Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A1942
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: LIVRANÇA
AVAL
AUTONOMIA
Nº do Documento: SJ200307010019426
Data do Acordão: 07/01/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3335/02
Data: 02/06/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - O aval é o acto pelo qual um terceiro ou um signatário de uma letra ou de uma livrança garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores .
II - A obrigação do avalista é materialmente autónoma, ainda que formalmente dependente da obrigação do avalizado .
III - Com efeito, a obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade desta provier de vício de forma .
IV - Atenta essa autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções do avalizado, salvo no que concerne ao pagamento .
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em execução ordinária que a Caixa Geral de depósitos, S.A., instaurou contra os executados A e Outros,
veio A, por apenso à referida execução, deduzir embargos de executada contra a Caixa Geral de Depósitos, S.A., alegando para tal que, na qualidade de fiadora da livrança exequenda, subscrita pela "B, Confecções, L.da", goza do beneficio da execução, e que o crédito exequendo não foi satisfeito por culpa da exequente, a qual, apesar da degradação da situação económica da subscritora da livrança (devedora principal), a Caixa manteve o contrato de abertura de crédito em conta corrente, sem daquela situação avisar a embargante, que teria então feito cessar a fiança prestada .
Para além disso, acrescenta que a exequente vem reclamar juros remuneratórios e moratórios superiores às taxas legalmente permitidas, não tendo justificação credível muitas das despesas lançadas, pelo que, a existir saldo devedor, o mesmo será muito inferior ao pedido formulado, pedido esse que vence juros de mora apenas à taxa de 7% .
A embargada contestou, afirmando que a embargante é avalista da livrança subscrita pela "B-Confecções, L.da", e que, por isso, não pode vir discutir a obrigação causal ou deduzir quaisquer excepções fundadas na mesma, uma vez que tal defesa só pode ser oposta no domínio das relações imediatas existente entre a mutuante ( portadora da letra ) e a mutuária ( subscritora da livrança).
No despacho saneador foi proferida decisão sobre o mérito dos embargos, onde estes foram julgados parcialmente procedentes apenas quanto ao excesso de juros peticionados, por ser entendido que a exequente não pode solicitar juros de mora de taxa superior a 7% .
Daí que tenha sido decidido:
- absolver a embargante do pedido executivo quanto ao excesso de juros de mora peticionados, ordenando-se o prosseguimento da execução apenas quanto à quantia de 51.156,86 Euros, acrescida de juros de mora à taxa anual de 7%, desde 12-11-01 e até integral pagamento, acrescida ainda de imposto de selo.
- Absolver a embargada Caixa Geral de Depósitos do demais pedido pela embargante A.
Apelou a embargante, mas sem êxito, pois a Relação do Porto, através do seu Acórdão de 6-2-2003, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida .
Continuando inconformada, a embargante recorreu de revista, onde resumidamente conclui :
1 - As relações entre o avalista do subscritor de uma livrança e o tomador originário desta constituem relações cambiárias imediatas entre os dois intervenientes .
2 - A relação fundamental ou primária foi um contrato de mútuo celebrado com terceiro, a que a embargante prestou fiança .
3 - Daí que, não se trate aqui de discutir se o aval e a fiança têm a mesma natureza jurídica .
4 - Trata-se sim de, em termos da relação fundamental ou primária, analisar as obrigações da embargante como fiadora do contrato de mútuo, porque tem legitimidade para invocar a relação determinante e fundamental da emissão do título de crédito.
5 - A obrigação cartular passa assim para plano que não interessa discutir, porque a lei atribui à embargante um âmbito de defesa mais amplo, nos termos do disposto no art. 815 do C.P.C.
6 - Só se legitimaria a discussão, se o título tivesse sido transmitido a terceiro de boa fé, que dele fosse portador, o que todavia não é o caso.
7 - Pelo que tem a embargante direito ao benefício da execução, bem como o de provar que a dívida não foi satisfeita por culpa do exequente, bem como qual o quantitativo exacto da dívida, em face do contrato de mútuo acordado e das limitações em termos de juros e despesas do mesmo, imposto pela legislação imperativa vigente sobre as matérias.
8 - Nomeadamente no que concerne aos créditos por juros vencidos juros de juros e despesas que não tenham suporte no dito contrato primário ou relação fundamental .
9 - Foram violados os arts 508-A e 815 do C.P.C., arts. 17 e 77 da Lei Uniforme, bem como os arts 634 e 642 do C.C.
A embargada contra-alegou em defesa do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
A Relação considerou provados os factos seguintes:
1 - A exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A, é portadora de livrança dada à execução, na qual se encontram inscritos o valor de 51.156,86 Euros, como data da emissão 29-12-95 e como data do vencimento 12-11-01.
2 - A referida livrança foi subscrita pela executada "B-Confecções, L.da", e titula um crédito concedido pela exequente a esta subscritora.
3 - A embargante A, entre outros, apôs no verso daquele título a sua assinatura, sob a expressão " bom por aval ao subscritor".
4 - A referida livrança foi assinada e entregue à exequente com os seus espaços em branco.
5 - A mencionada livrança destinou-se a garantir o cumprimento das obrigações emergentes para a sua subscritora, do contrato de abertura de crédito em conta corrente constante do documento de fls 9 a 15.
6 - Tal contrato foi igualmente subscrito pela embargante, na qualidade de avalista da livrança em branco, junta por anexo ao referido contrato.

