Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
89/13.2TRPRT.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA
FUNCIONÁRIO
PREVARICAÇÃO
Data do Acordão: 09/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL – CRIMES CONTRA O ESTADO / CRIMES CONTRA A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA.
Doutrina:
- A. Medina de Seiça, in “Código Penal” Conimbricense, §§ 22-23, Anotação ao artigo 369.º.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 369.º.
Sumário :
I - O crime de denegação de justiça e de prevaricação do art. 369.º do CP cobre uma multiplicidade de condutas, que se podem reconduzir a um étimo comum que consiste na actuação contra direito.
II -Consequentemente, este crime enquadra-se no amplo sector dos crimes de funcionários, em que o factor de união reside na violação dos deveres funcionais decorrentes do cargo desempenhado, pelo que se configura como um típico crime específico (próprio).
III -O agir contra direito abrange, em primeiro lugar, o conjunto de normas vigentes na ordem jurídica positiva, independentemente da sua origem ou modo de revelação, tenham cunho material ou processual, natureza pública ou privada, de criação estadual ou não, como também princípios jurídicos não directa ou expressamente consignados em normas positivadas, mas que delas decorrem e gozam de força cogente, como o princípio in dubio pro reo ou a proibição do venire contra factum proprium.
IV -Agir contra direito significa a contradição da decisão com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes, mas tal contradição só por si nada mais significa do que a existência dum erro de direito, a justificar a alteração do decidido.
V - A nota delimitadora deste crime é a consciência de tal contradição de agir contra o direito, ou seja, é o assumir da violação dos deveres profissionais em função de outras razões.
VI -Se a aplicação de uma norma não se circunscreve à pura subsunção de uma fattispecie unívoca, mas se espalha por diversas vias juridicamente admissíveis de acordo com os cânones da metodologia jurídica, muitas vezes sancionadas pela doutrina e pelas mais altas instâncias judiciais, a escolha de uma delas pelo concreto aplicador conforma, em princípio, uma solução de acordo com o direito.

Decisão Texto Integral:

                                      Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

O assistente AA veio interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação do porto que não pronunciou o Juiz --- BB pela prática de um crime de prevaricação previsto e punido nos termos do artigo 369 do Código Penal.

As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:

1° - Na P.I. do proc. 2537/09.7TBAMT do 2° Juízo os AA alegaram matéria que constitui agora matéria do art" 8°,9° da base instrutória e alínea c) da matéria assente:

- que os RR usaram documento falso para espoliar prédio dos AA onde eles tinham

construído a sua habitação; -

- que esse documento foi junto com a P.I. e depois substituído por outro na sequencia do recurso para o TRP (este falsificado);

- que esse documento (improcedente o incidente de falsidade) foi determinante na procedência do pedido dos RR.

2° -Em consequência:

a) o dano deriva da alteração pretendida do prédio dos AA;

b) através do uso desse documento falsificado;

c) com outras consequências em danos patrimoniais e ...

a) não podia eliminar-se matéria subsequente - art" 3°;

b) nem matéria que exclua que essa falsificação foi determinante da decisão (que não é apenas conclusiva) mas tem que ter consequências materiais no prédio dos AA.

4° - Porém,o arguido eliminou tal matéria(art" 1°) e manteve os quesitos 8° e 9° em sentido contrário, apesar de provado que foi usado documento falso!

5° - Podia tratar-se de mero erro:

a) mas, o despacho saneador transitou e não houve reclamações.

b) mas o arguido acrescentou matéria após tal despacho.

c) e proíbiu o assistente de reclamar contra tal matéria, alegando-se ser matéria de recurso.

6° - É obvio que a matéria aditada (e eliminada a que se referiu) só tem o sentido de absolver o Réu AA, favorecendo-o:

a) como é que o Réu AA não sabe do documento original da fl. 43 que ele juntou com a P.I.?

b) como é que os RR não sabem da beneficio de terem usado o documento falso na sequencia do recurso para o TRP?

c) porque é que os AA haveriam de não deduzir a acção contra todos os RR, incluindo quem usou o doe, da fl. 43 na P.I., depois adulterado, sem se saber porquê?

d) como haveriam pois os AA de evitar a demanda do Réu AA, tivesse ou não a consequência de não poder depor?

e) como se confunde no art" 18° este processo com a oposição à execução daquela decisão para fazer valer aquela decisão face a um documento usado e falsificado?

f) como se atreve a dizer-se a entorpecer a justiça, usando agora o meio e só agora que conseguida prova que o documento da fl. 43 era é-falso?

