Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A3807
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
CULPA DA VÍTIMA
CULPA EXCLUSIVA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: SJ200901200038076
Apenso:
Data do Acordão: 01/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVII, TOMO I/2009, P. 62
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I- Se o acidente for unicamente devido a actuação culposa exclusiva do lesado, a responsabilidade pelo risco deve considerar-se excluída nos termos do artigo 505.º do Código Civil.
II- Admitindo-se a concorrência da culpa com o risco no processo causal do acidente, isso não significa considerar-se o risco causalmente verificado apenas porque o acidente se verificou entre um veículo motorizado e o peão sinistrado a partir do momento em que se provou que o acidente foi exclusivamente imputável a este último.
III- Se um peão inicia a travessia da faixa de rodagem à saída de um túnel destinado exclusivamente ao trânsito automóvel, atravessando-se subitamente e à frente do condutor que não se pôde desviar dada a proximidade entre ambos, a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo motorizado está afastada pois tais factos comprovam que o acidente é imputável exclusivamente ao sinistrado.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Companhia de Seguros AA, SA, enquanto seguradora do ramo acidentes de trabalho, demandou M...e Seguros Gerais, SA pedindo a sua condenação no pagamento de 50.191.77€ com juros de mora à taxa legal até efectivo e integral pagamento, bem como no pagamento das prestações vincendas a liquidar em execução de sentença, valor das quantias por ela suportadas com o seu segurado BB, sinistrado por atropelamento em acidente de viação, simultaneamente acidente de trabalho, cuja responsabilidade cabe à ré por ter sido o seu segurado, condutor da motorizada ..-...-.., o culpado do atropelamento.

2. A acção foi julgada improcedente por se ter entendido, face à prova produzida, não resultar qualquer dúvida de que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do peão que pretendeu atravessar a via em local manifestamente inapropriado, sem as devidas precauções e sem se assegurar previamente de que o podia fazer sem perigo.

3. Considerou-se que a conduta do sinistrado infringiu disposição do Código da Estrada (artigo 40.º do Código da Estrada), não sendo obrigado o condutor do veículo a prever ou a contar com a falta de prudência dos restantes utentes da via, devendo partir-se do princípio de que todos cumprem os processos regulamentares de trânsito e observam os deveres de cuidado que lhes subjazem.

4. Ainda nessa mesma sentença ponderou-se, não obstante o entendimento de que a culpa do acidente cabia exclusivamente ao peão, se não ocorreria a responsabilidade com base no risco próprio do veículo, afastando-se esta possibilidade com o argumento de que foi a conduta temerária do atropelado que esteve na origem do acidente.

5. Nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação, a A. sustenta que a matéria de facto apurada não permite concluir se o veículo ID era visível para o BB quando este iniciou a travessia da faixa de rodagem, não sendo, por isso, imputável a culpa a qualquer dos intervenientes, o que leva à aplicação da responsabilidade com base no risco; a não se seguir este entendimento, então impõe-se concluir que houve concorrência de culpas, pois se a travessia foi iniciada em local inadequado, o grau de inclinação da lomba retira totalmente a visibilidade a quem nela transite, o que impunha especiais precauções ao condutor, traduzindo violação do disposto nos artigos 24.º/1 e 25.º/1, alínea f) do Código da Estrada.

6. Outro foi o entendimento do Tribunal da Relação. Com efeito, o acórdão da Relação, posto que considerasse culposa a actuação do segurado da A., considerou que a culpa do condutor devia ser mitigada com base nas circunstâncias objectivas que passou a indicar: “estamos, porém, em presença de uma ocorrência rodoviária típica dos grandes centros urbanos em que o peão, pela sua natural fragilidade, sofre as consequências, desproporcionadas e tantas vezes dramáticas, decorrentes da circulação na cidade, sem a garantia de o poder fazer com a indispensável segurança (dada a ausência frequente de estruturas viárias que lhe facilitem o trânsito, designadamente aquando do atravessamento de vias de grande movimento)”

Assim, considerada uma culpa reduzida do sinistrado, sustentou-se que o risco do veículo desempenhava factor relevante no processo causal, passando a acompanhar recente jurisprudência deste Supremo Tribunal que admitiu a concorrência do risco com facto do lesado: cf. Ac. do S.T.J. de 4-10-2007 (Santos Bernardino) C.J.,3, pág. 82 que confessadamente consagra uma visão actualista do artigo 505.º do Código Civil.

