Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | SERRA BAPTISTA | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO PAULIANA REQUISITOS MATÉRIA DE FACTO PODERES DA RELAÇÃO ÓNUS DA PROVA | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 10/08/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL: ARTIGOS 610º ALÍNEA B), 611º E 342º E SS. | ||
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Sumário : | 1. O requisito da impugnação pauliana – o de resultar do acto impugnado a impossibilidade do credor obter a satisfação integral do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade – abrange, não apenas os casos em que o acto implique uma situação de insolvência, mas também aqueles em que o acto produza ou agrave a impossibilidade prática do credor obter a satisfação do seu crédito. 2. Aferindo-se tal impossibilidade através da avaliação da situação patrimonial do devedor após a prática do acto a impugnar. Sendo o peso comparativo do montante das dívidas e do valor dos bens conhecidos do devedor, susceptíveis de penhora, que indicará se desse acto resultou a mencionada impossibilidade. 3. Enquanto tribunal de revista, com competência, em princípio, limitada à matéria de direito, o Supremo Tribunal de Justiça deve, salvo ilogismo, respeitar as ilações que a Relação retire dos factos provados. 4. Tendo o credor provado o montante das dívidas, cabe ao devedor – afastando-se a doutrina do art. 611.º do CPC, em alguma medida, das regras gerais sobre o ónus da prova prescritas nos arts 342.º e ss – ou ao terceiro interessado na manutenção do acto, a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: O BANCO AA, S. A., SOC. ABERTA veio intentar acção de impugnação pauliana, sob a forma de processo ordinário, contra BB, CC e DD, S. A., pedindo que se declare a ineficácia da transmissão dos prédios melhor identificados na p. i. e que o Banco tem o direito de obter a satisfação do seu crédito à custa dos mesmos imóveis, praticando todos os actos de conservação da garantia patrimonial, autorizados por lei, sobre os prédios alienados. Alegando, para tanto, e em suma: É credor dos RR BB e CC, sendo os mesmos avalistas em livranças que servem de título executivo a uma execução instaurada nos Juízos de Execução de Lisboa, para aí se obter o pagamento de € 1 175 390,38, acrescido de juros. Tais réus, com intuito de prejudicarem o autor e com consciência do prejuízo causado, venderam os seus prédios, melhor descritos na p. i., à ré DD, assim impossibilitando o ressarcimento do crédito do autor. Tendo a ré DD, de que o réu BB era então administrador único, conhecimento da situação. Citados os réus, vieram contestar, alegando, também em síntese: O autor é parte ilegítima. As compras e vendas em causa nos autos referem-se a actos normais de gestão do património dos RR BB e mulher, não tendo tais transacções impossibilitado ou agravado o cumprimento da alegada dívida, que, aliás, ainda não está vencida. Replicou o autor, pugnando pela improcedência da excepção arguida. Foi proferido o despacho saneador, que, alem do mais, julgou o autor parte legítima, tendo sido fixados os factos tidos por assentes e organizada a base instrutória. Com reclamação dos réus, que foi desatendida. Realizado o julgamento, foi decidida a matéria de facto da base instrutória, pela forma que do despacho de fls 282 a 284 consta. Foi proferida a sentença, na qual, na procedência da acção, foi declarada a ineficácia da transmissão dos prédios melhor descritos na p. i., mais se declarando o direito do autor obter a satisfação dos seus créditos à custa desses imóveis, podendo praticar todos os actos de conservação de garantia patrimonial sobre eles. Inconformados, vieram os réus interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa. Após terem, produzido as alegações das partes, veio a senhora Juíza rectificar a sua sentença, no que entendeu ser mero lapso de escrito, determinando que onde se lia “agravamento da possibilidade”, se passasse a ler “agravamento da impossibilidade”. Na Relação, entendendo-se não ser possível rectificar tal lapso, por não se tratar de mera escrita, julgou-se, no entanto, a apelação improcedente, assim se confirmando a sentença recorrida. De novo irresignados, vieram os réus pedir revista, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões: 1ª. Nos termos da al. b) do art. 610.º CC é faculdade do credor impugnar "os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal do crédito e não sejam de natureza pessoal (...) se resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade ". 2ª. Da resposta ao quesito único da base instrutória, deu a M. Juiz como "provado apenas que ao procederem às compras e vendas (. . .) os RR. sabiam que estavam a agravar a possibilidade de ressarcimento do crédito do A. ". 3ª. Ora, não ficou provado que do acto tenha resultado a impossibilidade de ressarcimento do crédito do A. 4ª. Ficando apenas parcialmente provado que os RR. sabiam que, com essa conduta, estavam a agravar a possibilidade de ressarcimento de tal crédito. 5ª. Salvo o devido respeito e com toda a consideração, tal matéria não é punível nos termos do art. 610°, al. b) CC - ou em qualquer outro artigo do referido diploma - pois aí apenas é feita referência ao "agravamento dessa impossibilidade", o que, manifestamente, não decorre do exposto na douta sentença recorrida. 