Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
004336
Nº Convencional: JSTJ00029350
Relator: CARVALHO PINHEIRO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
SALÁRIOS EM ATRASO
DESPEDIMENTO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CULPA DA ENTIDADE PATRONAL
Nº do Documento: SJ199601230043364
Data do Acordão: 01/23/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N453 ANO1996 PAG276
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 198/94
Data: 03/02/1995
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: O ASCENSÃO O DIREITO E INTROD TEORI GER 3ED PÁG339. M FERNANDES DIR TRAB VOLI 9ED PÁG553.
Área Temática: DIR TRAB - CONTRAT INDIV TRAB.
Legislação Nacional: L 17/86 DE 1986/06/14 ARTIGO 1 N2 ARTIGO 2 ARTIGO 3 ARTIGO 6.
DL 372-A/75 DE 1975/07/16 ARTIGO 24 ARTIGO 25 N1 B N2.
DL 64-A/89 DE 1989/02/27 ARTIGO 35 N1 A ARTIGO 36.
DL 7-A/86 DE 1986/01/14 ARTIGO 1 ARTIGO 3 N1 N3.
CCIV66 ARTIGO 7 N3 ARTIGO 483 N2.
DL 402/91 DE 1991/10/16.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1989/05/24 IN TJ N2 PAG176.
Sumário : I - O regime especial dos salários em atraso, previsto na Lei 17/86, de 14 de Junho, dispensa a culpa da entidade empregadora, para os efeitos previstos nesse regime.
II - Deste regime especial, não há que concluir, com o argumento "a contrario sensu", a existência dessa culpa em geral, pois já existia essa regra geral.
III - Assim, a Autora, ao despedir-se por iniciativa própria, com base em remunerações em atraso, tem direito à indemnização, independentemente de esse atraso ser ou não por culpa da Ré.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - A, instaurou no Tribunal do Trabalho de Aveiro acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo ordinário, contra "B, Herdeiros, Limitada", com sede na Praça ..., em Ílhavo, com fundamento em despedimento, por sua própria iniciativa, nos termos da Lei n. 17/86 de 14 de Junho, por incumprimento do contrato de trabalho relativamente a diuturnidades, subsídio de quebras, subsídio de férias do ano de 1993 e falta de pagamento pontual da retribuição e subsídio de alimentação referente aos meses de Setembro, Outubro e Novembro (22 dias) de 1993 - pelo que, invocando a dita Lei, pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia total de 8334908 escudos, relativa à diferença de diuturnidades, subsídio por quebras, subsídio de férias de 1993, retribuição e subsídio de alimentação dos meses de Setembro, Outubro e Novembro (22 dias) de 1993, férias e subsídios de férias e de Natal proporcionais e indemnização de antiguidade.
Contestou a Ré, afirmando, em síntese, sempre ter pago à Autora quantias superiores às contratualmente estipuladas, nunca ter esta apresentado qualquer reivindicação salarial sendo ela quem dava até instruções à contabilidade para proceder às competentes actualizações e terem surgido ultimamente dificuldades económicas e financeiras graves que a impossibilitaram de solver os seus compromissos, designadamente os salários da Autora, que no entanto fora autorizada a retirar da Caixa o dinheiro disponível para esse efeito.
Pediu, pois, a improcedência da acção.
Elaborou-se o saneador e organizaram-se a especificação e o questionário, que não mereceram qualquer reclamação.
Feito o julgamento, proferiu-se sentença que, julgando a acção procedente, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia global de 8334908 escudos, com juros de mora à taxa de 15 porcento sobre 5482049 escudos desde a citação; e à taxa das operações activas do sistema bancário sobre a restante quantia desde 22 de Novembro de 1993, até pagamento.
Desta sentença apelou a Ré, mas o Tribunal da Relação de Coimbra, pelo seu acórdão de folhas 74 e seguintes, negou provimento ao recurso e confirmou a dita sentença.
A Ré pediu revista a este Supremo Tribunal, culminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
"1. Embora a Lei 17/86 de 14 de Junho seja uma Lei especial, não é certo que a mesma determine a obrigatoriedade de indemnizar o trabalhor no caso de salários em atraso, e dependemente da não existência de culpa da entidade empregadora na falta de pagamento.
2. Este entendimento resulta da conjugação do disposto no artigo 2 da Lei 17/86 de 14 de Junho com o estabelecido no artigo 35 n. 1 alínea a) da Lei dos Despedimentos.
