Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
111/15.8YFLSB.L1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: RECURSO PENAL
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLECTIVO
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLETIVO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
CONEXÃO DE PROCESSOS
COMPARTICIPAÇÃO
HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
ARMA DE FOGO
AGRAVANTE
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CULPA
PREVENÇÃO ESPECIAL
PREVENÇÃO GERAL
Apenso:
Data do Acordão: 10/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO / PRESSUPOSTOS DA PUNIÇÃO / FORMAS DO CRIME - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL / COMPETÊNCIA POR CONEXÃO - RECURSOS.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS.
Doutrina:
- Cesare Becaria, Dos delitos e das Penas, tradução de José de faria e Costa, Serviço de Educação, Fundação Calouste Gulbenkian, 38.
- Eduardo Correia, Para Uma Nova Justiça Penal, Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Livraria Almedina, Coimbra, 16.
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português -As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §55, § 56, § 278, p. 211; Direito Penal – Questões fundamentais – A doutrina geral do crime- Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, 84, 117, 118, 121; Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, 109 e ss.; in Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 27, 37.
- Henriques Gaspar, in “Código de Processo Penal”, comentado, Almedina, 2014.
– Maia Gonçalves, “Código Penal” Português, Anotado e Comentado – Legislação Complementar, 18.ª edição, 2007, 516.
- Miguez Garcia e Castela Rio, “Código Penal”, Parte Geral e Especial, com Notas e Comentários, Almedina 2014, 510, 511.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 4.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 1150, nota 10.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 404, nota 21.
- Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal” Comentado, Almedina, 2014, 1413, nota 7.
- Teresa Quintela de Brito, Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, 191.
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, Coimbra, 2003, 124, 126 e 127.
- Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, “Código Penal” Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, 346. nota 30. citando Figueiredo Dias.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 24.º, 27.º, 30.º, 31.º, 414.º, N.º8, 428.º, 432.º,
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 14.º, N.º3, 22.º, 23.º, 40.º, N.ºS 1 E 2, 50.º, N.º1, 71.º, N.º2, 131.º, 132.º, N.ºS 1 E 2, AL. H), 143.º, N.º1
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 18.º, N.º2.
LEI N.º 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO - REGIME JURÍDICO DAS ARMAS E MUNIÇÕES: - ARTIGO 86.º, N.º3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-DE 10 DE DEZEMBRO DE 2014, N.º 852/2014, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA N.º 48/2015, SÉRIE II DE 2015-03-10.

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 07/07/2005, PROC. N.º 1670/05 - 5.ªSECÇÃO;
-DE 15/11/2006, PROC. N.º 2555/06 - 3ª SECÇÃO;
-DE 15/05/2008, PROC. N.º 3979/07 - 5.ª SECÇÃO;
-DE 31/03/2011, PROC. N.º 361/10.3GBLLE - 5.ª SECÇÃO.
Sumário :
I - Por acórdão do tribunal colectivo foi o arguido X condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 2, al. h), 22.º e 23.º, do CP, na pena de 7 anos de prisão, tendo o arguido Y sido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do CP, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão.

II - A norma do art. 414.º, n.º 8, do CPP que determina que, havendo vários recursos da mesma decisão, uns sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente pelo tribunal competente para conhecer da matéria da facto, assenta em razões de economia processual e pretende evitar disfunções no sistema de recurso e morosidade na administração da justiça.

III - In casu, inexistem pressupostos de conexão, nos termos do art. 24.º, do CPP, uma vez que os diversos crimes cometidos pelos arguidos não foram em comparticipação, nem causa ou efeito um do outro, ou destinando-se um a continuar ou a ocultar o outro, nem os crimes, que foram praticados na mesma ocasião e lugar foram reciprocamente cometidos, pois a vítima foi uma terceira pessoa.

IV - Atenta a pena aplicada, porque se trata de arguidos diferentes e diferentemente condenados, com autonomia de condutas delituosas, ou seja, sem interferência recíproca nas respectivas condutas, somente o arguido X podia ter recorrido para o STJ, como fez, por a pena exceder 5 anos de prisão. A autonomia da condenação do arguido Y, em pena inferior a 5 anos de prisão por crime diferente do crime praticado pelo arguido X, não tendo por ofendido o mesmo do arguido X, nem a existência de comparticipação nas ilicitudes praticadas sobre a mesma vítima, impedia o arguido Y de recorrer para o STJ, atento o disposto no art. 427.º, do CPP, pois que não se configura pressuposto de conexão.

V - Embora o arguido X disparasse a arma de fogo que detinha, o disparo é conatural ao funcionamento da arma, e ainda que a arma de fogo seja um meio perigoso, pela potencialidade letal que lhe é inerente, não constitui por isso, um meio particularmente perigoso, para efeito de qualificação do crime de homicídio, sendo que, por outro lado, a mera detenção ou utilização da mesma não traduz a prática de crime de perigo comum. Donde, não poder considerar-se preenchida a agravante qualificativa da al. h) do art. 132.º do CP.

VI - In casu não é possível subsumir a conduta do agente a qualquer das als. do n.º 2 do art. 132.º ou ao critério de agravação a ela subjacente. Inexiste uma estrutura valorativa comum, que conjugue o n.º 1 com o n.º 2 do art. 132.º do CP, ainda que de forma analógica, pelo que, atento ainda o acórdão do TC 852/2014, de 10-12, se conclui que o crime praticado pelo arguido X é o crime de homicídio p. e p. pelo art. 131.º, do CP. Uma vez que o uso da arma não é elemento do crime de homicídio e, no caso, não leva ao preenchimento do tipo qualificado do art. 132.º, não há fundamento para afastar a agravação do art. 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23-02.

