Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2869
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: ACÓRDÃO
INDICAÇÃO DE PROVA
PARCIALIDADE
PERÍCIA SOBRE A PERSONALIDADE
TESTEMUNHA MENOR
ABUSO SEXUAL
FACTOS RELEVANTES
CRIME CONTINUADO
REFORMATIO IN PEJUS
Nº do Documento: SJ200810230028695
Data do Acordão: 10/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
1 – Se num acórdão condenatório, o Tribunal de 1.ª Instância, descreve extensamente os meios de prova que serviram para fundar positivamente a sua convicção quanto aos factos provados, com indicação dos elementos lógicos de que partiu para essa decisão de facto e depois alude às declarações do arguido, com o mesmo tratamento, acompanhado de algumas considerações críticas sobre a estratégia da defesa e a posição assumida pelo arguido, desajustadas quanto à forma, não se pode afirmar que o tribunal tenha sido parcial no tratamento da questão de facto.
2 – Como é jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença.
3 – Por outro lado, o recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os "pontos de facto" que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham "decisão diversa" da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP –, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer. E, se for o caso, a análise referente aos vícios das diversas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
4 – Mas não se basta com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido no acórdão recorrido, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção. E a não apreciação da questão de facto devidamente suscitada constitui omissão de pronúncia, com a consequente nulidade do acórdão (cfr., por todos, o AcSTJ de 11/10/2007, proc. n.º 3330/07-5, com o mesmo Relator).
5 – Se a decisão recorrida contem declarações genéricas sobre as limitadas possibilidades de reexame da matéria de facto que lhe assistem na prática, mas não se fica por aí e aprecia igualmente os pontos impugnados pelo recorrente à luz da prova documentada, não há qualquer omissão de pronúncia.
6 – Saber se a Relação decidiu bem a questão de facto que lhe fora colocada situa-se para além do horizonte dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, que só conhece, enquanto tribunal de revista (que é o caso) da questão de direito, dando por definitivamente assente a decisão de facto pelas instâncias, independentemente de poder oficiosamente declarar a existência de qualquer dos vícios do n.º 2 do art. 410.º, quando não tiver adequada base de facto para a decisão de direito, mas nunca conhecer de tais vícios a requerimento da parte ou, ainda menos, conhecer de impugnação alargada da matéria de facto, como parece pretender o recorrente.
7 – A perícia da personalidade a que alude o n.º 3 do art. 130.º do CPP, visa verificar a aptidão física e mental do menor de 18 para depor em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, designadamente quando deles foi vítima, para avaliar da sua credibilidade (n.º 2 desse artigo), enquanto a perícia de personalidade do arguido é realizada para efeito de avaliação da sua personalidade e perigosidade do arguido, incidindo sobra as características psíquicas independentes de causas patológicas, bem como sobre o seu grau de socialização (n.º 1 do art.º 160.º).
8 – E na verdade, a credibilidade que se prende necessariamente com a idade da testemunha e a natureza do crime, postula a obtenção de um discurso sobre a situação, pois não se trata de uma mera credibilidade geral e desligada da vida, tributária tão só de condicionantes psico-biológicas, mas sim da sua credibilidade relacionada com aquele pedaço de vida, que exactamente pela sua natureza autoriza a avaliação pericial da credibilidade da testemunha.
9 – Se a Relação contextualizou a impugnação pelo recorrente do «local onde a assistente, sua irmã e pai moravam à data da morte da mãe e as tarefas caseiras que lhe eram destinadas, nomeadamente a confecção do almoço de quartas e sextas-feiras», considerando-a matéria circunstancial e sem relevância na determinação do crime, retomou uma distinção que resulta da lei entre factos relevantes e irrelevantes e não uma qualquer distinção arbitrária, numa interpretação inconstitucional dos art.ºs 431°, 428°, 425° n.° 4 e 379°, n.° 1, c), do CPP
10 – Não estando provada a verificação de circunstancialismo exterior ao agente que diminua a sua culpa na repetição dos comportamentos ilícitos em relação a sua filha (abuso sexual), não se pode falar de crime continuado, não havendo, no entanto, que extrair consequências punitivas num recurso só interposto pela defesa, dada a proibição da reformatio in pejus
Decisão Texto Integral:
1.

O Tribunal Colectivo da 1.ª Vara Mista de Guimarães (proc. n.º 1925/01) condenou o arguido AA, pela prática de um crime de abuso sexual qualificado de menores dependentes, na forma continuada, dos art.ºs 173°, n° 1, 172°, n° 1, 177°, n° 3 e 30°, n° 2 do C. Penal, na pena de 6 anos de prisão, bem como no pagamento à demandante da quantia de € 49.900,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora às taxas legais sucessivamente aplicáveis, desde a data da notificação do pedido cível e até integral pagamento.

Inconformado, recorreu para a Relação de Guimarães, impugnando o julgamento das seguintes questões de facto: (i) de todos os factos provados, à excepção de ser o pai da menor BB, nascida a 10/04/86, de ser viúvo, encontrando-se a viver em união de facto com uma companheira, de quem tem um filho com 2 anos de idade; de se encontrar desempregado e de nada constar do seu certificado de registo criminal; (ii) de saber se ao dar como não provados tais factos o Tribunal a quo violou os princípios da presunção de inocência, da verdade material, da legalidade e o dever de isenção e imparcialidade; (iii) saber se a pena em que foi condenada é excessiva e desajustada; (iv) e, saber se a indemnização fixada é excessiva e desajustada.

Aquele Tribunal Superior, por acórdão de 6.2.2008, decidiu julgar totalmente improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.

Ainda inconformado, recorre para este Supremo Tribunal de Justiça, suscitando no texto e nas conclusões da sua motivação as questões de:

– omissão de pronúncia;

– inadequado julgamento da questão de facto

– valoração excessiva da perícia da personalidade

– parcialidade do tribunal de 1.ª Instância no julgamento do arguido;

– condenação;

– medida da pena e quantum da indemnização

Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido que concluiu na sua resposta não ter o recorrente rebatido específica e directamente as conclusões da decisão recorrida, ficando-se por uma reedição da motivação apresentada no recurso interposto da decisão da 1ª instância, deixando de impugnar validamente a matéria de facto fixada, nomeadamente não logrando infirmá-la nos termos do art° 410° do C. P. Penal, sendo que a pena se mostra adequada.

Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça, teve vista o Ministério Público que se pronunciou pelo improvimento do recurso, acompanhando motivadamente a resposta do Ministério Público junto da Relação de Guimarães, considerando, além do mais, que «não estando em causa meios de prova proibidos (art. 722.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil), mas apenas a valoração que lhes foi conferida (conjuntamente com os demais elementos de prova) o reexame de tal matéria escapa ao conhecimento deste Supremo Tribunal» e que merece dúvidas a adopção da figura de crime continuado, por não resultar da matéria de facto provada qualquer solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa, mas antes um sucessivo, procurado e violento trato sexual com a menor/filha e que mesmo no entendimento da decisão recorrida, a repetição da cópula agrava a responsabilidade do arguido, por via da maior ilicitude (no caso entre 11.9.2000 e 18.5. 2001 o arguido manteve cópula completa com a menor, cerca de duas vezes por semana), para além da circunstância de a menor se encontrar na sua exclusiva dependência (por morte da mãe).

Foi cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP.

Respondeu, então, o recorrente, reiterando os fundamentos de facto e de direito por si invocados na sua motivação de recurso, entendendo que pode e deve o Supremo Tribunal de Justiça apreciar se há uma insuficiência de reexame crítico do caso sub judice e da prova produzida em audiência de julgamento, que inquina o douto acórdão do vício da nulidade, nos termos do disposto nos art.ºs 425°, n.° 4, 379°, n.° 1, al. a), e 374°, n.° 2, do CPP, invocando o acórdão proferido no por este Tribunal no proc. n.º 2519/05-5.

E acrescentou:

Mas mais relevante que qualquer questão formal, o recorrente, em jeito de desabafo, do qual desde já se penitencia, pergunta o seguinte:
1. Será que não tem o Recorrente direito a um Julgamento justo e isento?
2. Será que não tem o Recorrente direito a ter tribunal rigoroso, objectivo, isento. Será que não tem direito a este Tribunal não formule de um juízo arbitrário ou intuitivo sobre a verificação, ou não, de um facto ou do próprio crime pelo qual foi condenado?
3. Será que não tem o Recorrente direito a ter um Tribunal e um Julgador que seja capaz de se abstrair do crime de que vem acusado — que é para si hediondo e tem levado a que o Recorrente viva um inferno desde o dia 18 de Maio de 2001, e que seguramente se perpetuará para além da decisão a proferir nos presentes autos, porque a dor, revolta e mágoa de ser vítima de uma acusação vil por parte da sua própria filha, não mais será apagada — julgando os factos, analisando a prova e formado a sua convicção de forma objectiva, isenta e racional?
O Recorrente quer acreditar que tem esse direito e que este Supremo Tribunal de Justiça fará o exame crítico que o processo carece, particularmente de todos os depoimentos testemunhais, nomeadamente (e entre outros) da alegada ofendida — sua filha BB — e da psicóloga CF, bem como, do menosprezado diário (veja-se o que lá é escrito, particularmente no alegado dia em que se terá consumado a cópula, veja-se a sua reacção e a efabulação que a menor faz, e o relato que nos dá do passeio que a levou até às Taipas com a “PP”, o “Porras” e depois com o “Valter”, um miúdo que “...é bastante meigo e brincalhão a beijar..” — tudo depois de ter sido alegadamente abusada sexualmente pelo pai) e da demais prova produzida em sede de audiência de julgamento.
Não exige o Recorrente concordância, mas sim um verdadeiro exame crítico, que não se deixe previamente contaminar pelo tipo de crime em julgamento. Todos ou a maioria serão pais, mas não permitam que a repugnância que resulta de um crime desta natureza, impeça os Insignes Conselheiros de proceder ao reexame crítico da prova e de todo o processado.
Se tal acontecer este Tribunal será capaz de concluir que não existe prova suficiente, segura e inequívoca da prática do crime. E se não fosse erros ocorridos neste processo, particularmente no acondicionamento do feto (ou o que restava dele) abortado, e estamos certos que este Tribunal concluiria de forma segura e inequívoca que a vítima era o Recorrente e não alegada ofendida.
Sobre a pena damos por reproduzido o por nós anteriormente defendido.»

Colhidos os vistos, teve lugar a conferência, pelo que cumpre conhecer e decidir.

2.1.

E conhecendo.

É a seguinte a factualidade apurada pelas instâncias:

Factos provados:

O arguido é pai da menor BB, nascida a 10 de Abril de 1986.

Em 22 de Novembro de 1999 faleceu a mãe desta, passando a mesma, juntamente com a irmã mais nova, a residir com o arguido, na freguesia de S....., desta comarca.

Desde essa altura que a menor ficou responsável pelas tarefas domésticas, confeccionando as refeições, nomeadamente o almoço ás quartas e sextas-feiras, fazendo a limpeza da casa e tratando das roupas.

O comportamento do arguido alterou-se após a morte da mulher, passando a ser agressivo com a menor BB e a controlar os seus movimentos.

Nesta altura, a menor era frequentemente agredida pelo arguido, justificando este comportamento devido ás faltas à escola e as más companhias, incluindo rapazes, com quem no seu entender a BB andava, colocando-a de castigo se as tarefas domésticas não estivessem do seu agrado.

No dia 8 de Setembro de 2000, por volta das 22 horas, o arguido, regressado a casa do trabalho e aproveitando-se da ausência da filha mais nova, MR, dirigiu-se ao quarto da BB e disse-lhe ‘Tu andas a sair com rapazes, por isso eu quero ver como está isso”.

Depois, ordenou à menor que despisse o pijama, tendo a mesma retorquido que não era necessário despir-se e que o arguido tinha que confiar nela.

Insistindo para que a BB tirasse a roupa a fim de a examinar, esta com receio e medo que o arguido, seu pai, lhe batesse, acabou por tirar a roupa, ficando completamente nua em cima da cama.

Então, o arguido aproximou-se da menor, abriu-lhe as pernas e enquanto ele próprio se despia da cintura para baixo, introduziu-lhe os dedos na vagina, sem dizer o que quer que fosse.

De seguida, deitando-se em cima da menor, esfregou-lhe o pénis erecto na vagina, tentando, durante dez a quinze minutos, introduzi-lo no seu interior.

A menor, queixando-se com dores, tentou evitar a penetração esquivando-se com mudanças de posição do seu corpo, acabando o arguido por a abandonar sem conseguir a penetração.

Passados uns dias, em 11 de Setembro de 2000, na ausência da filha mais nova, MR, o arguido dirigiu-se ao quarto da BB, ordenando-lhe de viva voz e de forma áspera para se despir

A menor conseguiu fugir, mas de imediato foi encontrada no quarto do arguido, onde este a obrigou a despir-se.

Logo após, o arguido ordenou-lhe que se deitasse na cama e colocando-se em cima dela, novamente tentou introduzir o pénis erecto na sua vagina, o que conseguiu, indiferente à queixa de dores da menor, ejaculando no seu interior alguns minutos depois.

A partir de então e até 18 de Maio de 2001, no interior da residência de ambos, o arguido passou a manter com a menor, cerca de duas vezes por semana, relações de cópula completa, sempre contra a sua vontade e conforme descrito.

As relações de cópula decorriam normalmente no quarto da menor ou no quarto do arguido, e quando a MR, irmã daquela, estava a ver televisão, decorriam primeiro andar, onde havia um quarto mobilado apenas com um divã e onde era obrigada a deitar-se.

O arguido nem sempre ejaculava no interior da vagina da menor, pois esta, queixando-se com dores, dificultava a penetração, desviando-se, agarrando-se na cama e arqueando o corpo.

Durante o tempo que manteve as descritas condutas, o arguido dizia à menor que esta era uma situação que a beneficiava, pois, mais cedo ou mais tarde, acabaria por ter relações sexuais e nessa altura, já se sentiria mais à vontade.