3. Os factos dados como provados constituiriam fundamento para que a ora Recorrente requeresse e obtivesse provimento em processo de despedimento colectivo, hipótese em que não teria cabimento qualquer indemnização "qua tale".
4. Excepcionando o caso da responsabilidade objectiva, a obrigação de indemnizar só tem cabimento no nosso ordenamento jurídico quando o facto ilícito seja imputável ao devedor, a título de dolo ou mera culpa.
5. Não havendo culpa não há lugar a qualquer indemnização."
A Autora contra-alegou, sustentando o acórdão recorrido.
Já neste Supremo Tribunal a Ilustre Procuradora-Geral Adjunta (Secção Social) emitiu douto parecer no sentido da negação da revista.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - A questão fulcral levantada no presente recurso sintetiza-se na seguinte pergunta:
"A lei dos salários em atraso (Lei n. 17/86 de 14 de Junho) exige ou não que a falta de pagamento pontual da retribuição seja culposa para haver lugar a indemnização?".
Vejamos, porém, primeiramente, quais os factos provados.
II - No acórdão recorrido fixou-se a seguinte matéria de facto:
1. A Autora foi admitida em 1 de Julho de 1970 ao serviço da Ré, para trabalhar sob as ordens e direcção desta, no seu estabelecimento de Ílhavo.
2. Foi-lhe atribuída a categoria profissional de 2ª Técnica de Turismo, cujas funções passou a exercer.
3. Competia-lhe ainda efectuar pagamentos e fazer as cobranças dos serviços prestados, e efectuando registos e todas as demais funções do caixa.
4. Em 1 de Janeiro de 1981 foi promovida a "1ª Técnica de Turismo", categoria profissional que manteve até à data da cessação do contrato de trabalho.
5. Desde 1 de Maio de 1977 a Autora auferia as retribuições constantes da sua ficha individual junta a folha 8, sendo de 107150 escudos a última retribuição mensal.
6. A esta retribuição acrescia o subsídio de alimentação que era ultimamente de 17600 escudos mensais.
7. Invocando dificuldades financeiras, a Ré não pagou à Autora o subsídio de férias que gozou em Agosto de 1993 e deixou de pagar-lhe a retribuição mensal e subsídio de alimentação desde Setembro desse ano, inclusive.
8. Por tal motivo e com tal fundamento, a Autora rescindia o seu contrato de trabalho cumprindo com as formalidades legais.
9. Enviou à Ré em 11 de Novembro de 1993 uma carta registada com aviso de recepção e igualmente à Inspecção Geral do Trabalho de Aveiro, comunicando-lhes esse facto.
10. A Agência de Ílhavo da Ré apresentava desde há alguns meses resultados negativos.
11. A situação salarial das duas empregadas da Agência de Ílhavo agravou-se no verão de 1993, e já desde Abril desse ano havia sido cortado o telefone dessa Agência.
12. A Ré ainda no ano de 1993 fechou as suas Agências em Ílhavo, Aveiro e Vagos, mantendo actualmente operacionais as Agências de Porto de Mar e Praia de Mira.
13. A gerência da Ré, em data indeterminada, comunicou à Autora que a autorizava a levantar da Caixa as quantias necessárias ao pagamento do seu salário.
14. Quando a Autora rescindiu o seu contrato de trabalho com a Ré, em 11 de Novembro de 1993, não existia na Caixa da Agência de Ílhavo qualquer quantia em dinheiro, a não ser um vale de 45000 escudos relativo ao pagamento de parte do salário do mês de Julho da empregada C.
15. A Ré atravessava uma situação de crise que a levou a encerrar algumas das suas agências.
16. A Ré emitiu em 25 de Novembro de 1993 as declarações comprovativas de falta de pagamento à Autora das retribuições de Setembro a Novembro, muito embora fossem devidas outras prestações.
IV - 1. Na tese da Recorrente, embora reconheça ser a Lei n. 17/86 de 14 de Junho uma lei especial, a obrigatoriedade de indemnizar o trabalhor nela prevista, no caso de salários em atraso, só terá lugar se a entidade empregadora tiver culpa nesse atraso.
