI. c) e 3, da Lei 15/94, tendo em 18/09/97 sido definitivamente declarada extinta;
- em 27/01198, foi condenado na Alemanha;
- em 31/10/2001 foi julgado e condenado nos autos de Processo Comum Singular nº 26/2001 do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, por um crime de desobediência simples e condução perigosa, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 700$00, no montante global de 105.000$00 ou em alternativa 100 dias de prisão subsidiária, tendo em 19/03/2004 sido declarada extinta;
- em 18/02/2004 foi julgado e condenado nos autos de Processo Sumário nº 221/03.4TBNLS do Tribunal Judicial de Nelas, por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 115 dias de multa, à taxa diária de C 5,50, no montante global de € 632,50 e ainda na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de doze meses, declarada extinta em 30/03/2005;
- em 25/09/2007 foi julgado e condenado nos autos de Processo Comum Singular nº 129/05.9GANLS do Tribunal Judicial de Nelas, por um crime de ofensa à integridade física, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 dias de multa à taxa diária de C 5,00, no montante global de € 600,00, tendo em 20/11/2007 sido declarada extinta.

46. O arguido tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade, e desde pequeno que trabalha, inicialmente na agricultura.

47. Entre Outubro de 2002 e 6 de Novembro de 2008 trabalhou como operador de máquinas, e depois como encarregado, para a "EPSA lnternacional, SA", com sede em Madrid, Espanha, tendo ao serviço desta empresa trabalhado pelo menos em Portugal (Chaves), Irlanda e Espanha.

48. Nesta empresa, sempre foi cumpridor e disponível, merecendo a confiança da entidade patronal.

49. O arguido não tem pais vivos, e tem duas irmãs, uma residente em Alcafache e outra emigrada na Alemanha.

50. No estabelecimento prisional, recebe visitas da sua irmã e de amigos.

51. É considerado por quem o conhece pessoa trabalhadora, respeitadora e um bom pai.



B – RECURSO PARA O S T J.

Em quatro páginas manuscritas, o arguido, devidamente representado por advogado, apresentou a motivação e conclusões do seu recurso para este Supremo Tribunal.
Em síntese, insurge-se contra a qualificação do seu comportamento, e designadamente contra a integração das al.s b), e) e j) do nº 2 do artº 132º do C P, que imputa a “excesso de zelo do tribunal de 1ª instância”.
Afirma a não verificação de “avidez” ou “prazer de matar” ou “motivo fútil” nos presentes homicídios, o que apontaria para a sua qualificação como homicídios simples do artº 131º do C P.
A final, refere: “Por outro lado, o Tribunal “a quo” sufragou sem crítica, quiçá por lapso, a tese de que o ora recorrente se quis apresentar à G N R de Canas de Senhorim o que seria um emblema [?] de arrependimento/remorso, ou se foi a G N R que o deteve por ela mesma”.
A seguir vêm as conclusões que são:

“1 O recorrente deveria ter sido punido nos termos do artº 131º do C P e não pelo normativo que foi aplicado.

2 A pena, consequentemente, deveria baixar significativamente.”

O Mº Pº respondeu doutamente, pronunciando-se sobre a técnica legislativa dos “exemplos-padrão” usada no artº 132º do C P, passando em revista os factos que integram as circunstâncias qualificativas do artº 132º do C P que foram colhidas pelas instâncias, debruçou-se sobre a medida da pena aplicada e finalizou com a afirmação de que o recurso não merecia provimento (fls. 1328 a 1339).
A assistente também respondeu, concluindo:

“A - Não causou admiração o recurso do arguido, AA, pois estamos crentes, que o mesmo não recorreu com a convicção de que não se tivesse feito Justiça, mas sim com a manifesta intenção de entorpecer a acção da Justiça.

B - O Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, confirmando a decisão do Tribunal da Ia instância, julgou com acerto e perfeita observância dos factos e da lei aplicável.

C - No essencial, as alegações do arguido, com a devida vénia, são meras conjecturas, sem apoio documental, factual e ou outro, não consubstanciando razões bastantes que levem à revogação do decidido no Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.

D - Certo é que, vem o arguido interpor recurso do Douto Acórdão, que julgou totalmente improcedente o recurso apresentado, mantendo o Acórdão recorrido incluindo todo o seu dispositivo, que o condenou pela prática de um crime de detenção ilegal de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86° n.°l, al. c) da Lei 5/2006 de 23/2, na pena de dois anos de prisão, pela prática em autoria material de um crime de homicídio qualificado, p.e p. pelos artigos 131° e 132°, n.° l e n.°2, alíneas b), e) e j), na pena de vinte anos de prisão e ainda pela prática em autoria material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131° e 132°, n.°l e n.°2, alíneas e) e j), na pena de dezoito anos de prisão, e em cúmulo jurídico, na pena única de vinte e cinco anos de prisão.

[As conclusões “E” a “J” que se seguem nada têm a ver com o recurso interposto para este Supremo Tribunal e a sua apresentação só se pode explicar pelo facto de a assistente ter aproveitado, fundamentalmente, a motivação e conclusões do recurso que havia sido interposto para o Tribunal da Relação e que repetiu em larga extensão].

E - O recorrente alicerça a defesa, no recurso interposto, em vectores como a nulidade em consequência de um deficiente exame crítico da prova, por referência ao art 374° do CPP; impugnação da convicção do tribunal, artigo 127° do CPP; errada qualificação jurídico-legal da factualidade provada referente aos artigos 131° e 132° do CP; medidas concretas das penas dos crimes que lhe são imputados, mutatis mutandis, crime de homicídio qualificado e crime de detenção de arma proibida.

F - Não podemos deixar de verificar que o Douto Tribunal, com a devida vénia, bem andou e em nada nos parece ter fundamento para proceder a pretensão invocada do recorrente.

G - Na verdade, a recorrida crê, no seu modesto entendimento, que o Douto Acórdão aqui em crise, cumpre o dever constitucional de fundamentação da sentença, pois, tal fundamentação basta-se, com enumeração dos factos provados e não provados; e com uma exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar esta, requisitos estes que cumpre rigorosamente, ao contrário do falsamente alegado pelo recorrente.

H - Com efeito, o Douto Acórdão, não só indica os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse naquele sentido.

I - Efectivamente, na formação da sua decisão o Douto Tribunal a quo enumera quase que, salvo devido respeito e melhor opinião, exaustivamente os depoimentos que foram levados em consideração para firmar a sua convicção, assim atendeu aos depoimentos prestados por M...R...P...,P...M...G...C...V..., M...S...C..., S...M...D...R..., A...S...R..., entre outros, como melhor consta a fls. do Douto Acórdão.

