Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
702/08.3GDGDM.P1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: CÚMULO MATERIAL
PENA ÚNICA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Doutrina: Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 306/307, 290/292; Francesco Carnelutti, El Problema de La Pena, 32/36; Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98; Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001)
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTICA DE 04.10.21, NA CJ (STJ), XII, III, 192
Sumário :
I - O legislador penal não adoptou o sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo), nem o sistema da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e os singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), na punição do concurso de crimes, tendo mantido todas as opções possíveis em aberto, desde a absorção – aplicação da pena mais grave – ao cúmulo material, passando pela exasperação.
II - Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.
III - Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 702/08, do 1º Juízo Criminal de Gondomar, AA, devidamente identificado, foi condenado na pena conjunta de 7 anos de prisão (1).
O arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
É do seguinte teor o segmento conclusivo da motivação apresentada (2):
1. O Tribunal “a quo” desrespeitou e incumpriu os artigos 70º, 71º e 72º do CP.
2. O douto acórdão recorrido faz referência ao princípio da culpa e às exigências de prevenção, concluindo apenas por factos e circunstâncias agravantes que se enquadram no artigo 71º.
3. Não fazendo qualquer referência em como ponderou na determinação da medida da pena sobre o “grau de ilicitude”, “condições pessoais do agente e a sua situação económica”, nem sobre a “conduta anterior ao facto e posterior a este”, apesar de ter dado como provados factos que se poderiam constituir atenuantes definidas pelo texto da lei.
4. O tribunal a quo não teve em consideração o facto de os menores serem vizinhos e estarem constantemente a entrar em casa do arguido, com ou sem consentimento dos proprietários, ao facto de os ofendidos serem conhecidos pelos vizinhos como uns miúdos “traquinas”, de serem eles a pedir ao arguido, ao facto de os ofendidos já terem tido experiências iguais às praticas pelo arguido e principalmente ao facto de o arguido ser uma pessoa com problemas psicológicos e que se deixava influenciar por todos, nomeadamente pelos ofendidos, como foi supra mencionado.
5. O tribunal a quo para a fixação da medida concreta da pena não teve em conta nenhum destes factos. Acrescido ao facto de ter que ter em conta a culpa dos ofendidos, uma vez que, não acumulando a especial qualificação da culpa do arguido, implica uma diminuição desta.
6. O acórdão poderia deveria ter considerado e valorado o facto de o arguido ter uma personalidade imatura, com traços que lhe conferem uma dimensão acrescida de fragilidade com dificuldades na socialização e com um quadro depressivo reactivo tendo por isso sido recentemente internado, como aliás se confirma com a audição do Dr. C…, médico psiquiátrico – aqui testemunha – devendo esta perturbação ter sido considerada, justificando assim uma atenuação na imputabilidade, o que não fez.
7. O acórdão poderia, também, ter considerado e valorado desde logo o facto de o recorrente ser um jovem com 26 anos à data do factos, ser o único filho a viver com a família composta pela mãe, doméstica, sendo por isso o único filho que faz companhia à mãe e que a ajuda em qualquer dificuldade, e que tem o apoio da sua irmã.
8. Em relação à conduta posterior ao crime podemos verificar que o agente está arrependido pelos factos por si praticados, como aliás o afirmou em audiência de julgamento e demonstrou pelo seu comportamento, e nos relatórios médicos.
9. O recorrente não foi capaz ao longo da sua vida de demonstrar ter capacidades de cumprir as exigências que se lhe depararam de integração social, e a elas sempre respondeu negativamente (não foi capaz de estudar, trabalhar, de conseguir conhecer uma menina para namorar e casar), é portador de traços de personalidade e de experiência de vida susceptíveis de revelar uma diminuição ao nível do juízo de censura ético-jurídica.
10. No caso concreto as necessidades de ressocialização e de reintegração poderão ser alcançadas de modo mais efectivo e eficaz no exterior, com um acompanhamento médico, atenta a própria personalidade do recorrente e o facto de as cadeias funcionarem como verdadeiras escolas do crime, que estão muito longe de funcionarem como factores reintegradores.
11. Relativamente aos factos supra mencionados, apesar de terem sido considerados provados, permanece uma incógnita se terão servido para formulação da convicção do Tribunal quando valoriza a aplicação do artigo 70º e 71º do CP.