Ponderando o concurso de culpa e risco, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa fixou a indemnização em 50% do valor reclamado.

7. Inconformada, a ré recorreu da referida decisão para este Supremo Tribunal, concluindo a sua minuta de recurso nos termos que a seguir se sintetizam:

a) Da prova produzida em audiência de julgamento, resultou claramente que o peão com a sua conduta temerária e incauta perigou voluntariamente a sua vida, dando culpa exclusiva à produção do acidente em análise.
b) Ao condutor do veículo seguro não foi imputada a prática de qualquer facto ilícito do qual decorresse a responsabilidade pelo acidente.
c) Nem ficou comprovada a tese alegada pela A. na qual se inclui o suposto excesso de velocidade praticado pelo condutor do veículo seguro.
d) Era às ora recorridas que competia fazer a prova do invocado excesso de velocidade; não tendo logrado fazê-lo, tal facto não pode vir em sede de recurso a ser motivador de reforma da sentença por alegadamente não permitir afirmar que o acidente se tenha ficado a dever única e exclusivamente à conduta do peão.
e) O acidente em análise deu-se no túnel do Campo Grande, o qual é exclusivamente reservado à circulação de veículos motorizados e onde é estritamente proibida a circulação de pessoas/peões.
f) Esta proibição justifica-se pelo acentuado risco de que de facto a circulação mista no local envolveria.
g) Qualquer condutor normal que circule dentro de um túnel não prevê nem pode prever que imediatamente após a saída do mesmo apareça um peão a atravessar a faixa de rodagem.
h) o local onde se deu o acidente, o túnel do Campo Grande e as vias que a ele dão acesso, são alguns dos locais com mais tráfego em Lisboa, sendo utilizados por milhares de veículos diariamente, sobretudo nas chamadas horas de ponta.
i) O condutor do veículo seguro circulava no referido túnel do Campo Grande, no dia 3 de Abril de 1997, uma quinta-feira, por volta das 18 horas, hora de ponta em Lisboa, sendo que não se provou que circulasse em violação de qualquer norma do Código da Estrada, ou seja, tranquilamente de regresso a casa.
j) Naquele dia, hora e local é de presumir que existisse muito trânsito, o que só por si inviabiliza a condução em excesso de velocidade.
l) Ao condutor do veículo seguro não pode ser exigível que antevisse a conduta ilícita e temerária do peão, antes devendo, razoavelmente, partir do princípio de que todos cumprem os preceitos regulamentares de trânsito e observem os deveres de cuidado que se lhe aplicam.
m) Sublinha-se a conduta do peão que num dia de semana, em plena hora de ponta, numa das vias mais movimentadas de Lisboa, arrisca o atravessamento da mesma imediatamente a seguir à saída de um túnel.
n) O condutor do veículo seguro não praticou qualquer ilícito ou violou qualquer dever de cuidado; ao invés, foi a conduta do peão que deu causa exclusiva à verificação do sinistro descrito nos autos.

A recorrente tem por violados os artigos 342.º e 570.º do Código Civil e o artigo 668.º/1, alínea c) do C.P.C.

8. Factos provados:

1- Por escritura pública de 27 de Setembro de 1999, lavrada no 5º Cartório Notarial de Lisboa, de fls. 57 a 62, do Livro 287-H, a Sociedade Portuguesa de ........ S.A., foi incorporada por fusão na Portugal Previdente de Seguros, S.A., alterando a sua denominação para Companhia de Seguros AA de Portugal, SA.

2- A autora exerce a actividade seguradora.

3- No exercício da sua actividade, a então Portugal Companhia de Seguros, S.A., celebrou com CC, empresário do ramo de trabalhos de canalizações e instalações eléctricas, um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, no qual aceitou a transferência da responsabilidade pela reparação do dano, emergente de acidente de trabalho, titulado pela apólice nº11.625.

4- No dia 3 de Abril de 1997 cerca das 18 horas, junto ao n.º 298 do Campo Grande, em Lisboa, depois da saída do túnel que passa por baixo da Av. do Brasil, ocorreu um embate entre o motociclo com a matrícula ..............., propriedade de DD e conduzido por DD e BB.

5- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 0000000000000, DD havia transferido para a Ré a responsabilidade civil emergente da circulação do ID.