Por variadíssimas vezes, e com o intuito de satisfazer a sua lascívia, o arguido chantageou a menor dizendo-lhe que se não colaborasse tirava-lhe o telemóvel e não a deixava sair.

A menor aludiu num diário, ainda que de forma indirecta, à conduta do arguido.

O arguido nunca cuidou de saber se a menor era ou não menstruada, não evitando relações de cópula no período fértil, nem tomando qualquer espécie de precauções contraceptivas.

Das inúmeras relações sexuais que o arguido manteve com a menor resultou a gravidez desta, sendo que, no exame de sexologia efectuado em 12 de Junho de 2001, foi visualizado um saco gestacional compatível com cinco semanas de gestação, abortando em 20 de Julho de 2001, após internamento no Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães.

A ofendida e a sua irmã MR, em sede de processo de promoção e protecção de menores que correu termos sob o registo 404/01 do 20 Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, foram retiradas da residência do pai, tendo sido colocadas provisoriamente, em 18 de Maio de 2001, no Lar de Santa Estefânia, Guimarães e passando depois a residir com a sua tia materna, MC, na Travessa de ..., n° 00, ...., Guimaráes.

O arguido praticou os factos de forma livre e consciente, com o propósito de satisfazer os seus instintos sexuais, bem sabendo da ilicitude da sua conduta.

É viúvo, encontrando-se a viver em união de facto com uma companheira, de quem tem um filho com 2 anos de idade.

Encontra-se desempregado.

Nada consta do seu certificado de registo criminal.

Apurou-se, ainda, com relevo para o pedido de indemnização civil, que:

O arguido deslocava-se frequentemente à escola E. 2.3 de S.. ..., que a ofendida, então, frequentava, onde se queixava da sua filha aos funcionários e professores, imputando-lhe comportamentos que, na sua opinião, seriam menos próprios da sua idade e atribuindo-os a más companhias”.

Além disso, o arguido passou a ser extremamente exigente em relação à forma como a autora executava todas as tarefas de que passou a estar responsável, revelando-se particularmente agressivo em tudo o que lhe dizia respeito, ameaçando-a constantemente com castigos e punições diversas.

Da forma descrita, o arguido criou um clima de ansiedade, receio e coacção psicológica sobre a autora, a qual passou a temer, constantemente, pela sua integridade física e psicológica, e, também, pelas da sua irmã mais nova, sentimentos estes que se agravaram pela quase total ausência de contactos com familiares e amigos próximos, com quem sentisse que podia contar e cujo auxilio pudesse solicitar quando achasse necessário, e, ainda, pela consciência que a autora tinha da directa dependência económica que, tanto ela como a sua irmã, tinham em relação ao réu, seu pai, sem vislumbrar qualquer alternativa.

O arguido actuou, revelando-se insensível ao profundo sofrimento tísico e psicológico, angústia, receio, repulsa e vergonha que sabia causar à sua filha com a prática de tais actos.

O arguido revelou-se insensível à possibilidade séria de causar uma gravidez à vítima e indiferente ao facto de a sua outra filha, MR se poder aperceber do que se estava a passar.

Em virtude dos factos praticados pelo arguido, a ofendida passou a sentir permanente receio e passou a viver em sobressalto permanente, causados pelo mal que o arguido lhe infligia.

A ofendida sentiu sempre o profundo receio que, como ela, também a sua irmã pudesse passar a ser molestada da mesma forma pelo arguido.

Não se provaram quaisquer outros factos.

Factos não provados:

Não se provou, nomeadamente, que:

O arguido controlasse, efectivamente, todos os movimentos da filha;

O arguido se tenha envolvido sexualmente com sua filha BB, de forma não concretamente apurada, quando esta tinha treze anos de idade;

O dia em que, pela primeira vez, o arguido tentou introduzir o pénis erecto na vagina da menor tenha sido o dia 3 de Setembro de 2000;

Fosse de noite quando o arguido, pela primeira vez, introduziu o pénis erecto na vagina da menor, ejaculando no seu interior;

O arguido mantivesse relações de cópula completa com a menor, pelo menos três vezes por semana, normalmente à quarta, sexta e sábado;

[A] menor tenha relatado no diário, de forma indirecta, a conduta do arguido, usando as expressões que “o dia lhe tinha corrido mal” ou que “lhe tinha acontecido qualquer coisa má”;

A vítima tenha relatado no diário toda a conduta do arguido;

A vítima se encontre, actualmente, a viver com a sua tia materna;

A prática de actos sexuais entre o arguido e sua filha se tenha iniciado em Setembro de 1999;

A vítima tentasse permanecer o mínimo de tempo possível em casa, nos períodos em que o arguido lá se encontrava.

2.2.

Vejamos em primeiro lugar as questões que se prendem com a impugnação da matéria de facto: omissão de pronúncia; inadequado julgamento da questão de facto; valoração excessiva da perícia da personalidade e parcialidade do tribunal de 1.ª Instância no julgamento do arguido, começando por esta última.

2.2.1.

Parcialidade do tribunal de 1.ª Instância no julgamento do arguido.

Dentro das questões que se prendem com a impugnação da matéria de facto: omissão de pronúncia; inadequado julgamento da questão de facto; valoração excessiva da perícia da personalidade e parcialidade do tribunal de 1.ª Instância no julgamento do arguido, começar-se-á por esta última.

Sustenta o recorrente que o Acórdão recorrido violou e confirmou violações dos princípios da presunção da inocência, da verdade material, da legalidade, o dever de isenção e imparcialidade (conclusão 2), pois tratando-se de um crime alegadamente praticado contra a autodeterminação sexual de uma jovem pelo próprio pai, teria o tribunal que proceder com o maior cuidado, objectividade, isenção e rigor, evitando a formulação de um juízo arbitrário ou intuitivo sobre a verificação, ou não, de um facto ou do próprio crime (conclusão 3), adquirindo a convicção ser adquirida através de um processo racional, ponderado e maturado, alicerçado e objectivado na análise critica e concatenada dos diversos dados e contributos carreados pelas provas produzidas, no máximo respeito pelo princípio da presunção da inocência e da verdade material (conclusão 4), o que não aconteceu, não só no julgamento, mas em todo o processo, desde o inquérito até a sentença condenatória e agora no douto Acórdão confirmatório (conclusão 5)

Exemplo evidente da falta de objectividade, isenção, rigor – diz – é o próprio Acórdão do Tribunal a quo [de 1.ª Instância], no que se refere ao seu conteúdo, formulação e redacção, o qual é prenhe em considerações arbitrarias, adjectivações impróprias e juízos de valor alicerçados em meras convicções ou intuições, o que foi convalidado pela Relação de Guimarães, que apenas considerou terem existido “alguns apartes opinativos desnecessários” (conclusão 6), mas desde o início do julgamento é evidente a existência de uma convicção prévia, com evidente valoração de provas que ainda não tinham sido produzidas em julgamento ou que nem sequer vieram a ser, ou ainda, já no decurso da audiência, com a produção de provas requeridas pela defesa do arguido, com o único objectivo de se evitar a omissão de diligências que pudessem vir a servir de fundamento a um eventual recurso do arguido do Acórdão condenatório que veio a ser produzido a final (conclusão 7).

Defende o recorrente que o Tribunal ad quem [Relação] deveria – e não o fez – ter valorado negativamente a conduta do Tribunal de 1.ª Instância, «no decurso do julgamento e na própria tomada de decisão, a qual espelha um preconceito contra o arguido e, inclusivamente, a existência de um pré-juízo anterior à própria produção de prova. Para além dos “apartes opinatívos desnecessários” no douto Acórdão, o Tribunal a quo, no decurso do julgamento teve afirmações e comportamentos que denotavam desprezo pelo arguido e uma clara simpatia pela assistente. Conferir nesse sentido actas de julgamento e toda a prova gravada – que parcialmente supra se reproduziu –, que aqui se dá por reproduzida e integrada para todos os efeitos legais» (conclusão 8). «Foram várias as situações durante o decurso da audiência – cfr. toda a prova gravada que aqui se dá por integrada e por reproduzida para todos os efeitos legais –, e resulta do próprio Acórdão prolatado na primeira instância e na respectiva fundamentação, a parcialidade, a falta de serenidade, o envolvimento e comprometimento emocional com uma das versão trazidas a julgamento – no caso concreto com a versão da assistente –, o pré-juízo e o desprezo direccionado ao arguido (conclusão 9)»

Supra foram citadas algumas das passagens gritantes dessa falta de imparcialidade, que o Tribunal ad quem limitou-se a considerar serem apenas “apartes opinativos desnecessários”, tendo a prova sido “apreciada segunda as regras da experiência e da livre convicção dos julgadores, mas não de forma discricionária e arbitrária; antes de forma fundamentada, pese embora alguns apartes opinatívos desnecessários” (conclusão 10). Para o Tribunal ad quem [Relação], desde que o Tribunal a quo [1.ª Instância] fundamente devidamente a sua decisão e esclareça o processo lógico mental de convicção que lhe permitiu dar como provados os factos impugnados, não há parcialidade, arbitrariedade, comprometimento emocional com uma das versões, falta de serenidade ou pré-juízos ou e juízos de valor alicerçados em meras convicções ou intuições (conclusão 11)

Mas a prova será valorada segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador, e é esse Tribunal de 1ª instância que “se encontra em melhor posição para avaliar a prova testemunhal carreada para os autos e valorar os seus depoimentos, pois ouve-os directamente da boca das testemunhas, vê as suas reacções e comportamentos perante o que lhes é perguntado, enquanto que ao Tribunal da Relação faltam esses dois princípios essenciais – o da oralidade e da imediação – já que o registo da prova ‘não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. “Ou seja, se os juízes que compuseram o colectivo ou algum deles, não for imparcial, estiver comprometido emocionalmente com uma das versões dos factos ou tiver pré-juizos quanto ao crime dos autos, naturalmente que na avaliação e valoração da prova testemunhal – que não pode ser sindicada devidamente pelo Tribunal ad quem face á oralidade e imediação – e até na sua respectiva percepção e apreensão (do que foi dito pelas testemunhas) fará uma avaliação positiva e credibilizante de todo o depoimento ou relato ou informação que confirme a versão que crê ser a verdadeira ou a qual aderiu por comprometimento, desvalorizando as demais, ou fará ou poderá fazer uma interpretação ou atribuir um relevo ao que foi dito distinto do que foi dado pelos respectivo depoente, caso eventualmente seja prejudicial à versão à qual aderiu ab initio. Mais poderá o juiz ou Tribunal de 1.ª instância, como efectivamente aconteceu, formular perguntas e colocar questões sugestivas ou tendenciosas (conclusão 12). Que foi o aconteceu neste processo, tendo claramente o colectivo demonstrado a sua parcialidade, quer na fase de produção de prova, quer na decisão e respectiva fundamentação, o que foi caucionada por insigne Tribunal da Relação de Guimarães (conclusão 13)

E ao agir como agiu, o Tribunal ad quem [Relação] e anteriormente o Tribunal a quo [1.ª Instância], pese embora este último e o primeiro terem fundamentado – incorrectamente na nossa opinião – a sua decisão e esclarecido – o segundo – o processo lógico mental de convicção, foram absolutamente parciais e violaram de forma clara o principio da presunção da inocência e consequentemente violaram o disposto no n.° 2 do art. 32° da Constituição, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos (conclusão 14).

Perante esta posição, a Relação decidiu:

«Saber se ao dar como provados os factos referidos o Tribunal a quo violou os princípios da presunção de inocência, da verdade material, da legalidade e o dever de isenção e imparcialidade;

Em primeiro lugar, como atrás ficou dito, no nosso sistema processual penal vigora o princípio da chamada prova livre, o que significa que, em regra, não existem critérios legais que determinem o valor a atribuir à prova. Esta será valorada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do juiz (art°127° do C.P.P.)..

Esta regra sofre algumas excepções ou “limites” (assim lhes chama Castanheira Neves - Sumários de Processo Criminal - Coimbra 1968) “designadamente as respeitantes ao valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (art.169.°); ao caso julgado, não obstante este apenas se encontrar indirectamente regulado no CPP, a propósito do pedido cível (art.84.°); à confissão integral e sem reservas no I7 julgamento (art.344.°) e à prova pericial (art 163.º)”. ( r)

A prova está ainda sujeita, entre outros, ao princípio da legalidade, consagrado no n°8 do art°32° da CRP e art°s125° e 126° do C.P.P. e ao princípio in dubio pro reo.

No que se refere à convicção, ensina Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal - II pág.298), que esta, por livre, não deixa de ser fundamentada. A livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores, O julgador, em vez de se encontrar ligado por normas prefixadas e abstractas sobre a apreciação da prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia e às máximas da experiência.

Também Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado – Vol III, pág.245) escreve que o que está na base do conceito (de livre convicção) é o princípio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas (...). O sistema da prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica.

No caso, a prova em que o tribunal a quo se baseou para dar como provados os factos impugnados, à excepção da prova pericial (já acima se falou da prova pericial) é de livre apreciação (prova testemunhal).

Como ficou demonstrado quando tratamos da V questão, a prova não foi apreciada de forma discricionária, pois o acórdão mostra-se devidamente fundamentada — contém a especificação dos factos provados e não provados, a indicação dos meios de prova produzidos, com especial relevo para aqueles em que assentou a convicção do tribunal e o seu exame crítico.

É nessa fundamentação que o julgador justifica a sua decisão expondo o raciocínio feito para a ela chegar e os motivos que determinaram a sua opção por uma ou outra versão, a razão por que privilegiou determinados depoimentos ou mesmo a dúvida inultrapassável que não lhes permitiu dar credibilidade a nenhuma das versões, ou seja, é através dessa “explicação” que o demonstra que ponderou correctamente as provas e que o seu raciocínio é lógico e não viola as regras da experiência comum e é também ela que vai permitir ao tribunal aferir dessa correcção.

No caso concreto, os Srs. Juizes não a quo não manifestaram a existência de qualquer dúvida razoável (Cristina Líbano Monteiro - Perigosidade de Inimputáveis e «in Dúbio Pró Reo» - STVDIA IURIDICA 24, pág. 51) pois só essa autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido.

