Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
048722
Nº Convencional: JSTJ00027795
Relator: LOPES ROCHA
Descritores: CONTINUAÇÃO CRIMINOSA
RAPTO
SEQUESTRO
VIOLAÇÃO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ199601100487223
Data do Acordão: 01/10/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N453 ANO1996 PAG157
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional:
Jurisprudência Nacional:
Sumário : I - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executado por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
II - A "considerável diminuição da culpa do agente" tem de aferir-se em função da predominação dos factores exógenos e não da pressão de circunstâncias interiores de natureza endógena.
III - Verifica-se um concurso real de dois crimes da violação, e não um crime continuado, se o arguido, para satisfazer as suas paixões lascivas, atrai uma menor de 7 anos a um prédio em construção, deserto, e, prevalecendo-se da sua superioridade física e ameaçando-a de morte, despiu-a e introduziu-lhe o pénis erecto na vagina, nela ejaculando, e, depois, apesar do choro da menor e das dores que esta manifestava e do facto de sangrar abundantemente, pela região genital a mantem deitada e novamente lhe introduz o pénis erecto na vagina, ejaculando no seu interior.
IV - O arguido constitui-se, ainda, autor de um crime de violação na forma tentada se, em seguida, levou a menor para o interior de um veículo automóvel abandonado que se encontrava próximo, em lugar deserto e sem iluminação, deitando-a no respectivo banco trazeiro depois de a despir pondo-se em cima dela, depois de se despir também, procurando de novo introduzir-lhe o pénis erecto na vagina, o que não chegou a concretizar em virtude de ter sido surpreendido pela entidade policial e diversos populares que procuravam a menor.
V - Aquele que rapta e mantém consigo menor de idade e com ela pratica actos sexuais abandonando-a em seguida, pratica os crimes de rapto, sequestro e de violação dos artigos 163, 160 e 201 do Código Penal de 1982.
VI - A determinação da medida da pena dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e as circunstâncias enumeradas no n. 2 do artigo 72 do Código Penal de 1982.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1- No Tribunal da Comarca de Esposende, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, respondeu o arguido A.., solteiro, feirante, natural de
Moçambique e com os restantes sinais dos autos, acusado pelo Ministério Público da prática dos seguintes crimes: a) de rapto de menor, previsto e punido pelo artigo 163, n. 1; b) de dois crimes de violação, previstos e punidos pelo artigo 201, ns. 1 e 2; c) de violação, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 201 ns. 1 e 2 e 22, ns. 1 e 2, alínea c) e 23, ns. 1 e 2, todos do Código Penal.
A assistente, viúva, modista, residente em Esposende, requereu a sua constituição como assistente. E, por si e na qualidade de representante legal da sua filha menor deduziu pedido de indemnização contra o arguido, pedindo que fosse condenado a pagar-lhes a quantia global de 2000000 escudos, como indemnização por danos de natureza não patrimonial decorrentes dos factos ilícitos descritos na acusação por aquele praticados.
Pelo acórdão de folhas 129-135 dos autos, com data de
28 de Junho de 1995, foi a acusação julgada parcialmente procedente e foi o arguido condenado como autor material: a) de um crime de violação previsto e punido pelo artigo 201, n. 1 e n. 2, do Código Penal, na pena de seis anos de prisão; b) de um crime de rapto de menor, previsto e punido pelo artigo 163, n. 1, idem, na pena de sete anos de prisão.
Operado o cúmulo jurídico destas penas, foi o arguido condenado na pena única de dez anos de prisão.
O pedido cível foi julgado parcialmente provado e o arguido condenado a pagar a título de indemnização por danos, à requerente representada por sua mãe, a importância de um milhão e quinhentos mil escudos, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde 25 de de Maio de 1995.