J - Deste modo, é nosso entendimento que, mais uma vez, o Douto Tribunal a quo, não violou ou de qualquer forma desrespeitou, o princípio da livre apreciação da prova, este princípio basilar do processo penal, pois como bem sabe o ora recorrente, toda a apreciação da prova e consequente valoração da mesma foi devidamente justificada no Douto Acórdão.

K - No que concerne à alteração da qualificação jurídico-penal defendida pelo recorrente, forçados somos a explanar, ainda que concisamente, os motivos pelos quais nos debatemos pela sua não procedência.

L - A qualificação do homicídio assenta num especial tipo de culpa, num tipo de culpa agravado, traduzido num acentuado desvalor da atitude do agente, que tanto pode decorrer de um maior desvalor da acção, como de uma motivação especialmente reprovável.

M - A frieza com que a conduta foi desencadeada e nela se persistiu, apesar da atitude de medo e impotência dos finados, conduzem à qualificação do crime de homicídio por revelarem especial perversidade e censurabilidade.

N - In casu, salvo devido respeito e melhor opinião, rezam já no Douto Acórdão aqui em crise, as razões que levaram, determinantemente, à qualificação do homicídio, pelo que reiterando em tudo o que neste foi vertido, bem andou o Douto Tribunal.

O - O arguido revelou uma conduta especialmente perversa, especialmente rejeitável, com frieza de ânimo inimaginável, razões da qualificação dos homicídios, que reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que as mortes foram causadas.

P - A circunstância qualificativa prevista na ai. e) do n.° 2 do artigo 132.° do CP - frieza de ânimo - destina-se a tutelar situações em que o agente se determine com calma na preparação e execução do ilícito, assim como persistência na sua resolução.

Q - Portanto, como se pode aferir do supra exposto, não podemos deixar de verificar que o Douto Tribunal, com a devida vénia, bem andou e em nada nos parece ter fundamento para proceder a pretensão invocada do recorrente.

R - A circunstância da frieza de ânimo traduz-se numa actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante as vítimas, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto.

Assim,
O Tribunal, salvo devido respeito e melhor opinião, e atenta a matéria dada como provada, julgou com acerto a causa em apreço, devendo o Douto Acórdão ser mantido na íntegra, e consequentemente produzir o mesmo todos os seus efeitos.”

O Mº Pº já neste Supremo Tribunal pronunciou-se pela manutenção do decidido, concluindo como se segue:

1. O arguido foi condenado, como autor de dois crimes de homicídio qualificado, p. e p., pelo artigos 131° e 132° n° 1 e 2, alíneas b), e) e j) (ofendida BB, sua ex-mulher), alíneas e) e j) (ofendido CC) e ainda por uma crime de detenção de arma ilegal, p. e p. pelo artigo 86° n° 1, c) da Lei 5/2006, de 23-02, nas penas parcelares de 20 anos de prisão, 18 anos de prisão e 2 anos de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 25 anos de prisão.
2. Atenta a matéria de de facto dada como provada, mostra-se totalmente descabido e mesmo chocante pretender, como faz o arguido, que as suas condutas sejam qualificadas como homicídio simples - artigo 131° do C. Penal.
3. As penas parcelares e a pena única de prisão aplicadas não merecem qualquer reparo, mostrando-se inteiramente justas, equilibradas e proporcionais, carecendo do mínimo fundamento qualquer intervenção correctiva do Supremo Tribunal de Justiça.
4. Termos em que, o acórdão recorrido haverá de ser mantido, nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso.”

Foi cumprido o artº 417º nº 2 do C P P e o arguido reiterou a posição já assumida de apenas estar incurso no crime do artº 131º do C P.
Colhidos os vistos foram os autos presentes a conferência.

C – APRECIAÇÃO

Cumpre conhecer duas questões: a da qualificação penal feita e a da medida das penas aplicadas.
Vejamos então.

a) Qualificação

1. - Começaremos por retomar, aqui, considerações que continuamos a ter por pertinentes, a propósito do crime de homicídio qualificado, em geral, e aduzindo algumas notas a propósito do chamado “crime passional”.

1. 1. Importa recordar a chamada técnica dos exemplos-padrão utilizada pelo legislador no artº 132º do C.P., e o facto de estarem em causa, pelo menos para parte muito significativa da doutrina, no seu nº 2, circunstâncias atinentes à culpa do agente e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente (assim Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, pag. 27, e para uma resenha da controvérsia, na doutrina, sobre se as circunstâncias em causa respeitam ao tipo de culpa ou ao tipo de ilícito, vide Teresa Quintela de Brito in “Direito Penal - Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, pag. 191 e seg.).
É possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas, se bem que valorativamente equivalentes, as quais revelem a falada especial censurabilidade ou perversidade. E, por outro lado, apesar da descrição dos factos considerados provados poder apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do nº 2 do artº 132º, não é só por isso que o crime de homicídio, cometido, deverá ter-se logo por qualificado. Interessa sim que ocorra uma “imagem global do facto agravada” (Figueiredo Dias ob.cit. pag. 26).
Como resulta da recensão feita no acórdão proferido no Pº 1224/08 desta 5ª Secção (Rel. Cons. Simas Santos), a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se pronunciado, uniformemente, neste sentido [cf. Acórdãos de 13.2.97 (Pº 986/96), de 21.5.97 (Pº 188/97), de 10.12.97 (Pº 1207/97), de 18.2.98 (Pº 1086/97), de 3.6.98 (Pº 301/98), de 8.7.98 (Pº 646/98), v g.].