6- No local do embate a estrada é recta, com o piso em bom estado de conservação, precedida do referido túnel que termina em lomba acentuada.

7- Não existem no local referido em 4, passadeiras de peões a menos de 50 metros.

8- No dia referido em 4), o tempo estava bom.

9-0 ID seguia no sentido Sul/Norte.

10- Atento aquele sentido de trânsito, do referido túnel saem três faixas de rodagem e o ID circulava pela que fica mais à esquerda.

11- À saída do túnel referido em 4), o grau de inclinação da lomba é de tal forma acentuada que retira totalmente a visibilidade.

12- Emergente deste atropelamento correu termos pelo Tribunal do Trabalho de Lisboa, acção especial de acidente de trabalho, na qual o acidente foi reconhecido como de trabalho.

13- A entidade referida em 3), participou o embate entre o ID e o BB à A.

14- O BB iniciou a travessia da estrada à saída do túnel referido em 4.

15- 0 condutor do ID não travou o veículo.

16- Quando o condutor do ID saía do túnel referido, surge à sua frente o BB a atravessar a estrada, subitamente e à frente do condutor do ID.

17- 0 condutor ainda guinou o veículo para a esquerda a fim de evitar o embate, o que não foi possível dada a proximidade entre ambos.

18- Do embate resultaram lesões no BB.

19- De despesas hospitalares por serviços prestados ao BB em consequência dos danos sofridos com o embate, a R. pagou 27.082,59€.

20- De honorários e exames médicos, pagou 1.625,98€.

21- E, por deslocações para exames e consultas médicas, pagou 2.509,25€.

22- A A. pagou ao BB, a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta de 4/4/1997 a 19/02/1999, 6.168,95€.

23- A A. pagou ao BB, a título de indemnização por incapacidade permanente parcial, a quantia de 12.736,96€ até 20/09/2003 e, desde Outubro de 2003 até Fevereiro de 2007, a A. pagou a título de pensão a quantia de 15.860,90€.

24- A A. pagou 68,04€ a título de deslocação do BB ao Tribunal de Trabalho.

Apreciando:

9. O paradigma da incompatibilidade da culpa com o risco tem vindo a ser abalado por força de novos progressos no campo da doutrina e da jurisprudência, procurando afastar a interpretação, tida por não actual, que exclui do âmbito do artigo 505.º do Código Civil a responsabilidade pelo risco: veja-se o referido Ac. do S.T.J. de 4-10-2007 anotado por Calvão da Silva na R.L.J.,Ano 137.º, 49/64.

10. Admitindo-se o concurso do facto do lesado ou de terceiro, já não com a culpa do dono ou do condutor, mas com o risco do veículo, a interrogação que se suscita é a de saber como se preenche ou densifica agora, para efeitos de exclusão da responsabilidade pelo risco, a expressão “ quando o acidente for imputável ao próprio lesado” (artigo 505.º do Código Civil).

11. O significado desta expressão era entendida no sentido de que não é só o facto culposo do lesado ou de terceiro a excluir a responsabilidade do dono do veículo. É que “ a fórmula legal deve considerar-se equivalente a ‘acidente devido a facto do lesado ou de terceiro. E, assim, a responsabilidade do dono poderá ser excluída mesmo que o lesado ou terceiro sejam inimputáveis. O que importa é que o facto do lesado ou de terceiro seja a única causa do acidente ou, por outras palavras, que este seja unicamente devido àquele facto […]” (Código Civil Anotado, Mário de Brito, Vol II, 1972, pág. 216).

12. Antunes Varela considera “ para que o acidente deva considerar-se imputável ao próprio lesado ou a terceiro, não é necessário que o facto por estes praticado seja censurável ou reprovável. A lei quer abranger todos os casos em que o acidente é devido a facto do lesado ou de terceiro, ainda que qualquer deles seja inimputável[…] ou tenha agido sem culpa; basta, noutros termos, que o acidente tenha sido causado por facto da autoria de um ou outro, posto que sem culpa do autor.

13. Para a exacta compreensão do preceito, importa considerar que não é um problema de culpa que está posto no artigo 505.º mas apenas um problema de causalidade: trata-se de saber se os danos verificados no acidente devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pela vítima ou por terceiro” (Código Civil Anotado, Vol I, 4ª edição, pág. 518).

