Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
086804
Nº Convencional: JSTJ00027206
Relator: MARTINS DA COSTA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO
ABANDONO DE SINISTRADO
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: SJ199504040868041
Data do Acordão: 04/04/1995
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N446 ANO1995 PAG239 - CJSTJ 1995 ANOIII TI PAG151
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 236/94
Data: 09/27/1994
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: A VARELA IN RLJ ANO122 PAG112.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV. DIR PROC CIV - RECURSOS.
DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS.
Legislação Nacional: CE54 ARTIGO 59 N1 B N2 ARTIGO 60 N1 N3.
DL 522/85 DE 1985/12/31 ARTIGO 7 ARTIGO 8 ARTIGO 19 C F.
CPC67 ARTIGO 664.
DL 114/94 DE 1994/05/03 ARTIGO 2.
CP82 ARTIGO 13 ARTIGO 219.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RP DE 1993/06/01 IN CJ ANOXVII T3 PAG223.
Sumário : I - O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel visa, em primeira linha, um fim social, que é o de garantia do ressarcimento dos danos injustamente causados, num sector em que os danos se repetem e assumem uma expressiva amplitude, de modo que seja certa e quanto possível célere a reparação dos lesados.
II - Com a obrigação de efectuar esse seguro imposto a certas pessoas, pretende-se, ainda, acautelar os seus interesses, na medida em que a sua situação económica poderia ficar seriamente afectada com o pagamento da indemnização devida aos lesados e, na ponderação desses fins, excluem-se da garantia do seguro certos danos ou os causados a determinadas pessoas - artigo 7 do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro.
III - O direito de regresso concedido à seguradora contra o condutor que "haja abandonado o sinistrado" não se limita aos danos acrescidos ou resultantes do próprio abandono (alínea c) do artigo 19 do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro).
IV - A existência desse direito pressupõe, porém, que tenha havido abandono doloso ou voluntário da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência.
Decisão Texto Integral: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:

I - A Companhia de Seguros "Portugal Previdente" intentou a presente acção de processo comum, na forma sumária, contra A, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 3000000 escudos, acrescida de juros legais desde a citação, em exercício de direito de regresso da indemnização paga por motivo de acidente de viação causado pelo réu, com fundamento em ter havido abandono do sinistrado.
Houve contestação. No despacho saneador, de folhas 43 e seguintes, julgou-se a acção improcedente.
Em recurso de apelação, essa sentença veio a ser confirmada pelo acórdão de folhas 83 e seguintes.
No presente recurso de revista, a autora pretende a revogação daquele acórdão, com base nas seguintes conclusões:
- pelas razões históricas, sistemáticas e literais, o legislador, ao prescrever no artigo 19 do Decreto- -Lei 522/85, de 31 de Dezembro, a aplicação do direito de regresso em relação ao abandono de sinistrado, não desconhecia o sentido jurídico preciso deste;
- o crime de abandono de sinistrado, previsto no artigo 60 do Código da Estrada, verifica-se desde que o responsável por um acidente não preste socorros à vítima, ainda que esta tenha tido morte imediata;
- o réu foi condenado por esse crime;
- é totalmente indiferente se tal abandono contribuiu ou não para agravamento de danos;
- na formulação do citado artigo 19, o legislador, quando desejou impor pressupostos ou restrições ao exercício do direito de regresso, exprimiu-o claramente, como sucede na sua alínea b);
- a alínea c) do mesmo artigo 19 apenas exige, para exercício do direito de regresso, o pagamento da indemnização e a verificação do abandono, e não a demonstração de ter sido este o determinante ou causador dos danos;
- foi violado o disposto naquela alínea c).
O réu, por sua vez, sustenta ser de negar provimento ao recurso.
II - Factos dados como provados:
Por sentença, transitada em julgado, proferida em autos de processo comum crime, que correu termos na comarca de Pinhel, o ora réu foi condenado por homicídio involuntário previsto e punido pelo artigo 59, ns. 1 b) e 2 do Código da Estrada e de um crime de abandono de sinistrado previsto e punido pelo artigo 60, n. 3, do mesmo Código, na pena única de 15 meses de prisão e 150 dias de multa, à taxa diária de 400 escudos, em alternativa em 100 dias de prisão e, ainda, na medida de inibição temporária da faculdade de conduzir por um período de 15 meses.
Na mesma sentença, foi condenada a Companhia de Seguros Portugal Previdente, S.A., a pagar aos pais de B a quantia de 3000000 escudos, a título de danos não patrimoniais, e a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, até ao montante de 100000 escudos, a título de danos patrimoniais.
O pagamento dessa quantia de 3000000 escudos foi efectuado, em data não apurada, pela Autora Portugal Previdente a C e D.