1. 2. Esta posição não pode perder de vista o facto, de se mostrar ultrapassada uma concepção do crime ancorada num elemento puramente objectivo, correspondente à ilicitude, e outro subjectivo, integrador da culpa, tendo a dogmática penal passado a distinguir, sempre no campo da ilicitude, entre um desvalor da acção e um desvalor do resultado. A ilicitude deixou, pois, de ser só a desaprovação pela ordem jurídica, de uma situação criada com a lesão de certo bem jurídico, e passou a incluir, nessa desaprovação, também, a forma como tal situação surgiu, por obra do agente.
Ou seja, no desvalor da acção passou a incluir-se um juízo de desaprovação, em abstracto, resultante do modo como o crime foi cometido.
Para além da lesão ou da colocação em perigo do objecto da acção, o que integra o desvalor de resultado, a ilicitude compreende ainda, no desvalor da acção, modalidades externas do comportamento do agente, bem como circunstâncias que radicam na individualidade da sua pessoa. Daí até que se tenha passado a falar também, a este propósito, de um desvalor da acção referido ao facto, ao mesmo tempo que de um desvalor da acção referido ao autor (cf. v.g. Jescheck in “Tratado de Derecho Penal ” vol. I, pag. 323). Só a partir destes dados poderá, a nosso ver, ser abordada a construção dogmática escolhida pelo legislador para o crime do artº 132º do C P.
É que, caso as circunstâncias enunciadas no seu nº 2 fossem taxativas e de aplicação automática, estar-se-ia simplesmente perante uma qualificação do homicídio, atenta a ilicitude acrescida. Concretamente por via do desvalor da acção, e não por via de um maior desvalor do resultado, já que, sendo o bem vida um valor absoluto e eminentemente pessoal (para a ordem de valores constitucional e portanto para o direito penal, não pode haver vidas humanas mais valiosas que outras), causar a morte de uma pessoa esgota, só por si, o desvalor do resultado (e tendo em mente o disposto na al. l) do nº 2 do art. 132º do C P, o facto da vítima ocupar um cargo especial, traduzir-se-á no aumento do desvalor da acção).
Ora, como a estruturação do preceito recorreu a exemplos padrão, no seu nº 2, meramente ilustrativos da cláusula geral de agravação que está enunciada no nº 1, difícil se torna, a nosso ver, aceitar a concepção, segundo a qual, a qualificação ficaria a dever-se a um acréscimo de ilicitude. Como se viu, o preenchimento dos exemplos padrão nem é sempre necessário, porque pode a qualificação derivar de um circunstancialismo equivalente também merecedor de especial censurabilidade ou perversidade, nem é suficiente, porque para além do preenchimento de qualquer das alíneas do nº 2 do artº 132º em foco, sempre importará verificar, no caso, a tal especial censurabilidade ou perversidade do agente. O que tudo nos confronta com uma qualificação por via da culpa acrescida.
Já noutro registo, e como nos diz Teresa Serra, “Sozinha, a cláusula geral é passível de críticas, em sede da função de garantia da lei penal, em virtude da sua grande indeterminação. Por seu turno, a enumeração exemplificativa do nº 2, tomada isoladamente, é susceptível de reparo, ou constituir uma violação à proibição da analogia em direito penal” (in “Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pag. 122”). Mas a salvaguarda da garantia ínsita no princípio da legalidade, e, por essa via, da constitucionalidade do preceito em foco, ver-se-á realizada, se “A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente [estiver] perfeitamente delimitada aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente ao Leitbild dos exemplos-padrão enunciados no nº 2” (idem pag. 123).
No contexto desta preocupação garantística, os exemplos-padrão, mesmo que não factualmente verificados, têm ainda assim a função de referência, na valoração negativa de circunstâncias não especificamente previstas, mas que autorizam o homicídio qualificado atípico. O não preenchimento de qualquer das alíneas do referido nº 2, e o aproveitamento de outros elementos agravativos, será legítimo, por se situar num espaço de congruência com os exemplos padrão, justificando-se à mesma a especial desaprovação da conduta.
O modo do cometimento do crime, pela motivação que a ele presidiu, a forma ou intensidade como foi executado, ou ainda pelas qualidades pessoais do agente ou da vítima, tornam-no mais grave. E mais grave porque a conduta daquele agente foi mais reprovável, tendo em conta a distância que separa o crime cometido daqueles outros, em relação aos quais se possa dizer que encontra eco “a convicção geral do que são motivos atendíveis ou a que é mais difícil resistir” (a expressão é de Curado Neves in “Indícios de culpa ou tipos de ilícitos?” – “Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, autores vários, pag. 255).
Por outras palavras, a especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido. Traduz também um modo próprio do agente estar em sociedade, e, por tal via, inclusivamente, uma perigosidade merecedora de particular atenção.

1. 3. A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, “com efeito de indício” (expressão de Teresa Serra, in ob. cit. pag. 126), interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado. Ou seja, importa verificar a ausência, no caso, de circunstâncias que neutralizem, ou compensem em sentido inverso, o peso agravativo dos exemplo- padrão (ou circunstâncias equivalentes), e que, no limite, poderiam apontar, até, para o homicídio privilegiado do artº 133º do C P.
É a propósito desta última questão que se justifica uma breve incursão pelo tema do chamado “homicídio passional”, entendido como o crime cometido, em regra, “repentinamente, na sequencia de um impulso emocional súbito” (cf. J. Curado Neves in “A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais”, pag. 693).
Ao direito penal interessam as emoções na medida em que se traduzam em actos externos. Daí que não seja ao direito penal que cabe censurar as emoções (e sentimentos) vividos, antes seja tarefa sua censurar a falta do controlo possível dessas emoções, quando desembocam no acto ilícito. E é pressuposto da culpa a existência de tal controlo, ainda que indirecto e parcial, por parte do agente que não tenha sido declarado inimputável.
Tem sido apontada, como via de controlo das emoções, a revisão de crenças e juízos de valor inapropriados, o que implica a revisão dos fins e desejos que lhes estão associados. Na verdade, a emoção é irracional quando se não adequa aos planos de vida do agente, e é socialmente desadequada quando leva ao crime. Por outro lado, como forma de controlo da conduta propriamente dita, provocada pelas emoções, costuma indica-se a manipulação (alteração ou afastamento) dos contextos que se saiba propiciarem a acção criminosa.
Com D. González Lagier, diremos depois que, “As emoções não excluem uma eleição antes a possibilitam, mas quanto mais intensas são, mais reduzem o campo de actuação da nossa razão. A nossa razão não vive sem as emoções mas chega uma altura em que se basta a si própria. Se a emoção vai mais além, a sua ajuda transforma-se em entorpecimento.” (in “Emociones Responsabilidad y Derecho” Marcial Pons, pag. 149).
E, já no domínio da valoração do comportamento, prossegue aquele autor: “de acordo com a tese clássica, própria da concepção mecanicista, as emoções especialmente intensas diminuem a responsabilidade porque reduzem o controle que temos das nossa acções, e portanto, a nossa culpa. Esta tese, porém, não pode ter em conta as novas figuras que agravam a responsabilidade pelas nossas acções já que motivadas por uma emoção inapropriada”. É referida então a postura, segundo a qual, “o efeito das emoções na responsabilidade penal tem que ver, não com a intensidade da emoção e sim com o seu conteúdo. O relevante é saber se as emoções expressam juízos de valor adequados ou não” (idem, pag. 152).
No fundo, é este o sentido da exigência de que a emoção violenta seja “compreensível” para que opere a atenuante especial do artº 133º do C P.
Em consonância, diz-nos J. Curado Neves que “não é, ou pelo menos não é só, a intensidade da emoção associada, mas a sua compatibilidade com o “código de valores individual” que dita a sua [do agente] passagem à acção (in “A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais”, pag. 663).
E já em jeito de síntese final das suas antecedentes considerações, refere este autor a propósito dos crimes passionais: ”Como fomos vendo ao longo deste estudo, estes resultam geralmente de um conflito familiar ou amoroso. Na maior parte dos casos o homem mata a mulher que pretende por termo ao matrimónio ou à relação amorosa. Este acto tem normalmente origem em características da personalidade do agente e desenvolvimento da relação. Caracteristicamente o marido ou amante ocupa ou pretende uma posição de superioridade no casal e não consegue suportar a inversão da relação de poderes que culmina no termo da relação por iniciativa da mulher. Neste caso não há razão para desculpar o agente, total ou parcialmente. A pretensão do marido não merece qualquer tipo de protecção, pois ele procura realizar objectivos ilegítimos, como seja a restrição da liberdade da sua parceira, maxime negando-lhe a possibilidade de escolher livremente em que relações amorosas se quer envolver e que tipo de vida familiar pretende levar. Ao invés de uma suposição ainda corrente, o homicida passional não mata por amor, quando muito por amor próprio” (idem pag. 715).