No que concerne ao princípio da verdade material, também conhecido como principio da investigação, o recorrente não explica a razão por que considera ter o mesmo sido violado.

Ora, o que resulta dos autos é que em julgamento foram produzidos e admitidos todos os meios de prova considerados necessários à descoberta da verdade e boa decisão da causa.

Por fim, no que se refere ao princípio da imparcialidade, já acima se demonstrou que a prova foi apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção dos julgadores, mas não de forma discricionária e arbitrária. Antes de forma fundamentada, pese embora alguns apartes opinativos desnecessários».

Importa relembrar (transcrição longa mas necessária) a extensa motivação da convicção do tribunal da 1.ª Instância, para determinar se merece censura a Relação no trecho acima citado.

Foi ela a seguinte, no que se pode chamar de motivação “positiva”, a que fundou a convicção do Tribunal.

«A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto provada e não provada decorreu:

– do depoimento da ofendida, que declarou que depois de a mãe morrer passou a ter uma relação muito conflituosa com o pai; este era um estranho que não conhecia as próprias filhas e, especialmente, com ele, tinha conflitos por causas das lides da casa, conflitos por causa da escola, pois a depoente faltava às aulas; então o pai começou a tentar controlá-la completamente, procurando saber porque tinha faltado às aulas e com quem é que andava; por tudo isto pai batia-lhe diariamente, ou com a mão, ou atirava-lhe objectos; para além de trabalhar numa fábrica de calçado, o pai tinha uma pequena oficina de carpintaria, na qual também trabalhava enquanto a mulher foi viva; depois da morte desta deixou de trabalhar na carpintaria; foi menstruada a partir dos 11 anos, mas o pai nunca se interessou por isso, apenas sabendo da sua menstruação quando no supermercado era necessário comprar pensos higiénicos; começou a escrever um diário ainda antes da mãe falecer e nele desabafava coisas privadas, algumas delas sonhadas ou fantasiadas; nunca mostrou este diário a ninguém; depois da morte da mãe, não teve mais apoio por parte da família materna porque o pai a cortou, pois não se dava bem com as tias (irmãs da falecida mulher); nunca tinha tido relações sexuais com nenhum rapaz, nem mesmo com o T..., com quem namorou cerca de quatro ou cinco meses no ano lectivo de 2000/01 e que conheceu na informática; do pai nunca recebeu uma festa, um beijo, ou um qualquer presente no dia do aniversário; pelo contrário, recorda-se bem de o pai estar em casa com um primo e de comentar com este maliciosamente que a filha estava com um rabo e um peito cada vez maior; um dia, em Setembro de 2000, no final do trabalho, o pai chegou a casa, foi ter com a ofendida e dizendo-lhe que como ela andava a sair com rapazes ele queria ver como estava isso; apercebendo-se que o pai pretendia ver-lhe a vagina, a ofendida respondeu-lhe que ele teria que confiar nela; porém, por o pai lhe estar a bater, ela acabou por se ver forçada a tirar o pijama; o arguido começou então a mexer-lhe na vagina, magoando-a, pois era virgem; de seguida, o arguido despiu-se da cintura para baixo a tentou penetrá-la, mas ela dobrou-se e virou-se de forma a impedir a penetração, até que o pai acabou por desistir; a irmã tinha ido passar as férias de Verão com um casal amigo dos pais; a ofendida chorou toda a noite; no dia seguinte não tinha aulas; ao ver o pai, nem conseguiu olhar para ele; no diário escreveu que o dia lhe tinha corrido mal; logo no dia seguinte, antes de o pai ir trabalhar, estava a ofendida a fazer a cama quando aquele a procurou pois queria outra vez ver como ela estava; a ofendida fugiu, mas ele apanhou-a no quarto dele; novamente a obrigou a despir-se e despiu-se ele da cintura para baixo; também procurou dificultar a penetração, mas o pai conseguiu penetrá-la, acabando por ejacular no interior da sua vagina; a seguir foi trabalhar como se não se tivesse passado nada; a ofendida ficou em casa a chorar, até que chegou uma amiga e ela disfarçou, fazendo de conta que não se tinha passado nada; a partir daí o pai passou a manter com ela relações sexuais sempre que lhe apetecia; nas primeiras ocasiões, fez tudo para se debater e resistir, depois deixou de resistir e, durante os abusos, o pai nunca a agrediu; até Setembro de 2000 a sua irmã MR ficava durante o dia aos cuidados de umas tias maternas, para onde a ofendida também ia depois da escola, mas como o arguido não se dava com elas, o pai tirou-as das tias e arranjou uma ama (a O. MCM); a partir daí o quotidiano da ofendida passou a ser marcado pelo medo do pai: o mais normal era ele manter consigo relações sexuais às 4s e 6as dias em que a ofendida não tinha aulas de manhã, sendo que o arguido trabalhava sempre das 14 às 22 horas; aos dias de semana a ofendida comia na escola e o pai comia na mãe dele; no fim das aulas (18 horas) ia para casa da ama da irmã (a O. MCM), onde jantavam ambas e que as tratava bem; depois do jantar o pai ia buscá-las e levava-as para casa; sempre que a MR estava em casa, o arguido mandava a ofendida para o primeiro andar da casa (que ainda estava por acabar, mas onde existia um divã e uma cómoda) e aí mantinha com ela relações sexuais, sem que a sua filha e irmã mais nova se apercebesse, muitas vezes estando esta já a dormir, na escola, durante o ano lectivo de 2000/01 (o seu 9° ano) a ofendida faltava às aulas, respondia mal a toda a gente e tirava negativas; de tal modo que foi enviada para a psicóloga da escola; tinham sessões com estas ás sextas-feiras de tarde e detestava lá ir; a ofendida não dizia nada nas sessões e como, em regra, da parte da manhã já lá tinha estado a pai a queixar-se dela, durante as sessões a psicóloga “cascava-lhe”; até Setembro de 2000 a sua irmã MR ficava em casa das tias maternas, que cuidavam dela, mas como o pai não se dava com elas, colocou-a numa ama pai nesse ano afastou-se de uma amiga que tinha anteriormente (no 8ª ano) chamada PP e que não era boa companhia; tendo sido colocada numa turma nova, fez novas amizades, e aproximou-se de uma colega de nome RR, acabando por se tomarem amigas; certo dia a RR confidenciou-lhe que, no passado, tinha sido vítima de um abuso sexual; então a ofendida sentiu que a RR seria capaz de perceber a sua situação e confidenciou-lhe o que estava a passar; a RR disse que a ia ajudar e, dias depois, pediu-lhe autorização para contar tudo à DF, uma outra amiga comum, no que a BB consentiu, pois achou que a DF era uma pessoa que a podia ajudar; então, na presença da ofendida que nada disse, a RR contou tudo à DF; até que chegou o dia em que tudo veio a saber-se, 18 de Maio de 2001: nesse dia a RR tinha arranjado os números das linhas SOS criança; julgando que a professora de Português não dava aula, saíram da escola durante essa hora e foram para uma cabine telefónica telefonar para essa linhas; das linhas aconselharam-nas a procurarem os serviços da Segurança Social ou da própria Escola; quando voltaram para a escola, verificaram que a professora de Português tinha vindo dar a aula; então foram pedir-lhe que não lhes marcasse falta, mas a professora exigiu saber o que tinham andado a fazer então a RR contou que tinham uma amiga que não era lá da escola que andava a ser abusada sexualmente pelo pai e que tinham ido telefonar para as linhas de apoio para tentarem ajudá-la; a professora de Português estranhou muito e foi relatar o caso ao Conselho Executivo; então a RR e a DF foram chamadas ao Conselho Executivo e falaram com a respectiva Presidente; a ofendida foi falar com a psicóloga da escola; nesse dia, pela primeira vez, conversaram, a ofendida contou-lhe o que se passava e chorou durante toda a sessão; todas acreditaram que o que lhe estava a acontecer era real, pensa a ofendida que devido aos antecedentes que ela apresentava e que tinham determinado que tivesse sessões com a psicóloga; depois disso a professora AP (Presidente do Conselho Executivo) e a psicóloga levaram-na ao Tribunal, onde foi ouvida, após o que a policia foi a casa buscar a sua irmão; então foram ambas mandadas para o Lar de Santa Estefânia; a MR tinha 6 anos e não se apercebeu porque foi que a tiraram ao pai; apesar de internada no Lar, continuou a frequentar a mesma escola até ao final do ano lectivo; pouco depois de tudo se saber o pai foi visitá-la ao Lar para lhe entregar o BI., como se nada se tivesse passado, e pediu-lhe para retirar a queixa; na mesma altura, cerca de uma semana depois da queixa, a professora de Matemática aconselhou-a a fazer um teste de gravidez, na sequência do qual apurou que estava grávida; depois foi examinada no Hospital e detectaram que estava grávida de cinco meses; pouco depois verificou-se que o feto estava morto e, com a medicação que lhe deram no Hospital, saiu tudo; durante este período continuou a namorar com o T..., que a apoiou muito e lhe deu muito carinho; esteve algumas vezes com o T... num apartamento de um irmão dele, mesmo depois de saber da sua gravidez, mas nunca mantiveram relações sexuais; antes de namorar com o T..., tinha namorado com o MM, com quem teve umas ‘curtes; durante o Verão de 2000 relacionou-se com um Zé durante cerca de um mês, indo ter com ele sempre que conseguia; gostava muito dele, mas ele deixou-a; no seu diário relata actos sexuais sem penetração com rapazes e admite que os mesmos aconteceram realmente; não se recorda de relacionamentos desta natureza com outros rapazes; por várias vezes ao longo do seu depoimento declarou peremptoriamente que o pai foi o primeiro homem com quem teve relações sexuais; pouco depois de ter tido o aborto, o Lar não a quis mais, pelo que foi entregue à guarda dos avós maternos e de uma tia materna, juntamente com a irmã; depois passou a frequentar a escola na Póvoa de Lanhoso, onde acabou por tirar o curso de auxiliar de educação infantil, área em que actualmente trabalha; até ao último ano dos estudos, sempre teve acompanhamento psicológico, mas ainda hoje não consegue compreender o pai; desde que saiu de casa do pai, no dia 18 de Maio de 2001, nunca mais lá voltou e nunca mais teve acesso às suas coisas, fossem roupas, objectos pessoais, ou o seu diário; este diário tinha-lhe sido oferecido pela D..., que foi sua amiga durante o 8° ano; actualmente vive com um companheiro há cerca de um ano e meio; recentemente, em Outubro ou Novembro de 2006, o pai procurou-a, levando-lhe o irmão mais novo que não conhecia e fazendo-lhe ofertas em dinheiro; pediu-lhe novamente que retirasse a queixa; a ofendida respondeu-lhe que desistia da queixa se o pai confessasse o que lhe tinha feito; desde essa altura, o pai não tomou a procurá-la; após ter tido oportunidade de ler o seu diário (que entretanto o arguido decidiu juntar aos autos) acrescentou ainda que: tudo o que nele está escrito é da sua autoria, com excepção de quatro páginas escritas após o dia 24/10/2000, entre “Olá Cia” e “Xau Beijinhos” neste diário; das folhas soltas que o acompanham, há duas que não foram escritas por ela e que começam por “Olá BB” e “A Mãe Dolorosa”; não reconhece nenhum dos envelopes; pela leitura do diário é capaz de precisar com exactidão os dois primeiros dias em que ocorreram os abusos, situando em 08/09/2000 o dia em que o pai tentou penetrá-la pela primeira vez e em 11/09/2000 o dia em que o pai voltou a tentar ter relações consigo e conseguiu; rectificou, assim, as suas declarações anteriores; realçou, de tudo o que escreveu no seu diário que, referindo-se a esses dias escreveu: “11/09/00, Segunda-Feira. 12:45: Querida KITTI! Hoje e no dia 8/09/00 foram os dias piores da minha vida (...)” no dia 22/09/2000 escreveu, ainda: “22/09/00, Sexta-Feira, 9:25: Querida Kitti! Estas últimas semanas foram as piores da minha curta vida está tudo mal (…)”; instada a explicar se efectivamente foi agredida por suas tias à saída da missa de ano da sua mãe, declarou que não foi agredida; explicou que foi o pai que apresentou queixa por ela, que era menor; que prestou no(s) inquérito(s) declarações que não correspondiam à verdade, instruída pelo pai, mas que quando teve oportunidade, e sendo já maior, desistiu da queixa contra as tias; os escritos que constam de fls. 99 e 100, em que relata as agressões das tias foram-lhe ditados por seu pai (usa mesmo, segundo declarou, linguagem que não lhe era habitual) para serem mandadas para um jornal, onde foi publicada uma notícia a este propósito (acerca desta noticia, cuja publicação foi promovida pelo arguido, vejam-se adiante as declarações da testemunha Drª AP);

– da análise das perícias realizadas à ofendida conclui-se pela verificação de indícios de veracidade do seu relato; na verdade:

a) no relatório de avaliação psicológica realizado pela Unidade de Consulta em Psicologia da Justiça da Universidade do Minho (lis. 172 e ss.), cujo teor aqui se dá por reproduzido, concluiu-se que:

“os resultados da perícia realizada à BB apontam para a capacidade testemunhal da jovem, tendo sido reunidos através dos seus testemunhos vátios elementos de credibilidade que apoiam a alegação de abuso”

b) no relatório psiquiátrico-forense realizado pelo Centro Hospitalar Conde de Ferreira (fis. 745 e ssj, cujo teor aqui se dá por reproduzido, concluiu-se que: “frente à ausência de patologia psiquiátrica que comprometesse a personalidade da examinada, no que tange às alegações feitas e existindo no seu discurso os elementos positivos já assinalados, somos de opinião que estamos diante de fortes indícios de veracidade dos fados,