2- Inconformado com a decisão, interpôs recurso o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público, que logo motivou, apresentando as seguintes conclusões:
2.1. A figura do crime continuado pressupõe, além do mais, que a execução plúrima do mesmo crime ou de crimes homogéneos tenha lugar no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa e não sob o influxo ou pressão de circunstâncias internas ou endogenas:
2.2. Na hipótese vertente, não podemos por em dúvida que houve uma pluralidade de acções, com violação plúrima do mesmo tipo de crime, por forma necessariamente homogénea e praticadas todas elas dentro de um limitado período de tempo:
2.3. Todavia, o que não se verifica é que o arguido haja perpetrado todas as suas sucessivas condutas influenciado ou arrastado por circunstancialismo exógeno ou externo que tenha favorecido ou facilitado os actos delituosos ocorridos em termos de diminuir ou mitigar fortemente a sua culpa;
2.4. Com efeito, foi o arguido quem raptou a menor para satisfação das suas paixões lascivas, desiderato que veio a alcançar;
2.5. Assim, foi o arguido quem engendrou todo o sofisticado processo para alcançar os seus objectivos, pelo que tudo dependeu dele e não de circunstâncias a ele estranhas;
2.6. O facto de a ofendida se encontrar só com o arguido não assume qualquer relevância para unificar a sua conduta;
2.7. Como é óbvio, o crime de violação é normalmente cometido quando o agente e a ofendida se encontram a sós;
2.8. Por outro lado, dos factos provados resulta ainda que a cada uma das condutas corresponde, também, uma nova resolução criminosa;
2.9. Deste modo e porque não se encontram preenchidos todos os pressupostos que lhe servem de fundamento, não se podia falar, no caso sub judice e ter-se como provado, a figura jurídica do crime continuado;
2.10. Incorreu, antes, o arguido na prática em concurso real, de dois crimes consumados e um tentado, de violação, previsto e punido nos artigos 201, ns. 1 e 2,
22, 23 e 74, todos do Código Penal, respectivamente;
2.11. Passando, agora, à dosimetria da pena e atento o disposto no artigo 72 do Código Penal, deve o arguido ser condenado por cada um dos crimes consumados de violação na pena de 5 anos de prisão e pelo crime tentado, também de violação, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;
2.12. Operando o cúmulo jurídico destas penas com a que lhe foi aplicada pela prática do crime de rapto de menor, deve o arguido ser condenado na pena única de 16 anos de prisão;
2.13. O acórdão violou o disposto nos artigos 22, 23,
30, ns. 1 e 2, 71, 72, 74 e 201 ns. 1 e 2, todos do
Código Penal.
3- Não houve resposta, o recurso foi recebido e chegou a este Supremo Tribunal, houve lugar à vista a que se refere o artigo 416 do Código de Processo Penal, procedeu-se ao exame preliminar, correram os vistos e realizou-se a audiência com observância do formalismo legal, cumprindo agora apreciar e decidir.
4- Como é jurisprudência corrente e pacífica deste
Supremo Tribunal, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Daí que as questões a resolver sejam o carácter continuado dos crimes de violação imputados ao recorrido ou, antes, a hipótese de um concurso real de crimes; e a medida das penas, parcelares e única, como resulta do procedente relatado.
5- O acórdão impugnado deu como provados os seguintes factos:
5.1. No dia 3 de Janeiro de 1995, pelas 20 horas, em
Esposende, o arguido avistou a menor de 7 anos a qual se encontrava num recinto de diversões, em que o arguido trabalhava;
5.2. Constatando que a referida menor se encontrava sózinha e à espera de um seu familiar, dirigiu-se-lhe e convenceu-a a acompanhá-lo, pretendendo ajudá-la a procurar uma sua prima;
5.3. Levou então a menor para o interior de um prédio em construção, deserto, que se situava a cerca de 50 metros daquele local, dizendo-lhe que a referida prima se encontrava nesse edifício;
5.4. A menor pediu-lhe, então, que a deixasse ir embora e o arguido opôs-se e agarrou-a, segurando-a e mantendo-a incapaz de se libertar;
5.5. Seguidamente, para que a menor não gritasse, apertou-lhe o pescoço e tapou-lhe o nariz e a boca com a mão e deitou-a ao chão;
5.6. Tirou-lhe, então, as calças que a menor envergava, descalçou-a e tirou-lhe as calças interiores; e enquanto assim procedia disse-lhe: "Se gritas mais, mato-te a ti e à tua prima";
5.7. A menor ficou apavorada e convencida que o arguido lhe fazia mal e desistiu de gritar para ser socorrida;
