Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P4418
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: DINIS ALVES
Nº do Documento: SJ200302200044185
Data do Acordão: 02/20/2003
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Tribunal Recurso: T J V FLOR
Processo no Tribunal Recurso: 29/01
Data: 01/31/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I - No Tribunal Judicial da comarca de Vila Flor foram submetidos a julgamento, por tribunal colectivo:
1) A, casado, aposentado, filho de ... e de ..., nascido em 3/11/1940, na freguesia de Vilas Boas, daquela Comarca e residente na Rua ..., em Vila Flor, e
2) B, casado, aposentado, filho de ... e de ..., nascido em 6/5/1933, na freguesia de Vilas Boas, daquela Comarca e residente na Rua ..., Vilas Boas, Vila Flor,
acusados pelo Ministério Público da seguinte forma:
- o primeiro, A, da prática, em autoria material e concurso real, de um crime de dano e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, ps. e ps., respectivamente, pelos artigos 212º, n.º 1, 143º n.º 1 e 146º, todos do Código Penal.
- o segundo, B, da prática, em autoria material e concurso real, de dois crimes de ameaça, ps. e ps. pelo artigo 153º n.º 2, com referência ao n.º 1, do Código Penal.
Pelo demandante C, que se constituiu assistente, foi deduzido contra aqueles arguidos pedido de indemnização civil, tendente a obter a condenação dos mesmos pelos danos alegadamente sofridos em consequência dos crimes de dano, ofensa à integridade física qualificada e ameaça.
Por douto acórdão proferido em 31 de Janeiro de 2002, foi decidido, entre o mais, julgar a acusação parcialmente provada e procedente e o pedido cível parcialmente provado e procedente. E, em consequência:
a) - absolver o arguido B da prática dos dois crimes de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, n.º 2 do Código Penal por que vinha acusado.
b) - absolver o arguido A da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, n.º 1 e 146º do Código Penal por que vinha acusado.
c) - condenar o arguido A, pela prática, em autoria material, de um crime de dano p. e p. pelo art. 212º do C.P., na pena de cento e vinte (120) dias de multa, à taxa diária de cinco Euros (€5), o que perfaz a quantia global de seiscentos Euros (€600) e a que corresponde a prisão subsidiária de 80 dias.
d) - absolver o arguido B do pedido de indemnização cível contra si formulado.
e) - condenar o arguido A a pagar ao demandante cível a quantia de Esc. 128.700$00 (cento e vinte e oito mil e setecentos Escudos), acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde 02-06-2001 até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos em consequência do crime de dano de que foi vítima.
II - 1) Inconformado com o assim decidido, recorreu o assistente C, que ao terminar a sua motivação, deixou exaradas as seguintes conclusões:
A - OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA, QUALIFICADA OU SIMPLES?
1.º - A matéria de facto dada por provada no douto acórdão "a quo" consubstancia um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 146º, n.ºs 1 e 2, e 143º, n.º 1, do actual CP, e não apenas um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do CP;
2.º - A navalha utilizada pelo arguido A constitui meio particularmente perigoso, porque dificultou significativamente a defesa do assistente e porque cria ou é susceptível de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes, designadamente a própria vida (cfr. Comentário Conimbricence, F. Dias, anotação ao art. 132º; Homicídio Qualificado, Teresa Serra, págs. 63 a 70; Ac. STJ, de 13DEZ00, CJ, Acs. STJ, Tomo III, 2000, págs. 241 e ss.);
3.º - As circunstâncias previstas no art. 132º, n.º 2, do CP (para que remete o art. 146º, n.º 2, do CP) não são de funcionamento automático. É necessário ainda que delas resulte uma especial censurabilidade ou perversidade;
4.º - No caso dos autos, a utilização de meio particularmente perigoso revelou especial censurabilidade;
5.º - Ao não entender assim, o douto acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 146º, n.º 1 e 2, 143º, n.º 1, e 132º, n.º 2, al. g), do CP, por errada interpretação e aplicação;
B - LEGÍTIMA DEFESA
6.º - Os factos dados como provados no douto acórdão recorrido não consubstanciam uma situação de legítima defesa por parte do arguido A;
7.º - A contenda entre arguido e assistente configura uma "participação em rixa" do art. 151º, n.º 1, do CP - cfr. Ac. STJ, de 13DEZ01, ainda não publicado, recurso n.º 3433/01, 5.ª Secção;
8.º - Porque aí cada um dos participantes é, simultaneamente, agressor e agredido, nunca poderá um participante na rixa exercer qualquer direito de legítima defesa, enquanto não abandonar, manifestamente, a rixa (Comentário Conimbricence, I - 324);
9.º - O arguido A não agiu, pois, em legítima defesa;
10.º - O arguido A preencheu, assim, com a sua conduta, os crimes de ofensa à integridade física qualificada (art. 146º, n.ºs 1 e 2, e 143º, n.º 1, do CP), e de participação em rixa (art. 151º, n.º 1, CP), em concurso aparente, numa relação de consumpção, devendo aplicar-se, naturalmente, o art. 146º, do CP (por prever a pena mais elevada) - Comentário, I - 327, §§ 43 e 45;
11.º - Ao não entender assim, o douto acórdão "a quo" violou o disposto no art. 32º, do CP - por errónea aplicação - e o art. 151º., n.º 1, CP, por não ter aplicado este dispositivo legal.