14. No entanto, a partir do momento em que se adopte o entendimento de que aquele preceito não exclui o concurso da culpa do lesado com o risco - a leitura actualizada do preceito no entendimento de Calvão da Silva é esta: “ sem prejuízo do disposto no artigo 570.º (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, ‘a fortiori’, sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido ( com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo” (ver R.L.J., Ano 137.º, pág. 152) - a partir desse momento, dizíamos, continua a importar analisar a sequência naturalística do próprio acidente de modo a verificar se dela resulta, não obstante a actuação da vítima, a intervenção, no processo causal do acidente, dos riscos próprios do veículo.

15. Por exemplo, no caso tratado no mencionado Ac. do S.T.J. de 4-10-2007 em que a vítima era uma criança de 10 anos de idade que, conduzindo uma bicicleta, surge de um entroncamento à direita do veículo automóvel de tal modo que, sem aguardar a passagem do automóvel, entrou na metade direita da estrada, cortando a linha de marcha e tornando o acidente inevitável, fácil é verificar que a “culpa” do acidente seria atribuível ao condutor do velocípede só que o Tribunal deu igualmente como provado que “ à data do acidente a condutora do veículo Renault tinha pouca experiência, pois só estava habilitada a conduzir veículos automóveis desta categoria desde o dia 3-3-1998” ( o acidente ocorreu no dia 30-8-1998).

16. Por tal razão, considerando que “ dentro dos riscos próprios do veículo cabem ‘ além dos acidentes provenientes da máquina de transporte, os ligados ao outro termo do binómio que assegura a circulação desse veículo (o condutor)’”, o Tribunal considerou surpreender “ no caso concreto - enquanto factores que contribuíram para a verificação do acidente - a conjugação do perigo do próprio veículo com a inexperiência da sua condutora, potenciadora desse perigo”.

17. E muito incisivamente referiu-se no mencionado aresto que “ não se quer significar - não é demais reafirmá-lo, para que dúvidas não restem - que esta inexperiência se tenha projectado no domínio da culpa, em termos de ligar a qualquer conduta negligente por acção ou omissão) da condutora do Renault; quer-se apenas dizer que esta falta de experiência, condicionando inevitavelmente o total e absoluto domínio das ‘artes’ da condução não deixou de se repercutir , em sede de causalidade, no processo dinâmico que levou à eclosão do evento lesivo”.

18. Evidencia-se, assim, que foi produzida prova da intervenção no processo causal do acidente de um concretizado risco próprio do veículo (artigo 503.º,nº1 do Código Civil).

19. Este conceito indeterminado de risco próprio do veículo pode sofrer uma amplitude menor, consoante seja associado à projecção na máquina dos desgastes sofridos com a mera usura do tempo, ou maior, se for associado à circulação rodoviária de veículos especialmente quando postos em confronto com sinistrados pedestres que não podem deixar de utilizar as vias públicas, situação inerente à condição humana de vida contemporânea.

20. Então, a ser assim, o risco próprio do veículo confundir-se-ia com o seu próprio dinamismo, o carácter perigoso residiria no seu uso (“risco-actividade”- como refere Dario Martins de Almeida in Manual de Acidentes de Viação, 1980, pág. 315), o que nos conduziria a uma noção de “ risco próprio do veículo” equivalente à ideia de que o risco próprio do veículo é inerente ao perigo da circulação e, por conseguinte, encontra-se sempre presente num acidente de circulação rodoviária.

21. Ou seja, se em determinados sinistros rodoviários é constatável um risco próprio concretizado, como sucedeu no acórdão já mencionado, em muitos outros, para não dizer na sua grande maioria, o risco susceptível de ser considerado outro não é senão o risco próprio da actividade de circulação de veículos automóveis cuja perigosidade objectiva é inegável.

22. O processo causal do acidente parece dever ser analisado, quando há culpa do lesado e não se provou a culpa do lesante condutor do veículo, de modo a constatar se o risco de circulação do veículo deve ser excluído em razão da gravidade da culpa do sinistrado projectada no processo causal.

23. Afastado há mais de duas décadas o entendimento, que levou a intenso debate na doutrina e na jurisprudência, que via na circulação rodoviária uma actividade perigosa a impor uma presunção de culpa pelos danos causados ao detentor do veículo ( artigo 493.º,n.º2 do Código Civil), afastamento consagrado com o Assento n.º 1/80, de 21 de Novembro de 1979 in Diário da República n.º 24 de 1-1-1980 que excluiu os acidentes de circulação terrestre da previsão do artigo 493.º,n.º2 do Código Civil, hoje, numa outra perspectiva, reacende-se a questão de saber se, no âmbito da sinistralidade rodoviária, não devemos considerar, porque sempre presente o risco, necessariamente presumida a causalidade determinada pelo risco.