5.8. O arguido despiu, depois, as suas próprias calças e cuecas, deitou-se em cima da menor e chupou-lhe as faces e o pescoço;
5.9. Seguidamente, introduziu-lhe o pénis erecto na vagina e ali se ejaculou;
5.10. Depois, apesar do choro da menor, das dores que esta manifestava e do facto de sangrar abundantemente pela região genital, o arguido não a libertou, manteve-a deitada no chão e novamente introduziu o pénis erecto na vagina da menor, vindo a ejacular-se no seu interior;
5.11. Momentos depois o arguido vestiu-se, deixou que a menor se vestisse também, segurou-a, saiu daquele local e levou-a para o interior de um veículo automóvel abandonado que se encontrava próximo e em lugar deserto e sem iluminação;
5.12. Deitou a menor no banco traseiro desse veículo, voltou a despi-la e despiu-se também, colocando-se sobre ela e tapando-lhe a boca para que não gritasse;
5.13. Procurou, de novo, introduzir-lhe o pénis erecto na vagina, o que não chegou a concretizar, em virtude de ter sido surpreendido pela entidade policial e por diversos populares que procuravam a menor circunstância esta de todo alheia à sua vontade e que o impediu de prosseguir os seus intentos;
5.14. Agindo desta forma, o arguido pretendeu satisfazer os seus impulsos e vontade sexuais, fim que concretizou;
5.15. Agiu sempre contra a vontade da ofendida e bem sabia que esta contava apenas sete anos de idade;
5.16. Serviu-se da sua superioridade e corpulência física para a privar da liberdade de movimentação e a obrigar a suportar a sua lascívia;
5.17. Em razão da sua actuação, a menor sofreu as lesões descritas, rectius, as lesões e ferimentos descritos nos autos de folhas 20, 21, 30, 32 a 51, 55,
70, 71 e 76, as quais demandaram para cura noventa dias de doença com igual tempo de incapacidade para o trabalho;
1.18. O arguido manteve a menor nos locais já referidos desde as 20 horas do dia 3 de Janeiro de 1995 até à 1 hora do dia 4 de Janeiro de 1995, ocasião em que foi libertada pela entidade policial;
5.19. Agiu sempre determinada e livremente e sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei;
5.20. O arguido é solteiro e carpinteiro, mas trabalhava, ultimamente, numa pista de automóveis de diversão;
5.21. As lesões causadas pelo arguido à ofendida Ana
Luísa provocaram-lhe dores físicas;
5.22. Antes do dia dos factos descritos, a menor era uma criança alegre, traquina, bem disposta, amiga de confraternizar e boa aluna;
5.23. Agora, por causa dos factos descritos, tem um ar tristonho, não sai de casa, esconde-se dos amigos e baixou o seu rendimento escolar;
5.24. A mãe da menor sofreu com a prática dos factos descritos.
6- Para concluir que a conduta do arguido acima descrita preenche a figura do crime continuado, tal como é definida no artigo 30, n. 2, do Código Penal, o acórdão impugnado ponderou, muito sinteticamente, o seguinte: "Toda a actuação em apreço, não só a atinente
à consumação do crime como à tentativa de o voltar a cometer decorreu no mesmo quadro de solicitação exterior, por forma essencialmente homogénea e com sequência num período de tempo de cerca de cinco horas, o que traduz continuidade criminosa de modo a qualificar-se tal conduta como um único crime, nos termos do artigo 30, n. 2, do Código Penal".
Não se suscitam dúvidas sobre a verificação nos elementos "realização plúrima do mesmo tipo de crime" e
"execução por forma essencialmente homogénea", da definição legal do citado artigo 30, n. 2.
Onde a avaliação claudica é no elemento "no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente".
Ora, no caso vertente, ficou provado que o arguido actuou, ab initio, com o propósito de manter relações sexuais de cópula com a vítima, menor de sete anos de idade, criando ele próprio o condicionalismo favorável
à concretização desse propósito. Uma vez criado esse condicionalismo, e até ser surpreendido pela autoridade policial, violou por duas vezes a ofendida, sem que possa dizer-se - atenta a matéria de facto apurada - que tivesse "sucumbido" à pressão de factores exógenos susceptíveis de lhe facilitarem a reiteração criminosa.
Certo que tais factos facilitaram essa reiteração, mas não pode abstrair-se do facto de que as mesmas foram premeditadas, concebidas e planeadas pelo agente.
Condicionaram a execução plúrima do crime mas é de afastar a ideia, não corroborada pelos factos, de que, em si, constituam um circunstancialismo desculpante, uma espécie de tentação à repetição, em ordem a que razoavelmente possa entender-se que lhe diminuam "consideravelmente" a sua culpa.