C - Subsidiariamente, excesso de legítima defesa
12.º - Discordando do supra exposto, e considerando-se que o arguido A agiu em legítima defesa, sempre deverá entender-se que ocorreu excesso de legítima defesa (art. 33º, do CP);
13.º - O uso da navalha foi desproporcionado, desnecessário e excessivo para repelir a agressão do opositor que se encontrava desarmado;
14.º - O arguido deverá, por isso, ser punido em conformidade;
15.º - Assim não tendo entendido, o douto Acórdão "a quo" violou o disposto nos arts. 32º e 33º, do CP, por errada aplicação;
16.º - Impunha-se, pois, a condenação do arguido A pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 146º, n.ºs 1 e 2, por referência ao art. 132º, n.º 2, todos do CP, ou, pelo menos, do crime de ofensa à integridade física simples (art. 143º, n.º 1, CP) e, em consequência, a condenação no pedido de indemnização civil deduzido nos autos.
TERMOS EM QUE, E NOS QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS SUPERIORMENTE SUPRIRÃO, DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, REVOGAR-SE O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO NA PARTE EM QUE CONSIDEROU QUE O ARGUIDO A, PRATICANDO UM CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES, AGIU EM LEGÍTIMA DEFESA, DEVENDO, POR ISSO, SER O MESMO CONDENADO NOS PRECISOS TERMOS QUE SUPRA SE EXPUSERAM, EM PREITO À JUSTIÇA
II - 2) Na sua resposta, o Ministério Público, concluiu por seu turno, pela forma que se transcreve:
1- Uma navalha com lâmina de 7 cm e cabo de 8 cm, não constitui meio particularmente perigoso para efeito do disposto nos art.s 146º, n.ºs 1 e 2, e 132º, n.º 2, al. g), ambos do Cód. Penal, por não possuir de forma superior à normal, a potencialidade para, segundo a experiência comum, causar lesão corporal susceptível de pôr em risco, de forma significativa a integridade física ou a vida.
2- Ademais quando a perigosidade dos instrumentos utilizados, a sua idoneidade ou potencialidade para causar lesões graves, não pode ser determinada apenas pelo instrumento em si mesmo, mas também, além do mais, pelo modo concreto como o agente o utilizou, devendo ser apreciada, caso a caso, em concreto, tendo em conta a situação especial, os resultados atingidos e prováveis e até, de certo modo, a intenção do agente.
3- Daí que, tendo o recorrente puxado o arguido por um braço, atirando-o ao solo, desferindo-lhe de seguida um pontapé e um murro que o atingiram no corpo, sendo que tentava atingi-lo a murro e pontapé, enquanto o arguido lhe apontava a navalha, fazendo por várias vezes menção de, com ela, o atingir, ao mesmo tempo que dizia que o espetava e que o cortava, não possa considerar-se particularmente perigoso o meio utilizado pelo arguido.