24. Tal presunção seria ilidível mediante a prova de que o acidente foi devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro ou exclusivamente a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (artigo 505.º do Código Civil).

25. Assim sendo, não apenas nos casos em que se demonstra, como sucedeu no mencionado acórdão de 4-10-2007, uma causa concreta de risco, talvez se possa ir mais longe considerando que o risco não deve ser excluído precisamente quando ocorrem situações em que, existindo uma conduta objectiva desrespeitadora dos deveres de cuidado ( criança que, brincando num jardim junto à faixa de rodagem, se atravessa à frente de um veículo para apanhar a bola que para ali se escapou ou o caso do adulto que para escapar a uma vaga de mar que se projecta sobre o passeio entra inadvertidamente na faixa de rodagem também se atravessando à frente de uma viatura: ver a discussão deste caso em Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, Américo Marcelino, pág. 332 e segs), não é imputável ao lesado um juízo de culpa intenso (ou nem isso, no caso da criança) sendo contudo inegável que o processo causal do acidente em qualquer dos casos é imputável unicamente ao próprio lesado.

26. Parece, assim, justificar-se um novo quadro normativo em que o processo causal do acidente, ainda quando comprovadamente imputável ao lesado, admita a concorrência do risco do veículo lesante que se presumiria sempre que fosse reduzida a culpa do lesado ou sempre que o lesado não fosse passível de um juízo de censura seja em razão da idade ou de outra causa.

27. Encontramo-nos num plano do direito a constituir como salienta José Carlos Brandão Proença ao evidenciar os pontos essenciais da sua proposta de alteração do artigo 505.º do Código Civil que tem em vista conceber um regime “mais flexível e adaptado à fragilidade de certos lesados” (“Culpa do Lesado”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Vol III, Direito das Obrigações, pág. 139/151).

Brandão Proença sustenta, para além do mais, o seguinte:

- Que “ a sintonização do disposto no artigo 505.º com a redacção dada às normas equivalentes dos outros sectores específicos da responsabilidade pelo risco implica a subjectivização da conduta do lesado (binómio imputabilidade/culpa), afastando a sua pura configuração causal”
- Que se justifica um sistema de reparação automática para danos corporais no caso de sinistros com crianças de menos de 10 anos de idade.
- Que “ só a culpa grave do lesado, tida por causa única do acidente, deve constituir causa exoneratória no círculo dos danos corporais (transportado sem cinto de segurança, que conheça a embriaguez do seu transportador, que suba ou desça do comboio em andamento, do peão que prescinda da passadeira/passagem aérea para atravessar noutro local e em via de tráfego intenso).Evita-se, assim, que os pequenos descuidos, as desatenções ou os comportamentos reflexos funcionem a favor das seguradoras e que a culpa leve dos vigilantes seja considerada como facto de terceiro”.

28. No quadro actual do direito positivo afigura-se seguir a orientação contrária “ ‘à tese clássica’ segundo a qual toda e qualquer culpa mesmo a culpa leve ou levíssima, desvalorizando a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária) do lesado exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo” (Calvão da Silva, anotação ao Ac. do S.T.J. de 1-3-2001 in R.L.J., Ano 134.º, pág. 116/117).

29. Essa orientação contrária implica “ a aceitação do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, permitindo ao juiz sopesar suas gravidades e contributos causais e assim moldar o an e o quantum respondeatur” (loc. cit. pág. 117).

30. Numa formulação ulterior do seu pensamento, o autor admite que “ a seguradora pode opor ao lesado, não só a falta de responsabilidade do detentor do veículo segurado - acidente devido unicamente à vítima ou a terceiro, ou acidente exclusivamente devido a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (artigo 505.º)- , mas também um comportamento voluntário grave e indesculpável, doloso ou imprevisível do lesado nas circunstâncias do caso concreto. Cabe ao juiz nacional, na apreciação individual da conduta do lesado em cada caso específico, ter presente o escopo das Directivas europeias - garantia de indemnização suficiente da vítima a um nível elevado de protecção do consumidor - e a jurisprudência comunitária de apenas em circunstâncias excepcionais se poder reduzir (não desproporcionadamente) a extensão da indemnização do lesado” (ver R.L.J., Ano 137.º, pág. 159/160).