Vejamos agora o mérito do recurso.

A Relação decidiu que a embargante, como avalista da livrança, não pode discutir a relação jurídica subjacente à subscrição desse título, dado que a mesma apenas poderia ser atendível em sede das relações cambiárias imediatas, inexistentes na situação em análise .
E com razão .
No âmbito do direito cambiário, é aplicável ás livranças, na sua generalidade, o regime legal vigente para as letras de câmbio - art. 77 da LULL
Por isso, os princípios da literalidade e da abstracção, inerentes àqueles títulos de crédito e respeitantes à obrigação de pagamento neles incorporada, apenas podem ser afastados através da impugnação da relação subjacente à sua emissão .
Ora, tal impugnação só pode ter lugar quando as relações entre o portador do título e o demandado cambiário se encontrem no domínio das relações imediatas - art. 17 da LULL.
Pode afirmar-se que um título de crédito está no domínio das relações imediatas, quando está no âmbito das relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado, sacador-tomador, tomador-primeiro endossado, etc), isto é, nas relações nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente das convenções extracartulares; a letra está no domínio das relações mediatas, quando na posse de uma pessoa estranha às convenções extracartulares (Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada, 7ª ed., pág. 110).
Pois bem .
Perante a factualidade provada, é incontroverso que o título exequendo se encontra no domínio das relações imediatas entre a subscritora da livrança e a portadora da mesma, relativamente aos intervenientes na relação contratual determinante da subscrição da ajuizada livrança, ou seja, quanto às relações contratuais directamente estabelecidas entre a exequente Caixa Geral de Depósitos, como entidade que concedeu o empréstimo, e a executada "B-Confecções, L.da", como entidade beneficiária do empréstimo, cujo pagamento assumiu ao subscrever o título cambiário.
Todavia, no que tange à embargante, esta é totalmente alheia às relações comerciais estabelecidas entre a exequente e a subscritora da livrança, dado que a sua intervenção no contrato de abertura de crédito está apenas relacionada coma prestação da garantia ao pagamento, pela sociedade mutuária, de todas as responsabilidades decorrentes da conta corrente aberta em favor da mesma, pela entidade bancária mutuante, garantia essa titulada através do aval prestado na livrança.
O aval é uma garantia bancária que, embora com natureza jurídica semelhante à da fiança, não pode confundir-se com esta.
Ao aval somente são aplicáveis os princípios da fiança que não contradigam o seu carácter cambiário .
O aval é o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra ou de uma livrança garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores - art. 30 da LULL.
A função do aval é uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la e a caucioná-la.
Como é sabido, a obrigação do avalista é uma obrigação materialmente autónoma ainda que formalmente dependente da obrigação do avalizado.
Na verdade a obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade desta provier de um vício de forma - art. 32 da LULL.
Atenta essa autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções do avalizado, salvo no que concerne ao pagamento (Ac. S.T.J. de 27-4-99, Col. Ac. S.T.J., VII, 2º, 68).
Com efeito, tendo em conta a natureza da obrigação de garantia da obrigação do avalista, destinada à satisfação do direito do credor, se o avalizado pagar ou satisfizer de outro modo a sua dívida ao portador da letra ou livrança, este não pode exigir do avalista um segundo pagamento (Vaz Serra, R.L.J. 113, pág. 186, nota 2; Ac. S.T.J. de 23-1-86, Bol. 353-485).
O princípio da independência das obrigações cambiárias e da obrigação do avalista relativamente à do avalizado ( arts 7 e 32, nº2) não impede que o avalista oponha ao portador a excepção do pagamento, por extinção da obrigação do avalizado, desde que o portador seja o mesmo em relação ao qual o avalizado extinguiu a sua obrigação.
Mas o avalista já não pode defender-se com as demais excepções do avalizado, por a obrigação daquele ser autónoma em relativamente à deste.
Por isso, improcedem as conclusões do recurso, não se mostrando violados os preceitos legais invocadas pela recorrente.

Termos em que negam a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 1 de Julho de 2003
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce de Leão