4- Mas ainda que o fosse, não se verifica, no caso em apreço, a especial censurabilidade da sua conduta, na medida em que dos factos provados não resulta que o arguido revelou uma especial censurabilidade ou perversidade que vá para além do grau de censurabilidade e perversidade inerente à prática do crime de ofensas à integridade física simples.
5- Não pode, assim, considerar-se que o arguido praticou o crime de ofensas à integridade física qualificada p. p. pelas disposições combinadas dos arts. 143º, n.º 1, 146º, n.ºs 1 e 2, e 132º, n.º 2, al. g), do C. Penal.
6 - O arguido, que foi agredido e para evitar a continuação da agressão, provoca no agressor uma ferida incisa com 2 cm de comprimento em posição horizontal, suturada com 3 pontos de seda localizada no limite superior da fossa ilíaca direita da parede anterior do abdómen, que foi causa directa e necessária de 23 dias de doença com incapacidade para o trabalho, com a dita navalha de que era portador, e que se mostra ser o meio necessário para repelir a agressão, age em legítima defesa, pelo que tal conduta não é ilícita - art. 31º, n.º 1 e 2 , al. a), do Cód. Penal.
7 - O meio utilizado não é excessivo, atenta a diferença de idades entre assistente/recorrente (23 anos) e o arguido (58 anos), e tendo-lhe este mostrado a navalha, advertindo-o de que o espetava e cortava, tudo fazendo como forma de evitar ser agredido.
8 - Nenhuma censura merece o douto acórdão proferido nos autos.
III - Subidos aos autos a este Supremo Tribunal a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta no cumprimento do preceituado no art.º 416º do CPP, promoveu a fixação de dia para julgamento.
Colheram-se os vistos legais, tendo-se procedido a audiência de julgamento com observância do legal formalismo.
Cumpre apreciar e decidir.
IV - É a seguinte a factualidade considerada como provada:
a) - No dia 10 de Outubro de 1999, o Assistente, C, tinha o seu veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca «Volkswagen», modelo «Golf», de cor preta, com a matrícula NT, estacionado numa das ruas da freguesia de Vilas Boas, desta Comarca.
b) - Em hora concretamente não apurada, mas cerca das 17 horas, o arguido A, abeirou-se do aludido veículo automóvel e, munindo-se de um objecto cortante, fez vários riscos na pintura do mesmo, na retaguarda e lado esquerdo.
c) - O arguido bem sabia que o veículo automóvel lhe não pertencia, que agia contra a vontade do seu legítimo dono e com o propósito concretizado de lhe produzir danos do tipo dos verificados, provocando prejuízos de valor superior a Esc. 5.000$00.
d) - Pouco depois ali chegou o C, que vinha acompanhado de um seu amigo de nome D, vendo estes ainda o arguido a afastar-se do dito veículo.
e) - Ao constatar a existência de tais riscos, o C e o D procuraram o A, acabando por o localizar no Largo dos Sotos, daquela freguesia, acompanhado do arguido B, seu irmão, dirigindo-se o C ao A e perguntando-lhe porque é que lhe tinha riscado o carro.
f) - Gerou-se então uma discussão entre ambos, na sequência da qual o assistente puxou o arguido A por um braço atirando-o ao solo desferindo-lhe de seguida um pontapé e um murro, tendo-o atingido no corpo.
g) - De seguida o arguido A levantou-se, muniu-se da navalha apreendida nos autos que retirou do bolso das calças, abriu-a e apontou-a ao C fazendo por várias vezes menção de com ela o atingir, ao mesmo tempo que dizia que o espetava e que o cortava, enquanto o C o tentava atingir a murro e pontapé.
h) - Durante a contenda, o arguido A atingiu o assistente C com a navalha que empunhava na zona do abdómen, lado direito, provocando-lhe ferida incisa de dois centímetros de comprimento, em posição horizontal, suturada com 3 pontos de seda, localizada no limite superior da fossa ilíaca direita da parede anterior do abdómen, que foi causa directa e necessária de 23 dias de doença com incapacidade para o trabalho.
i) - Enquanto decorria a contenda entre o assistente e o arguido A, o arguido B, vendo que o D se aproximava de ambos para auxiliar o assistente na contenda, empunhou a navalha que trazia consigo, abriu-a e apontou-a na direcção do referido D ao mesmo tempo que dizia para se irem embora que os cortava se fizessem mal ao irmão.