12. Confirmando mais uma vez que existiram circunstâncias (supra referidas) dadas como provadas pelo Acórdão que no entanto não consideradas valoradas nos termos do artigo 71º n.º 1 e n.º 2 a favor do recorrente, para uma justa determinação da medida da pena, correndo por isso, em nosso entender uma violação do referido preceito legal.
13. Violação essa que vai culminar na violação de um outro preceito legal, o artigo 72º do CP, porquanto, em nosso entender, tais factos a serem apurados, dados como provados e valorados tornariam efectiva tal como poder-dever a aplicação da atenuação especial da pena prevista no referido artigo.
14. Pelo que deveria, em nosso entender, ter existido uma atenuação especial da pena do artigo 73º do CP com base no artigo 72º do CP.
15. Referenciando-se então que estas circunstâncias que não foram abordadas nos fundamentos apresentados para a medida da pena que o Tribunal decidiu aplicar em cúmulo jurídico, 7 anos de prisão, e que poderiam ter influenciado e muito para a aplicação ao arguido de uma pena mais harmoniosa com a sua realidade, com o seu arrependimento e com as suas credíveis e reais possibilidades de reinserção e reintegração social.
16. Desta forma concluímos, em nosso reiterado entendimento, ter existido por parte do Acórdão recorrido uma clara violação dos artigos 71º n.º 1 e n.º 2, porquanto não valorou as circunstâncias referidas nas alíneas d) e e) do referido artigo 71º n.º 2 nem o artigo 72º, ambos do CP, que face à matéria provada aliada à juventude do recorrente, ao seu arrependimento, à sua situação familiar e social e ainda ao facto de ser doente, deveria beneficiar da atenuação especial da pena prevista neste artigo.
17. Aliás facilmente se constata que se a atenuação especial da pena prevista no artigo 72º n.º 1 e n.º 2 alínea c) tivesse sido realizada nos termos do artigo 73º do CP, e feitas as contas, verificamos que o arguido foi condenado numa pena de 7 anos, pena essa que se revela, em nosso entendimento, manifestamente exagerada e desajustada face à conduta do agente e às exigências de prevenção, entendendo o recorrente que a pena aplicada é sobretudo demolidora de qualquer possibilidade de reinserção e reintegração social, pelo que viola o preceituado nos artigos 71º n.º 1 e 2, 72º, n.º 1 e n.º 2, bem como o artigo 73º, todos do CP, na determinação da medida da pena.
18. Assim, e por tudo o que ficou exposto, a após a atenuação especial da pena impõe, nos termos do artigo 72º do CP que sempre se deverá ter em atenção – devendo julgar diminuída a imputabilidade do arguido e condena-lo numa pena de prisão de 5 anos suspendendo-se a execução da mesma pelo mesmo período, sendo que ao recorrente nesse período obrigado seriam impostas as obrigações que V. Exas. entendessem adequadas ao caso em apreço, bem como o tribunal determinaria a sujeição do arguido a tratamento médico ou a cura em instituição psiquiátrica adequada, para o que tem desde já o consentimento do arguido, sendo de prever que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Na contra-motivação apresentada o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
1. Não pode, em sede de recurso de revista, perante o Supremo Tribunal de Justiça, convocar factos que não constam do elenco dos factos provados, estando a apreciação de matéria de facto circunscrita à apreciação, oficiosa, da existência dos vícios da mesma, descritos no art. 410º do Código de Processo Penal.
2. A pena aplicada mostra-se perfeitamente adequada face ao comportamento do arguido, à personalidade demonstrada no momento anterior e posterior à prática dos factos, aos critérios elevados de prevenção geral e especial.
3. Na medida das penas parcelares foi tida em conta a culpa demonstrada pelo arguido na prática dos factos, nomeadamente uma atenuação da imputabilidade.
4. Não se mostram preenchidos os pressupostos para a atenuação especial da pena por não ser acentuada a diminuição da ilicitude, da culpa, ou da necessidade da pena.
5. São prementes as exigências de prevenção geral nos crimes contra a autodeterminação sexual de crianças, face aos valores que se visa proteger e às consequências nefastas para ambas as crianças.
6. Atendendo-se à culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial positivas, afigura-se-nos não existir razão ao recorrente, tendo sido feita, no acórdão uma correcta interpretação dos factos e uma correcta interpretação e aplicação das normas.
A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.