Como se ponderou no acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Março de 1994, Processo 46141, no crime continuado a "considerável diminuição de culpa do agente" tem de aferir-se em função da predominância dos factores exógenos e não da pressão das circunstâncias interiores ou de natureza endógena (o acórdão deu como provado que o arguido agiu com o propósito de satisfazer os seus impulsos sexuais, servindo-se da sua superioridade e corpulência física para privar a vítima da sua liberdade e a obrigar a suportar a sua lascívia; e manteve a menor nos locais referidos desde as 20 horas do dia 3 de Janeiro de 1995 até à 1 hora do dia 4 de
Janeiro de 1995, ocasião em que foi libertada pela entidade policial - cfr. pontos 5.14, 5.16 e 5.18, supra). Não se vê, isto posto, onde está a "irresistibilidade" das circunstâncias exteriores para a prática do facto, que tirassem ao agente toda e qualquer possibilidade de se comportar de outra maneira, para mais apercebendo-se do choro da criança ofendida, das dores que esta manifestava e do facto de sangrar abundantemente pela região genital e, apesar disso, não a libertando, antes mantendo-a no chão e introduzindo novamente o pénis erecto na vagina da mesma ofendida (cfr. ponto 5.10, supra).
Mais: levou-a depois para dentro de um automóvel abandonado, que se encontrava próximo em lugar deserto e sem iluminação, onde tentou prosseguir nos seus propósitos libidinosos e já por aqui temos de convir em que as "circunstâncias exógenas ou exteriores" se apresentaram consideravelmente modificadas (cfr. pontos
5.11 a 5.13, supra).
Todo o circunstancialismo descrito só pode servir para concluirmos que o arguido não foi "irresistivelmente" levado a reiterar a sua conduta criminosa, antes obedeceu a um propósito de conseguir, a todo o custo, manter sucessivas relações sexuais com a ofendida, repetitivamente, representando-se diferenciados locais em que o podia fazer pelo modo mais eficaz. Estamos, por conseguinte, bem longe de um quadro de "solicitações" de uma mesma situação exterior, diminuidoras da sua culpa, em termos consideráveis. O que o factualismo provado revela é que foi predominante a intenção deliberada e firme de ofender a menor na sua liberdade sexual, com reiteração dos actos integrantes do crime de violação. As circunstâncias "exógenas ou exteriores" foram conscientemente procuradas para concretizar tal intenção e não lhe surgiam por acaso em termos de facilitarem o objectivo tido em vista, de modo a "arrastarem" o arguido para a reiteração das suas condutas, ou, na terminologia do acórdão deste Supremo
Tribunal, de 30 de Janeiro de 1986, B.M.J., n. 353, página 240, constituíram factos exógenos que facilitaram a "recaída" ou "recaídas".
Assim, não só não diminuíram consideravelmente a sua culpa como representaram uma notória agravação desta.
E, falhando este elemento da definição legal do artigo
30, n. 2, do Código Penal, não podem deixar de dar razão ao Excelentíssimo Magistrado recorrente e de concluirmos por um concurso real de crimes, dois de violência consumada e um de violação na forma tentada, pelos quais terá de ser punido.
A questão do crime de rapto e da pena que por ele lhe foi aplicada não vêm questionadas no recurso, que, aliás, neste particular, não merecem censura. Os factos apurados preenchem realmente o figurino legal (artigo
163, n. 1, do Código Penal), até porque o bem jurídico aí protegido é a liberdade do sujeito passivo, embora a privação desta, no caso concreto, obedecesse a intenção libidinosa. Consequentemente, as violações praticadas não consomem punição por aquele crime (neste sentido, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 26 de Novembro de
1992, processo n. 42916).
Passemos agora à questão da dosimetria das penas, a segunda do elenco acima organizado.
Descrever o tribunal colectivo a súmula de critérios a considerar: ilicitude muito elevada da conduta do arguido; persistência no cometimento dos actos criminosos, a demonstrar indiferença pelo sofrimento da vítima, traduzindo frieza e personalidade mal formada; elevadas consequências lesivas da mesma vítima, traduzidos em lesões corporais.