6ª. É que "agravar a possibilidade" é coisa bem diferente do plasmado no art. 610°, al. b) CC, facto que não é punível por lei nos termos da referida disposição legal. 7ª. Não se podendo inferir que tal afirmação é apenas um ocasional lapso de escrita, porquanto é repetido diversas vezes ao longo de toda a sentença. 8ª. E sendo certo que não pode agravar-se uma impossibilidade que não existe. O recorrido não contra-alegou. Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir. Vem dado como provado no acórdão recorrido: 1 - O A. intentou contra os RR. BB e CC e ainda contra "EE" uma execução ordinária que corre no 1.º Juízo de Execução, 2.ª secção, sob o n.º 5316/07.2YYLSB, para deles obter o pagamento de € 1.175.390,38 acrescidos de juros, servindo de título à execução duas livranças. 2 - Os RR. BB e CC venderam à R. "DD, S.A.", por escritura de 23-11-2004, o prédio urbano descrito na C. R. Predial de Cascais sob o n.º …, o prédio misto descrito na C. R. Predial de Paredes de Coura sob o n.º … da freguesia de Formariz e duas fracções autónomas designadas pelas letras "G" e "H", do prédio descrito na C. R. Predial de Olhão sob o n.º …, da freguesia de Pechão (doc. de fls. 13 a 15). 3 - BB interveio na escritura enquanto vendedor e em representação da compradora, na qualidade de administrador único da R. "DD, S.A.", transformada em sociedade anónima nesse mesmo dia. 4 - Os RR. BB e CC não possuem património suficiente para pagamento de € 1.175.390,38, juros e custas. 5 - Ao procederem às compras e vendas referidas em 2), os RR. sabiam que estavam a agravar a possibilidade de ressarcimento do crédito do A (1). As conclusões da alegação dos recorrentes, como é bem sabido, delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal. Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pelos recorrentes nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir. Assim se podendo resumir a questão pelos recorrentes suscitada: a de, face à factualidade apurada, não ter ficado provado o requisito da procedência da impugnação pauliana, tal como é estabelecido no art. 610.º, al. b) do CC (2) . Ora, e antes de mais, há que precisar aqui que a Relação, pelo seu recorrido acórdão, mas nessa parte não impugnado, decidiu não estar em causa, por banda da senhora Juíza também a quo, a rectificação de qualquer lapso de escrita, mandando repor a redacção anterior, ou seja, que se mantivesse a palavra “possibilidade” ao invés de “impossibilidade”. Sendo, pois, com base na matéria de facto dada por assente pelo Tribunal da Relação que teremos que lidar. A lei prevê nos arts 610.º e ss a impugnação pauliana pelo credor, dos actos do devedor que o possam prejudicar. É assim prevista no Código actual a velha actio pauliana, como tal denominada por ter sido criada por um édito do pretor romano Paulus (3). Tendo a mesma os seguintes pressupostos, face ao disposto no citado art. 610.º: a) a realização pelo devedor de um acto que diminua a garantia patrimonial do crédito e não seja de natureza pessoal; b) que o crédito seja anterior ao acto, ou sendo posterior, ter sido ele dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; c) que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, ocorra má fé tanto do alienante como do adquirente; d) que resulte do acto a impossibilidade do credor obter a satisfação integral do crédito ou agravamento dessa impossibilidade. Ora, está aqui em causa apenas este último pressuposto, na sua segunda e última vertente. Entendeu a Relação, ao interpretar o preceito, que este último pressuposto – o do agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito do autor, se revela preenchido, não pela resposta dada no ponto 5, mas pela conjugação dos factos assentes nos pontos 1 a 4. Retirando-se da sua leitura e interpretação a conclusão que a venda pelos réus efectuada implicou para o autor o agravamento da impossibilidade de obter a satisfação do seu crédito, acrescendo que, a entender-se que era o ponto 5 que integrava esse pressuposto teria o mesmo de se considera como não escrito já que integraria matéria de direito, conclusiva, não sendo, assim, admitido (art. 646.º, nº 4 do CPC). Visando a expressão utilizada na lei representar as grandes dificuldades em que o credor ficará colocado para satisfazer o seu crédito por via do acto praticado pelo devedor. Devendo, dizem ainda os senhores Juízes Desembargadores, entender-se que o agravamento de que fala a lei – e, afinal, a expressão legal “agravamento da impossibilidade” será sinónimo de “agravamento da possibilidade”, sendo até aquela algo absurda, já que “impossibilidade” significa impedimento absoluto, obstáculo intransponível – terá de ser interpretado como a situação menos gravosa do que a impossibilidade, mas que tenderá a caminhar para esta. Sustentado os recorrentes, por seu turno, visando demonstrar a errada interpretação alcançada no acórdão recorrido, que este pressuposto - o único agora em questão - significa a situação limite de impossibilidade para o credor de obter a satisfação do seu crédito, como algo que, esgotadas progressivamente todas as possibilidades, nunca virá a acontecer. Ainda que a impossibilidade seja meramente parcial, o credor pode satisfazer parte do crédito, mas não a totalidade. Sendo certo que a situação de agravamento da possibilidade é diferente, situando-se ainda no campo da possibilidade, ainda que esta se venha a tornar remota e tenda a colocar a situação do credor face à satisfação integral do seu crédito no campo da impossibilidade. Aqui, nesta situação, é mais difícil o ressarcimento do credor, mas ainda, não é, mesmo que parcialmente, impossível. Não conduzindo a situação do agravamento da possibilidade ao preenchimento do pressuposto do agravamento da impossibilidade a que o art. 610.