j) - Ao actuar da forma como o fez, o arguido A quis impedir que o assistente C o continuasse a agredir e agiu com o propósito concretizado de lesar a integridade física do referido C e de lhe provocar ferimentos do tipo dos verificados.
m) - Os arguidos actuaram, relativamente às condutas que cada um deles levou a cabo, sempre de forma voluntária, deliberada e livre.
n) - O arguido A ao fazer os riscos na pintura do automóvel do assistente agiu com plena consciência de que tal conduta era proibida e punida por Lei, porque ilícita.
o) - O arguido B é casado.
p) - Está aposentado, auferindo pensão mensal de valor não concretamente apurado mas não inferior a Esc. 60.000$00.
q) - Mora em casa própria.
r) - Não tem filhos a cargo.
s) - A sua esposa trabalha na agricultura para terceiros sem carácter de regularidade.
t) - Não tem habilitações literárias.
u) - Não tem antecedentes criminais.
v) - O arguido A é casado, aposentado, não se tendo apurado os seus rendimentos, as suas habilitações literárias nem a ocupação profissional da esposa.
x) - Já foi condenado anteriormente pela prática de um crime de ameaça e outro de ofensa à integridade física em pena de multa e de prisão, tendo esta última sido suspensa na sua execução.
x) - O assistente procedeu à reparação do seu veículo que consistiu na pintura e polimento das peças riscadas.
z) - Em tal reparação, o assistente despendeu a quantia de Esc. 128.700$00.
aa) - Para o tratamento das lesões físicas que sofreu o assistente teve de se deslocar ao Centro de Saúde de Vila Flor tendo despendido a quantia de Esc. 400$00.
ab) - No dia em que os factos ocorreram e nos dias imediatos o assistente sofreu dores físicas na zona abdominal em consequência do golpe de navalha que sofreu.
ac) - Os arguidos foram notificados para contestar o pedido cível em 2/6/2001.
V - Conforme entendimento sucessivamente reafirmado por este Supremo Tribunal, o objecto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, delimita-se, processualmente, pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação.
No caso sub-judice, perfilam-se as seguintes questões para apreciar e decidir:
1) - A matéria de facto provada consubstancia um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 146º, n.ºs 1 e 2 e 143º, n.º 1, do CP? Ou tão só um crime ofensa à integridade física simples (art. 143º, n.º 1, do CP)?
2) - Aquela factualidade consubstancia, ou não, uma situação de legítima defesa?
3) - Se a resposta à questão anterior for afirmativa, deve entender-se que ocorreu excesso de legítima defesa?
Vejamos, de per si, cada uma das questões, começando pela primeira.
Dispõe, no que ora interessa, o artigo 143º, n.º 1, do CP:
«Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».
Por seu turno, diz o art.º 146º, do mesmo diploma:
«1- Se as ofensas previstas nos artigos 143º, [...] forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com a pena aplicável ao crime respectivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º.»
Uma dessas circunstâncias é justamente a prevista na alínea g) daquele n.º 2 e consiste na utilização de meio particularmente perigoso (no caso seria representado pela navalha com que o arguido comprovadamente lesou a integridade física do assistente).
Desenhado o quadro legal em que temos de nos mover, importa avançar.
Ante a matéria de facto que o tribunal colectivo considerou provada é fora de dúvida que, durante a contenda relatada, o arguido A, munido de uma navalha (cujas concretas características não se descreveram no aresto impugnado, mas que se aceita sejam as consignadas no auto de apreensão de fls. 34) atingiu com ela o assistente C na zona do abdómen provocando-lhe a ferida nela descrita.
E porque, como também se fez consignar na matéria provada, o mesmo arguido «... agiu com o propósito concretizado de lesar a integridade física do referido C e de lhe causar ferimentos do tipo dos verificados», tendo actuado «de forma voluntária, deliberada e livre», dúvidas igualmente não restam de que preencheu todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de ofensa à integridade física.
Mas estaremos perante uma ofensa simples, como se concluiu no acórdão recorrido, ou perante uma ofensa qualificada, como sustenta, em primeira linha, o assistente?