31. Sentimos, o que julgamos compreensível, alguma dificuldade na compatibilização, face ao quadro legal em vigor, da ideia de que, sendo o acidente devido unicamente à vítima no plano causal, ainda assim seja atribuível uma indemnização à vítima quando esta, pela sua pouca idade, não é passível de um juízo de censura; idêntica dificuldade se encontra nos casos em que ocorre uma culpa leve do lesado ( o adulto que, fugindo de um agressor, invade a faixa de rodagem, atravessando-se súbita e inesperadamente diante do veículo que circulava lentamente e observando todas as regras de trânsito) atentas as circunstâncias que originaram o acidente, mas sendo indiscutivelmente a causa do acidente alheia ao risco próprio da viatura, aceitando-se que a ideia de risco próprio com o amplo alcance anteriormente indicado.

32. Admite-se, à luz da lei que nos rege e aceitando a possibilidade de concorrência de risco com culpa, que aquele deve considerar-se verificado quando se evidencia um risco próprio concretizado a concorrer com o facto causal do lesado ou quando a actuação culposa do lesado projectada no próprio acidente não permite dizer que o acidente foi exclusivamente causado pelo lesado. Assim, por exemplo, um atropelamento de peão fora da passadeira próxima do local de atravessamento, só por si, não obstante a culpa do lesado, não permite afirmar que o acidente é unicamente devido ao lesado. No entanto, este entendimento não resolve os casos em que, não havendo culpa ou sendo esta diminuta - o caso da criança que atravessa a estrada em correria para agarrar a bola - se constata que o acidente resultou exclusivamente da conduta do lesado, não se evidenciando a interferência de nenhum risco próprio do veículo.

33. Para não ser assim, importaria então que a lei ressalvasse todos os casos em que, apesar de se reconhecer que a conduta do lesado constituiu o facto causal do acidente, o único dele determinante, ainda assim a indemnização pelo risco fosse atribuída por não resultar a conduta do lesado de uma actuação culposa grave. Por outras palavras: a responsabilidade pelo risco seria excluída apenas quando o lesado tivesse incorrido em culpa grave que fosse determinante de conduta à qual unicamente se deveu o acidente.

34. Podia ir-se ainda mais longe de jure condendo sustentando que, dada a vulnerabilidade das crianças, dos peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, a responsabilidade pelo risco devia ser sempre tomada em consideração independentemente da sua contribuição para o processo causal do sinistro ser inteiramente atribuível à conduta daqueles; quanto aos demais, a responsabilidade concorrente pelo risco não podia deixar de se considerar afastada se o acidente lhes fosse exclusivamente devido.

35. Uma actuação culposa origina normalmente o desencadear do acidente unicamente imputável ao próprio lesado. Mas não é forçoso que assim seja. Um peão que atravessa uma via de intenso tráfego sem se certificar da distância que o separa dos veículos que nela transitam e respectiva velocidade, desrespeita, sem dúvida, o normativo constante do artigo 104.º do Código da Estrada de 1994 ( preceito em vigor à data do acidente a que corresponde o artigo 101.º após a revisão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro) mas isso não significa, provando-se apenas que se deu o atropelamento naquelas condições, que o processo causal que originou o acidente lhe seja unicamente imputável. Por isso, situações que, à luz do entendimento pretérito, conduziriam à não responsabilização da seguradora, entidade para a qual o risco foi transferido precisamente porque, havendo culpa do lesado, o risco não podia com esta concorrer, agora importam consequência contrária: a co-responsabilização do garante do risco por não se ter provado que o acidente foi unicamente devido à conduta do lesado.

36. No entanto, aproveitando o exemplo dado que se aproxima do caso em apreço, se se provar que o peão, para além da travessia naquelas condições, se atravessou à frente do veículo cortando a curta distância a sua linha de marcha, impossibilitando-lhe qualquer manobra de recurso, então está preenchida a previsão constante do mencionado artigo 505,º, 2ª parte, pois o acidente resultou de uma conduta culposa que, no âmbito do processo causal, foi unicamente devida ao sinistrado.