2. Já é tempo de descermos ao caso em apreço, o que tem que passar, antes de mais nada, pelo enquadramento da sequência fáctica que a Relação veio a dar por provada e que interessa mais directamente ao preenchimento das alíneas elencadas para qualificar o crime.

2. 1. O artº 132º nº 2 al. b) do C P diz-nos que “É susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade (…) a circunstância de o agente (…) Praticar o facto (…) contra ex-cônjuge”.
Importa ter em conta que a razão da agravação é a de que, para o comum das pessoas, os laços afectivos estabelecidos, no caso pela via do casamento, são um factor de refreamento, que não existiria quando a potencial vítima é outra qualquer pessoa. Ora, no presente caso, os laços afectivos decorrentes de quinze anos de casados um com o outro, e o facto de desse casamento terem nascido quatro filhos, então com idades entre os 18 meses e os 10 anos de idade, deveriam ter funcionado obviamente como travão para a sua acção. Não aconteceu, e por isso o seu acto é mais censurável. Acresce todo um condicionalismo ainda relacionado com relação conjugal do recorrente e a ex-mulher que reforça a pontada censurabilidade. Disse-se no acórdão recorrido a dado passo:
“O certo é que dos factos apurados resulta que o relacionamento do arguido e da ofendida foi sempre pautado pela violência. O arguido mostrou sempre um carácter ciumento e violento e ficou revoltado quando teve conhecimento da nova relação da esposa e nem o facto de ele próprio já ter, também, uma nova relação sendo até que a sua nova companheira estava grávida de gémeos, o conteve. Assim, quando soube que o ofendido ia pernoitar na casa morada de família com a sua ex-mulher, dois dias depois de chegar a Espanha aonde ia começar a trabalhar e poucos dias depois de ter sido decretado o divórcio, regressou a Portugal. Aqui chegado, muniu-se de uma espingarda, dirigiu-se, de imediato a casa da ofendida, rebentou com a porta de entrada a tiro e a tiro rebentou com a porta do quarto e mata a ofendida e o seu companheiro, indiferente aos seus filhos que se encontravam no quarto ao lado e ao filho de 18 meses que se encontrava junto da mãe e que o arguido pegou ao colo. O arguido, nem nos filhos pensou. Se o casamento tinha terminado. Se não havia ciúmes, se a regulação de poder paternal estava devidamente efectuada com o seu acordo o que é que justifica tal atitude?
O arguido apresenta uma personalidade fria, insensível e distanciada do Direito que, necessariamente, a sua culpa, tão elevada, só encontra reflexo adequado nos parâmetros da especial censurabilidade ou perversidade.
A ofendida viveu com ele havendo desta união quatro filhos comuns. .
Quatro filhos, que o obrigava a ter uma ligação de respeito e tolerância com a mãe dos seus filhos, com quem teria sempre que manter, pelo menos uma relação cordial, quanto mais não fosse, pelo bem dos seus filhos.
No entanto, o arguido, esquecendo todos os laços que tinha movido pelo ciúme e revoltado com a nova relação da ex-mulher, dispôs-se a vir de Espanha e acabar com a vida da ofendida e do seu companheiro e isso já mostra a sua frieza, confirmam-na e põem-na em relevo as circunstâncias e o modo como actuou surpreendendo a ofendida e companheiro, no seu quarto e disparando contra os mesmos.
O arguido actuou com um grau de culpa de tal modo acentuado, que concretiza de forma inequívoca os conceitos de especial perversidade e censurabilidade.”

2. 2. A qualificativa da al. e) do nº 2 do artº 132º do C P refere entre outras circunstâncias o facto de o agente ter agido por motivo fútil. Como é sabido, “fútil” quer dizer insignificante, sem relevo.
Para Maia Gonçalves é um motivo “que não tem qualquer relevo, que não chega a ser motivo, que não pode sequer razoavelmente explicar (e portanto muito menos de algum modo justificar) a conduta. Trata-se de um motivo notoriamente desproporcionado para ser sequer um começo de explicação da conduta” (in “Código Penal Português” pag. 515). Segundo Figueiredo Dias o motivo torpe ou fútil é um motivo da actuação “avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade [que] deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pela vida humana” (in “Comentário Conimbricense do Código Penal” Tomo I, pag. 32 e 33).
Para se avaliar se um motivo é fútil tem que se relacionar a gravidade do comportamento com o móbil do crime. E então, se nenhum motivo justifica causar a morte de outrem (daí ser crime), a grande desproporção entre o que se elege como motivo da acção a aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das concepções éticas correntes, da sociedade. A razão do cometimento do crime tem um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este.
Quanto a esta circunstância, pode ler-se no acórdão recorrido:
“Como já referimos, o arguido pretende fazer crer que a sua preocupação em voltar a Portugal o bem estar dos filhos e o destino da casa de morada de família. Então porque é que dias antes acordou em que os menores ficassem à guarda da mãe? Mais se a preocupação era tanta primeiro resolvia os problemas com os filhos e depois ia para Espanha. Não, o arguido, regressa, à noite, vai à casa aonde se encontram os filhos motivo da sua grande preocupação, derruba a porta a tiro, entra no quarto da mãe dos seus filhos, tira o filho de 18 meses que aí se encontrava a dormir e procede aos disparos letais sempre com o filho de 18 meses ao colo, sabendo que os outros filhos estavam no quarto ao lado e que estavam conscientes do que se estava passar, completamente indiferente ao estado de pânico e permanente choro das crianças e esquecendo que retirava a vida à mãe dos seus filhos, um ponto de equilíbrio em qualquer criança, um marco na vida de qualquer criança. Era grande a preocupação do arguido.
O arguido apesar de ter uma companheira não viu com bons olhos que a sua ex-mulher pudesse refazer a sua vida, com os seus filhos e na casa morada de família e foi isso que o moveu na sua actuação.
O arguido agiu de modo egoísta, intolerante, prepotente, mesquinho, mostrando até insensibilidade moral e desprezo pela vida humana.
Agiu, pois, o arguido de modo fútil.”