7° - A acção foi completamente desfigurada ultrapassados os limites do decidido anteriormente no despacho saneador.

8° - Os assistentes sempre souberam que o Sr. Juiz é marido da Sr" Dra. CC residente em ---, militantes do--- à ----, nomeada ---- do Ministério --- no governo de---, inscrita no--- em --- amigos e correligionários do Réu AA e da agora também testemunha desse Réu Dra. --- (ex--- da --- pelo ---) e, curiosamente, antes mandatária do aqui denunciado que ate suscitou o incidente de falsidade do documento que agora dá causa a esta acção.

sempre os recusantes pensaram que o Sr. Juiz pedisse escusa.

9° - Veio o arguido a confessar todos os factos no incidente da suspeição-recusa.

10° - Aliás é estranho que o Sr. Juiz arguido não tivesse pedido escusa quando em tempos a pretexto do julgamento de um individuo que lhe limpou o jardim, pediu escusa.

Ir - Com as alterações à matéria do despacho saneador (que transitou em julgado por falta de reclamação) o arguido quis alterar tal matéria para provocar a improcedência da ação na proteção do aí R AA (designadamente pois o menciona expressamente, bem sabendo que do processo constava a existência da junção dessa planta depois substituida por outra (falsa por não ser aquela junta com a P.I.) documento que se tornou decisivo para a procedência do recurso e assim no prejuízo dos assistentes (pois à data o incidente de falsidade tinha sido indeferido e agora provada a sua falsificação).

o arguido sabia e sabe que essa falsificação e uso de documento falso é que é a causa de pedir da presente ação sem que (se não houvesse falsificação) jamais os requerentes podiam alegar prejuízo daí decorrentes.

12° - Agiu por força das ligações suas e de sua mulher ao R AA supra referidas com intenção de prejudicar os requerentes e beneficiar o R AA e os outros RR, com a conduta supra descrita de alteração da matéria do despacho saneador.

Termos em que conclui que o arguido cometeu o crime de denegação de justiça e prevaricação devendo ser pronunciado
Respondeu o Ministério Publico referindo que

 O assistente, AA, vem recorrer da decisão instrutória de fls. 336/340, na qual se decidiu não pronunciar o arguido, Dr. BB, Juiz ---, do Tribunal de Circulo de --- por inexistência de indícios, pela prática do crime de denegação de justiça e prevaricação p. e p. pelo artigo 369º, nº 1 do Código Penal  [CP].

O assistente insurge-se com o procedimento do arguido no processo nº 2537/09.7TBAMT do 2° Juízo do Tribunal Judicial de ---, na audiência de 21.12.2012, mais concretamente com os despachos aí proferidos, invocando que no despacho saneador : «o arguido eliminou a matéria do art° 1 da base instrutória, mantendo os quesitos 8° e 9° em sentido contrário, apesar de provado que foi usado documento falso!».

Refere que «o arguido acrescentou matéria após tal despacho». E acrescente: «o arguido quis alterar tal matéria para provocar a improcedência da acção na protecção do aí Réu AA, bem sabendo que do processo constava uma planta que foi substituída por outra, documento que se tornou decisivo para a procedência do recurso e, assim, no prejuízo do assistente.».  

Dos documentos que instruem os presentes autos resulta que na audiência de 21.12.2012, no

âmbito do processo já referenciado, , em que o assistente era A, foi proferido despacho a eliminar factos da base instrutória e a aditar outros, o que mereceu reclamação dos AA que não foi admitida por o arguido entender tratar-se antes de despacho sujeito a recurso.

Foi interposto recurso para a acta e o arguido ao invés de motivar o recurso e pagar a taxa de justiça, apresentou denúncia contra o arguido.

Do RAI não resulta com clareza qual o acto contra direito imputado ao arguido pelo Recorrente, se as alterações introduzidas á base instrutória, se a não admissão da reclamação, sendo certo que o despacho em causa só transitou em julgado porque o assistente não o motivou, nem pagou a taxa de justiça.

A discordância manifestada não é bastante para se concluir que o arguido, violou qualquer dever funcional, conscientemente e contra direito, e, com isso, incorreu na prática de algum crime.