A divergência prende-se com a utilização da navalha: para o colectivo, secundado pelo MP junto da comarca, não se trata de um meio particularmente perigoso, enquanto o recorrente entende que o é e que a sua utilização pelo arguido revelou especial censurabilidade.
Em fundamentação do decidido argumentou assim o tribunal recorrido, ancorando-se, no essencial, em dois arestos do Tribunal da Relação de Coimbra:
«Meio particularmente perigoso é sinónimo de meio muito desproporcional a causar o resultado pretendido pelo agente. Meio particularmente perigoso é aquele que permite causar o resultado pretendido pelo agente e, além disso, coloca, ou tem virtualidade de colocar, em perigo outros bens em enorme desproporção com aqueles que era necessário e suficiente colocar em perigo para obter o fim pretendido pelo agente. É meio diferente dos instrumentos usuais de agressão que são aptos a produzir o resultado querido pelo agente e que não são susceptíveis de colocar em perigo muitos outros bens que não são objecto de referência do dolo do agente. Meio particularmente perigoso é ainda o meio excessivamente eficaz a produzir o resultado típico, resultando essa sua enorme eficácia num perigo enorme e desnecessário para o bem jurídico visado e/ou para outros bens jurídicos não compreendidos no tipo em causa.
Ora, estando em causa um crime de ofensa à integridade física simples e o seu inerente dolo directo de ofender o corpo ou a saúde de outrem em medida simples, o uso de uma pequena navalha com as características da que foi utilizada e da forma como o foi num único golpe, não pode integrar o conceito legal de utilização de meio particularmente perigoso. Com efeito, tal navalha não tem virtualidade de causar lesões especialmente perigosas, tais como decepar um membro da vítima ou decapitá-la, sendo certo que se exige apenas perigo abstracto. Assim, não é desproporcional, excessiva nem desnecessária para causar ofensa simples à integridade física».
Em geral é de subscrever esta argumentação, que, a propósito do crime de homicídio, se mostra espelhada no sumário do acórdão deste Supremo de 24-10-2001 (Proc. n.º 2764/01 - 3.ª Secção) ao dizer-se: «À falta de definição legal do que seja meio particularmente perigoso, deve entender-se por tal aquele que simultaneamente revele uma perigosidade muito superior à que normalmente anda associada aos meios comuns usados para matar e seja revelador de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente».
Enfatizar-se-á ainda o seguinte.
São muitos e variados os meios (ou instrumentos) que podem ser utilizados na prática de crimes, nomeadamente nos de ofensa à integridade física. Desde paus, pedras, ferros, navalhas, facas, armas de arremesso, ou quaisquer outros instrumentos funcionando como tal, até explosivos, pistolas e outras armas como as caçadeiras, por exemplo.
Todos eles são meios comuns e usais de agressão e possuem, em abstracto e em potência, características que podem tornar perigosa a sua utilização. Mas não é dessa perigosidade, dita "normal" que a lei fala. Esta exige, para a verificação da qualificativa, uma "particular perigosidade", o que inculca a ideia de exclusão daqueles meios comuns e usuais.
Ideia essa que se pode ver afirmada no acórdão de 13-12-00 deste Supremo [CJ (STJ), III, 241], citado pelo assistente/recorrente, no qual se faz referência à doutrina do Comentário Conimbricense nos seguintes termos:
«Utilizar meio particularmente perigoso é (...), servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de crime comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes».
Porém, continua o mesmo acórdão, citando o mesmo Comentário, "logo abaixo, se acrescenta":
«(...) Deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos.
Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente nos exemplos padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado - e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Sob pena, de outra forma - aqui sim !-, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso».
Na sequência, conclui o referido acórdão:
«Uma pistola de calibre 6,35 mm, o usual nas pistolas de defesa, não constitui, em si mesmo, um meio particularmente perigoso».
E, tal como ali se concluiu, também aqui tem de se concluir - até por maioria de razão - que a utilização de uma navalha com as características da apreendida nos autos (7 cm de lâmina e 8 cm de cabo) constituindo embora um meio perigoso, não é, todavia, um meio particularmente perigoso no sentido desenhado pelo legislador.