Vemos que no caso em apreço, depois de chegar a Espanha, mais concretamente a Artojona, em Navarra, a 26 de Outubro, para aí passar a trabalhar, “revoltado com a nova vida que a ofendida tencionava levar e das implicações para os filhos, movido pelo ciúme e preocupado com o destino da casa de morada de família e com os seus filhos, o arguido logo decidiu regressar a Portugal, o que fez no dia 29 de Outubro de 2008, ao volante do seu veículo de marca BMW, de cor azul, com a matrícula ...-BS-...” (ponto 10).
Ou seja, o que parece estar por detrás da conduta altamente censurável do recorrente é a sua revolta, perante a nova situação para-conjugal da ex-mulher, que se propusera conviver com o novo companheiro CC e com os filhos do recorrente, e na casa que fora a sua.
Existe um motivo que se nos afigura louvável, a preocupação com o bem-estar dos filhos. Mas alia-se a isso a relutância em os ver coabitar com o novo companheiro da BB, a também vítima CC . Junta-se a isso a revolta por ver a ex-mulher refazer a sua vida, e sobretudo na casa que fora a sua. Acrescenta-se a isso o ciúme, pese embora o arguido também já ter refeito, aparentemente, a vida relacionando-se com uma irlandesa de quem já esperava dois gémeos. O arguido revela com o seu comportamento intransigência, amor-próprio exacerbado, desrespeito pela liberdade alheia.
A partir do divórcio com o arguido, a BB não poderia ficar impedida de refazer a sua vida. Aliás o poder paternal em relação aos filhos estava já regulado. E também é evidente que matar uma pessoa só porque não nos agrada o que ela faz, e podia fazer, não pode admitir-se.
Claro que, com isto, poder-se-á dizer que o arguido revelou alguma baixeza de carácter. No entanto, se o homicídio por motivo fútil pressupõe sempre baixeza de carácter, esta pode muito bem revelar-se noutro contexto, que não o da acção por motivo fútil. A nosso ver, no presente caso, a especial censurabilidade da conduta do recorrente não advém de o motivo da sua acção ser fútil. Entendemos, portanto, que se não verifica a dita qualificativa da al. e) do nº 2 do art- 132º do C P.

2. 3. Importa então ver se se verifica ainda o preenchimento da circunstância da al. j) do nº 2 do artº 132º do C P.
De acordo com este normativo, a agravação resulta de o arguido “Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”. Foram as seguintes as palavras do acórdão recorrido a propósito:
“A frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na execução (ac.STJ de 30/9/99, proc. 36/99-3ª sec.SASTJ, nº33, pg 94.
Como refere o Prof Eduardo Correia em “Direito Criminal, II, 1965, pg 301, “É que, diz-se, tal firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada revela uma forte intensidade da vontade criminosa. Efectivamente, a circunstância de mediar um grande intervalo de tempo entre o momento em que, definitivamente, a resolução criminosa se formou e a sua execução, ou seja a pertinácia da resolução, a mora habens, mostra não só que o criminoso teve uma larga oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu totalmente a sensibilidade e sobretudo que a força de vontade criminosa é de tal maneira intensa que o agente, largo tempo depois de tomar a resolução, pratica o respectivo crime sem hesitação como mero déclancher da decisão tomada prévia e longinquamente. Certo que o critério referido envolve uma relativa margem de incerteza, na medida em que o tempo de permanência de uma resolução previamente tomada, até à sua execução, considerado necessário para revelar uma especial perigosidade ou a possibilidade de uma normal intervenção de contra-motivos, só pode ser fixado por apelo às regras da experiência. Mas isto corresponde à natural fragilidade de todos os conceitos que se relacionam com os factos humanos e pode ser corrigido pela existência formal da fixação de um certo lapso de tempo, especialmente quando à premeditação correspondam efeitos agravantes particularmente graves”.
Ora, no caso vertente, o arguido, desde que toma a decisão de regressar a Portugal deixa transparecer uma resolução criminosa e toda a sua conduta leva a esse fim.
O arguido, dois dias depois de se encontrar em Espanha onde iria começar a trabalhar, regressa a Portugal depois de tomar conhecimento que a sua ex-mulher pretende iniciar uma vida em comum com o seu companheiro. Faz uma deslocação de algumas centenas de Kms. Chega à sua residência vai buscar a sua arma de caça semi-automática de calibre 12 e vários cartuchos alguns deles logo introduzidos no carregador. Dirige-se, de seguida, a Moreira de Baixo, à casa onde estavam os ofendidos e os seus filhos. Entra na casa da ofendida mediante um disparo que rebentou a fechadura da porta principal dessa casa e introduziu-se no quarto onde se encontrava a ofendida deitada com o filho de 18 meses e o seu companheiro, mediante arrombamento da porta (batendo com a arma, disparando um segundo tiro através da porta e usando da força física para forçar a abertura). De arma empunhada e com dedo no gatilho retirou a criança à mãe e apontou a arma à ofendida e efectuou mais um tiro, o terceiro, agora «de contacto», na cabeça da ex-mulher e dá mais um tiro, desta vez sobre o ofendido CC (já ferido por diversos bagos de chumbo do disparo efectuado através da porta do quarto), atingindo-o no braço esquerdo para, logo de seguida, voltar a disparar sobre este ofendido e sempre com a criança ao colo e sempre indiferente quer “ao alarme provocado pela violência da sua chegada e pela exibição da caçadeira, quer ao terror provocado nas vítimas, quer ao estado de pânico dos três filhos (o J...M..., de 11 anos, e as gémeas D... e D..., de 6 anos de idade) que, num quarto anexo, vivenciaram os sons violentos dos diversos disparos e as conversas mantidas entre o arguido e as vítimas e que sempre tiveram plena consciência de que o intruso era o pai e que este abatera a mãe e o actual companheiro, na presença do filho mais novo”.
Sem dúvida que o arguido agiu com frieza de ânimo já que toda a sua conduta revela calma na sua preparação e execução e persistência na sua resolução. Demonstra completa indiferença pela vida humana e completo desrespeito e insensibilidade pelos sentimentos dos filhos.,
Toda a actuação do arguido é um exemplo extremo de frieza de ânimo e revela uma especial censurabilidade e perversidade”.