Única questão colocada em recurso é da medida das penas singulares e conjunta aplicadas, entendendo o recorrente AA que, atendendo às circunstância de carácter atenuantes ocorrentes, designadamente a sua personalidade imatura, com traços de fragilidade e de dificuldades de socialização, que lhe confere uma imputabilidade diminuída, as suas condições pessoais, a sua situação económica e a sua conduta anterior e posterior aos factos, deveria ter sido feito uso do instituto da atenuação especial da pena, de forma a fixar a punição numa pena conjunta de 5 anos de prisão suspensa na sua execução, sob condição, sendo disso caso, de sujeição a tratamento médico ou cura em instituição psiquiátrica adequada.
O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos (3):

1) O ofendido BB nasceu no dia 26 de Setembro de 1995 e é irmão do também ofendido D… S… que nasceu no dia 9 de Outubro de 1994.
2) Estes menores ofendidos residem, pelo menos desde Janeiro de 2008, na Rua Cinco de Outubro, n.º …, S. Pedro da Cova, Gondomar, na casa em frente à casa do arguido.
3) Os menores residem na companhia da mãe e do companheiro desta e permanecem sozinhos em casa durante a noite, em virtude da progenitora e do companheiro trabalharem até de madrugada.
4) Em data não concretamente apurada, o arguido entabulou conhecimento com os menores e com eles começou a jogar à bola, no pátio de sua casa.
5) À medida que foi ganhando a confiança dos menores, começou também a convidá-los para irem para sua casa, ao seu quarto, propondo-lhe jogarem jogos de computador, de forma a atingir o seu objectivo que era manter relações sexuais com os menores.
6) Em data não concretamente apurada, mas durante o mês de Junho de 2008, quando o menor BB andava de bicicleta na rua onde ambos residem, o arguido abeirou-se do menor BB e, dirigindo-se a ele disse-lhe se lhe podia “ir ao cú, que lhe dava um telemóvel”.
7) De seguida, o menor BB regressou a sua casa e pouco tempo depois recebeu no seu telemóvel uma mensagem enviada pelo arguido a convidá-lo para ir jogar jogos de computador em sua casa.
8) O menor dirigiu-se então a casa do arguido e foi para o quarto deste, onde começaram a visionar no computador filmes pornográficos, enquanto o arguido tocava no pénis do menor BB em movimentos para à frente e para trás.
9) O menor pediu ao arguido para colocar um jogo designado por “GTA IV” o que este fez e deitou-se na cama, a jogar.
10) Aproveitando a circunstância de o menor estar na cama, o arguido perguntou-lhe se lhe podia “ir ao cú que lhe oferecia um telemóvel”.
11) De seguida pediu ao menor para baixar as calças, o que o menor fez, deitou saliva no seu pénis e introduziu-o no ânus do menor e só parou quando o menor lhe pediu, por lhe estar a doer.
12) De seguida deu-lhe o prometido telemóvel, de marca Nokia, modelo 6600.
13) Antes de o menor sair de casa do arguido este pediu-lhe para não contar o sucedido a ninguém.
14) Pouco tempo depois e quando já se encontrava em casa, o menor BB recebeu no seu telemóvel diversas mensagens do arguido em que este o questionava sobre se tinha gostado, se queria fazer mais e se queria jogar computador e depois pediu-lhe para apagar as mensagens para os seus pais não verem.
15) Em data não concretamente apurada mas durante a 3.ª semana do mês de Junho de 2008, o arguido enviou uma mensagem, via telemóvel, ao ofendido BB, perguntando-lhe se “queria fazer”, referindo-se a ter relações sexuais, tendo o menor BB respondido afirmativamente e ido a casa do ofendido.
16) Aí chegado, já no interior do quarto do arguido, quando o menor BB estava a jogar um jogo no computador, o arguido friccionou o seu pénis contra o ânus do menor, sem o penetrar, a pedido do menor, por lhe ter doído da outra vez.
17) Ainda durante essa semana, em dia que não foi possível concretizar, o menor D… S…, irmão do menor BB, foi a casa do arguido a convite deste.
18) Aí chegado jogou um jogo no computador e a dado momento foi à casa de banho.
19) Quando regressou da casa de banho para o quarto, o arguido puxou as calças e as cuecas para baixo e exibiu o seu pénis ao menor.