– da ponderação da credibilidade de todo o depoimento da ofendida, resultou a clara convicção de que os fados relatados pela mesma correspondem, infelizmente, à verdade; durante os seus depoimentos a ofendida manteve uma postura séria e um discurso coerente e Lógico, que não pareceu determinado a distorcer a realidade em favor da sua versão dos factos; deu respostas ponderadas, admitindo diversas vezes não se recordar do pormenores que lhe eram perguntados; não incorreu em contradições na resposta às muitas questões que lhe foram colocadas pelo Ministério Publico, pelo seu Advogado, por este Tribunal e pela Defesa (mesmo em inquirição directa); no seu depoimento inicial declarou que o primeiro dia em que seu pai tentou penetrá-la fora a 3 de Setembro de 2000 e que a efectiva penetração ocorrera em dia em que não teve aulas de manhã, que situava no dia seguinte; porém, após a entrega do diário no processo pelo arguido, a ofendida disponibilizou-se a ser confrontada com o teor do mesmo; prestando novamente depoimento declarou, espontaneamente, que após a leitura do diário verificou que o dia em que o pai tentou penetrá-la foi o dia 8 de Setembro e que o dia da primeira penetração foi o dia 11 de Setembro, o que concluiu pela leitura do que escreveu no diário nesses dias; entendemos que esta atitude, ao contrário de fragilizar a credibilidade do seu relato, antes o reforça, pois nenhuma necessidade teria a ofendida de admitir este seu engano (perfeitamente normal) se não fosse a vontade que nos pareceu genuína de esclarecer totalmente a verdade;

– dos depoimentos, também geralmente muito bons, das testemunhas de acusação:

RR , amiga e colega de escola da BB à data dos factos, que declarou terem frequentado a mesma turma no 9° ano; na opinião dela a BB era uma rapariga que, na altura, teria problemas psicológicos; mesmo antes de saber o que se passava, já a BB era uma pessoa com quem era difícil lidar e que tinha transtornos psicológicos; por isso achava normal que ela andasse na psicóloga da escola, visto que sabia que ela tinha perdido a mãe e tinha dificuldades de comportamento; lembra-se que quando começaram a ser amigas a BB lhe contou que não tinha mãe; também falavam habitualmente de rapazes e de “curtes”; lembra-se de a BB falar de um SS e de dizer que tinha interesse por ele, mas não se lembra de nenhum Zé; desde que começaram a ser amigas a BB afastou-se da PP, que era sua amiga, mas com quem a testemunha nunca andou; um dia a testemunha confidenciou à BB que tinha sido vítima de abuso sexual; uns dias depois, no pátio da escola, a BB contou-lhe que o pai a violentava e que lhe dava quase “maus-tratos” antes de a BB lhe contar os abusos, não se recorda que ela lhe tivesse falado do pai; ela contou-lhe os factos sem grandes detalhes, mas antes resumidamente, que era violada pelo pai em casa e que tais actos já duravam há algum tempo; ao ouvir este relato, perante as lágrimas da BB, acreditou logo que era tudo verdade; para além do mais lembra-se bem que havia alturas em que a BB não queria fazer a aula de Educação Física e que, um dia, a DF reparou que ela tinha uma nódoa negra numa perna; depois de a BB lhe ter contado tudo, falaram com a DF e arranjaram (não se lembra exactamente quem) os números de telefone das linhas de apoio à criança; depois relatou o dia em que tudo ficou a saber-se da mesma forma que a BB o contou: julgando que a professora de Português não dava aula, saíram da escola durante essa hora e foram para uma cabine telefónica telefonar para essas linhas; das linhas aconselharam-nas a procurarem os serviços da Segurança Social ou da própria Escola; quando voltaram para a escola, verificaram que a professora de Português tinha vindo dar a aula; então foram pedir-lhe que não lhes marcasse falta, mas a professora exigiu saber o que tinham andado a fazer; então a RR contou que tinham uma amiga que não era lá da escola que andava a ser abusada sexualmente pelo pai e que tinham ido telefonar para as linhas de apoio para tentarem ajudá-la; a professora de Português estranhou muito e foi relatar o caso ao Conselho Executivo; então, no decurso de uma aula, ela e a DF foram chamadas à Professora AP, Presidente do Conselho Executivo (não se recorda qual delas foi chamada primeiro), a quem julga que contou a mesma versão que tinham relatado à professora de Português (mas não tem a certeza absoluta); mas recorda-se que esta percebeu logo que a rapariga em causa era a BB; ao mesmo tempo, a BB foi falar com a psicóloga da escola; naquela altura a BB namorava com o T... e nunca lhe referiu que tivesse relações sexuais com ele; para além do T..., só tinha tido namoricos próprios de uma rapariga de 14 anos; não acha provável que a BB lhe ocultasse relações sexuais com o T... ou outro rapaz, pois era muito mais fácil para qualquer rapariga contar a uma amiga relações sexuais com um namorado do que contar que o pai a violava, como a BB lhe contou; para além de ter acreditado no relato da BB, a testemunha tentou ajudá-la, pois achou que a situação era muito grave; mesmo antes do dia em que foram ao Conselho Executivo, pensa que fizeram à BB um teste de gravidez comprado na farmácia, que deu negativo (confrontada, a ofendida declarou não se recordar deste teste, mas apenas daquele que fez aconselhada pela professora de Matemática); no entanto, quando depois a BB soube que estava grávida e lhe contou, a testemunha perguntou-lhe logo se era do pai e a BB respondeu-lhe que sim; para além disto, os tempos que a BB passou no Lar foram muito difíceis; ela sofreu muito com toda esta situação;

DF, também colega e amiga da ofendida, que declarou que apenas conheceu a BB naquele 9° ano, quando foram as três para a mesma turma; a BB era uma rapariga fechada, que gostava mais de escrever e tinha um círculo muito restrito de amigos; ficaram as três amigas na mesma altura; só soube dos factos um pouco mais tarde que a RR; recorda-se que numa 3ª à noite a BB lhe telefonou para casa, dizendo-lhe que queria falar com ela; então combinaram encontrar-se no dia seguinte (4ª-feira) na escola, pelas 8 h 30 m; quando se encontraram, estava também presente a RR que lhe contou o que se passava com a BB; lembra-se de lhe ter sido relatado que: «o pai da BB tinha chegado a casa com o intuito de saber se a BB era virgem e de a ter despido; a BB tentou cobrir-se e resistir e depois ocorreu a violação; as relações sexuais ocorriam cerca de três vezes por semana, depois de a irmã mais nova sair de casa; não se lembra há quanto tampo era que tal acontecia, mas acontecia há algum tempo»; acreditou que era tudo verdade e decidiu também ajudar a BB, mas como esta tinha medo que não acreditassem nela, resolveram telefonar para linhas verdes, o que fizeram na 6ª-feira seguinte; relatou este dia de forma semelhante ao já relatado pela ofendida BB e pela testemunha RR; quando foi chamada, com a RR à Dr.ª AP foram encostadas à parede e admitiram que a rapariga que era violada pelo pai era a BB; tanto quanto sabe, enquanto ela e a RR falavam com a Dr.ª AP (no Conselho Executivo), a BB falava com a Dr.ª Pa... (a psicóloga); ante de tudo se saber, a BB falava de outros rapazes, mas não se recorda quem eram; também não sabe nada relativo a eventuais saídas da escola da BB acompanhando a PP; apenas se lembra de ver o pai da BB na Escola depois de a situação ser conhecida; mais concretamente, recorda-se de este ter lá ido dizer à professora que a BB tinha desistido da queixa o que, afinal, não correspondia à verdade: o namorado que a BB tinha na altura era o T...; mas a BB sempre lhe disse que era virgem antes de o pai a ter violado; a BB sofreu muito com a situação, nomeadamente, ficou em pânico quando soube que estava grávida (também esta testemunha não se recorda de nenhum teste de gravidez feito pelas três a que aludiu a testemunha RR); chegou a colocar-se a hipótese de ela abortar, mas ela não teve coragem; no entanto, acabou por abortar espontaneamente;

T... , namorado da BB naquele ano, que declarou que ambos se conheceram num curso de informática; começaram a namorar em fins de Abril; como não andava na mesma escola, ia ter com a BB a escola dela uma vez por semana; a certa altura chegou lá a ficou a saber que a BB estava no Lar; depois ainda esteve com ela mais algumas vezes, indo ambos para um apartamento do irmão da testemunha, onde viam televisão e deram uns beijos; ao todo namoraram cerca de um mês até finais de Maio; esteve com a BB duas ou três vezes na escola e duas ou três vezes no apartamento; também falaram ao telefone mais duas ou três vezes; só em fins de Maio soube o que se passava com a BB porque a RR lhe contou; a BB não lhe tinha contado nada, pois sobre certas coisas era muito reservada; soube que ela estava grávida quando a própria BB lhe contou o que o pai lhe tinha feito; lembra-se que ela estava muito abalada, mas não de pormenores sobre os abusos que ela lhe relatou; depois de saber que ela estava grávida ainda esteve com ela no apartamento do irmão, pois não lhe pareceu bem não lhe dar apoio; porém, em Setembro conheceu outra rapariga na escola e começou a namorar com esta; só conhecia o pai da BB de este a ir levar e buscar ao curso de informática, ao sábado e não tinha má ideia dele; nunca falaram acerca dos namorados que ela teria tido anteriormente;

– estas três testemunhas foram, também elas, muito correctas nos seus depoimentos; todos revelaram ser pessoas ponderadas e com formação, respondendo cuidadosa mas convictamente às questões que lhe foram colocadas, sempre com o cuidado de responderem apenas sobre os factos de que recordavam e referindo sempre que não se recordavam ou desconheciam certos aspectos que lhe foram perguntados; transmitiram uma ideia muito concreta do tipo de amigos com quem a BB se dava naquele ano: jovens aparentemente ajuizados e com boa formação;

– também tiveram depoimentos muito importantes e coerentes as testemunhas:

Drª CF, psicóloga da escola, que declarou que a BB foi encaminhada para o atendimento em psicologia por indicação o seu Director de Turma, porque estava a baixar muito de rendimento; começou a atendê-la ainda no primeiro período, mas só ia àquela escola um dia por semana; como a BB foi encaminhada para as consultas pelo fraco rendimento e pela vertente emocional, começou por abordar a vertente académica, para assim ir estabelecendo uma relação terapêutica; porém foi muito difícil: a BB revelava sintomatologia depressiva e perturbação emocional, com labilidade de humor, crises de choro e mutismo nas consultas, pelo que até à última sessão que fez com ela não tinha chegado a apurar a causa de tais perturbações; no entanto, era notório para a testemunha, enquanto psicóloga, que havia algo que perturbava imenso a BB e não era apenas o luto não resolvido pela morte da mãe; como a certa altura a BB revelou dificuldades na relação com o pai e agressões físicas pelo mesmo, a testemunha optou por solicitar a presença do pai, com quem falou algumas vezes; este, para além de admitir que, numa ocasião tinha batido à filha, revelou-se pouco preocupado com o fraco rendimento desta na escola; concentrava-se, antes, na parte comportamental, relatando à testemunha que a filha não fazia as tarefas de casa, que não lhe obedecia, que acompanhava com pessoas impróprias que tinham comportamentos incorrectos com rapazes; porém, nas sessões com a BB, a testemunha somente apurou que a mesma era muito imatura a nível sexual e que não revelava nenhuma conduta sexual diferente das demais adolescentes da sua idade; mesmo as paixonetas por rapazes se enquadravam na normalidade de um rapariga daquela idade; mas até à última sessão com a BB esta nada lhe tinha revelado sobre o que se passava; só ficou a saber de tudo na conversa que teve com a BB no dia em que tudo se descobriu; nesse dia, quando lhe relataram a suspeita de que a BB seria abusada sexualmente pelo pai, a testemunha não teve dúvida em associar que era essa a explicação que, até então, lhe tinha faltado; nesse dia chamou a BB para conversar consigo e, orientando a consulta para esse campo, logo conseguiu que a BB lhe relatasse o que se passava entre si e o pai; este relatou-lhe «que tudo tinha começado quando a irmã estava fora de casa em férias, que os abusos ocorriam quando o pai chegava a casa ou antes de sair para o trabalho e que ocorriam no quarto do pai»; não tem qualquer dúvida da veracidade do que é relatado pela BB, e por dois motivos: primeiro, porque a contextualização do relato feito pela BB com o quadro emocional que ela apresentava concorre no sentido da veracidade do relatado; depois, porque tendo alertado a BB para a gravidade da situação que ela estava a denunciar, instando-a a reflectir bem sobre se o que contava era mesmo verdade, ela não vacilou nada e manteve que tudo era verdade; recorda-se, ainda, que a BB revelava um grande instinto protector face à irmã mais nova; enquanto psicóloga, entende que a denúncia feita pela BB não se coaduna com uma hipotética tentativa de ocultar uma qualquer gravidez de um namorado, pois neste caso não se verificariam todos os antecedentes de depressão e perturbação emocional que vinha detectando deste o primeiro período; confrontada com o teor do relatório de fls. 101, por si elaborado, esclareceu que o mesmo foi feito para a reunião de avaliação do 2° período;