Não resultam dos autos indícios suficientes da prática pelo arguido do crime denunciado, não se antevendo uma possibilidade razoável de em julgamento, lhe ser aplicada, uma pena ou medida de segurança.        

Deve ser mantida a decisão instrutória no sentido do arquivamento dos autos.

Neste Supremo Tribunal de Justiça a Exª Mª Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer advogando a improcedência do recurso.

                                        Os autos tiveram os vistos legais.

                                                                *

                                                    Cumpre decidir

I

Historiando o percurso dos presentes autos verifica-se que após instrução foi proferido despacho de não pronuncia no qual se refere que:

O assistente AA, inconformado com o despacho de arquivamento proferido no final do inquérito, constante de fl.s 292-295, requereu a abertura de instrução, por, em seu entender, os autos conterem indícios suficientes da prática, pelo arguido BB, juiz de direito do Tribunal de Círculo de ..., de crime de denegação de justiça e prevaricação (certamente o p. e p. pelo artº 369.°, n.º 1, do CP).

Requereu diligências que foram indeferidas pelas razões que constam do despacho de fl.s 321.

Teve lugar o debate instrutório, cabendo agora apreciar e decidir.

Importa ter presente, antes de mais, que o JIC está limitado, à partida, pela factualidade relativamente à qual foi pedida a instrução (cfr. arts 287,°, nºs 1 e 2 e 288º, nº 4 do C.P.P.), sendo orientado no seu procedimento e decisão pelas razões de facto e de direito invocadas.

O assistente, no RAI, insurge-se com o procedimento do arguido no processo n.º 2537/09.7TBAMT do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de --- na audiência de 21.12.2012, mais concretamente com os despachos aí proferidos, invocando que:

Porém, o arguido eliminou tal matéria (art° 1º) e manteve os quesitos 8° e 9° em sentido contrário, apesar de provado que foi usado documento falso!

 Podia tratar-se de mero erro:

a) mas, o despacho saneador transitou e não houve reclamações.

b) mas o arguido acrescentou matéria após tal despacho.

c) e proibiu o assistente de reclamar contra tal matéria, alegando-se ser matéria de recurso

16°

Com as alterações à matéria do despacho saneador (que transitou em julgado por falta de reclamação) o arguido quis alterar tal matéria para provocar a improcedência da ação na proteção do aí R AA (designadamente pois o menciona expressamente, bem sabendo que do processo constava a existência da junção dessa planta depois substituída por outra (falsa por não ser aquela junta com a PJ.) documento que se tomou decisivo para a procedência do recurso e assim no prejuízo dos assistentes (pois à data do incidente de falsidade tinha sido indeferido e agora provada a sua falsificação).

O arguido sabia e sabe que essa falsificação e uso de documento falso é que é a causa de pedir da presente ação sem que (se não houvesse falsificação) jamais os requerentes podiam alegar prejuízos daí decorrentes.

17°

Agiu por força das ligações suas e de sua mulher ao R AA supra referidas com intenção de prejudicar os requerentes e beneficiar o R AA e os outros RR, com a conduta supra descrita de alteração da matéria do despacho saneador.

Cometeu o crime de denegação de justiça e prevaricação."

Dos documentos que instruem os presentes autos resulta que na audiência de 21.12.2012, no âmbito do processo já referenciado, em que o aqui assistente era Autor, foi proferido despacho a eliminar factos da base instrutória e a aditar outros (fl.s 237-241), o que mereceu reclamação dos AA que não foi admitida por o arguido entender tratar-se antes de despacho sujeito a recurso (fl.s 243).

Foi interposto recurso para a acta, cuja admissão e fixação de efeito ficou a aguardar o decurso do prazo de que as partes dispõem para apresentação do recurso com as respectivas motivações, bem como o pagamento da taxa de justiça devida pela sua interposição (fl.s 244-246).

Ao invés de motivar o recurso interposto e pagar a taxa de justiça devida por isso, o assistente apresentou a denúncia contra o arguido que deu azo aos presentes autos.

O crime de denegação de justiça e prevaricação encontra-se sistematicamente integrado no Capítulo III - "Dos crimes contra a realização da justiça" - do Título V do Código Penal, sendo o bem jurídico tutelado a equitativa administração da justiça.