Repetiremos que o recorrente acabava de se instalar em Espanha quando resolveu voltar a Portugal. Porquê? Por causa da nova situação amorosa da ex-mulher.
Teve que percorrer, da Rioja até à sua casa, em Portugal, largas centenas de quilómetros. Foi logo buscar a arma do crime que municiou, e dirigiu-se em seguida para a casa onde estava a BB com o desfecho atrás mencionado. Era uma hora da manhã. A sequência dos factos que consta dos nºs 12 a 27 da matéria de facto provada revela, para além do mais, uma enorme insensibilidade, pelo que, a acrescer à reflexão sobre os meios empregados para cometer o crime, o arguido mostrou também grande frieza de ânimo. O recorrente revelou um carácter defeituoso, e parece perfilhar um código de valores individual, de que atrás se falou, que se afasta de modo muito claro dos padrões éticos socialmente aceitáveis.
Daí o preenchimento, da al. j) do nº 2 do artº 132º do C P.

2. 4. Diga-se ainda que todo o circunstancialismo criado pelo arguido à roda da prática do crime o colocaram numa posição de superioridade, e sobretudo reduziram de modo importante as possibilidades de defesa e resistência das vítimas.
Desde logo porque estas não terão previsto que o arguido, recém chegado a Espanha, voltasse para trás nos dias seguintes. Era 1 hora da manhã, as vítimas estavam na cama, o arguido começou logo por rebentar a tiro a porta de entrada, depois a que dava acesso ao sítio onde elas se encontravam e disparou contra elas, completamente indefesas, para as matar.
O CC foi logo atingido no abdómen com o tiro que rebentou a porta do quarto. O recorrente ordenou-lhe que ficasse imóvel encostado a um canto do quarto. Ele no entanto empurrou a cómoda para impedir a morte da BB, sem surtir qualquer efeito porque o arguido a amparou com o pé. Certo que, já depois de ter executado a ex-mulher, o arguido apontou a espingarda ao CC. Este agarrou-lhe no cano da arma o que não impediu que fosse atingido num braço. Novo disparo a curta distância na zona cervical e o CC ficava prostrado no chão. Sai para a rua, faz novos disparos, volta à casa, cobre o CC com um cobertor e põe-lhe a arma em cima.
Se se não encontra preenchida a circunstância da al.c) do nº 2 do artº 132º do C P (“Praticar o acto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez”) efectiva-se um modo de proceder merecedor de censura equivalente, que responderia por uma qualificação atípica do homicídio.

b) A medida da pena

Passemos então à medida da pena a aplicar, retomando considerações já constantes doutras decisões nossas, sem que tenhamos motivo para alterar o ponto de vista expresso.

1. Dir-se-á que o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, para escolha da pena concreta a aplicar, não pode deixar de se prender com o disposto no artº 40º do C. P., nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. E, em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa. Ao julgador não compete retribuir a culpa o que não impede o legislador de agravar um ilícito típico põe força de circunstâncias inerentes à culpa.

Do mesmo modo, a chamada “expiação” da culpa ficará remetida para a condição de uma simples consequência positiva, quando tiver lugar, mas não pode ser arvorada em finalidade primária da pena. Sabido que, por expiação, se entende a compreensão da ilicitude e a aceitação da pena que cumpre, pelo próprio arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade. Para alguns, até, expiação reconduz-se à ideia de “conversão moral” do delinquente.

1. 1. Quanto aos fins utilitários da pena, importa referir que, se o artº 40º do C.P. optou por cumular a defesa dos bens jurídicos com a reintegração do agente na sociedade, não podemos deixar de ver, nesta última, uma finalidade especial preventiva, em versão positiva, e, na dita defesa de bens jurídicos, um fim último que se há-de socorrer do instrumento da prevenção geral.

É que, “a defesa de bens jurídicos” é, ela mesma, em geral, o desiderato de todo o sistema repressivo penal, globalmente considerado, e não um fim que se possa considerar privativo das penas. Mais, toda a política social de prevenção da criminalidade não visa senão a protecção de bens jurídicos. Daí que a expressão deva ser entendida, em sede de fins das penas, como uma referência à prevenção geral, designadamente positiva ou de integração.

Procuremos fazer, sinteticamente, algumas precisões, desde logo quanto ao conteúdo da prevenção geral que se quer prosseguir com a pena.

- Não está excluído que essa prevenção geral se faça sentir na sua vertente negativa ou intimidatória, devidamente controlada pela medida da culpa assacável ao agente. No entanto, a finalidade mais importante da pena, como instrumento de controlo social ao serviço da defesa dos bens jurídico-penais, analisa-se na vertente positiva da prevenção geral. Não se dirige portanto, enquanto tal, ao delinquente, ou aos potenciais delinquentes, mas sim ao conjunto dos cidadãos.

- No que foi, a seu tempo, o dizer de Günther Jakobs, encara-se a prevenção geral como processo de “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida”, como “modelo de orientação para os contactos sociais”, ou ainda como “réplica perante a infracção da norma, executada à custa do seu infractor” (In “Derecho Penal. Parte General, Madrid, Marcial Pons, pág. 8 e segs.). Aqui se desenham, já, as vertentes que podem assinalar-se à própria prevenção geral positiva: um efeito de confiança, outro pedagógico e ainda um efeito de revivescência do próprio ordenamento jurídico.

- O efeito de confiança efectiva-se quando os cidadãos verificam que o direito se cumpre e por essa via se sentem mais seguros. É um efeito de satisfação das expectativas depositadas na seriedade da advertência, ínsita na previsão normativa penal. O efeito pedagógico retira-se da criação ou do reforço da auto-censura individual, daqueles que têm que refrear os seus impulsos para cometer crimes e não os cometem. Os quais experimentam, mais ou menos conscientemente, uma satisfação dupla: com o sofrimento do criminoso que tem que cumprir pena por ter cometido o crime, e com o facto de o próprio ter resistido ao crime, subtraindo-se a qualquer pena. Do ponto de vista lógico, também a norma jurídica, enquanto tal, para se afirmar como obrigatória, necessita de atribuir consequências que se vejam efectivadas, para o caso de não ser observada.