20) Em seguida, aproximou-se do menor D…, desceu-lhe as calças, colocou o pénis do menor na sua boca e depois pediu ao menor para introduzir o seu pénis no ânus do arguido, o que o menor fez,
21) Depois pediu ao menor para se deitar na cama, deitando-se ele também e introduziu o seu pénis, erecto, no ânus do menor D…, após o que lhe ofereceu um telemóvel, marca Huawei.
22) Na noite de 30 de Junho para 1 de Julho, cerca das 00,00 horas, o arguido enviou uma mensagem via telemóvel, ao menor BB, perguntando-lhe se queria ir para casa dele jogar computador ao que o menor acedeu.
23) Aí chegado, o menor jogou novamente um jogo no computador e, de seguida, o arguido perguntou ao menor BB “se queria fazer”, referindo-se novamente ao acto sexual.
24) O menor acedeu, baixou as calças e o arguido, depois de colocar saliva no seu pénis, introduziu-o, erecto, no ânus do menor, e manteve movimentos de vai e vem e só parou porque o menor lho pediu, por lhe estar a doer.
25) A seguir levou o menor a comer um cachorro e a beber uma coca cola a uma roulote de comes e bebes, denominada “D. Henrique”, instalada em S. Pedro da Cova.
26) Depois de regressaram ambos a casa do arguido, este perguntou de novo ao menor “se queria fazer”, tendo o menor concordado.
27) Então, o arguido cuspiu de novo no seu pénis e introduziu-o de novo, erecto, no ânus do menor, com movimentos de vai e vem, e ejaculou.
28) Em seguida, prometeu ao menor que lhe dava outro telemóvel.
29) O arguido ao agir da forma descrita, agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, aproveitando o facto de os menores se encontrarem sozinhos durante largos períodos de tempo e durante a noite para com eles praticar actos sexuais.
30) O arguido bem sabia que o menor BB tinha apenas doze anos de idade e o menor D… treze anos de idade e, não obstante, não se coibiu de agir da forma descrita.
31) Mais sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
32) O arguido AA tem um fraco auto-conceito, uma baixa auto-estima, uma forte insegurança pessoal e afectiva e um elevado sentimento de ambivalência, além de uma componente narcísica e egocêntrica da personalidade, com uma diminuta capacidade de auto-regulação do comportamento, o qual é predominantemente dirigido pelos seus impulsos, revelando um elevado nível de ansiedade e consequente sintomatologia (nomeadamente as constantes somatizações e chamadas de atenção) e traços depressivos (isolamento social, apatia, tristeza, angústia, desmotivação).
33) No relacionamento interpessoal o arguido apresenta dificuldades em iniciar e manter as interacções, revelando tendência para se isolar ou para se deixar influenciar pelos outros, sem avaliar as consequências dos comportamentos sugeridos ou impostos, de forma a conquistar a aceitação social.
34) O arguido apresentou sinais de atraso desenvolvimental e aos quatro anos foi encaminhado para pedopsiquiatria, evidenciou dificuldades de aprendizagem, que se reflectiram no rendimento escolar e após sucessivas retenções abandonou a frequência do 7.º ano.
35) Aos 17 anos integrou o Centro de reabilitação da Areosa, onde faltava com regularidade devido a conflitos familiares, tentou ganhar alguma autonomia através do exercício de actividade laboral, mas sempre desistiu.
36) Entre Janeiro de 2003 e Abril de 2007 foi acompanhado pela unidade de Psiquiatria e de Saúde Mental de Gondomar e Hospital de Valongo, não seguia com rigor as prescrições medicamentosas por falta de recursos económicos e por ter dificuldades em se identificar com problemas do foro psiquiátrico, que considerava desqualificante e de menor estatuto.
37) Em 2007, o arguido iniciou um curso profissional de Geriatria, do qual desistiu ao fim de alguns meses.
38) O arguido, comunitariamente, detém uma imagem social positiva, sendo considerado educado pelos vizinhos.
39) O arguido apresenta uma personalidade psico-afectivamente indiferenciada/imatura, intelectualmente mal sustentada, aquando dos factos estava capaz de lhes avaliar a ilicitude e de se determinar de acordo com essa avaliação, sendo certo que a entorse caracterial que transporta condiciona-lhe discernimento e volição, roubando margem de manobra no governo-de-si e justificando atenuação da imputabilidade.
40) O arguido não apresenta défices cognitivos que possam comprometer a sua tomada de consciência da natureza e consequências dos actos cometidos e em análise.
41) O menor BB apresenta um quadro de desenvolvimento cognitivo e psicomotor adequado para a sua faixa etária.