Acrescentaremos nós que o dolo também foi muito intenso e que nada de favorável ao arguido se apurou em tema de conduta anterior e posterior aos crimes.
No conjunto dos factos apurados, o acórdão recorrido sublinha, em seu favor, o facto de ser pessoa jovem, primário e ter condição económica modesta. Mas o seu relevo atenuativo é muito modesto. Há, por conseguinte, notório desequilíbrio, em desfavor do arguido entre as circunstâncias agravativas e atenuativas, que tem de reflectir-se no quantum das penas.
Quanto à personalidade - com particular relevância para a pena do concurso - o acórdão não é muito rico, sem deixar de sublinhar e bem que é "mal formada", juízo que se justifica pelo apurado e altamente censurável
"modo de execução dos factos". Trata-se de um comportamento particularmente repugnante, em si e nas suas consequências, atenta a diferença de idades e de compleição física, a revelar um primarismo sexual e uma insensibilidade anormal perante o sofrimento da vítima, tudo acompanhado de grande frieza no planeamento e na execução dos crimes.
Podemos,pois, concluir, em juízo de experiência, que o arguido manifestou, nos factos, uma grave falta de preparação para manter conduta lícita, a merecer elevada censura através da aplicação da pena.
Temos por judiciosas as considerações do acórdão recorrido em tema das exigências de prevenção, geral e especial (elevada reacção do público, em particular tratando-se de uma criança, a exigir o recurso os meios que tutelam os legítimos interesses das pessoas relativos à sua segurança e à salvaguarda da liberdade sexual, com destaque para aquelas que, em função da sua pouca idade, mais vulneráveis se apresentam contra agressões de carácter sexual; necessidade de, através de penas severas, desestimular o delinquente de eventuais tendências para a repetição de actos da mesma natureza). Enfim, não podemos deixar de atender às consequências que, para a ofendida, derivaram dos crimes, no plano da formação da sua personalidade (cfr. pontos 5.22 e 5.23, supra); e aos efeitos traumatizantes decorrentes, que não deixarão de persistir por longo tempo, constituindo uma experiência que dificilmente será anulada através de satisfações proporcionadas pela via de uma compensação monetária, a supor que venha a ser efectivada.
Por tudo isto, entendemos que o acórdão recorrido subestimou o efeito agravativo das circunstâncias que rodearam a prática dos crimes (artigo 72 do Código
Penal) ao fixar a pena de seis anos de prisão para a violação, indevidamente avaliada como um crime continuado.
A moldura penal ao tempo vigente era de 2 a 8 anos de prisão (artigo 201, ns. 1 e 2, na versão de 1982). Esta pena, mais próxima do limite máximo, deveria ter sido aplicada por cada um dos crimes consumados, em concurso. E quanto ao crime tentado, entendemos que não pode descer abaixo dos dois anos de prisão, em função do circunstancialismo agravativo descrito, tudo em função dos critérios do artigo 73 na versão do Código de 1982, vigente à data dos factos. Em cúmulo jurídico com a pena de sete anos de prisão pelo crime de rapto, que reportamos equilibrada, e tendo em conta o disposto no artigo 78 do mesmo Código, encontraríamos uma pena
única de treze anos de prisão.
7- Há, pois, que ter em consideração o facto da entrada em vigor, em 1 de Outubro de 1995, da revisão operada pelo Decreto-Lei n. 48/95, de 15 de Março e ver em que medida deve funcionar a sucessão de leis penais no tempo (artigo 2, que não sofreu alterações).
Nenhuma das condutas imputadas ao arguido foi descriminalizada ou despenalizada.
O crime do artigo 201 da versão de 1982 era punido, como se disse, com prisão de 2 a 8 anos, também aplicável no caso de menores de 12 anos, independentemente dos meios empregados (n. 2).
A violação está agora prevista e punida no artigo 164, com prisão de 3 a 10 anos. Esta disposição não contem uma previsão idêntica à do n. 2 do anterior artigo 201, mas o seguinte artigo 172 (abuso sexual de crianças) prevê igual pena para o caso do agente ter cópula ou coito anal com menor de catorze anos.
Logo, em qualquer dos casos, o regime que dimana destes artigos é menos favorável ao arguido, pelo que tem de ser-lhe aplicado o regime do Código na versão de 1982, face ao comando do seu artigo 2, n. 4.