- Sendo junto da comunidade que se pretende fazer sentir o efeito da prevenção geral positiva, a auscultação das expectativas comunitárias, ou do sentimento jurídico colectivo, torna-se ponto de passagem obrigatório quando o julgador é chamado a seleccionar medidas de pena. Nesta tarefa, para além de falta de dados empíricos, em geral, não pode olvidar-se que a opinião pública reage muitas vezes de modo exclusivamente emocional, é flutuante, tende a procurar encontrar bodes expiatórios, ou então, deixa-se conduzir pela comunicação social de modo acrítico.

Também se não podem escamotear as dificuldades que se deparam ao juiz para decifrar o sentimento jurídico colectivo, numa sociedade plural orientada por valorações sociais tantas vezes contraditórias. Sociedade que pode confinar-se à comunidade local, ou a todo o país, se a comunicação social se fez eco do crime. E, tantas vezes, o julgador tem perante si um crime só conhecido de um círculo muito restrito de pessoas, ou que causou um impacto que não vê manifestar-se.

- Daí que procure recolher, para uso próprio, apenas o sentimento comunitário que, a seu ver, se justifique que deva ser atendido. Isto por um lado. Por outro, poderá ser obrigado a ter em conta expectativas comunitárias, que ele julgador configura que provavelmente viriam a ser desencadeadas, caso o crime tivesse sido do domínio público, nos casos em que o não foi.

1. 2. Quanto à prevenção especial, sabe-se como pode ela operar através da “neutralização-afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida, e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa (Vide, a propósito, v.g. Roxin in “Derecho Penal-Parte Especial”, Tomo I, Madrid, Civitas, 1997, pág.86). Modificação que se não pode impor, obviamente, mas que se pode e deve proporcionar. Vemos no desiderato legal da “reintegração do agente na sociedade” a vertente positiva da prevenção especial, sem se olvidar a utilidade dos efeitos negativos do afastamento, em casos muito contados, tal como, ainda, da intimidação ao nível individual.

Por isso é que a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de finalidades garantísticas, e só do interesse do arguido.

1. 3. Quando, pois, o artº 71º do C. P. nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele artº 40º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, (Cfr. “Direito Penal Português-As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, pags. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar, por um lado, excluirá que a expressão “em função da culpa do agente” possa ser vista, como uma recuperação de propósitos retributivos enquanto tais. Por outro lado, reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica:

A partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos com atenção às expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cfr. Idem pág. 229).

Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A prevenção geral negativa ou intimidatória surgirá como uma consequência de todo este procedimento.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir.

O nº 2 do artº 71º do C. P. manda atender, na determinação concreta da pena, “ a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime.

2. O comportamento do arguido, traduzido nos crimes de homicídio perpetrados, com arma de fogo que não estava autorizado a usar, revela uma intensidade dolosa grande, em termos de dolo directo. Além disso, pretender tirar a vida a alguém é querer atingir o bem jurídico mais valioso do nosso sistema penal, em congruência com a hierarquia de valores plasmada na Constituição. Provoca uma compreensível apreensão e um justificado sentimento de rejeição, por parte da população, pelo que, em termos de prevenção geral positiva, se fazem sentir exigências muito importantes. O comportamento assumido produziu necessariamente indignação e alarme públicos.

Em matéria de prevenção especial, os dados disponíveis também reclamam algumas exigências. O arguido tem um passado criminal que revela alguma associabilidade. Dano, ofensas corporais, desobediência, condução perigosa, condução em estado de embriaguês, são os crimes por que fora condenado. A isto haverá ainda que acrescentar a vida conjugal pretérita recheada de maus tratos para com a companheira. É legítimo concluir quer o arguido tem um temperamento violento.

A medida da pena pelo crime de homicídio qualificado, cuja moldura é de 12 a 25 anos de prisão, em relação ao crime que vitimou a BB apresenta um grau elevado da ilicitude, resultante, designadamente, da acumulação de circunstâncias qualificativas.
Deve ainda ser feita uma clara distinção entre a pena aplicada pelo homicídio que vitimou a BB e o que vitimou o CC, por concorrer em relação a ela, a circunstância da al. b), do nº 2, do artº 132º do C P., e a sequência fáctica que vitimou o CC não mostrar a mesma intensidade dolosa.
Quanto ao crime de detenção de arma proibida, do artº 86º, nº 1, al. c), da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, a pena aplicável é de prisão até cinco anos ou multa até 600 dias. A pena que foi aplicada por este crime foi de dois anos e ficou definitivamente fixada, porque irrecorrível de acordo com a al. f) do nº 1 do artº 400º do C P P.
Importa ponderar como atenuantes o facto de o recorrente ser um indivíduo que só tem o 6º ano de escolaridade, muito cedo ter começado a trabalhar, ter sido sempre esforçado para acorrer às necessidades da família, e ter angariado de facto proventos de que ela beneficiou. O arguido entregou-se às autoridades depois do cometimento do crime.
Por todo o exposto se entende que a pena aplicada pela prática do crime do artº 132º nº 1 e 2 al. b) e j) do C P que vitimou a BB se encontra algo inflacionada, devendo reduzir-se para dezoito anos de prisão. A pena a aplicar pelo crime do artº 132º nº 1 e 2 al. j) do C P que vitimou CC apresenta-se ainda mais inflacionada e deverá fixar-se nos quinze anos de prisão.