Diz o seu n. º 1:

"o funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido ... "

Como se diz no acórdão do STJ de 12.07.2012, proc. 4/l1.8TRLSB.Pl (www.dgsi.pt):

“…

V - Face à exigência típica decorrente da expressão "conscientemente", só o dolo directo e o necessário são relevantes, como é jurisprudência uniforme do STJ. O dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica. Não são meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizadas em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente contra o direito e, muito menos, coro o propósito específico de lesar alguém.

VI - Por outro lado, não é a prática de qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.º 1 do artº 369.° do CP; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça. Não basta, pois, que se tenha decidido mal, incorrectamente, contra legem, sendo necessário que quem assim decidiu tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça."

Do Rai não resulta com clareza qual o acto contra direito cuja prática o assistente imputa ao arguido, se as alterações introduzidas à base instrutória se a não admissão da reclamação, sendo certo que o despacho que acima se referiu só transitou em julgado porque o assistente, interpondo recurso, não o motivou nem pagou a respectiva taxa de justiça, o que não pode ser assacado ao arguido.

Isto é, se o assistente não concordava, como transparece dos autos, com a alteração à base instrutória nos termos em que o arguido a efectuou, cabia-lhe recorrer, visto que a reclamação não foi admitida, e, recorrendo, cumprir os requisitos inerentes ao recurso.

A discordância manifestada não é bastante para se concluir que o arguido violou qualquer dever funcional, conscientemente e contra direito, e, com isso incorreu no crime por que o assistente pretende vê-lo sujeito a julgamento. Do mesmo modo, quanto à não admissão da reclamação do mesmo despacho, pois lhe não foi vedado o recurso dele, como acima se referiu.

Dispõe o art. 283.°, n. ° 2, aplicável à fase de instrução por força do disposto no art. 308.°, n.º 2, ambos do CPP:

"Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança."

Por sua vez, dispõe art. 308.°, n.º 1, do CPP:

"Se, até ao encerramento da instrução, tiveram sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia,"

É este último o caso dos autos. Na verdade, deles não se colhem, pelas razões aduzidas, indícios suficientes da prática pelo arguido do crime denunciado, não se antevendo uma possibilidade razoável de, em julgamento, lhe ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, pelo que decido não pronunciar BB e, por conseguinte, determino o arquivamento dos autos.

           

II

Analisando a matéria dos presentes autos verifica-se o seguinte itinerário processual

AA e mulher DD, apresentaram queixa (fls 2 a 5), na Procuradoria-Geral Distrital ----, criticando a actuação do Juiz --- BB, desenvolvida no âmbito do proc. n° 2537 /09.7TBAMT, do 2° Juízo do Tribunal Judicial de ---, nos despachos proferidos na acta de audiência de 21.12.2012.

Os presentes autos foram instruídos com certidão extraída daquele processo.

Os denunciantes instauraram no tribunal Judicial de --- contra EE, herança aberta por óbito do marido desta, FF, GG e marido HH e II, acção declarativa de condenação, com o n" 2537/09.7 TBAMT, tendo por fundamento o uso de documento falso, na acção declarativa de petição de herança n° 327/99 que correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de ---, que aqueles instauraram contra os ora denunciantes (acção declarativa de petição da herança).fls 14-18.

Nestes últimos autos (327/99), foi proferida uma primeira sentença que veio a ser anulada por acórdão do TRP –procº nº 941/97 3a secção-que anulou a resposta a alguns quesitos.-cfr. fls 181 a 193.

Foi realizado novo julgamento e por sentença de 9.11.2011(fls 194-203), foram os RR AA e mulher DD condenados a ver reconhecida às AA a qualidade de herdeiras legitimarias de seu falecido pai JJ, bem como a reconhecerem que os prédios identificados na alínea d) da especificação, com os limites referidos em 12 e 13 da PJ., pertencem à herança do mesmo JJ, a entregarem aos AA, enquanto representantes da herança indivisa, as parcelas de terreno desses mesmos prédios que vêm possuindo sem qualquer título e identificadas no art° 35°, repondo-as previamente, no estado imediatamente anterior aos actos de ocupação e a indemnizarem os AA na qualidade de interessados da herança, pelos prejuízos sofridos, no montante que se liquidar em execução de sentença.