Na já citada sentença, foram dados como provados, após a discussão da causa, entre outros, os factos seguintes:
- no dia 20 de Julho de 1990, cerca das 8.00 horas, o arguido (ora réu) circulava na E.N. n. 221, no sentido Guarda-Pinhel, conduzindo o veículo pesado de mercadorias com a matrícula OD, pertencente
à sociedade "A Transportadora de Montejunto, Lda.", sob as ordens e direcção desta;
- ao chegar ao Km. 168,100, dentro da povoação de Freixedas, o arguido foi ocupar a hemifaixa de rodagem do lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha, indo embater com o canto da frente e com o lado esquerdo do OD no peão B, que transitava pela berma esquerda da estrada, atento o seu sentido de marcha e do arguido;
- em consequência do embate, o corpo da B ficou imobilizado na berma, com a cabeça e o corpo junto a um muro que circunda a estrada e as pernas viradas para o asfalto;
- do embate resultaram para a B as lesões descritas no relatório da autópsia e que foram a causa directa e necessária da sua morte;
- após o embate, o arguido prosseguiu na sua marcha, sem parar ou abrandar;
- momentos antes do embate, o arguido sentiu um acesso de sono, que o levou a perder momentaneamente o controlo do veículo que conduzia e a invadir a faixa de rodagem e a berma do lado contrário, colher a B e prosseguir sem dar conta do embate;
- quando confrontado pela patrulha da G.N.R., que tomou conta da ocorrência, já na cidade de Pinhel, o arguido começou a chorar, dizendo que não se tinha apercebido do atropelamento;
- à data do embate, a dona do veículo OD havia transferido a responsabilidade por acidente causado pelo referido veículo para a ora Autora Portugal Previdente, S.A., por contrato de seguro titulado pela apólice n. 237645/Q, até ao montante de 20000 contos.
III - Quanto ao mérito do recurso:
Pelo artigo 19 do citado Decreto-Lei 522/85 (que reformula o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), é concedido à seguradora, "satisfeita a indemnização", o direito de regresso, em diversas hipóteses, entre elas o de exercer esse direito "contra o condutor ... quando haja abandonado o sinistrado" (alínea c).
Nas decisões das instâncias, depois de se considerar abrangido por essa alínea c) tanto o abandono doloso como o meramente negligente, teve-se como excluído o peticionado direito de regresso porque: nos casos previstos nessa alínea, tal direito só existe se "resultar, em concreto, um dano exorbitante do risco normal assumido pela seguradora"; ao pagar a indemnização pelos danos resultantes do próprio acidente, a seguradora limita-se ao cumprimento da sua obrigação; no direito de regresso, "o dano cuja cobertura a seguradora vai exigir do causador do acidente só pode ser um dano acrescido" pelo abandono; a obrigação de indemnização pressupõe a existência de dano derivado dessa conduta ilícita; não há presunção legal desse dano nem ele ocorre no caso, como o presente, de morte imediata da vítima; na fixação da indemnização devida ao lesado ou no seu pagamento voluntário seria sempre indispensável a discriminação entre os danos causados pelo acidente e os derivados do abandono.
Salvo o devido respeito, não se afigura aceitável essa argumentação, sendo de seguir antes, neste ponto, a posição defendida pela recorrente.
O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel visa, em primeira linha, um fim social, que é o de "garantia do ressarcimento dos danos injustamente causados", num sector "em que os danos se repetem e assumem uma expressiva amplitude", de modo que "seja certa e quanto possível célere a reparação dos lesados" (relatório do Decreto-Lei 165/75, de 28 de Março).
Com a obrigação de efectuar esse seguro, imposta a certas pessoas, pretende-se ainda acautelar os seus interesses, na medida em que a sua situação económica poderia ficar seriamente afectada com o pagamento da indemnização devida aos lesados, e, na ponderação desses fins, excluem-se da garantia do seguro certos danos ou os causados a determinadas pessoas (artigo 7 do citado Decreto-Lei 522/85).
O direito de regresso concedido à seguradora pelo citado artigo 19 deixa incólume aquele objectivo social do seguro obrigatório e apenas atinge o património de certas pessoas cuja responsabilidade civil estaria, em princípio, garantida pelo seguro (artigo 8 do mesmo Decreto-Lei).
Pela análise das diversas hipóteses previstas nesse artigo 19, verifica-se que a exclusão de tal garantia é determinada, nuns casos, por elementares princípios de justiça, em outros por agravamento injustificado ou indesculpável dos riscos próprios da condução e em outros ainda por motivos de ordem moral, de tal modo que o legislador não teve como razoável que, nessas situações, os seus autores beneficiassem da existência do seguro.