E nem se diga, como o faz o recorrente, que o uso da navalha dificultou significativamente a sua defesa, quando a realidade demonstra que ele não se encontrava à defesa mas ao ataque, visto ter sido ele, como se provou, quem deu início à luta e quem primeiro agrediu o arguido atirando-o ao solo e desferindo-lhe de seguida um pontapé e um murro, propósito agressivo que manteve durante a contenda, cometendo, afinal, um crime de ofensa à integridade física simples contra o arguido (que viu arquivado no final do inquérito), sem que se vislumbre qualquer causa justificativa juridicamente relevante.
Embora desnecessário ainda se dirá que mesmo na hipótese de se considerar aquela navalha um "meio particularmente perigoso", sempre essa perigosidade se haveria de aferir não só pelas respectivas características, mas, também, em função da forma como foi usada (neste sentido acórdão deste Supremo de 06-11-1996, Processo n.º 46576 - 3ª Secção), sendo manifesto e notório, que, perante o quadro factual apurado, nunca poderia imputar-se ao arguido actuação eivada de especial censurabilidade, como pretende o recorrente.
Sendo assim, resta dizer que bem andou o douto tribunal recorrido ao considerar que a conduta do arguido A apenas poderia ser subsumida ao crime de ofensa à integridade física simples.
V - 2) - Mas consubstanciará, ou não, aquela conduta uma situação de legítima defesa?
A resposta, adianta-se, é afirmativa.
Diz-nos o art. 32º do CP que:
«Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro».
São por demais conhecidos os requisitos da mencionada figura, que assim se podem consubstanciar:
a) Uma agressão actual ou iminente;
b) Que a agressão seja ilícita, não motivada por provocação do defendente;
c) A existência do animus defendendi;
d) Impossibilidade de recurso à força pública; e
e) A necessidade racional do meio empregado.
No caso, temos provado o seguinte quadro factual com pertinência e relevância para a análise da questão:
- O assistente, na sequência de suspeitas de que o arguido lhe tinha riscado a sua viatura, procurou este, acompanhado de D. Tendo-o encontrado, acompanhado do irmão B, entrarem em discussão na sequência da qual o assistente puxou o arguido por um braço atirando-o ao solo desferindo-lhe de seguida um pontapé e um murro;
- De seguida o arguido A levantou-se, muniu-se da navalha apreendida nos autos que retirou do bolso das calças, abriu-a e apontou-a ao C fazendo por várias vezes menção de com ela o atingir, ao mesmo tempo que dizia que o espetava e que o cortava, enquanto o C o tentava atingir a murro e pontapé;
- Durante a contenda, o arguido A atingiu o assistente C com a navalha que empunhava na zona do abdómen, lado direito, provocando-lhe ferida incisa de dois centímetros de comprimento (...);
- Enquanto decorria a contenda entre o assistente e o arguido A, o arguido B, vendo que o D se aproximava de ambos para auxiliar o assistente na contenda, empunhou a navalha que trazia consigo, abriu-a e apontou-a na direcção do referido D ao mesmo tempo que dizia para se irem embora que os cortava se fizessem mal ao irmão;
- Ao actuar da forma como o fez, o arguido A quis impedir que o assistente C o continuasse a agredir (...)» .
Perante a leitura do quadro acabado de traçar de imediato se intui que se mostram preenchidos os primeiros quatro requisitos.
Com efeito, não oferece dúvida de que:
- estamos perante uma agressão mais que actual levada a cabo pelo assistente contra a pessoa do arguido (puxão pelo braço com arremesso ao solo, seguidos de pontapé e murro) e mais que iminente (enquanto o arguido apontava a navalha ao assistente, fazendo menção de com ela o atingir, ao mesmo tempo que dizia que o espetava e cortava, este tentava atingir aquele a murro e pontapé);
- aquela agressão e a iminência de outras eram ilícitas (não se podendo, é evidente, sustentar que as suspeitas do assistente quanto ao autor dos riscos na sua viatura configuram provocação do arguido legitimadora daquela agressão e subsequentes tentativas);
- o arguido agiu com animus defendendi (ao actuar da forma como o fez, o arguido A quis impedir que o assistente C o continuasse a agredir);
- nas descritas circunstâncias havia manifesta impossibilidade de recurso, em tempo útil, à força pública.