37. Atente-se na realidade de facto que o acórdão recorrido nos trouxe.

4- No dia 3 de Abril de 1997 cerca das 18 horas, junto ao n.º 298 do Campo Grande, em Lisboa, depois da saída do túnel que passa por baixo da Av. do Brasil, ocorreu um embate entre o motociclo com a matrícula ..........., propriedade de DD e conduzido por EE e BB.
6- No local do embate a estrada é recta, com o piso em bom estado de conservação, precedida do referido túnel que termina em lomba acentuada
10- Atento aquele sentido de trânsito, do referido túnel saem três faixas de rodagem e o ID circulava pela que fica mais à esquerda.
11- À saída do túnel referido em 4), o grau de inclinação da lomba é de tal forma acentuada que retira totalmente a visibilidade.
14- O BB iniciou a travessia da estrada à saída do túnel referido em 4.
15- 0 condutor do ID não travou o veículo.
16- Quando o condutor do ID saía do túnel referido, surge à sua frente o BB a atravessar a estrada, subitamente e à frente do condutor do ID.
17- 0 condutor ainda guinou o veículo para a esquerda a fim de evitar o embate, o que não foi possível dada a proximidade entre ambos.

38. O sinistrado inicia a travessia da faixa de rodagem à saída de um túnel rodoviário, surgindo subitamente e à frente do condutor do veículo que transitava em plano ascendente, pois a inclinação da lomba retirava-lhe visibilidade. É evidente que a falta de visibilidade é recíproca e também é evidente que a existência de lombas obriga os veículos a circular com cuidado, mas não obsta à circulação. Parece igualmente evidente que nenhum condutor pode prever que à saída de um túnel se lhe atravesse à frente um peão sendo difícil conceber outros locais tão perigosos para atravessar uma faixa de rodagem.

39. Por isso, à luz dos factos provados, não pode deixar de se considerar que o lesado, atravessando a via à saída de um túnel exclusivamente destinado à circulação automóvel, sem qualquer visibilidade, atravessando-se subitamente à frente do condutor que ultrapassava a lomba, agiu com culpa grave e foi ele o exclusivo culpado do acidente, mostrando-se in casu indiscutivelmente preenchida a previsão constante do artigo 505.º do Código Civil.

40. A culpa e o processo causal têm de ser analisados em si mesmos, ou seja, a culpa não pode ser mitigada a partir de considerações gerais sobre o risco imanente à circulação rodoviária.

41. Não se duvida da relevância desse risco enquanto elemento a atender como presunção, a aceitar-se a ideia de risco próprio de veículo nos termos antecedentemente expostos.

42. Mas considerar que o risco imanente à circulação rodoviária gera uma culpa mitigada em cada acidente, seja qual for a culpa que efectivamente ocorreu determinativa do processo causal concreto, tal entendimento traduzir-se-ia, a nosso ver, na introdução sub-reptícia de uma presunção juris et de jure de ocorrência de risco, o que a lei não consente.

43. Como se viu, não se afigura que à luz do nosso direito positivo seja admissível uma interpretação que considere beneficiarem os sinistrados não motorizados de uma presunção juris et de jure de culpa mitigada e que, por tal motivo, deva sempre considerar-se que o acidente não foi unicamente devido à sua actuação culposa ainda que se prove exactamente o contrário.

Concluindo:

I- Se o acidente for unicamente devido a actuação culposa exclusiva do lesado, a responsabilidade pelo risco deve considerar-se excluída nos termos do artigo 505.º do Código Civil.
II- Admitindo-se a concorrência da culpa com o risco no processo causal do acidente, isso não significa considerar-se o risco causalmente verificado apenas porque o acidente se verificou entre um veículo motorizado e o peão sinistrado a partir do momento em que se provou que o acidente foi exclusivamente imputável a este último.
III- Se um peão inicia a travessia da faixa de rodagem à saída de um túnel destinado exclusivamente ao trânsito automóvel, atravessando-se subitamente e à frente do condutor que não se pôde desviar dada a proximidade entre ambos, a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo motorizado está afastada pois tais factos comprovam que o acidente é imputável exclusivamente ao sinistrado.

Decisão: concede-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida, subsistindo consequentemente a decisão de 1ª instância.

Custas pela recorrida

Lisboa, 20 de Janeiro de 2009

Salazar Casanova (Relator)

Azevedo Ramos

Silva Salazar