42) O arguido é bem considerado pelas pessoas das suas relações sociais, confessou parcialmente os factos com pouco relevo para a descoberta da verdade, chamou a policia, após a ocorrência dos factos e é primário.
43) A conduta do arguido ofendeu os menores e os seus pais nos sentimentos de decência e de recato e causou aos menores sofrimento psicológico, que os abalou e vergonha.
44) O comportamento dos menores alterou-se a partir da prática de tais factos pelo arguido, provocando-lhes, pelo menos, sintomas de instabilidade afectiva e emocional;
45) Os pais dos menores, aqui seus legais representantes, ficaram abalados com a conduta levada a cabo pelo arguido na pessoa dos seus dois filhos e profundamente afectados a nível emocional e psíquico pelo sofrimento e práticas obscenas a que estiveram sujeitos os seus dois filhos.
46) O arguido confessou parcialmente os factos com pouca relevância para a descoberta da verdade e é primário.

Começando por apreciar se ao recorrente deveria ter sido aplicado o instituto da atenuação especial da pena, dir-se-á que a atenuação especial da pena tem em vista casos especiais expressamente previstos na lei, bem como, em geral, situações em que ocorrem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena – artigo 72º,n.º1, do Código Penal.
Pressuposto material da atenuação especial da pena é, pois, a ocorrência de acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção, sendo certo que tal só se deve ter por verificado quando a imagem global do facto, resultante das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo (4).
Por isso, como defende aquele insigne penalista, a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar.
Trata-se assim de uma válvula de segurança, só aplicável a situações que, pela sua excepcionalidade, não se enquadram nos limites da moldura penal aplicável ao respectivo crime, ou seja, a situações em que se mostra quebrada a relação/equivalência entre o facto cometido e a pena para o mesmo estabelecida, consabido que entre o crime e a pena há (deve haver) uma equivalência (5).
Vejamos se no caso vertente estamos ou não perante um caso extraordinário ou excepcional, concretamente no que concerne ao grau da ilicitude do facto, à intensidade da culpa ou à (des)necessidade da pena.
Vem provado que o arguido tem um fraco auto-conceito, uma baixa auto-estima, uma forte insegurança pessoal e afectiva e um elevado sentimento de ambivalência, além de uma componente narcísica e egocêntrica da personalidade, com uma diminuta capacidade de auto-regulação do comportamento, o qual é predominantemente dirigido pelos seus impulsos, revelando um elevado nível de ansiedade e consequente sintomatologia (nomeadamente as constantes somatizações e chamadas de atenção) e traços depressivos (isolamento social, apatia, tristeza, angústia, desmotivação).
No relacionamento interpessoal o arguido apresenta dificuldades em iniciar e manter as interacções, revelando tendência para se isolar ou para se deixar influenciar pelos outros, sem avaliar as consequências dos comportamentos sugeridos ou impostos, de forma a conquistar a aceitação social.
Apresentou sinais de atraso desenvolvimental e aos quatro anos foi encaminhado para pedopsiquiatria, evidenciou dificuldades de aprendizagem, que se reflectiram no rendimento escolar e após sucessivas retenções abandonou a frequência do 7.º ano.
Aos 17 anos integrou o Centro de reabilitação da Areosa, onde faltava com regularidade devido a conflitos familiares, tentou ganhar alguma autonomia através do exercício de actividade laboral, mas sempre desistiu.
Entre Janeiro de 2003 e Abril de 2007 foi acompanhado pela unidade de Psiquiatria e de Saúde Mental de Gondomar e Hospital de Valongo, não seguia com rigor as prescrições medicamentosas por falta de recursos económicos e por ter dificuldades em se identificar com problemas do foro psiquiátrico, que considerava desqualificante e de menor estatuto.
Muito embora possua uma personalidade psico-afectivamente indiferenciada/imatura, intelectualmente mal sustentada, a qual lhe condiciona o discernimento e a vontade, diminuindo-lhe a imputabilidade, a verdade é que não apresenta défices cognitivos que comprometam a tomada de consciência da natureza e consequências dos factos delituosos que perpetrou, sendo certo que agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Para tanto, foi ganhando a confiança dos menores, convidando-os para irem a sua casa, ao seu quarto, propondo-lhes jogos de computador e oferecendo-lhes telemóveis, de forma a atingir o seu objectivo de manter relações sexuais com eles, para o que se aproveitou do facto de os mesmos se encontrarem sozinhos durante largos períodos de tempo e durante a noite.