Atenta a totalidade daquelas circunstâncias - primitiva e, tudo o indica, inopinada agressão de que o arguido foi vítima, o que, no homem médio, sempre provoca perturbação, seguida de exibição da navalha e avisos infrutíferos ao assistente/agressor de que o espetava e cortava, sem que isso o demovesse dos intentos agressivos que se revelavam firmes e intensos, tentativa do acompanhante D para auxiliar o mesmo assistente na contenda, do que terá sido demovido por B, irmão do arguido, que a ambos exortou para se irem embora - tem de concluir-se, na perspectiva de um terceiro prudente colocado na real situação do arguido, pela legitimidade da defesa que por este foi empreendida.
E nem se diga que a contenda entre o assistente e o arguido configura uma "participação em rixa" do art. 151º do CP, como o faz aquele, num derradeiro e quase desesperado esforço para afastar a legítima defesa. A situação descrita na matéria provada manifestamente não consente uma tal interpretação.
Se é certo que o assistente também foi agredido, não é menos certo que essa agressão aparece aos olhos do cidadão comum como propósito defensivo visado pelo arguido, ou seja como meio de repelir a iminência das agressões por banda daquele. E, embora o arguido também tenha agido com o propósito de ferir, como feriu, o assistente, isso não invalida nem é incompatível com aquela intenção legítima de defesa, como se entendeu, entre outros, no acórdão deste Alto Tribunal de 22-10-1997- (Processo n.º 1402/97 - 3.ª Secção).
Demonstrada que está a verificação dos primeiros quatro requisitos supra enunciados, resta avançar para a análise do quinto designado por "necessidade racional do meio empregado", com o que se entra na apreciação da 3.ª questão colocada pelo recorrente.
V - 3) - Ocorreu excesso de legítima defesa ?
Sobre a matéria rege o artigo 33º, do CP da seguinte forma:
«1 - Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada.
2 - O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis».
De uma forma simples pode dizer-se que há "excesso" quando, pressuposta uma situação de "legítima defesa", se utiliza um meio desnecessário para impedir ou repelir a agressão.
Deste modo, para que o facto seja plenamente justificado, o defendente só deve utilizar o meio considerado, no momento e segundo as circunstâncias concretas, necessário para suster a agressão. Se utilizar outros meios adequados para o efeito, mas mais gravosos para o agressor, serão considerados desnecessários e, como tal, ficará excluída aquela justificação. É a necessidade racional do meio empregado a que acima aludimos.
Deve ter-se presente que sendo a legítima defesa exercida, pela sua própria natureza, em situações em que a serenidade e a capacidade de avaliação do defendente se encontram alteradas, há sempre o risco de as consequências da defesa não serem exactamente aquelas que dimanam da observância estrita do princípio da necessidade, havendo que deixar margem a um limitado mas imprevisível espaço de consequências, sem que daí se possa afirmar uma defesa ilegítima ou injustificada.
Postas estas considerações, vejamos se o uso da navalha pelo arguido foi desproporcionado, desnecessário e excessivo, como sustenta o recorrente.
É fora de dúvida que o assistente se encontrava desarmado, mas isso, por si só, não significa que automaticamente se deva considerar que houve excesso no uso da navalha. Tem de atentar-se no desenvolvimento sequencial da contenda, na dinâmica que nos é apresentada pelos factos provados, isto é nas circunstâncias concretas do caso, para se perceber e aquilatar se nelas era exigível ao arguido que não utilizasse a navalha para se defender.
Aquela dinâmica diz-nos que foi o assistente quem deu início à agressão que concretizou na pessoa do arguido puxando-o por um braço, atirando-o ao solo e desferindo-lhe de seguida um pontapé e um murro. Só depois o arguido se muniu da navalha e fez menção de com ela atingir o assistente ao mesmo tempo que o advertia que o espetava e o cortava sem que, com tais avisos, conseguisse que o recorrente desistisse dos seus intentos agressivos, visto que continuou a tentar atingir o arguido a murro e a pontapé.