Dr.ª AP, à data Presidente do Conselho Executivo da Escola de S. ..., que declarou que antes de saber dos abusos já tinha ideia da BB, por ser uma aluna que tinha ficado sem a mãe; o pai da BB por várias vezes tinha pedido para falar com ela, porque tinha problemas de relacionamento com a filha e pedia o apoio do executivo; nessa altura ficou com a ideia que aquele pai estava a procurar a ajuda da escola, relatando diversos problemas com a filha: que esta andava com vários rapazes, que tinha gastos exagerados no telemóvel, que não fazia as tarefas domésticas; de tudo isto verifica hoje que não era normal que o pai a procurasse, pois o normal seria contactar do Director de Turma; por outro lado, estes relatos não se coadunavam com o que se verificava na escola, onde não se testemunha que a BB tivesse uma conduta diferente das demais alunas da sua idade; por outro lado, a testemunha, que tinha começado por ter empatia pelo pai da BB, deixou de a ter e passou mesmo a ter uma má impressão dele quando se apercebeu que tinha saído uma notícia no jornal sobre a cena de pancadaria à porta da Igreja entre as tias da BB e a ama da irmã e que tinha si o próprio arguido a chamar os jornalistas para a divulgarem; com este quadro acerca do pai da BB deu-lhe um clic quando foi procurada pela professora de Português, que lhe deu conta que umas alunas tinham contado que uma rapariga que não era da escola andava a ser violada pelo pai; foi aquele pressentimento que a levou a confrontar a RR e a DF, perguntando-lhes se não seria a BB, o que estas confirmaram; hoje está perfeitamente convencida que ele se apresentava deliberadamente como vitima para minar a credibilidade da filha junto da escola; no dia em que tudo se descobriu, a BB contou-lhe o que o pai faz: a: «que a violação já ocorria há tempos e que as relações sexuais ocorriam normalmente da parte da manhã, antes do pai ir trabalhar; que ao principio não eram tão frequentes e que depois passaram a ter mas regularidade»; a testemunha declarou estar convicta da veracidade do relato da BB por três motivos: primeiro, porque ela própria procurou assegurar-se a veracidade do que a BB estava a relatar, nomeadamente, fazendo-a ver a gravidade da situação; depois, porque se lembra bem da grande preocupação revelada pela BB com a segurança da irmã, caso esta ficasse em casa com o pai; finalmente, porque quando se descobriu que a BB estava grávida, foi a testemunha que a acompanhou ao Hospital e informou-a que com a gravidez havia maneira de provar, através do ADN, a identidade do pai e mesmo perante isto a BB não hesitou em manter que o que contara era verdade; confrontada com o seu depoimento no inquérito em que alude a comportamentos desviantes ou pouco correctos com rapazes, declarou que, no momento presente, não se recorda de nenhum comportamento incorrecto da BB com rapazes;»

E concluiu-se aí, de seguida, positivamente:

– da conjugação de todos estes depoimentos, nomeadamente ponderando a credibilidade que o relato da vítima mereceu junto de ambas, e os motivos que ambas indicaram como fundamentos de tal credibilidade, bem como as particularidades detectadas por ambas na conduta do pai e o juízo póstumo que esta lhes merece, não fica este Tribunal com qualquer dúvida que o crime ocorreu como descrito pela vítima;

A simples leitura desta motivação demonstra, como também o entendeu o Tribunal recorrido, que a decisão da questão de facto não foi arbitrária e infundamentada, não contendo a mesma qualquer expressão que permita sequer sugerir parcialidade.

Ou seja, o Tribunal de 1.ª Instância, explicou racional e distanciadamente as razões pelas quais entendeu que os factos se haviam passado na forma que haviam assentado.

Só depois entrou na apreciação das declarações do arguido e na estratégia de defesa por ele ensaiada no julgamento. Apontou aí as razões pelas quais não conferira credibilidade às declarações do arguido e à sua estratégia de defesa. Também aí, como entendeu a Relação, está presente a racionalidade, mas foram deixados, o que aquele Tribunal Superior, e bem, classificou de «alguns apartes opinativos desnecessários», que se realçam no texto que se segue. Na verdade, esses apartes não inquinam o discurso lógico e sustentado da motivação, pelo que não demonstram parcialidade do tribunal na decisão da matéria de facto, antes e desnecessariamente traduzem a opinião do Tribunal sobre a estratégia do arguido, que, em rigor deveriam ter omitido, na forma usada.

Escreveu-se, então, o seguinte, na decisão da 1.ª Instância

«– nas suas declarações o arguido negou os fados e declarou não ter qualquer explicação para o facto de a filha lhe fazer tal acusação; relatou como após a viuvez ficou a viver com as duas filhas BB e MR que, à data teriam 13/14 anos e 6/7 anos, respectivamente; nunca conheceu qualquer namorado à filha, apenas ficou a saber pela psicóloga da escola que ela faltava às aulas e saltava a rede da escola e se ausentava na companhia de rapazes; foi a psicóloga da escola que lhe referiu que a filha tinha comportamentos desadequados e não o contrário; após a sua viuvez, a família da falecida esposa dava algum apoio na realização dos trabalhos domésticos; depois ensinaram a BB a fazer as tarefas domésticas e, aos poucos, esta passou a ir fazendo as coisas; quanto a ele, procurava que a filha fizesse as tarefas domésticas e esta até se esforçava por as fazer bem, em colaboração com ele; mas era muito teimosa e não ia com pancada; sabendo insto, declarou que só lhe deu umas “chapadas” uma vez ou duas, negando que a agredisse frequentemente; declarou que passava muito pouco tempo em casa, pois trabalhava na fábrica e fazia, ainda, uns biscates de carpintaria; acabava por só estar em casa ao fim-de-semana, sobretudo aos domingos; contou, de uma forma muito pouco credível, como nesta altura namorava com uma tal Rosa, dos Carvalhos; nunca soube que a filha tivesse relações sexuais com rapazes, pois confiava nela; também nunca soube se a filha era, ou não, menstruada; relatou como começou por entregar as filhas aos cuidados de uma irmã da falecida mulher, enquanto estava a trabalhar, mas as miúdas começaram a queixar-se de maus-tratos e, então, o arguido retirou-as da família materna e arranjou-lhes outra ama; a própria BB, no diário, refere os maus-tratos dados pela família materna; na missa de ano da esposa a família desta deu uma “coça” na nova ama e na própria BB; em suma, como parece que já em 2001 era sua especialidade, o arguido teve um depoimento próprio de uma verdadeira vítima; era um pobre pai viúvo, que se esforçava por ter uma boa vida com as duas filhas, apesar da maldade da família da falecida mãe e que acabou por ser recompensado dos esforços que fez com uma falsa denúncia pela filha de abusos sexuais que nunca praticou; revelou-se sempre uma postura defensiva, pouca desenvoltura na resposta ás perguntas que lhe foram feitas e, mesmo, algum deficit intelectual; apresentou-se na primeira e segunda sessões de com duas muletas, apesar de nenhuma dificuldade ter tido em manter-se de pé enquanto foi interrogado; depois de abandonar as muletas, passou a estar em julgamento colocando uma mão em forma de concha sobre o ouvido esquerdo, assim da ido a entender que ouvia mal, isto apesar de não revelar qualquer surdez quando era interrogado; em suma, adoptou tentativas de manipulação do Tribunal, por via da vitimização que, de tão rudimentares, se revelaram perfeitamente irritantes e merecedoras de desprezo; houve ainda um momento durante o julgamento, em que o arguido se levantou e sorriu num esgar de prazer, quando a filha foi confrontada com partes do seu diário (que na opinião do arguido provavelmente iriam destruir a sua credibilidade), em que o arguido verdadeiramente deixou transparecer que nenhum sentimento nutre pela filha, antes parecendo que, verdadeiramente, a detesta;

– depois de tão comedidas declarações, começou a defesa a por em campo a sua tese e que se resumiu, em linguagem crua, a invocar ao longo de todo o julgamento que a ofendida é uma pessoa sexualmente promíscua, mentirosa e louca que, por ter engravidado decidiu acusar o pai; com este desiderato, pretendeu utilizar os seguintes meios de prova:

– os depoimentos das seguintes testemunhas:

Maria Rodrigues, tia materna da ofendida, que relatou as circunstâncias da morte da irmã e declarou que após a sua morte ofereceram ajuda ao cunhado, mas que este recusou, pois dizia que a BB já tinha idade para tratar da casa; tomaram conta das miúdas desde que a irmã faleceu e até ao final daquele ano escolar (1999/2000); após as férias do Verão as miúdas nunca mais foram para casa delas, pois o pai arranjou-lhes uma outra ama; esta nova ama começou a dizer que elas davam fome às miúdas e que lhes batiam, o que não era verdade; por isso é que houve o desentendimento à saída da missa de ano da sua falecida irmã (em Novembro de 2000); declarou que nesta ocasião não agrediram a BB, contrariamente ao que ela declarou no processo-crime que correu por tais agressões; em Maio de 2001 uma vizinha do arguido contou-lhe que as miúdas não estavam em casa do pai e que não sabiam delas; acabaram por dar com elas no Lar de S. Estefânia; posteriormente a BB foi entregue a uma irmã da testemunha e a MR a outra irmã;

MC, também tia da ofendida, que também relatou a briga ocorrida à porta da Igreja no dia da missa de ano da falecida irmã; mais declarou que o arguido tinha batido na BB e depois aproveitou estas pisaduras para obrigar a filha a fazer queixa de agressões que não sofreu; também referiu que até Junho de 2000 as meninas estavam ao cuidado da mãe da testemunha, durante o dia, mas em Setembro não voltaram; a MR sempre lhes disse que o arguido batia muito na BB; depois de serem retiradas ao pai, em Maio de 2001, a BB foi entregue á guarda desta testemunha e a MR a uma sua irmã; nunca teve problemas em lidar com a BB; a BB acabou por retirar a tal queixa antes do julgamento, pelo que não foi a tribunal mentir;

– nesta altura a defesa teve uma alegria: a BB é de tal forma capaz de mentir que até manteve um relato falso de agressões que nunca sofreu! Neste seguimento juntou aos autos certidões com todas as mais diversas declarações prestadas pela Ofendida nesse(s) processo(s), e que constam de fls. 1019— 1050;

– veio, mais tarde, a depor a testemunha MCM, que foi ama da irmã da BB durante 7 meses (e que era arguida no tal processo juntamente com as tias) e foi muito amiga da falecida esposa do arguido; declarou que passou a cuidar da pequena MR no mês de Setembro de 2000; também acabou por conviver com a BB pois esta, ao vir das aulas, ia para sua casa e jantava lá, ali ficando as duas até o pai sair do trabalho; nunca notou nada de estranho na BB e, em seu entender, o pai era muito amigo das filhas e preocupado com elas; desde que passou a olhar por elas, estavam ambas bem cuidadas, nomeadamente, a BB até tinha engordado; uns dias antes da denúncia lembra-se de a BB lhe referir que o pai ia fazer anos e que queria arranjar dinheiro para lhe comprar uma prenda; nunca conheceu quaisquer namoradas ao arguido; no dia da denúncia relatou como a BB apareceu em sua casa, acompanhada por uma senhora que ficou no carro e que julga era sua professora (era a Dr.ª AP); estava completamente transtornada e foi pedir-lhe que lhe entregasse a MR para a levar com ela; no dizer da testemunha, a BB estava em pânico, com medo de deixar ficar a irmã; naturalmente que a testemunha, vendo o estado de transtorno da BB, não deixou ir a MR;

– é engraçado, como esta testemunha, sem noção do que estava a relevar, veio contribuir de modo relevante para reforçar a credibilidade do depoimento da ofendida; é que já anteriores testemunhas tinham referido como a BB tinha um grande instinto protector pela irmã mais nova e como tinha receio que, na falta dela, o pai abusasse da MR; pois aqui está este medo terrível relatado em primeira mão pela testemunha MCM: “a BB estava em pânico com a ideia de deixar ficar a irmã”; só a veracidade da denúncia da ofendida pode justificar este medo, este pânico, este transtorno que apresentava ao tentar ir buscar a irmã; se o seu relato fosse falso, e por muito inteligente que fosse, ou por muito sangue frio que tivesse, alguma vez teria a atitude que teve de tentar ir ‘salvar a irmã? E teria sido capaz de encenar tal estado de espírito?

- relativamente a esta testemunha, a defesa procurou explorar, mais uma vez, o filão da mentira; e, para manter a tese de que a ofendida mente, mudou de rumo: se a BB foi mesmo agredida, como veio dizer a D. MCM, então mente quando vem agora nesta audiência dizer que afinal não apanhou (!); em suma, a BB mente, relativamente ao quê, é indiferente, desde que a alegação da mentira sirva para manter a confusão e minar a sua credibilidade!; sobre este ponto estamos em crer, mais uma vez, que a ofendida prestou as suas declarações em audiência conforme o que realmente sucedeu: não foi agredida pelas tias, apenas foi a ama; o pai fez queixa contra as tias em sua representação; ela prestou depoimento no inquérito instruída pelo pai, do mesmo modo que este lhe ditou o escrito de fls. 100, muito riscado e emendado (estava a ser ditado!) e onde a BB utiliza termos que não lhe são habituais; porém, isto não significa que a testemunha MC tenha vindo mentir neste julgamento (até admitimos que em virtude da confusão das agressões recíprocas, esteja genuinamente convencida que a BB também foi agredida); pelo contrário, o seu depoimento pareceu muito genuíno e sincero, e foi de grande utilidade para este tribunal, como já acima se explicou;

SS Silva, colega de turma da BB no 9° ano, declarou que nunca namorou com ela; confrontado com o relato escrito pela ofendida e cuja cópia consta de fls. 115 dos autos, confirmou que o mesmo efectivamente sucedeu; porém, o tal à não chegou a manter relações sexuais com a BB, por recusa desta, atento o facto de não ter preservativo; foi amigo da BB e manteve com ela uma amizade que qualificou de “íntima”; nunca ouviu dizer nada em desabono da BB e, em termos sexuais, considera-a uma rapariga como as outras;

RS, irmã do arguido, que declarou que durante o último ano de vida da mãe da ofendida se dava muito com aquela; depois do falecimento da mãe, a BB começou a andar muito estranha; ela era muito falada por andar com rapazes de mota e por faltar às aulas; foi o que lhe contaram pois, na verdade, depois da morte da mãe, a testemunha poucas vezes viu a BB; nomeadamente, não frequentava a casa do irmão, nunca foi lá a casa verificar se ela fazia as tarefas, e também nunca perguntou tal coisa ao irmão; na realidade, apenas encontrou uma vez a BB na paragem do autocarro, altura em que conversou com ela; não acha o irmão capaz de fazer aquilo de que vem acusado;

J Pinheiro, cunhado do arguido que está de relações cortadas com a ofendida, que declarou que apenas soube pelo arguido que as filhas não estavam com ele; antes disto, nunca se tinha apercebido de nada de estranho; a BB dizia sempre bem do pai; apenas conheceu um namorado à BB;

CL, sobrinha do arguido que está de más relações com a ofendida; declarou que nunca se apercebeu de nada; um dia ela, a MR e a BB foram às Taipas e a BB meteu-se com um rapaz e pôs-se em cima dele; lembra-se de ouvir falar da Rosa como sendo namorada do tio;