Os RR denunciantes interpuseram recurso daquela sentença para o TRP- Apelação nº 565/02 da 2a secção, tendo sido julgado improcedente o recurso, por acórdão de 25.3.2013.-cfr. fls 218 a 233.

Os RR denunciantes vieram deduzir um incidente de falsidade do doe" n° 5 junto com a petição inicial. cfr. fls 71 a 73 , tendo sido admitido apenas relativamente aos factos constantes dos artigos 11 e 12 do seu requerimento de fls 71 a 73, datado de 3.6.2003, tendo sido ordenada pelo Tribunal da relação do Porto a suspensão dos termos destes autos e que os autos baixassem à 1 a Instância para a instrução e julgamento da falsidade arguida.-cfr. fls 79 e 80.

Por decisão de 24.4.2007 tal incidente foi julgado improcedente-fls 83 a 87.

Os RR denunciantes interpuseram recurso para o TRP que por acórdão de17.9.2007 negou provimento ao recurso de agravo e confirmou a sentença Fls 88 a 94.

Neste acórdão vem referido que as afirmações constantes das conclusões 2a a 6a do recurso dos Agravantes -cfr fls 89-são meras conclusões, não podendo afirmar-se com aos elementos de prova carreados para os autos, designadamente o relatório pericial, que o documento n° 5 junto a fls 43 é falso.

E acrescenta:« Não é possível afirmar-se que: «O documento que agora consta a fls 43 dos autos, não é o mesmo que foi junto pelos AA com a petição inicial sob o n" 5 e que os RR impugnaram e que este documento foi alterado e substituído pelo que agora constitui fls 43 do processo ou que a alteração foi feita após a citação dos RR para os termos da acção, pelo menos duas vezes, a última das quais foi detectada no dia 25 de Agosto de 2003, já na fase de recurso, violando as mais elementares regras e direitos, nomeadamente o dever de boa fé processual pelo que tal documento é falso, pelo que não pode ser considerado na acção para qualquer efeito, nomeadamente para efeitos probatórios.»

Por acórdão do STJ de 6.3.2009 foi negado provimento ao agravo e á revista. Cfr. fls 96 a

III.

As conclusões 2ª a 6ª que formulam os RR denunciantes, são iguais às que formularam para o Tribunal da Relação e são as seguintes:

« ... 2a_ O documento que agora consta a fls. 43dos autos não é o mesmo que foi junto pelos AA com a petição inicial sob o nº 5 e que os RR impugnaram.

3a-Este documento foi alterado e substituído pelo que agora constitui fls. 43 do processo. 4a-A alteração foi feita após a citação dos RR para os termos da acção, pelo menos duas vezes, a última das quais foi detectada no dia 25 de Agosto de 2003, já na fase de recurso, violando as mais elementares regras e direitos, nomeadamente o dever de boa fé processual.

5a- Estando datado de Setembro de 1998, o documento 5 jamais podia assinalar os marcos, visto que, tal como já está adquirido no processo, os mesmos tinham sido arrancados em meados de 1987.

6ª- Tal documento é falso, pelo que não pode ser considerado na acção para qualquer efeito, nomeadamente para efeitos probatórios.».

Também o STJ no seu acórdão supra referido, entendeu que as afirmações constantes das conclusões 2a a 6ª do recurso dos agravantes nesta instância, são meras conclusões sem suporte nas provas produzidas.

E conclui que perante a matéria de facto dada como provada, entre a qual estão as conclusões do exame pericial, feito ao doe" n° 5, junto a fls 43 pelo laboratório de policia cientifica.cfr. fls 42 e 43), não pode sustentar-se a falsidade do documento.cfr. fls 108.

Os denunciantes insurgem-se contra a eliminação dos pontos 1°, parte do 3°,4°, 60 e-70 da base instrutória e aditamento dos pontos 15° a 19°, alegando que tal situação tem por finalidade absolver o Réu AA, favorecendo-o.

O denunciado na audiência de Julgamento a que presidiu no dia 2l.12.2012, na acção ordinária nº 2537/09.7TBAMT do 2° juízo do Tribunal Judicial de ---, verificando que na contestação os RR alegaram matéria necessária à apreciação do incidente de litigância de má fé deduzido e que não constava da base instrutória, proferiu um despacho a aditar os quesitos seguintes:

15°

Os autores sabem que o réu Dr.AA não teve qualquer intervenção na acção identificada em A) e B) e em toda a questão que lhe está subjacente desde 1995?