Enquanto decorria a contenda D, amigo e acompanhante do assistente, tentou aproximar-se dos contendores com o fito de auxiliar o recorrente, do que foi dissuadido/impedido por B, irmão do arguido.
Temos, portanto, um quadro em que o arguido é atacado e agredido pelo recorrente (em manifesta e condenável atitude de "fazer justiça por mãos próprias"), que persiste nos seus propósitos agressivos mesmo depois de lhe ser exibida a navalha e de ser advertido de que poderá ser espetado e cortado com ela, ao mesmo tempo que o mesmo arguido se confronta com a iminência de ser também agredido por D, que tenta auxiliar o assistente naqueles propósitos.
Num tal quadro, afigura-se cristalino que o uso da navalha para suster tais propósitos agressivos não pode ser considerado desproporcionado, desnecessário e excessivo, não sendo exigível ao arguido que se limitasse a usar as mãos para se defender.
Além de que, existem nos autos outros elementos que, embora não decisivos, reforçam este entendimento. Na verdade, desde logo a diferença de idades dos antagonistas - 23 anos o recorrente e 58 anos o arguido - aponta para um maior vigor físico do primeiro.
Este maior vigor parece confirmar-se pela fotografia de fls. 309, evidenciadora de um porte físico-atlético bem desenvolvido, ao que não será alheia a prática de "Kung- Fu", pelo recorrente, o que vem fazendo desde os 12 anos de idade (cf. fls. 297), como se provou no processo cuja sentença se vê certificada a fls. 292 e ss. Da leitura desta se vê que não é esta a primeira vez que arguido e assistente se envolvem em agressões e que são já "velhos conhecidos", com divergências originadas em relações laborais antigas.
Aquele "velho conhecimento", não deixou seguramente de proporcionar ao arguido a certeza de que o recorrente é praticante da arte marcial supra referida, sendo do senso comum que de pouco vale o simples uso das mãos contra tais adversários, os quais são tidos por temíveis e "invencíveis" na simples "luta corpo a corpo" por quem não esteja "armado" com tal arte.
Daí que não surpreenda que o arguido, nas descritas circunstâncias, conhecedor da "arte" do recorrente, sujeito ao seu ataque e à força que lhe advinha do auxílio do seu amigo D, tenha lançado mão da navalha para se defender de tal ataque.
Donde, ter de se concluir, sem margem para dúvidas, pela necessidade racional do meio empregado na defesa e considerar justificado o uso da navalha pelo arguido, não se vislumbrando qualquer excesso de legítima defesa na sua actuação.
Em consequência, improcede o recurso.

VI - Decisão:
Assim, por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente C, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente. Taxa: 5 Ucs.
Processado em computador, revisto pelo Relator, o 1º signatário.
Honorários legais à ilustre defensora oficiosa, nomeada em audiência.

Lisboa, 20 de Fevereiro de 2003
Dinis Alves
Pereira Madeira
Simas Santos
Carmona da Mota (com declaração de voto anexa)
DECLARAÇÃO DE VOTO
A questão da culpa (e, por isso, a da censurabilidade acrescida inerente ao funcionamento sobrepenalizante do art. 146º do Código Penal) só se haveria de colocar depois de resolvida (positivamente) a questão da ilicitude (incluindo a das causas, como a legítima defesa, que a excluem).
Ora, reconhecido, aqui, que o facto praticado pelo arguido, frente ao assistente, o foi como meio necessário para repelir agressão actual e ilícita da sua integridade física e afastada, por isso, a ilicitude da sua conduta, prejudicada ficaria, pois, a questão da culpa (incluindo a da eventual qualificação da ofensa corporal defensiva).
Não deveria, assim, ter-se enfrentado a (prejudicada) questão - colocada ("em primeira linha") no recurso - de saber se "estaremos perante uma ofensa simples, como se conclui no acórdão recorrido, ou perante uma ofensa qualificada, como sustenta o assistente" nem, por isso, de a solucionar no sentido (ou noutro) de que "bem andou o tribunal recorrido ao considerar que a conduta do arguido apenas poderia ser subsumida ao crime de ofensa à integridade simples".
O juiz conselheiro,
J. Carmona da Mota