D..., colega da ofendida no 7º e 8° ano; declarou que não foi colega dela no 9º ano (ano da denúncia); nunca teve conhecimento de episódios concretos eventualmente acontecidos entre a BB e rapazes; a BB não era a sua melhor amiga, pelo que nunca teve confidências com ela; nunca faltou às aulas com a BB;

Maria Dias, actual companheira do arguido, que declarou conhece o companheiro há cerca de quatro anos e que têm ambos um menino com 2 anos de idade; relatou como o arguido procurou recentemente a ofendida e como conviveram todos durante cerca de um mês, tendo ambos chorado no reencontro; mais declarou que o arguido sofre muito pela falta das filhas, que vive unicamente da pensão de viuvez que recebe; finalmente, referiu que conhece a Rosa, dos Carvalhos (com quem o arguido diz ter namorado);

– deste modo, por muito que custe à defesa, a tese da promiscuidade sexual da ofendida também cai por terra; nenhuma das suas duas amigas mais importantes à data – a RR e a DF – lhe conheceu qualquer namorado, para além do ‘T...; este, por mais que o queiram obrigar a dizê-lo, nunca manteve relações sexuais com a BB, nem com penetração, nem sem penetração, nem com ejaculação, nem sem ela (9: apenas lhe deu uns beijos (9; o SS, com quem era suposto a ofendida ter participado em situações de sexo em grupo (!) veio dizer que ela tem uma conduta sexual perfeitamente normal, nada tendo a dizer em seu desabono; apenas houve duas senhoras, a tia RS e a prima CL, que pretenderam vir dizer que a ofendida era muito falada por andar com homens, mas na realidade nada viram; ficam, assim, no tinteiro todas as grandes cenas de sexo e pouca vergonha em que a ofendida andaria metida e em virtude das quais supostamente teria engravidado;

– a propósito de gravidez, há ainda a referir os esclarecimentos em audiência da Dr.ª IM, perita médica que realizou o exame de sexologia à ofendida (fls. 28-33), que declarou que neste exame não estão descritos sinais físicos de abuso sexual; por apalpação que realizou à ofendida desconfiou da possibilidade de gravidez, pelo que realizou o teste à urina, no próprio dia, que deu resultado positivo; ordenou então a realização de ecografia, que veio a revelar saco gestacional compatível com cinco semanas de gestação; explicou que em casos de relações sexuais não consentidas pela mulher é possível que a vagina apresente marcas de penetração decorrentes de ausência de lubrificação; no caso não detectou tais marcas; porém, a última relação sexual que lhe foi referida ter-se-á dado a 16/05/2001 e realizou o exame a 12/06/2001, pelo que tais marcas, a eventualmente terem existido, já teriam desaparecido;

– ao ouvir esta Sr.ª Perita, e ao chegar ao ponto de pedir esclarecimentos sobre a lubrificação vaginal da ofendida, é evidente que a defesa pretendia extrair a conclusão de que não se verificaram quaisquer sinais de relações sexuais não consentidas; correu mal esta tentativa, como seu viu, pois atento o período de tempo que mediou entre a última relação sexual referida à Sr.ª Perita e o exame, quaisquer marcas de tal natureza já teriam desaparecido;

– porém, a inquirição desta Srª Perita suscitou uma outra reflexão ao Tribunal: é que, apresentando a ofendida, em 12/06/2001 um saco gestacional compatível com gravidez de cinco semanas, e referindo a mesma – como consta do relatório – a última menstruação a 15/04 e cataménios de cerca de 30 dias, resulta óbvio que quando relatou os abusos à RR a BB ainda não podia saber que estava grávida, pois por volta dos dias 14 ou 15/05 estaria na eminência de lhe vir o período; e assim vai por água abaixo a tese da denúncia para desculpar uma gravidez, aliás absurda, como bem referiu a testemunha RR ao declarar que “não acha provável que a BB lhe ocultasse relações sexuais com o T... ou outro rapaz, pois era muito mais fácil para qualquer rapariga contar a uma amiga relações sexuais com um namorado do que contar que o pai a violava, como a BB lhe contou”;

– temos, finalmente, o diário, cujas cópias parcelares andaram a ser juntas aos autos pelo arguido (mas suas partes mais ‘suculentas”) até que, a meio do julgamento, o juntou inteiro; dele pretende a defesa retirar três conclusões: que a ofendida era sexualmente promíscua; que a ofendida nada aí relata dos alegados abusos do pai; que há excertos do diário que frontalmente afastam a verosimilhança da existência dos mesmos; quanto à primeira premissa, já se referiu no depoimento da ofendida que a mesma admite que algumas das situações íntimas que nele descreve, efectivamente tiveram lugar; outras foram por si sonhadas ou imaginadas; a mesma também indica, como já se referiu acima, as passagens do diário em que alude ao que lhe estava a suceder;

– solicitado pela defesa que sobre o mesmo se debruçasse a Sr. Perita (Dr.ª MCR) que realizou a segunda perícia psiquiátrica, foi tal pretensão deferida; esta Srª Perita desvalorizou completamente o valor do diário enquanto indício do que quer que seja, por entender que estava a ser chamada a pronunciar-se, não sobre fados reais, mas sobre relatos, que tanto podem ter sido reais como imaginários e, não raras vezes, são puramente fruto simplesmente da imaginação dos adolescentes numa altura em que “andam com as hormonas aos pulos e “muitos escrevem nos diários que se querem matar; mesmo assim, o único dado objectivo que detectou no diário foi que: tendo começado a escrevê-lo em Abril, até Setembro a ofendida apenas tinha escrito nele duas referências a mau estar; a partir de Setembro (quando começaram os abusos) as referências a desespero são constantes, do teor dos escritos resultando claramente que a sua autora era uma adolescente com insegurança e com medo;

– sobre a ofendida, dos contactos que teve com a mesma, esclareceu a Sr.ª Perita entender que e mesma não revela traços de comportamento compatíveis com confabulação (i.e. mentira psicótica); na verdade concluiu o seu relatório sobre a ofendida (fis. 868 e ss.) que a examinada não apresenta, na data desta avaliação, qualquer patologia do foro psiquiátrico

– mas a defesa não sossegou pois, segundo entende, há duas passagens no diário muito importantes: uma no dia em que o arguido terá consumado a penetração (1110912000), em que a ofendida relata um devaneio erótico com um rapaz (e no entender da defesa ninguém é capaz de imaginar situações de sexualidade heterossexual, a seguir a ser violentado sexualmente); outra, quando a ofendida escreve que o pai é o seu único amigo;

– este Colectivo e, nomeadamente, o relator deste Acórdão, não têm conhecimentos específicos de psiquiatria, nem de psicologia; mas têm, segundo crêem, abundante experiência de vida e muita capacidade para se colocarem no lugar das outras pessoas, nomeadamente as vítimas; fazendo um tal esforço e folheando o diário, logo nos resulta evidente que a ofendida o escreveu quase em diálogo com uma amiga imaginária, a Kitti a quem se dirige no início de cada relato ao escrever “Querida Kitti” e a quem vai contando a sua vida; o diálogo contém, é verdade, muitas confidências feitas a esta amiga imaginária, que nenhuma adolescente revelaria facilmente a uma amiga real; e há algumas que são mesmo reais, como a ofendida admitiu; outras não o são, como a mesma disse nas suas declarações: foram coisas que sonhou, ou que imaginou; depois, a Kitti é, claramente, um alter ego da própria BB, uma entidade exterior ao seu ego que ela utiliza para alcançar um determinado equilíbrio na sua atribulada vida; a Kitti é uma espécie de âncora, é um contra-peso que lhe confere alguma ordem interior; como tal, os relatos feitos a Kitti, podem bem não retratar a realidade como ela é, mas a realidade tal como a BB gostava que fosse; consequentemente, contrariamente ao que entende a defesa, parece-nos que o relevo do diário, enquanto meio de prova, é muito reduzido;

– como estamos a ver, a ofendida não é, nem sexualmente promíscua, nem louca, nem mentirosa; já quanto ao arguido, damos aqui por reproduzido o teor dos relatórios das duas avaliações psiquiátricas a que foi submetido (f 768 e ss. e 872 e 55.), sempre realçando, no entanto que,

a) na primeira delas se concluiu que “A análise realizada mostrou uma dificuldade do examinado de lidar com os aspectos básicos da sua vida instintivo/afectiva (e o instinto sexual é um dos instintos que compõem o nosso psiquismo). Por tudo que nos foi possível avaliar e aquilatar, a pedir dos elementos que nos foram facultados, acreditamos que as características da personalidade do examinado poderiam favorecer os factos narrados na acusação”

b) e na segunda, imediatamente antes da conclusão, se escreveu que o discurso é lógico e coerente e não se apura sintomatologia psicótica produtiva. Apresenta alguma dificuldade controlo das emoções e instabilidade no humor. Apresenta ainda alguma desconfiança em relação a algumas perguntas efectuadas, procurando sempre justificar as suas respostas”»

Conclui-se, assim, que nenhuma censura merece a decisão recorrida quando apreciou a pretendida falta de imparcialidade do Tribunal de 1.ª Instância.

2.2.2.

Omissão de pronúncia, inadequado julgamento da questão de facto e valoração excessiva da perícia da personalidade

Sustenta, depois, o recorrente que o art. 127° do CPP se for interpretado no sentido de permitir ao Tribunal a quo, desde que fundamente a sua decisão e esclareça o processo lógico mental de convicção, a absoluta e livre discricionariedade de valoração da prova e formulação prévia, à produção da prova ou ao encerramento da mesma, de pré-juizos sobre a culpabilidade ou preconceitos quanto a uma dos sujeitos processuais, no caso o arguido, então tal interpretação é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no art. 32°, n.° 2 da Constituição, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca para todos os efeito legais (conclusão 15).

Encontra-se erradamente julgada toda a matéria de facto dada como provada, com excepção da matéria de facto constante dos seguintes parágrafos: “O arguido é pai da menor BB, nascida a 10 de Abril de 1986.” (§ 1); “É viúvo, encontrando-se a viver em união de facto com uma companheira, de quem tem um filho com 2 anos de idade” (§ 25); “Encontra-se desempregado” (§ 26); Nada consta do seu certificado de registo criminal” (§ 27) (conclusão 16)

Ao não dar como não provada a matéria de facto que deu antes como provada – com as supra citadas excepções o tribunal a quo, e posteriormente o Tribunal ad quem ao confirmar a decisão e reiterar o erro e vícios de julgamento ocorridos, violaram o princípio da verdade material, o princípio da presunção da inocência, o dever de imparcialidade e o principio do in dubio pro reu. Princípios estes que a livre convicção do julgador não pode postergar (conclusão 17)

Acresce que, salvo o devido respeito e melhor entendimento, na douta decisão há uma insuficiência de reexame crítico do caso sub judice e da prova produzida em audiência de julgamento, que inquina o douto acórdão do vício da nulidade, nos termos do disposto nos art.ºs 425°, n.° 4, 379°, n.° 1, al. a), e 374°, n.º 2, todos do CPP, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos (conclusão 18)

O Tribunal ad quem [Relação] não se pronunciou sobre todas questões colocadas e sobre a imputada incorrecção de julgamento da matéria de facto vertida nos § 2° a 24° da “Matéria de Facto Provada”. Apenas se limita, o Tribunal ad quem [Relação] a genericamente apreciar sem aqui se discutir a bondade da apreciação — se a convicção formada pelo Tribunal a quo (1.ª Instância] tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os demais elementos existentes nos autos podem fornecer, sem curar de saber se a factualidade dada como provada tem efectivo suporte na prova produzida. Ora, vários dos factos dados como provados não têm qualquer suporte na prova produzida — cfr. a motivação de recurso, pontos 3 e 4, que aqui se dá por integrada e reproduzida para todos os efeitos legais — pelo que se impunha modificar a decisão (se esse fosse entendimento do Tribunal ad quem [Relação] quanto a inexistência de suporte na prova produzida para qualquer facto dado como provado) nos termos do art. 431° e art. 428° do CPP (conclusão 26), não o tendo feito, a Relação violou a citada norma com as legais consequências. E não se diga, como resulta do douto Acórdão que, apesar de terem existido erros “na matéria de facto dada como provada”, nenhum é relevante. Se existem erros, e não só erros relativos “ao local onde a assistente, sua irmã e pai moravam à data da morte da mãe e as tarefas caseiras que lhe eram destinadas, nomeadamente a confecção do almoço de quartas feiras e sextas feiras”, teriam que os mesmos ser corrigidos ou modificada a matéria de facto dada como provada. E existiram erros relevantes, quer quanto as circunstâncias em que o crime alegadamente ocorreu, quer quanto ao modo como alegadamente foi “praticado” (conclusão 27)

Pelo exposto violou o Tribunal ad quem [Relação] o disposto no art. 431º do CPP, bem como, ao não se pronunciar sobre as diversas questões colocadas e sobre todos os erros apontados no julgamento da matéria de facto e de qualificação jurídica, violou o disposto nos artigos 425° n.° 4 e 379°, n.° 1, c), e 428° do CPP, o que constitui nulidade da sentença/acórdão, que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos (conclusão 28).