Mas se isso fosse assim, ou seja, se a indemnização ao trabalhador, no caso de salários em atraso, tivesse como pressuposto a culpa do empregador - que necessidade visaria a dita Lei 17/86 preencher a este respeito? Pois não é verdade que o direito à indemnização por falta culposa de pagamento pontual da retribuição não estava já previsto no artigo 25 n. 1 alínea b) do Decreto-Lei n. 372-A/75 de 16 de Julho e, após a revogação deste diploma, nos artigos 35 n. 1 alínea a) e 36 da L.C.C.T. (regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n. 64-A/89 de 27 de Fevereiro)?
A trave mestra do raciocínio da Recorrente (vejam-se também as suas alegações na apelação para as quais remete na revista) assenta numa interpretação "a contrário" do artigo 2 da Lei n. 17/86, conforme ela diz.
Se o referido artigo 2 - afirma a Recorrente na explanação de tal interpretação - se aplica a empresas públicas, privadas e cooperativas em que por causa não imputável ao trabalhador se verifique a falta de pagamento total ou parcial da retribuição devida - fica claro, então, "a contrário sensu", que o regime da Lei se aplica nos casos em que a falta de pagamento se fica a dever a causas não imputáveis ao trabalhador, mas imputáveis ao empregador.
Mas, salvo o devido respeito, isto não é fazer interpretação "a contrário"; é fazer, antes interpretação "ao acaso".
O argumento "a contrário" é um argumento meramente lógico, como todos, aliás, os que se compreendem na interpretação enunciativa (cfr. Oliveira Ascensão, "O Direito - Introdução e Teoria Geral", 3. edição, folhas 339 e seguintes). E exprime-se assim: se, para determinado caso, se estabelece uma disposição excepcional, dele se pode inferir a regra que funciona para todos os outros casos.
Portanto, só se pode fazer interpretação enunciativa (isto é, a determinação duma regra por processos lógicos, a partir de outra) com base no argumento "a contrário", quando a disposição em causa consagra com suficiente clareza o seu carácter excepcional.
Vejamos, pois, o que se passa com as disposições em causa.
A Lei n. 17/86 (e já anteriormente o Decreto-Lei n. 7-A/86 de 14 de Janeiro), segundo o n. 1 do seu artigo 1, rege os efeitos jurídicos especiais produzidos pelo não pagamento pontual da retribuição devida aos trabalhadores por conta de outrem.
São por demais conhecidas as razões que estiveram na origem da referida Lei (e também do anterior Decreto-Lei n. 7-A/86) radicadas nas grandes proporções assumidas pelo fenómeno dos salários em atraso, sabendo-se que, representando a "força de trabalho" dos trabalhadores praticamente a sua única mercadoria, os salários respectivos são para eles, primeiro que tudo, condições de sobrevivência.
Daí o regime jurídico previsto na referida Lei. Regime jurídico especial, desde logo prevenido pelo n. 2 do seu artigo 1: - "Em tudo o que não estiver especialmente previsto pela presente lei aplica-se, subsidiariamente, o disposto na lei geral".
Segue-se a definição do âmbito de aplicação do regime especial previsto nessa lei, feita no artigo 2, precisamente a norma que directamente nos preocupa agora: - "Ficam abrangidas pelo regime previsto na presente lei as empresas públicas, privadas e cooperativas em que, por causa não imputável ao trabalhador, se verifique a falta de pagamento total ou parcial da retribuição devida, nos casos e nos termos dos artigos seguintes".
Ao tempo da publicação desta lei, dispunha-se no artigo 25 n. 1 alínea b) e 2 do Decreto-Lei n. 372-A/75, como lei geral sobre o ponto específico ora visado, que o trabalhor poderia rescindir o contrato, sem aviso prévio, e com direito a indemnização, em caso de falta culposa de pagamento pontual da retribuição na forma devida.
Se a falta de pagamento da retribuição não fosse devida a culpa da entidade patronal, embora se mantivesse sempre o direito à rescisão do contrato nos termos do artigo 24 do dito Decreto-Lei, havia, porém, que excluir um direito de indemnização a favor do trabalhador, por força do princípio consagrado no artigo 483 n. 2 do Código Civil.
Após a revogação do Decreto-Lei n. 372-A/75 pelo Decreto-Lei n. 64-A/89 de 27 de Fevereiro, e na sua sequência, também o regime jurídico (L.C.C.T.) aprovado por este último diploma, contemplava a falta culposa do pagamento pontual da retribuição, entre outros comportamentos da entidade empregadora, como constituindo justa causa de rescisão do contrato pelo trabalhador (artigo 35 n. 1 alínea a)) e com direito a indemnização (artigo 36). Da mesma forma, a falta não culposa desse pagamento - constituindo ainda justa causa de rescisão do contrato pelo trabalhador - não conferia direito de indemnização.