16°

Os autores sabem que todos os réus não tiveram nenhuma intervenção na alegada falsificação da denominada «planta topográfica» referida em C)?

17°

Com a instauração da presente acção os autores visam impedir que o réu Dr. AA possa depor como testemunha nesta acção?

18°

Desacreditar a valia do seu depoimento a prestar em sede de julgamento da oposição à execução?

19°

Cansar os réus e entorpecer e retardar a acção da justiça?

O Mº Juiz por despacho proferido a fls 237 e ss e na sequência de anterior despacho proferido na anterior audiência do dia 23.11.20 12-cfr. fls 131-onde adverte os AA, ora denunciantes, que as matérias do ponto 1°, parte do ponto 3°, pontos 4°, 5° e 7° da base instrutória, só poderiam ser provadas por documento autêntico, verificando que os documentos referidos a fls. 131 estavam junto aos autos, elimina os pontos 1°,4°,6° e 70 da base instrutória e adita aos factos novos a matéria constante da alínea G) a P)-cfr- fls 238 a 241.

Dá nova redacção a parte do ponto 3°(a outra parte consta das alíneas H) a N) dos pontos assentes), que passará a ter a seguinte redacção :

Esse documento foi falsificado na sequência do recurso referido em I)?

Considerou o denunciado que a matéria do art° 5° é conclusiva e deveria ser eliminada, pois era do seguinte leor:«Conforme resulta do Acórdão referido em D) (Apelação 565/2002-23 secção TRP relativa ao proc.327/99 que correu termos no 2° juízo do Tribunal Judicial de ---) para o sentido da decisão foi determinante o documento mencionado em 3°?»

Como refere o denunciado, '" «é a parte da análise do acórdão identificado em I) ( e o mesmo indicado em D), pois há lapso na indicação da data do mesmo, que é 2003- Apelação 565/2002-23 secção TRP relativa ao proc0327/99 que correu termos no 2º juízo do Tribunal Judicial de ---) que na sentença se vai averiguar se aquele documento foi ou não determinante para o sentido da decisão proferida naquele acórdão».

III

             Como refere Medina de Seiça[1] o normativo invocado pelos denunciantes recorrentes -crime de denegação de justiça e prevaricação do artigo 369 do Código Penal- cobre uma multiplicidade de condutas, as quais, porém, se podem reconduzir a um étimo comum que consiste na actuação contra direito. Consequentemente, o crime enquadra-se no amplo sector dos crimes de funcionários, em que o factor de união reside na violação dos deveres funcionais decorrentes do cargo desempenhado pelo se configura como um típico crime específico (próprio).

Adianta aquele autor que as decisões dos aplicadores judiciais apresentam uma intrínseca capacidade lesiva (prisão, multa, interdição de direitos, expropriação, etc.), cuja potencialidade danosa é acrescida em virtude da generalizada credibilidade institucional de que se revestem…..Este tipo de crime pretende assegurar o domínio ou supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime, judiciais …….). Pode dizer-se que, enquanto noutros tipos de crime incluídos neste capítulo, a lesão do bem jurídico realização da justiça provém de agentes que se situam fora do aparelho estadual da administração da justiça (assim, no falso testemunho, no favorecimento pessoal), na fattispecie em apreço (como também no favorecimento por funcionário: art. 368°) o ataque ao bem jurídico dá-se de dentro, i. é, por parte dos órgãos deputados pela comunidade estadual justamente para a tarefa da correcta realização da justiça. É esta perversão ab imo - transformação do direito em injusto por parte de quem é chamado a servir de garante institucional à própria Ordem Jurídica - que convoca a particular censura da norma incriminadora.

Em termos nucleares do tipo está em causa uma resposta penal aos abusos da função judicial, determinando-se a criação de um tipo específico de prevaricação e com ele a estatuição da responsabilidade penal do juiz que se assume como contra-peso à garantia da irresponsabilidade e independência judiciais

Na integração dos elementos objectivos tipificadores do crime é essencial o agir contra direito sendo certo que este agir abrange e, em primeiro lugar, o conjunto das normas vigentes na ordem jurídica positiva, independentemente da sua origem ou modo de revelação (se. fonte), tenham cunho material ou, antes, processual, natureza pública ou privada, de criação estadual ou não (v. g., convenções colectivas de trabalho). Porém, para além do referido estão também em causa os princípios jurídicos não directa ou expressamente consignados em normas positivadas, mas que delas decorrem e gozam de força cogente, como o princípio in dubio pro reo, ou a proibição do venire contra factum proprium, etc.