No que se refere à valoração da perícia da personalidade, defende o recorrente que, ao contrario do que refere a Relação, a avaliação psicológica realizada pelo Instituto de Educação e Psicologia da UM – a qual diga-se não é sequer formalmente uma perícia e nem como tal está formalmente formulada e é cientificamente pobre e não permite, sem prescindir o que infra se dirá, demonstrar a veracidade de qualquer descrição ou depoimento, uma vez que não foi realizado no seu âmbito qualquer perícia à personalidade da avaliada/assistente e, sem esta, o avaliador limitou-se a verter no relatório uma mera convicção resultante de uma entrevista (isso mesmo pode ser apurado ou confirmado pelo Tribunal ad quem (Relação) junto de qualquer perito psiquiátrico ou psicólogo de reconhecido mérito) – foi-o ao arrepio e muito para além do disposto no n.° 2 do art. 131° do CPP e do que lhe havia sido solicitado pelo Digno Procurador Adjunto (cfr. fls. 162 dos autos), uma vez que as perícias para avaliar a credibilidade de qualquer pessoa que deva testemunhar apenas têm por finalidade conhecer a aptidão psíquica e características psicológicas e de personalidade de quem irá prestar testemunho, cujo conhecimento (características psicológicas e de personalidade) é relevante para o Tribunal determinar em que medida as mesmas (características) podem influenciar o seu depoimento. Ou seja, o que está em causa é a credibilidade da testemunha e não a credibilidade da versão que esta apresenta dos factos (conclusão 19)

Logo, não poderia, nem deveria a Relação valorar esse juízo ou convicção transposta para o relatório pela Psicóloga Ana Isabel Sani, nem poderia afirmar, como o fez, que “a veracidade do depoimento da ora assistente é corroborada pelo “Relatório de avaliação psicológica” elaborado pelo Instituto de Educação e Psicologia da UM, conforme permite o n.° 2 do art. 131° do Código Processo Penal..“(conclusão 20), fazendo-o violou-se o disposto no art. 32°, n.°s 1 e 5 da Constituição, art.s 127°, 131°, n.° 2, 1510, 154°, n.° 1, 1590, 163° e 355° do CPP e os princípios da legalidade, da verdade material, contraditório, presunção da inocência e o principio da livre apreciação da prova e da proibição de valoração de prova não produzida ou examinada em audiência de julgamento (conclusão 21), tendo aqueles artigos sido interpretados no sentido de ser possível realizar perícia sobre a veracidade dos factos ou sobre a veracidade de uma versão de uma testemunha ou no caso da assistente, interpretação que é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no art. 32°, n.°s 1, 2 e 5 da Constituição (conclusão 22)

Finalmente, sustenta o recorrente que, se aqueles art.ºs 431°, 428°, 425° n.° 4 e 379°, n.° 1, c), do CPP forem conjugadamente interpretados no sentido de permitir ao Tribunal ad quem graduar erros na matéria de facto dada como provada e apenas conhecer dos erros e das questões de facto e de direito que considerar mais relevantes, então tal interpretação é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no art. 32°, n.° 1 da Constituição, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca para todos os efeito legais (conclusão 29). Pelo que, nos termos e pelas razões supra expostas, está o douto Acórdão prolatado pelo Tribunal ad quem [Relação], inquinado de vícios de nulidade (conclusão 30).

Como é jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença.

Por outro lado, o recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os "pontos de facto" que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham "decisão diversa" da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP –, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer. E, se for o caso, a análise referente aos vícios das diversas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do CPP.

Mas não se basta com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido no acórdão recorrido, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção. E a não apreciação da questão de facto devidamente suscitada constitui omissão de pronúncia, com a consequente nulidade do acórdão (cfr., por todos, o AcSTJ de 11/10/2007, proc. n.º 3330/07-5, com o mesmo Relator).

Ora, se é certo que a decisão recorrida contem declarações genéricas sobre as limitadas possibilidades de reexame da matéria de facto que lhe assistem na prática, também é verdade que não se fica por aí e apreciou igualmente os pontos impugnados pelo recorrente à luz da prova documentada.

E só teria a Relação o dever de alterar a matéria de facto, à luz do disposto no art. 431.º do CPP, se formasse, perante a motivação do recorrente e a consideração das provas por este invocadas, a convicção de que determinado(s) ponto(s) da matéria de facto estava(m) mal julgado(s).

Não tendo sido esse, o seu julgamento, nada teria que alterar, como não alterou.

Com efeito, escreve-se na decisão recorrida, sobre a questão de facto, para além do já referido:

«Defende o recorrente que foram incorrectamente julgados todos os factos provados, à excepção dos seguintes:

1. O arguido é pai da menor BB, nascida a 10/04/86;

2. É viúvo, encontrando-se a viver em união de facto com uma companheira, de quem tem um filho com 2 anos de idade;

3. Encontra-se desempregado;

4. Nada consta do seu certificado de registo criminal.

Como provas que impõem tal decisão indica:

– quanto ao local onde a assistente, sua irmã e pai moravam à data da morte da mãe - as declarações do arguido;

– quanto às tarefas caseiras atribuídas à assistente, nomeadamente a confecção do almoço de quartas e sextas-feiras — as declarações desta;

– quanto à mudança de comportamento do arguido após morte da mulher, nomeadamente quanto ao controle dos movimentos da filha — as declarações daquele;

– quanto ao facto constante do §5° - as declarações do arguido e assistente, o diário desta, o depoimento de MCM;

– quanto aos factos constantes dos § 6° a 19°, 21°, 22°, 24° - as declarações do arguido;

– quanto ao facto constante do §20° - o diário junto aos autos;

– quanto à exclusividade de relações sexuais com o arguido — o depoimento da testemunha SS, na parte em que afirma que só não manteve relações sexuais com a assistente por não terem preservativo.

Há que ter presente que conhecer de facto não significa fazer um novo julgamento, pois a função do tribunal de recurso não é procurar uma nova convicção, como é nitidamente pretensão do recorrente, mas antes reapreciar determinados aspectos da matéria de facto em relação aos quais se considere ter havido erro de julgamento na 1ª instância, detectando esses erros.

A garantia do duplo grau de jurisdição, como é comummente aceite, não pode subverter o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art°127° do C.P.P..

Por isso, compete e este tribunal, em sede de recurso, apurar se a convicção formada pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os demais elementos existentes nos autos podem fornecer.

No caso, o erro que os recorrentes apontam à sentença é o facto de os Srs. Juízes “a quo” não terem acreditado no arguido, que negou os factos e declarou não ter qualquer explicação para o facto de a filha lhe fazer a acusação que faz, dando credibilidade à versão da assistente.

Ora, como é bom de ver, o Tribunal acreditou na versão desta mas não apenas nela. Conjugou-a sempre com os depoimentos das testemunhas RR e DF, então colegas de turma e amigas da assistente, a quem esta confidenciou o ocorrido; T... , seu namorado durante um curto período de tempo; CF, psicóloga da Escola frequentada pela assistente que a acompanhou durante o ano em causa; AP, presidente do Conselho Executivo da Escola e IM, médica que realizou o exame sexológico à assistente e ainda as perícias psicológica e de psiquiatria forense.

Note-se que o recorrente não põe em causa a credibilidade destas testemunhas nem das peritas médicas ouvidas.

Ao fim e ao cabo, o que põe em causa é a convicção dos julgadores, esquecendo-se de que em processo penal rege o princípio da livre apreciação da prova (art°127° do CPP).

É óbvio que, como se escreveu no Ac. do Tribunal Constitucional (165/96 de 19/11, in BMJ461/93) o julgador ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras de experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo. Também segundo Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal - Vol. II, pág. 132), a livre valoração da prova deve ser racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão. E, apesar da objectivação da livre convicção do julgador “esta há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável portanto capaz de se impor aos outros.”

É também neste sentido que Figueiredo Dias afirma (Direito Processual Penal, 1° Vol., Coimbra Editora, 1974, pág. 205): “...a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais –, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.

Uma tal convicção existirá quando e só quando (....) o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”

Assim, se explica que a fundamentação da decisão de facto, por vezes de difícil concretização, seja essencial para que o tribunal de recurso possa alterar ou confirmar a decisão da matéria de facto nos casos, como este, em que dela há recurso pois, nos termos do princípio da livre apreciação da prova, não está impedido de, com base nas provas utilizadas pela l instância, concluir por forma diversa.

Contudo, é o Tribunal de 1ª Instância o que se encontra em melhor posição para avaliar a prova testemunhal carreada para os autos e valorar os depoimentos, pois ouve-os directamente da boca das testemunhas, vê as suas reacções e comportamentos perante o que lhes é perguntado, enquanto que ao Tribunal da Relação faltam esses dois princípios essenciais – o da oralidade e da imediação –, já que o registo da prova “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo” (Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, pág. 258)

No caso, a decisão recorrida, não fora alguns apartes opinativos desnecessários, mostra-se bem fundamentada, indicando, com muita precisão e clareza, a razão pela qual foi dada credibilidade às declarações da assistente, conjugadas com os depoimentos das testemunhas acima referidas e com as provas periciais e não foi credível a negação do arguido, ressaltando todo o processo lógico de convicção que permitiu dar como provados os factos impugnados Isto é, indica as provas em que se baseou para dar como provados os factos e faz o seu exame crítico, dando a conhecer a este Tribunal as razões pelas quais, apesar de o arguido os ter negado, os deu como provados.

E o raciocínio que esteve na base da convicção dos Srs. Juízes a quo, afigura-se-nos lógico e racional, não violando as regras da experiência comum na apreciação da prova. Apesar das faladas limitações inerentes à impossibilidade de apreciação directa da prova atrás, lidas as transcrições e ponderados todos os elementos disponíveis nos autos, somos levados a concluir que o Tribunal “a quo” decidiu correctamente. Embora faltando-nos a oralidade e a imediação, as declarações da assistente, pese embora o tempo decorrido e a dificuldade em reviver um passado muitíssimo traumático que pretende esquecer, mostra-se verosímil, precisa e lúcida E conjugando-as com os demais meios de prova ficamos convencidos de que, no essencial tudo se passou da forma descrita pelo Tribunal “a quo”.

Da leitura das transcrições fica-nos a ideia de que a assistente, apesar das suas habilitações literárias, denota ser uma pessoa inteligente e sensível, embora compreensivelmente revoltada.

Note-se que a veracidade do depoimento da ora assistente é corroborada pelo “Relatório de avaliação psicológica” elaborado pelo Instituto de Educação e Psicologia da UM, […]

Para finalizar, diga-se que a questão do local onde a assistente, sua irmã e pai moravam à data da morte da mãe e as tarefas caseiras que lhe eram destinadas, nomeadamente a confecção do almoço de quartas e sextas-feiras, é matéria circunstancial e sem relevância na determinação do crime.

Assim, por tudo quanto fica exposto, nenhum erro relevante se detecta na matéria de facto dada como provada.»

A singela leitura desta parte da decisão recorrida demonstra só por si que a Relação apreciou, como lhe fora pedida, a impugnação da decisão de facto trazida no recurso, perante si interposto. Ou seja, pronunciou-se sobre a questão colocada, o que vale por dizer que não omitiu pronúncia devida. E só a omissão de pronúncia devida é que gera nulidade de sentença.

Com efeito dispõe o art. 379.º que é nula a sentença, quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar [n.º 1, al. c)].

Coisa diversa é saber se a Relação decidiu bem a questão que lhe fora colocada, mas que se situa para além do horizonte dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

Na verdade, no nosso sistema de recursos penais, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece, enquanto tribunal de revista (que é o caso) da questão de direito, dando por definitivamente assente a decisão de facto pelas instâncias, independentemente de poder oficiosamente declarar a existência de qualquer dos vícios do n.º 2 do art. 410.º, quando não tiver adequada base de facto para a decisão de direito.

Mas nunca conhecer de tais vícios a requerimento da parte ou, ainda menos, conhecer de impugnação alargada da matéria de facto, como parece pretender o recorrente.

No que se refere à arguida excessiva valoração da perícia sobre a personalidade da vítima, também não assiste ao recorrente qualquer razão.

Escreve-se a propósito na decisão recorrida:

«Note-se que a veracidade do depoimento da ora assistente é corroborada pelo “Relatório de avaliação psicológica” elaborado pelo Instituto de Educação e Psicologia da UM, conforme permite o n° 2 do art° 131° do C.P.P., cuja finalidade é a verificação da aptidão psíquica da então menor para prestar testemunho relativamente aos graves factos de que acusava o arguido.

A prova pericial tem lugar, de acordo com o art°151° do CPP, quando a percepção ou apreciação dos factos exigem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, sendo a perícia, a actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. (Marques da Silva - Curso de Processo Penal II, pág.197)

O objecto da perícia é a percepção de factos ou a sua valoração.

Embora o juiz pela formação que possui tenha capacidade para avaliar da credibilidade das testemunhas em geral, tratando-se de menores, porque a percepção da sua aptidão física e mental para prestar testemunho se toma mais difícil, permite e até aconselha a lei que se solicite a técnicos avalizados, com conhecimentos técnicos específicos, a realização de pendas destinadas a avaliar da sua credibilidade.

O perito, pessoa dotada de especiais conhecimentos técnicos, está melhor preparado para percepcionar ou apreciar da credibilidade do depoimento, funcionando, assim, como auxiliar do juiz. E finalidade da perícia percepcionar e valorar factos (Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal II, pág. 198) constituindo prova que pode e deve ser considerada em julgamento.

No caso dos autos a função do perito foi a de auxiliar do juiz apenas no que concerne à percepção da credibilidade da assistente Não se substitui ao juiz na avaliação do testemunho. Ou seja, o perito não “diz” ao juiz o que do depoimento deve ou não ser aproveitado. Apenas lhe indica, de acordo com os estudos que fez, se a testemunha ou declarante merece ou não credibilidade.

Ora, de acordo com o art°163° do C.P.P. o relatório pericial impõe-se, em princípio, ao julgador, que o tem de acatar. Se dele divergir, essa divergência tem que ser devidamente fundamentada

No caso, a conclusão do relatório vai de encontro à percepção dos julgadores, corroborando-a.

O mesmo se diga em relação ao depoimento da psicóloga CF, que acompanhou a então menor ao longo do ano escolar.

Não deixam de ser os juízes quem ouvem directamente o depoimento da declarante e avalizam da sua credibilidade, em conjugação com os demais meios de prova servindo a perícia para reforçar a convicção daqueles mas podendo dela divergir, como se disse, de forma fundamentada (Ac. do STJ de 05/05/93 — BMJ 427/441).

O relatório não substitui as declarações da assistente.»

E merecem estas considerações a nossa inteira concordância, sendo certo que a 1.ª instância se moveu nos limites traçados pela Lei, quer quanto à perícia em causa, quer quanto ao uso do princípio da livre convicção pelo Tribunal de 1.ª Instância, perante essa perícia.