Relativamente ao crime de rapto de menor, ao tempo dos factos punidos com pena de prisão de 6 a 10 anos
(artigo 163, n. 1), é agora punido com prisão de 2 a 8 anos, agravada de um terço nos seus limites mínimos e máximo, se a pessoa raptada for menor de 16 anos ou incapaz de se defender ou opor resistência (artigo 160, ns. 1, alínea b) e 3).
Aparentemente, este novo regime é mais favorável ao arguido, posto que o limite mínimo, mesmo agravado nos termos expostos, é sempre inferior ao do artigo 163. O que já não acontece com o limite máximo.
Acontece que aquele artigo 163 previa a pena de 8 a 15 anos para o caso de o crime ser acompanhado de alguma das circunstâncias previstas no n. 2 do artigo 160 (sequestro), uma das quais era a privação da liberdade ser precedida ou acompanhada de agressão à integridade física, o que sucedeu no presente caso (cfr. supra, ns.
5.5, 5.9 e 5.17). Designação semelhante existe no actual artigo 160, n. 2, alínea a), mas a pena prevista
é a de prisão de 3 a 15 anos. Teoricamente, a amplitude desta moldura penal é mais favorável, considerando que o limite mínimo da moldura é sensivelmente inferior ao da fixada no artigo 163, ainda que considerada a punição para a forma mais agravada.
O arguido foi condenado, pelo rapto da menor, sem que o tribunal colectivo tivesse considerado a agravação resultante do n. 2 do artigo 163, na pena de sete anos de prisão. É de algum modo aceitável esta solução, se considerarmos que o n. 2 do artigo 201 estabelecia pena igual à do seu n. 1 - 2 a 8 anos - "independentemente dos meios empregados", em que poderia figurar a situação de o "agente ter posto a vítima na impossibilidade de resistir", o que deveras aconteceu.
Terá o tribunal considerado que não funcionava para o rapto a remissão do n. 2 do artigo 163, posto que a moldura do n. 1 já era sensivelmente mais gravosa do que a do crime de violação - 6 a 10 anos de prisão.
Na determinação da medida concreta da pena, perante este quadro permitido e considerando os factores agravativos concorrentes, a pena de sete anos justificava-se perfeitamente em função da culpa revelada e das exigências de prevenção.
Sobretudo, não pode censurar-se-lhe o facto de o legislador punir o rapto da menor, ainda que com intenção libidinosa, mais gravemente do que a violação, o que é de todo o ponto incompreensível. O legislador do Decreto-Lei 48/95 veio repor, neste particular, o desejável equilíbrio.
Mas a decisão não seria provavelmente diversa se o tribunal tivesse de operar em função da actual moldura punitiva (artigo 160, n. 2, alínea a)), considerando o quadro circunstancial agravativo que resulta da matéria de facto provada.
Assim, e verdadeiramente, não se coloca aqui um problema de regime concretamente mais favorável ao arguido, na míngua de razões ponderosas para se dever concluir pela aplicação de um quantum da pena inferior ao estabelecido na decisão recorrida.
8- Pelo exposto, dizem que nos factos imputados ao recorrido, emergentes da decisão impugnada, integram dois crimes de violação na forma consumada e um crime de violação na forma tentada, previstos e punidos nos artigos 201, ns. 1 e 2, os primeiros e neste artigo e nos artigos 22, 23, n. 2 e 74, todos do Código Penal de
1982, o segundo.
Em conformidade, e concedendo parcial provimento ao recurso, decidem: a) Condenar o recorrido na pena de seis anos de prisão por cada um dos crimes de violação na forma consumada e na de dois anos de prisão pelo crime de violação na forma tentada; b) Operando o cúmulo jurídico destas penas com a de sete anos de prisão pelo crime de rapto de menor, condená-lo na pena única do concurso, de treze anos de prisão, de acordo com o disposto no artigo 78 do Código
Penal; c) Manter, na parte restante, o decidido no dispositivo da decisão recorrida.
Sem tributação.
Fixam-se em 7500 escudos os honorários da defensora oficiosa, a pagar pelos Cofres.
Lisboa, 10 de Janeiro de 1996
Lopes Rocha,
Castro Ribeiro,
Costa Figueirinhas,
Augusto Alves.
Decisão impugnada:
Acórdão de 28 de Junho de 1995 de Esposende.