º, al. b) se reporta. Ora, o requisito em apreço equivale à situação que no Código de Seabra (art. 1033.º) se traduzia pela insolvência do devedor, querendo-se agora significar a simples impossibilidade (prática) do credor obter a satisfação do crédito como justificativa do exercício da impugnação (4). Abrangendo tal requisito, não apenas os casos em que o acto implique uma situação de insolvência, mas quando o acto produza ou agrave a impossibilidade fáctica do credor obter a execução judicial do crédito (como na hipótese de o devedor resolver alienar todos os imóveis que possui, ficando até com o dinheiro da venda que facilmente poderá ocultar ou dissipar) (5). Aferindo-se tal impossibilidade através da avaliação da situação patrimonial do devedor após a prática do acto a impugnar. Sendo o peso comparativo do montante das dívidas e do valor dos bens conhecidos do devedor, susceptíveis de penhora, que indicará se desse acto resultou a mencionada impossibilidade. Se o montante das dívidas for superior ao valor dos bens do devedor, verificar-se-á uma lesão da garantia patrimonial do credor (6) que permite a utilização da impugnação pauliana; mas se for igual ou inferior, deve considerar-se que aquela garantia não foi afectada pelo acto praticado, não se verificando um prejuízo que justifique qualquer reacção (7). Sendo certo que, nos termos do art. 611º, incumbindo ao credor a prova do montante das dívidas, cabe ao devedor (ou a terceiro interessado na manutenção do crédito) a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor. Afastando-se a doutrina deste preceito, em alguma medida, das regras gerais sobre o ónus da prova estabelecidas nos arts 342-º e ss, atribuindo-se ao devedor – face à dificuldade do credor provar que ele não tem bens – o encargo de provar que tem bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas (8). Podendo mesmo ler-se a propósito em Menezes Leitão (9): “Cabe, porém, salientar que a demonstração deste requisito (o da questionada al. b) do art. 610.º) não tem que ser realizada pelo credor, uma vez que é ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto que cabe a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor (art. 611.º). Assim se o credor provar o montante das dívidas e não for feita pelo devedor ou por terceiro a prova da existência de bens penhoráveis no património do devedor, a impugnação pauliana será naturalmente julgada procedente”. Na verdade, ocorrendo, quanto ao ónus da prova, a especialidade do credor dever provar o seu direito de crédito, incluindo a sua quantificação, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a existência no património do obrigado de bens penhoráveis de igual ou maior valor no confronto com o valor do referido acto, tal significa, em termos práticos, que, provada pelo impugnante aquela existência e quantidade do direito de crédito, se presume a impossibilidade da sua realização ou o seu agravamento (10). Pelo que, tendo em conta a factualidade apurada, provado que ficou o montante das dívidas e a insuficiência do património dos réus para tal débito garantirem, provado se deve ter, sem necessidade de mais, que as vendas realizadas agravaram, no mínimo, a impossibilidade da satisfação integral do crédito do autor. Sendo, aliás, tal presunção retirada da factualidade tida por assente pela Relação, que nem sequer deve ser sindicada por este Supremo, como tribunal de revista que é (11). Pelo que, não estando aqui em causa os demais requisitos deste meio conservatório da garantia patrimonial -a impugnação pauliana -, que, assim, se têm como apurados, tem a acção que proceder. Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a revista. Custas pelos recorrentes. Lisboa, 8 de Outubro de 2009 Serra Baptista (Relator) Álvaro Rodrigues Santos Bernardino ______________________ (1) Redacção dada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido, nessa parte não impugnado. (2) Sendo deste diploma legal todas as disposições a seguir citadas sem referência expressa. (3) Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, p. 293. (4) P. Lima e A. Varela, CCAnotado, vol. I, p. 626, A. Costa, Direito das Obrigações, p. 595, João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, p. 173 e Ac. do STJ de 21/4/2005 (Oliveira Barros), Pº 05B725, in www.dgsi.pt., aqui se encontrando publicada a demais jurisprudência sem outra referência. (5) Menezes Leitão, ob. cit., p. 300. (6) De acordo com o art. 601.º, pelo cumprimento da obrigação respondem, em princípio, todos os bens do devedor susceptíveis de penhora. (7) J. Cura Mariano, ob. cit., p. 167 e ss. (8) P. Lima e A. Varela e A. Costa, ob. cit., pags 627 e 596, respectivamente. (9) Ob. cit., p. 300. (10) Ac. do STJ de 26/2/2009 (Salvador da Costa), Pº 09B0347. (11) Acs deste STJ de 7/7/2009 (Oliveira Vasconcelos), revista 3110/04-2, de 26/2/2009, já citado e de 11/11/2008 (Fonseca Ramos), Pº 08A3322. |