3. Importa agora refazer o cúmulo das penas parcelares eleitas.
É sabido que o C.P. de 1886 estabelecia, no seu artº 55º, uma catalogação de penas maiores por escalões, e, no artº 56º, seriava as penas correccionais, entre as quais se encontrava a pena de prisão de 3 dias a 2 anos. No artº 102º fixavam-se as regras de punição “da acumulação de crimes”, que traduziam uma distinção, no tratamento do concurso, consoante se estivesse perante a pequena, média ou grande criminalidade, e, por outro lado não concediam uma margem de manobra tão ampla, ao julgador, como aquela com que depois ele se veio a defrontar.
Dir-se-á, a traço muito grosso, que se estivessem em causa, por exemplo, várias penas até 2 anos de prisão, a pena única não ultrapassaria os 2 anos. Quanto aos crimes mais graves, procedia-se, por regra, indo buscar a pena única ao escalão imediatamente superior das penas maiores.
As regras, disponíveis então, teriam que desaparecer no novo Código, quanto mais não fosse em virtude da eliminação das categorias e escalões de penas.
Ora, à luz do nº 1 do artº 77º do C.P., para escolha da medida da pena única, importará ter em conta “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. E é apenas isto que directamente a lei nos dá como critérios de individualização.
Vem-se entendendo que, com tal asserção, se deve ter em conta, no dizer de Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão, e o tipo de conexão, que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos se reconduz a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).” (in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 291).
Apesar destas indicações da doutrina mais autorizada, não faltou quem defendesse que o ponto de partida para determinação da pena conjunta deveria ser o meio da sub-moldura disponível para efeito de cúmulo. Ou seja, metade da diferença entre a parcelar mais grave e a soma total das penas que entram no cúmulo. Outro modo de proceder, que persiste para alguns, como nos dá a entender P.P.Albuquerque, é o da eleição de 1/2 ou 1/3 da diferença apontada, em função da personalidade revelada, é dizer, da maior (1/2) ou menor (1/3) desconformidade ao direito da personalidade do agente (in “Comentário do Código Penal” pag. 244). Tudo com a preocupação de adopção de critérios que se revelassem o menos vagos possíveis, e proporcionassem, pois, maior segurança, em face da lei que temos, mas com evidente défice da flexibilidade, reclamada pela análise do caso concreto.
Não nos esqueçamos que a opção legislativa por uma pena conjunta pretendeu, por certo, traduzir, também a este nível, a orientação base ditada pelo artº 40º do C.P., em matéria de fins das penas. Daí que essa orientação base, que estabelece como fins da pena só propósitos de prevenção (geral e especial), e que atribui à culpa, uma função apenas garantística, de medida inultrapassável pela pena, essa orientação continuará a ser pano de fundo da escolha da pena conjunta.
Sem que nenhum destes vectores se constitua em compartimento estanque, é certo que para o propósito geral-preventivo interessará antes do mais a imagem do ilícito global praticado, e para a prevenção especial contará decisivamente o facto de se estar perante uma pluralidade desgarrada de crimes, ou, pelo contrário, perante a expressão de um modo de vida.
Interessará à prossecução do primeiro propósito a gravidade dos crimes, a frequência com que ocorrem na comunidade e o impacto que têm na sociedade, e à segunda finalidade a idade, o percurso de vida, o núcleo familiar envolvente, as condicionantes económicas e sociais que rodeiam o agente, tudo numa preocupação prospectiva, da reinserção social que se mostre possível.
E nada disto significará qualquer dupla valoração, tendo em conta o caminho traçado para escolher as parcelares, porque tudo passa a ser ponderado, só na perspectiva do ilícito global, e só na perspectiva de uma personalidade que se revela, agora, pólo aglutinador de um conjunto de crimes, e não enquanto manifestada em cada um deles.
Para usar expressões do Presidente desta 5ª Secção, Conselheiro Carmona da Mota, a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas.
Ora, este efeito “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos já aludidos critérios da “imagem global do ilícito” e da personalidade do arguido. Proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas.
Se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa[s] pena[s] parcelar[es] deverá contar para a pena conjunta. Contrariamente se as parcelares são poucas e cada um delas pesa muito no ilícito global.
No caso presente, acresce ainda outra condicionante, que é a do limite absoluto dos 25 anos de prisão, imposto pelo artº 77º nº 2 do C P.
É que, nos termos do artº 77º nº 2 do C P, a pena a aplicar em cúmulo tem como limite mínimo parcelar mais grave, que no caso é de vinte anos, e como limite máximo a soma das parcelares, não podendo ultrapassar evidentemente os 25 anos. No caso concreto, a soma aritmética dessas parcelares atingiria como se disse 39 anos.
Sabe-se que o referido limite absoluto dos 25 anos de prisão decorre da recusa da pena de prisão perpétua que o artº 30º nº 1 da Constituição impõe, porque haveria um número elevado de casos em que, mesmo sem se proceder à soma aritmética das penas, a pena conjunta aplicada em cúmulo poderia ser superior às expectativas normais de vida do condenado em questão.
Por outro lado, e sobretudo, tendo a pena entre nós um carácter exclusivamente utilitário, terá resultado claro para o legislador histórico que a reinserção social do delinquente não só se não obteria mais facilmente como só seria mesmo prejudicada, para além daquele marco dos 25 anos (o limite anterior era de 20 anos, e em vários países é de 30, como em Espanha e no Brasil).
Do mesmo modo, as expectativas comunitárias congruentes com a ordem de valores constitucional, de que não está ausente um princípio de humanidade, dispensarão pena superior.
O próprio legislador previu, para vários dos possíveis crimes singulares a entrar em cúmulo, uma moldura penal abstracta com o limite superior de 25 anos de prisão. Assim sendo, não competirá ao aplicador do direito fazer funcionar o efeito repulsivo atrás apontado, ao serviço da proporcionalidade, recuando perante a aplicação da pena máxima em cúmulo, por comparação com outro eventual cúmulo, em que a soma aritmética das parcelares fosse muito superior, certo que em ambos os casos as somas aritméticas ultrapassariam o limite dos 25 anos.
Operar assim, em nome ainda da proporcionalidade, só teria razão de ser numa perspectiva retributivista.
No caso concreto, ora em julgamento não estaria pois vedada a aplicação da pena máxima. O que não quer dizer que fosse a pena mais justa.
Diremos só, mais, que a gravidade do comportamento do arguido, foi por certo conhecida e comentada, não podendo deixar-se ficar na população a sensação de um sistema penal demasiado brando. A personalidade que o arguido revela, ainda aqui se dirá, é violenta, tem-lhe causado dissabores, mas pode ser mudada.

Tecidas estas considerações, e tudo ponderado, consideramos justa a aplicação ao arguido, em cúmulo, de uma pena de vinte e um anos de prisão.

D - DELIBERAÇÃO

Pelo exposto se decide no S T J e em conferência:
1) Considerar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido, e condená-lo pelo crime de homicídio qualificado do artº 132º nº 1 e 2 al. b) e j) do C P que vitimou BB na pena de dezoito anos de prisão.
2) Considerar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido, e condená-lo pelo crime de homicídio qualificado do artº 132º nº 1 e 2 al j) do C P que vitimou CC na pena de quinze anos de prisão.
3) Manter a pena de dois anos de prisão aplicada pelo crime do artº 86º, nº 1, al. c), da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, e refazendo cúmulo das três penas parcelares em que fica condenado, aplicar uma pena única conjunta, ao recorrente AA, de vinte e um anos de prisão.

Taxa de Justiça: 8 U C

Lisboa, 27 de Maio de 2010

Souto Moura (Relator)
Soares Ramos