Escrevem sobre essa matéria Simas Santos e Leal-Henriques (CPP Anotado, I, pág. 938): «Fala o n.º 3 [do art. 130.º] em perícia da personalidade, o que nos remete para os art.ºs 160.º e 160.º-A, onde se dispõe sobre a perícia de personalidade. Ela deve ser deferida a serviços especializados, incluindo os serviços de reinserção social, ou, quando isso não for possível ou conveniente, a especialistas em criminologia, em psicologia, em sociologia ou em psiquiatria (n.º 2 do art.º 160.º), mas pode ainda ser realizada por entidades terceiras que para tanto tenham sido contratadas por quem as tivesse de realizar, desde que aquelas não tenham qualquer interesse na decisão a proferir ou ligação com o assistente ou com o arguido (n.º 1 do art.º 160.º-A).

Enquanto a perícia de personalidade do arguido é realizada para efeito de avaliação da sua personalidade e perigosidade do arguido, incidindo sobra as características psíquicas independentes de causas patológicas, bem como sobre o seu grau de socialização (n.º 1 do art.º 160.º), aqui a perícia visa verificar a aptidão física e mental do menor de 18 para depor em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, designadamente quando deles foi vítima, para avaliar da sua credibilidade (n.º 2 deste artigo).»
E na verdade, a credibilidade prende-se necessariamente, pois, com a idade da testemunha e a natureza do crime e postula a obtenção de um discurso sobre a situação, pois não se trata de uma mera credibilidade geral e desligada da vida, tributária tão só de condicionantes psico-biológicas, mas sim da sua credibilidade relacionada com aquele pedaço de vida, que exactamente pela sua natureza autoriza a avaliação pericial da credibilidade da testemunha.

Por outro lado, e como se adiantou, o Tribunal de 1.ª Instância não prescindiu do princípio da livre convicção, de que dispunha, mas também não afrontou o valor da perícia, uma vez que, como se acentua na decisão recorrida se verificou coincidência no entendimento sobre a credibilidade da testemunha, o que posto, apoiou o Tribunal de 1.ª Instância na sua apreciação e valoração do depoimento concretamente prestado pela ofendida na audiência de julgamento.

Finalmente, não se pode afirmar, como o faz o recorrente, que os art.ºs 431°, 428°, 425° n.° 4 e 379°, n.° 1, c), do CPP forem conjugadamente interpretados no sentido de permitir ao Tribunal ad quem graduar erros na matéria de facto dada como provada e apenas conhecer dos erros e das questões de facto e de direito que considerar mais relevantes, o que seria inconstitucional e gerador de nulidade.

Desde logo, importa notar que o recorrente se dispensou de fundar na lei, nas conclusões da sua motivação, essa alegada nulidade. Depois, deve reconhecer-se que o Tribunal recorrido fez coisa bem diversa: contextualizou a impugnação pelo recorrente do «local onde a assistente, sua irmã e pai moravam à data da morte da mãe e as tarefas caseiras que lhe eram destinadas, nomeadamente a confecção do almoço de quartas e sextas-feiras», considerando-a matéria circunstancial e sem relevância na determinação do crime.

E na verdade, o que deve ser investigado (e resultar dessa investigação) é a verdade material dos factos relacionados com a prática do crime imputado (art. 340.º, n.º 1 do CPP: «a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa»; n.º 4, al. a): «Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que: as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas») e o cerne da investigação: prende-se com os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada – art. 283.º, n.º 3, al. b) do CPP.

Ora o que a decisão retomou foi a distinção que resulta da lei entre factos relevantes e irrelevantes e não uma qualquer distinção arbitrária.

Aliás, o recorrente, numa posição meramente formal, dispensa-se de estabelecer a relevância no caso, daqueles factos.

2.3.

Condenação

Sustenta o recorrente, sem prescindir, que a sua conduta não preenche o tipo legal de crime de que vem acusado, desde logo porque não praticou qualquer factualidade que o integrasse, nem provou qualquer facto qualificativo que permitisse a agravação pelo facto de a assistente ter engravidado (conclusão 31).

Esta posição do recorrente é tributária da posição que assume quanto à matéria de facto apurada pelas as instâncias.

Daí que a falência da sua impugnação, conduza necessariamente, e sem necessidades de maiores indagações, à improcedência desta pretensão: a sua absolvição.

Aliás, como sustenta o Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça, parecer que foi notificado ao recorrente, a matéria de facto provada nem sequer permitiria enveredar pela qualificação da sua conduta como continuação criminosa, por não estar provado o circunstancialismo exterior que diminua a sua culpa na repetição dos comportamentos ilícitos em relação a sua filha.

Sucede, porém, que tratando-se de um recurso trazido pelo recorrente, nunca poderia este Supremo Tribunal de Justiça agravar a sanção, por força do disposto no art. 409.º do CPP.

2.4.

Indemnização

Neste aspecto, sustenta o recorrente:

Para além de não existir a prática de qualquer crime, também afigura-se que a indemnização foi excessiva e desajustada, principalmente porque não foram produzidas quaisquer provas que permitissem demonstrar quaisquer efeitos e consequências ou sequelas psicológicas na assistente — e referimos isto sem querer aqui apoucar a ofendida ou qualquer vítima de um crime desta natureza (admitindo para efeito de raciocínio que ele existiu). Conferir nesse sentido perícia realizada pela perita MH (conclusão 32)

Também aqui se remete o recorrente para a impugnação que faz da matéria de facto, sustentando que não foi produzida prova sobre as consequências ou sequelas psicológicas da vítima.

Mas como vimos, não teve êxito, o recorrente nessa impugnação.

Ora, está provado, já o vimos, que:

O arguido deslocava-se frequentemente à escola E. 2.3 de S. ..., que a ofendida, então, frequentava, onde se queixava da sua filha aos funcionários e professores, imputando-lhe comportamentos que, na sua opinião, seriam menos próprios da sua idade e atribuindo-os a más companhias”.

Além disso, o arguido passou a ser extremamente exigente em relação à forma como a autora executava todas as tarefas de que passou a estar responsável, revelando-se particularmente agressivo em tudo o que lhe dizia respeito, ameaçando-a constantemente com castigos e punições diversas.

Da forma descrita, o arguido criou um clima de ansiedade, receio e coacção psicológica sobre a autora, a qual passou a temer, constantemente, pela sua integridade física e psicológica, e, também, pelas da sua irmã mais nova, sentimentos estes que se agravaram pela quase total ausência de contactos com familiares e amigos próximos, com quem sentisse que podia contar e cujo auxilio pudesse solicitar quando achasse necessário, e, ainda, pela consciência que a autora tinha da directa dependência económica que, tanto ela como a sua irmã, tinham em relação ao réu, seu pai, sem vislumbrar qualquer alternativa.

O arguido actuou, revelando-se insensível ao profundo sofrimento tísico e psicológico, angústia, receio, repulsa e vergonha que sabia causar à sua filha com a prática de tais actos.

O arguido revelou-se insensível à possibilidade séria de causar uma gravidez à vítima e indiferente ao facto de a sua outra filha, MR se poder aperceber do que se estava a passar.

Em virtude dos factos praticados pelo arguido, a ofendida passou a sentir permanente receio e passou a viver em sobressalto permanente, causados pelo mal que o arguido lhe infligia.

A ofendida sentiu sempre o profundo receio que, como ela, também a sua irmã pudesse passar a ser molestada da mesma forma pelo arguido.

Ou seja, estão provados os efeitos e consequências ou sequelas psicológicas na vítima, resultado da conduta do arguido.

E, como se escreve na decisão recorrida:

Por outro lado, só alguém totalmente destituído de sensibilidade e bom senso é que não crê no profundo sentimento de angústia, vergonha, humilhação e desespero que uma situação como a vivida por uma adolescente como a assistente, lhe provoca e que a influenciará em todos os aspectos da sua vida futura, especialmente no afectivo, psicológico e moral, levando-a mesmo a pôr em causa ou mesmo à perda da confiança na instituição “família”. Por outro lado, é sabido que num meio rural, como é o caso, os crimes sexuais ocorridos no meio familiar estigmatizam muito as vítimas, mais ainda se são adolescentes.

Diga-se, finalmente e como já o fez a Relação, que ainda agora não aduz o recorrente quaisquer argumentos (legais ou outros) para rebater o montante indemnizatório fixado.

Improcede, assim, manifestamente, nesta parte, o recurso.

2.5.

Medida da pena

Defende o recorrente que a pena afigura-se excessiva e desajustada, devendo antes o arguido ser condenado numa pena inferior que, sem se deixar de reconhecer a censurabilidade da conduta dada como provada, entende o aqui recorrente como certa e ajustada a condenação numa pena de quatro anos, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova, mais a mais que a própria assistente esteve disponível para desistir da queixa apresentada e se reaproximou do arguido (conclusão 33).

Sobre esta questão decidiu a Relação:

No que à medida da pena concerne, o recorrente, na motivação apenas refere o seguinte:

A aplicação da pena visa a protecção dos bens jurídicos violados (prevenção geral positiva) e a integração do agente na sociedade, não podendo a medida concreta da pena exceder a culpa do agente (art. 40° do Código Penal), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem contra e a favor do agente (n.° 2 do artigo 72° do Código Penal).

Sempre que forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 70° do Código Penal).

Ora, no caso dos autos, e tendo em conta a idade do arguido, o facto de ser primário, o tempo entretanto decorrido, o facto de ter um filho menor de três anos de idade nascido de uma relação estável que entretanto encetou, a sua boa integração social, deveria o Tribunal a quo ter optado por uma pena inferior, se não mesmo não privativa de liberdade, pelo suspensa na sua execução, mais a mais que a própria assistente esteve disponível para desistir da queixa apresentada e se reaproximou do arguido.

Em primeiro lugar, o crime de abuso sexual de menores dependentes qualificado, p. e p. pelos artigos 173°, n° 1, 172°, n° 1, 177°, n° 3 e 30°, n°2., é punido com pena de prisão variável entre o mínimo de 1 ano e 6 meses e o máximo de 12 anos.

Assim, não há que ponderar sequer a opção por pena não privativa de liberdade.

Em segundo lugar, as circunstâncias atenuantes que o recorrente invoca já foram tidas em consideração pelo Tribunal a quo, à excepção daquelas que não constam dos factos provados e, por isso, como é óbvio, não podem ser tomadas em consideração.

Em terceiro lugar, esqueceu-se o recorrente de ponderar as circunstâncias agravantes que contra ele militam, designadamente, não ter assumido os fados, o que denota não ter havido arrependimento da sua parte e permite concluir ser ele insensível aos valores juridicamente tutelados no caso e ter o relacionamento sexual com a filha começado logo após a morte da mãe, numa fase em que a então menor se encontrava ainda mais vulnerável e precisava de maior protecção e carinho.

Tendo em consideração todas as provadas circunstâncias do caso, em que é patente o elevadíssimo grau de culpa e ilicitude, a pena fixada pelo Tribunal a quo mostra-se justa e adequada.

Importa começar por analisar os poderes de cognição deste Tribunal nessa matéria.

Está hoje afastada a concepção da determinação da pena concreta, em que à lei cabia, no máximo, o papel de definir a espécie ou espécies de sanções aplicáveis ao facto e os limites dentro dos quais deveria actuar a plena discricionariedade judicial, em cujo processo de individualização intervinham coeficientes de difícil ou impossível racionalização, tudo relevando da chamada «arte de julgar». A determinação das consequências do facto punível, ou seja, a escolha e a medida da pena, é, pois, realizada pelo juiz conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução daquele, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, num processo que se traduz numa autêntica aplicação do direito (art.ºs 70.º a 82.º do C. Penal): aliás, esse procedimento foi regulado pelo CPP, de algum modo autonomizando-o da determinação da culpabilidade (cfr. art.ºs 369.º a 371.º), e também o n.º 3 do art. 71.º do C. Penal dispõe que «na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos da medida da pena», alargando a sindicabilidade, tornando possível o controlo dos tribunais superiores sobre a decisão de determinação da medida da pena.

Mas essa possibilidade de controlo sofre limites no recurso de revista, como é o caso.

É aceite que a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação é sindicável em recurso de revista. O que se deve estender à valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade (Cfr. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, § 82 II 3), bem como a questão do limite ou da moldura da culpa, que estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção.

Mas, do mesmo passo, tem-se considerado que a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, não caberia no controlo proporcionado pelo recurso de revista, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada.
Determinada a moldura penal abstracta correspondente ao crime em causa, numa segunda operação, é dentro dessa moldura penal, que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
– O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente (o número de abusos perpetrados, o tempo em que decorreu a conduta, a violação do dever de protecção da vítima, as sequelas para esta);
– A intensidade do dolo ou negligência (o dolo foi directo e intenso);
– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (a satisfação da sua lascívia, na própria filha, pouco depois da morte da sua mulher e mãe daquela);
– As condições pessoais do agente e a sua situação económica (é viúvo, encontrando-se a viver em união de facto com uma companheira, de quem tem um filho com 2 anos de idade e encontra-se desempregado);
– A conduta anterior ao facto e posterior a este (não tem antecedentes criminais; não assumiu a sua conduta);
– A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (como se viu a propósito da ilicitude da conduta).
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. do STJ de 17-09-1997, proc. n.º 624/97).
A medida das penas determina-se, já o dissemos, em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele e que se vieram de abordar.
A esta luz, e atendendo aos poderes de cognição que a este Supremo Tribunal assistem, impõe-se concluir que a pena concreta fixada e que o recorrente contesta, se situa claramente dentro da sub–moldura a que se fez referência e que dentro dela foram sopesados todos aqueles elementos de facto que se salientaram, como se reconheceu na decisão recorrida, não se mostrando que a mesma se mostre desproporcionada ou violadora das regras de experiência, por forma a permitir e justificar a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal de Justiça.
Pelo que improcede a pretensão do recorrente de ver diminuída essa pena.
3.
Pelo exposto, acordam os Juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso trazido pelo arguido AA, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 5 Ucs.

Lisboa, 23 de Outubro de 2008

Simas Santos (Relator)
Santos Carvalho