Trata-se pois de norma moralizadora que "é, a um tempo, dissuasora e repressiva, punindo civilmente, sem daí se afectarem os lesados, os que deixaram de merecer a protecção concedida pelo seguro" (cfr. ac. R.P. de 1 de Junho de 1993, na Col. XVIII, 3., p. 223).
O caso de o condutor ter "abandonado o sinistrado", previsto na alínea c), só pode justificar-se por razões de ordem moral e não se afigura haver fundamento para que o direito de regresso apenas se reporte aos "danos acrescidos" ou directamente resultantes desse abandono: a prática do crime de abandono de sinistrado não depende de agravamento dos resultados, o qual só influi na medida da pena (artigo 60 n. 1 do Cod. Est. de 1954); para a sanção civil em causa, pela sua razão de ser, basta a prática dessa infracção; de outro modo, seria nos acidentes mais graves, com morte imediata, que o condutor ficaria liberto dessa sanção; só no caso da alínea f) (falta de apresentação do veículo a inspecção periódica) se prevê a exclusão do direito de regresso se o responsável por essa apresentação "provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo"; a solução das instâncias implicaria a interpretação restritiva da alínea c), o que se não justificaria também pelo confronto com aquela; essa interpretação não seria ainda válida para as outras hipóteses da mesma alínea c), designadamente a de falta de habilitação legal para a condução.
A decisão recorrida deve manter-se, porém, mas por outro fundamento, sendo certo que tal decisão pode ser confirmada por razões jurídicas diversas e mesmo não invocadas pelo recorrido, nos termos do disposto no artigo 664 do Codigo de Processo Civil (cfr. A. Varela, na Rev. Leg. J., 122, p. 112).
O citado artigo 60 do Codigo da Estrada de 1954, ainda que sob a epígrafe "abandono de sinistrados", prevê dois tipos de infracções imputáveis aos condutores de veículos: o abandono voluntário - "os condutores que abandonarem voluntariamente as pessoas vítimas dos acidentes ..." (n. 1); e o abandono negligente - "a falta de prestação de socorros, por negligência" (n. 3).
Em bom rigor, só no primeiro caso há efectivo "abandono", pois este conceito pressupõe uma conduta voluntária ou consciente de afastamento ou repúdio de alguém, deixando-o desamparado ou "abandonado", e certamente por isso é que aquele preceito usa as aludidas expressões.
Assim, a previsão da citada alínea c) do artigo 19 de o condutor haver "abandonado o sinistrado" deve ser interpretada, literalmente, no sentido de abranger apenas aquele abandono voluntário.
No mesmo sentido concorre, decisivamente, a razão de ser da lei: a grave sanção civil de reembolso da indemnização à seguradora não teria um mínimo de justificação no caso de a falta de socorro à vítima ter resultado de simples negligência do condutor do veículo, por se não haver apercebido do acidente ou da existência de lesado; ainda que lhe seja imputável um juízo de censura, por desatenção ou imprevidência, ele não assume relevância que possa ser incluída nos motivos de ordem moral que estão na base do preceito em causa; e a sua equiparação às outras hipóteses previstas no citado artigo 19 resultaria de todo desproporcionada e sem qualquer razoabilidade, tanto nos aspectos da sua gravidade objectiva como subjectiva.
Aliás, o citado artigo 60 do Código da Estrada de 1954 (cuja subsistência se discutiu com a entrada em vigor do Código Penal de 1982) está actualmente revogado pelo artigo 2 do Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio (que aprovou o novo Código da Estrada), pelo que aquele crime de abandono de sinistrado, com a designação de "omissão de auxílio", é agora punível apenas com base em dolo (artigos 13 e 219 do cit. Código Penal); essa descriminalização do "abandono" negligente vem reforçar aquela falta de censurabilidade, mesmo para efeitos civis, designadamente o previsto na cit. alínea c) do artigo 19.
No caso presente, deu-se como provado, no processo criminal, que o réu não se apercebeu de ter colhido a vítima e prosseguiu a marcha sem dar conta do embate, pelo que foi condenado pela infracção prevista no n. 3 do citado artigo 60, não ocorrendo assim o fundamento invocado pela autora.

Em conclusão:

O direito de regresso concedido à seguradora contra o condutor que "haja abandonado o sinistrado" não se limita aos danos acrescidos ou resultantes do próprio abandono (alínea c) do artigo 19 do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro).
A existência desse direito pressupõe, porém, que tenha havido o abandono doloso ou voluntário da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência.
Pelo exposto:

Nega-se a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 4 de Abril de 1995.
Martins da Costa.
Pais de Sousa.
Pereira Cardigos.