O núcleo típico deste crime verifica-se, assim, quando o agente realiza ou omite um comportamento contra direito. Tal conduta pode, naturalmente, assumir diversas formas. que, como refere o mesmo autor, pode passar por uma incorrecta aplicação das normas jurídicas, quer de direito substantivo quer processual, ou um falso ou erróneo estabelecimento da base factual que é pressuposto da aplicação normativa, ou, ainda, a violação da esfera de discricionariedade que, eventualmente, a norma comporte

            Importa, ainda, para que aquela integração se verifique precisar se essência da prevaricação reside numa conduta tomada contra a convicção pessoal do agente sobre qual seja a verdade ou direito objectivo; ou, por último, na lesão dos deveres funcionais do agente impostos no interesse da descoberta da verdade e do direito. A resposta ensaiada a esta questão passa, como alude Medina de Seiça, por três teses fundamentais: a teoria subjectiva, a teoria objectiva e a teoria do (ou da violação do) dever.

Para a primeira daquelas teorias o funcionário age contra direito quando a sua decisão (de promover ou não, etc.) diverge da decisão que, em sua convicção pessoal, corresponde à juridicamente correcta ou imposta. O mesmo vale por dizer que o critério aferidor da verificação do delito reside na subjectiva convicção do agente sobre o sentido ou conteúdo do direito ). O crime de prevaricação expressaria, assim, um autêntico delito de convicção.

Por seu turno os defensores da tese objectiva sustentam que existe prevaricação sempre que a decisão tomada pelo funcionário não for aquela que o direito objectivamente impunha ou que não corresponda à situação jurídica objectiva. Desta forma, para a realização do tipo objectivo da prevaricação é irrelevante se a decisão tomada corresponde ou não à convicção pessoal do funcionário.

Para a teoria da violação do dever a prevaricação significa a violação dos deveres (de metódica jurídica) a que o funcionário, maxime o juiz, se encontra sujeito em ordem à efectivação do interesse que na realização da verdade e do direito).

Agir contra direito significa, essencialmente, a contradição da decisão (aqui incluindo, claro está, o comportamento passivo) com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes. Mas tal contradição só por si nada mais significa do que a existência dum erro de direito que pode justificar uma alteração do decidido.

A nota definidora do crime imputado é a consciência de tal contradição de agir contra o direito ou seja é o assumir da violação dos deveres profissionais em função de outras razões. A colisão com o direito, procurada de forma deliberada, é o núcleo essencial do crime de prevaricação.

No caso vertente a procedência da denúncia pressupõe, assim, em primeiro lugar, e independentemente de qualquer consideração sobre a vertente subjectiva que a iluminou, que exista uma decisão contrária ao direito e, só depois de tal demonstração, o esclarecimento sobra uma participação pessoal, ou seja, uma livre e subjectiva convicção de actuar contra o sentido correcto do agir.

Como refere Medina de Seiça o juízo de antinormatividade do acto afere-se pela sua concreta exteriorização, pelo seu conteúdo de desvalor extrínseco - ainda que consequencial à leviandade do agente, ao desrespeito pelas leges artis, o juízo de ilicitude na prevaricação não se confunde com aquele desrespeito, tal como na ofensa corporal causada por um médico em virtude da violação das regras de cuidado da medicina, o dano objectivo afere-se pela amplitude da lesão.

Porém, e na verdade, se a decisão tomada se incluía no possível âmbito hermenêutico do preceito aplicado, ela já não se mostra contra direito; pelo contrário, expressa uma solução de direito, por conseguinte refractária à censura normativa da presente incriminação.  Se para a norma em causa, ou antes, se a aplicação ao caso concreto de uma norma não se circunscreve à pura subsunção de uma fattispecie unívoca (hipótese em que a prevaricação se afirma com a simples desconformidade da solução com o prescrito no comando legal), mas se espalha por diversas vias juridicamente admissíveis de acordo com os cânones da metodologia jurídica, muitas vezes sancionadas na sua contrastante variedade pelas mais altas instâncias judiciais e conceituada doutrina, parece-nos que a escolha de uma delas feita pelo concreto aplicador conforma, em princípio, uma solução de acordo com o direito.