No entanto, tanto no regime da antiga lei dos despedimentos (Decreto-Lei n. 372-A/75) como no da nova (L.C.C.T.) se entendia e entende que a faculdade do trabalhador de rescindir o contrato assenta num conceito de justa causa traçado pelos contornos da justa causa exigida para o despedimento do trabalhador por parte da entidade patronal, repassado portanto por uma ideia de inexigibilidade de manutenção da relação laboral - quer no que respeita à justa causa por motivos subjectivos, baseada em comportamentos culposos, quer no que respeita à justa causa baseada em circunstâncias de natureza objectiva.
Porém, com o surto e as proporções do fenómeno dos salários em atraso, criando situações unanimemente reconhecidas como jurídica, social e moralmente inaceitáveis, entendeu o Legislador que urgia por cobro de imediato a tais situações através de mecanismos que iria colocar à disposição dos interessados (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n. 7-A/86 de 14 de Janeiro).
Reconhecia-se assim a insuficiência do regime jurídico do Decreto-Lei n. 372-A/75 - então vigente - para o trabalhador interessado enfrentar tal situação.
Publicou-se, pois, o Decreto-Lei n. 7-A/86, primeiro, e, posteriormente, a Lei n. 17/86 de 14 de Junho, que vieram munir o trabalhor com salários em atraso com instrumentos bem mais poderosos que os facultados pelo Decreto-Lei n. 372-A/75, e depois pela L.C.C.T., para fazer face a essa situação.
No caso daquele primeiro diploma (Decreto-Lei n. 7-A/86) o seu regime aplicava-se às situações em que as empresas deixavam de pagar a retribuição devida aos trabalhadores quando tivessem decorrido, pelo menos 30 dias sobre a data do respectivo vencimento e o montante em dívida fosse igual ou superior à retribuição equivalente a um mês de trabalho. Verificada tal situação - acrescentava significativamente o n. 1 do artigo 3 desse Decreto-Lei - o trabalhador podia, mesmo sem culpa da entidade patronal rescindir unilateralmente o contrato de trabalho, desde que fizesse um aviso prévio de 10 dias, e tal rescisão conferia-lhe direito a uma indemnização (n. 3 do aludido artigo).
Por sua vez, a Lei n. 17/86 confere, no seu artigo 3, ao trabalhador um direito de rescisão do contrato no caso da falta de pagamento pontual da retribuição se prolongar por período superior a 30 dias sobre a data do vencimento da primeira retribuição não paga (em alternativa, o trabalhador poderá optar por uma suspensão da sua prestação laboral). Tal rescisão do contrato dá direito de indemnização de antiguidade, nos termos do artigo 6 da dita Lei.
2. Consagrou-se assim um regime jurídico especial para enfrentar com maior eficácia e celeridade o fenómeno dos salários em atraso que, de forma alguma se pode considerar revogado, ou mesmo influenciado, pelo regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n. 64-A/89 de 27 de Fevereiro (L.C.C.T.). Este último, como lei geral relativa à cessação do contrato de trabalho, não revogou aquela lei (lei especial) - já que o legislador não manifestou qualquer intenção nesse sentido, nos termos do artigo 7 n. 3 do Código Civil. Antes resulta do Decreto-Lei n. 402/91 de 16 de Outubro (que alterou a redacção do artigo 3 da Lei 17/86) a intenção contrária, no sentido da vigência da dita Lei.
Neste regime especial relativo aos salários em atraso (Lei n. 17/86), a lei desinteressa-se, por razões de eficácia e celeridade, da circunstância das faltas de retribuição pontual do trabalhador se deverem ou não a culpa da entidade patronal (para rescisão do contrato pelo trabalhador ou para a suspensão da sua prestação de trabalho) - conferindo sempre ao trabalhador direito a indemnização de antiguidade no caso de rescisão.
Com efeito - e chegamos assim, de novo, à norma visada nas alegações da Recorrente - o artigo 2 da Lei n. 17/86 manda aplicar o regime especial previsto nessa Lei às empresas públicas, privadas e cooperativas em que se verifique, por causa não imputável ao trabalhador, a falta de pagamento pontual da retribuição. Basta, pois, para isso que a causa do não pagamento pontual não seja imputável ao trabalhador - sendo indiferente que ela seja ou não imputável (a título de culpa, obviamente) à entidade patronal.