Perante este quadro há que reconhecer não se justificar o uso do instituto da atenuação especial da pena, posto que não estamos perante um caso extraordinário ou excepcional, concretamente de acentuada diminuição da culpa, sendo certo que, como é patente, a ilicitude dos factos se situa em patamar elevado e as necessidades de prevenção são consideráveis.
Passando à sindicação da medida concreta das penas, observar-se-á que, dentro dos limites definidos na lei, a pena é determinada em função da culpa do agente e das necessidades e exigências de prevenção – artigo 71º, n.º 1, do Código Penal.
A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto e como realidade da consciência social e moral, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – artigo 40º, n.º 2, do Código Penal (6).
Dentro deste limite a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
É este o critério da lei fundamental – artigo 18º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995 (7).
Aos crimes perpetrados cabem a penas de 1 a 8 anos e de 3 a 10 anos de prisão.
Tendo o tribunal recorrido fixado as penas muito próximo dos limites mínimos aplicáveis (1 ano e 6 meses e 3 anos e 6 meses) é evidente que não nos merecem aquelas qualquer censura.
Finalmente cumpre sindicar a pena conjunta cominada.
De acordo com o artigo 77º, n.º 2, do Código Penal, a pena conjunta, através da qual se pune o concurso de crimes, tem a sua moldura abstracta definida entre a pena mais elevada das penas parcelares e a soma de todas as penas em concurso, não podendo ultrapassar 25 anos, o que equivale por dizer que no caso vertente a respectiva moldura varia entre o mínimo de 3 anos e 6 meses de prisão e o máximo de 15 anos e 6 meses de prisão.
Por outro lado, segundo preceitua o n.º 1 daquele artigo, na medida da pena são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que o cúmulo jurídico de penas não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas.
Primeira observação a fazer face ao regime legal da punição do concurso de crimes é a de que o nosso legislador penal não adoptou o sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo), nem o sistema da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e os singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), tendo mantido todas as opções possíveis em aberto, desde a absorção – aplicação da pena mais grave – ao cúmulo material, passando pela exasperação.
Segunda observação a fazer é a de que a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto.
Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente.
Como doutamente diz Figueiredo Dias (8), como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.
Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso.
Analisando os factos verifica-se que os cinco crimes em concurso evidenciam uma estreita conexão, quer pela circunstância de os ofendidos serem irmãos, quer pela repetição, quer pelo idêntico contexto em que foram cometidos, no curto período compreendido entre a terceira semana de Junho e a primeira semana de Julho de 2008.
Tendo em especial atenção a personalidade do arguido, psico-afectivamente indiferenciada/imatura, intelectualmente mal sustentada, condicionando-lhe o discernimento e a vontade e diminuindo-lhe a imputabilidade, entende-se reduzir a pena conjunta para 6 anos de prisão.

Termos em que se acorda conceder parcial provimento ao recurso, reduzindo a pena conjunta para 6 (seis) anos de prisão.
Custas pelo recorrente, fixando em 2 UC a taxa de justiça.

Lisboa, 18 de Novembro de 2009
Oliveira Mendes (Relator)
Maia Costa

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(1) - São as seguintes as penas singulares aplicadas:
- 3 anos e 6 meses de prisão por cada um de quatro crimes de abuso sexual de crianças previstos e puníveis pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 171º do Código Penal:
- 1 ano e 6 meses de prisão por um crime de abuso sexual de crianças previsto e punível pelo n.º 1 do artigo 171º do Código Penal.
(2) - O texto que a seguir se transcreve corresponde ao constante da motivação de recurso.
(3) - O texto que a seguir se transcreve corresponde integralmente ao do acórdão recorrido.
(4) - Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 306/307.
(5) - Sobre a equivalência entre o crime e a pena veja-se Francesco Carnelutti, El Problema de La Pena, 32/36.
(6) - A pena da culpa, ou seja, a pena adequada à culpabilidade do agente, deve corresponder à sanção que o agente do crime merece, isto é, deve corresponder à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade – Cf. Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.
(7) - Vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001), 104/111. Na esteira desta doutrina, entre muitos outros, o acórdão deste Supremo Tribunal de 04.10.21, na CJ (STJ), XII, III, 192.
(8) - Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 290/292