No caso vertente, sem entrarmos no domínio da subsunção da actuação do arguido no campo do elemento subjectivo da infracção, e procurando sintetizar os elementos objectivos situados a seu montante, a primeira e decisiva questão com que nos deparamos é de saber se actuação concreta se pode identificar de forma manifesta como agir contra o direito que é pressuposto de incriminação.

Saliente-se que a hipótese concreta não se apresenta com a limpidez impressa pela aplicação do silogismo-norma caso concreto, mas tem subjacente uma mediação da matéria de facto isto é saber se a elaboração das bases factuais da decisão a proferir no processo 2537/09 ofende os princípios que presidem à elaboração de tal iem processual.

Concretamente constata-se que

O denunciado na audiência de Julgamento a que presidiu no dia 2l.12.20 12, na acção ordinária nº 2537/09.7TBAMT do 2° juízo do Tribunal Judicial de ---, verificando que na contestação os RR alegaram matéria necessária à apreciação do incidente de litigância de má fé deduzido e que não constava da base instrutória, proferiu um despacho a aditar os quesitos seguintes:

15°

Os autores sabem que o réu Dr. AA não teve qualquer intervenção na acção identificada em A) e B) e em toda a questão que lhe está subjacente desde 1995?

16°

Os autores sabem que todos os réus não tiveram nenhuma intervenção na alegada falsificação da denominada «planta topográfica» referida em C)?

17°

Com a instauração da presente acção os autores visam impedir que o réu Dr. AA possa depor como testemunha nesta acção?

18°

Desacreditar a valia do seu depoimento a prestar em sede de julgamento da oposição à execução?

19°

Cansar os réus e entorpecer e retardar a acção da justiça?

O Mº Juiz por despacho proferido a fls 237 e ss e na sequência de anterior despacho proferido na anterior audiência do dia 23.11.20 12-cfr. fls 131-onde adverte os AA, ora denunciantes, que as matérias do ponto 1°, parte do ponto 3°, pontos 4°, 5° e 7° da base instrutória, só poderiam ser provadas por documento autêntico, verificando que os documentos referidos a fls. 131 estavam junto aos autos, elimina os pontos 1°,4°,6° e 70 da base instrutória e adita aos factos novos a matéria constante da alínea G) a P)-cfr- fls 238 a 241.

Dá nova redacção a parte do ponto 3°(a outra parte consta das alíneas H) a N) dos pontos assentes), que passará a ter a seguinte redacção :

Esse documento foi falsificado na sequência do recurso referido em I)?

Considerou o denunciado que a matéria do art° 5° é conclusiva e deveria ser eliminada, pois era do seguinte leor:«Conforme resulta do Acórdão referido em D) (Apelação 565/2002-23 secção TRP relativa ao proc0327/99 que correu termos no 2° juízo do Tribunal Judicial de ---) para o sentido da decisão foi determinante o documento mencionado em 3°?»

Como refere o denunciado, '" «é a parte da análise do acórdão identificado em I) ( e o mesmo indicado em D), pois há lapso na indicação da data do mesmo, que é 2003- Apelação 565/2002-23 secção TRP relativa ao proc0327/99 que correu termos no 20 juízo do Tribunal Judicial de ---) que na sentença se vai averiguar se aquele documento foi ou não determinante para o sentido da decisão proferida naquele acórdão».

As decisões que concretizaram tais alterações processuais não consubstanciam uma afronta das regras de direito adjectivo que presidem á elaboração da base instrutória do processo. Dito por outra forma aquelas decisões correspondem a uma leitura da matéria de facto relevante para a decisão, quiçá errada, mas sempre uma leitura possível sem que tal revele a profunda antipatia com a norma e, muito menos, a atitude convicta de querer romper com o direito aplicável.

A constatação de tal circunstância implica desde logo a ausência de tipificação de um dos elementos do tipo e, consequentemente, torna o despacho sindicado insusceptível de crítica.

Nestes termos julga-se improcedente o recurso interposto por AA.

Custas pelo recorrente.

 Taxa de Justiça 4 UC

 Santos Cabral (Relator)

Oliveira Mendes

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[1] A. Medina de Seiça Código Penal Conimbricense (§§ 22-23) Anotação ao art. 369