3. Após citar Pires de Lima e Antunes Varela no sentido da responsabilidade objectiva se encontrar, em matéria de responsabilidade civil, limitada a certos e determinadíssimos casos, afirma a Recorrente ser necessário, mesmo no domínio da responsabilidade contratual, que a Lei estabelecesse para o presente caso um regime especial ou de excepção semelhantes, no campo dos princípios, à responsabilidade objectiva extracontratual. Ora, segundo ela, não se vê que a Lei n. 17/86 imponha ao empregador a obrigação de indemnizar independentemente de culpa. Assim, para a Recorrente, o aludido artigo 2 não é uma norma excepcional.
Mas então, se não o é, como se atreve a Recorrente, paradoxalmente e contra todos os princípios da hermenêutica jurídica, a interpretá-la "a contrário sensu"?
É evidente que, ao definir o âmbito de aplicação da Lei n. 17/86, o seu artigo 2 só exclui os casos imputáveis (a título de culpa ou mesmo a qualquer outro título) ao trabalhador. Tais casos afastam a aplicação do regime jurídico previsto nessa lei. Mas em relação ao empregador, é indiferente para o aludido artigo 2, e portanto para o regime jurídico em que ele se insere, que as faltas de pagamento pontual da retribuição sejam ou não devidas a culpa sua. O artigo 3 do anterior Decreto-Lei n. 7-A/86 de 14 de Janeiro, antepassado directo da Lei n. 17/86, apontava já expressamente nesse sentido. Sentido que o disposto no artigo 2 deste último diploma não afastou - pois só nessa conformidade tem um significado útil, atenta a preocupação de eficácia e celeridade que se pretendeu imprimir ao regime dos salários em atraso.
Entende-se, pois, que no vigente regime jurídico relativo aos salários em atraso se consagrou, com vista à rescisão do contrato por iniciativa do trabalhador, um conceito de justa causa objectiva - assente, apenas, naquela realidade de salários em atraso, nos termos do artigo 3 n. 1 da Lei n. 17/86. E na medida em que tal caso, isto é, em caso de rescisão do contrato, se confere ao trabalhador um direito de indemnização, tem de se considerar consagrado, efectivamente, um caso de responsabilidade objectiva da entidade patronal.
E assim, também nessa medida, o artigo 2 da aludida Lei é uma norma excepcional (cfr. artigo 483 n. 2 do Código Civil).
Mas essa circunstância não permite, de forma alguma, uma interpretação "a contrário" tal como a fez a Recorrente (que nem sequer considerou essa norma como excepcional).
Com efeito, a única consequência de eventual utilização do argumento "a contrário" na interpretação da aludida norma, seria a de incluir na regra geral todos os casos por ela excluídos da responsabilidade objectiva que consagra.
Ora uma interpretação "a contrário" com tal consequência - no caso a única possível de extrair - carece de toda a utilidade, redundando numa tautologia: tira-se da disposição dita excepcional uma dada regra - a regra geral - quando tal disposição foi considerada excepcional precisamente porque contraria essa regra, a regra geral. É o que se passa com a responsabilidade objectiva (regime excepcional) relativamente à responsabilidade civil (regime regra), conforme resulta do artigo 483 do Código Civil.
Neste tipo de situações residem justamente todas as dificuldades e fraquezas do argumento "a contrário".
4. Repetindo ideias já expostas, verifica-se que o regime especial dos "salários em atraso", previsto na Lei n. 17/86, dispensa a culpa do empregador para os efeitos previstos nesse regime. Neste sentido, expressamente, se pronuncia a doutrina e a jurisprudência mais representativas - como se pode ver, quanto à primeira, em Monteiro Fernandes in "Direito do Trabalho", I, 9. edição, página 553; e quanto à segunda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 1989 in "T.J.", 2. - 176) e ainda o douto Acórdão R.C. de 20 de Outubro de 1994, inédito, mas profusamente citado nas contra-alegações da autora recorrida.
Os factos provados justificavam, na verdade, a aplicação da Lei n. 17/86 tal como foi feita nas instâncias.
V - Pelo exposto, sem necessidade de maiores considerações, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 23 de Janeiro de 1996.
Carvalho Pinheiro,
Loureiro Pipa,
Matos Canas. (Dispensei o visto).