VII - O crime p. e p. pelo art. 131.º, do CP, na forma tentada, é punido com pena de prisão, que face à agravação constante do art. 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, vai de 2 anos 1 mês e 18 dias a 14 anos 2 meses e 20 dias. Tendo em conta a fundamentação pertinente apresentada pelo acórdão recorrido, de harmonia com o art. 71.º, n.º 2, do CP, a idade do arguido (nascido em 16 de Março de 1990), a matéria fáctica provada, e os limites da pena aplicável, as fortes exigências de prevenção geral, normais exigências de prevenção especial, e forte intensidade da culpa, julga-se adequada a pena de 6 anos de prisão.
Decisão Texto Integral:
    


      Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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No processo comum nº. 6/14.2SULSB, da 1ª SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA CENTRAL, JUIZ 21, da COMARCA DE LISBOA, o Tribunal Colectivo, julgou os arguidos AA, filho de ---, natural de ---, nascido em ---, ---, ---, com residência na Rua ---, actualmente preso preventivamente, à ordem destes autos, no Estabelecimento Prisional de Lisboa; BB, filho de ---, natural da freguesia de---, concelho de ---, nascido em ---, ---, explora um café e comercializa veículos, com residência na Rua ---, actualmente preso preventivamente, à ordem destes autos, no Estabelecimento Prisional de Lisboa, e CC, filho de ---, natural da freguesia de ---, concelho de ---, nascido em ---, com residência na Rua ---, actualmente preso preventivamente, no Estabelecimento Prisional de Lisboa, na sequência de despacho de pronúncia, pelos factos descritos na Acusação de fls. 610 a 617, e pelos quais lhes era imputada a prática, em co-autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131°, 132°, n.º 2, alínea h),22° e 23°, todos do Código Penal.

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Por despacho proferido a fls. 754, foi admitida a intervenção, nos autos, de DD, na qualidade de assistente, o qual deduziu pedido de indemnização (fls. 715 a 722) contra os arguidos, alicerçado nos factos constantes da Acusação, por danos patrimoniais em montante a liquidar em execução de sentença e por danos não patrimoniais, no montante de €200.000,OO, indemnização essa acrescida dos juros de mora contados desde a data dos factos até integral pagamento.

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Também o Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E. (fls. 679), nova denominação do "Hospital de Santa Maria, EPE", deduziu pedido de indemnização civil, nos termos do Decreto-Lei nº 23/08, de 8 de Fevereiro contra os arguidos, deles reclamando o pagamento da quantia de €6.379,04 (seis mil, trezentos e setenta e nove euros e quatro cêntimos), acrescida dos juros, à taxa legal, vencidos desde a data da notificação e vincendos até efectivo e integral pagamento.

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Em audiência de julgamento, o assistente DD, nessa qualidade declarou que se encontra integralmente ressarcido dos danos sofridos, pelo que desistiu do pedido de indemnização que oportunamente havia deduzido, confirmando o teor do requerimento junto aos autos em momento prévio à sessão, tendo o Tribunal homologado a desistência, apresentada, e, por isso, declarou extinto o pedido de indemnização civil deduzido pelo mesmo contra os arguidos.

Em audiência de julgamento, produzida a prova, foram comunicados factos considerados indiciados e que consubstanciavam a alteração substancial dos factos nos termos da alínea f) do artigo 1 ° do Código de Processo Penal na sequência da qual entendeu o Colectivo estar indiciada a prática. pelo arguido BB. de um crime de ofensa à integridade física. previsto e punível pelo artigo 143° do Código Penal, crime diverso do qual se encontra pronunciado, tendo havido a comunicação nos termos e para os efeitos previstos no artigo 359° do Código de Processo Penal.


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Realizada a audiência de julgamento, foi proferido acórdão em 6 de Março de 2015, em que os juízes do Colectivo acordaram “julgar parcialmente procedente a pronúncia e procedente o pedido de indemnização deduzido pelo Centro Hospitalar Lisboa Norte e, em consequência, decidem:

a)         absolver o arguido BB do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131° e 132°, n.ºs 1 e 2, alínea h), 22° e 23°, do Código PenaL" pelo qual se encontra pronunciado;

c)         absolver o arguido CC do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131° e 132°, n.os 1 e 2, alínea h), 22° e 23°, do Código Penal, pelo qual se encontra pronunciado;

c)        condenar o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º e 132°, n.ºs 1 e 2, alínea h), com referência aos artigos 22° e 23°, todos do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão;

d)         condenar o arguido BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143°, °1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão;

e)        absolver os arguidos BB e CC do pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar Lisboa Norte} E.P.E.;

D         condenar o arguido AA a pagar a quantia de €6.379J04 (seis mil, trezentos e setenta e nove euros e quatro cêntimos), acrescida dos juros, contados desde 22/10/2014, à taxa legal, nos termos dos artigos 559°,805° e 806.Q do Código Civil e da Portaria nº 291/2003, de 8 de Abril, acrescida dos juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento;

g)        condenar os arguidos AA e BB no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) Us.C, relativamente a cada (artigos 513° e 514° do Código de Processo Penal; artigo 8°, nOS, do Regulamento de Custas Processuais e Tabela 111 anexa a esse diploma);

h)        condenar o arguido AA no pagamento das custas cíveis referentes ao pedido de indemnização deduzido pelo demandante Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P,E ..


*

Após trânsito, remeta boletins à D.S.l.C

*

Considerando a decisão ora proferida e o disposto nos artigos 202°, nº1, e 212°, nº1, alínea b), do Código de Processo Penal, determina o tribunal a restituição imediata à liberdade do arguido BB, devendo o mesmo prestar, neste momento, termo de identidade e residência, nos termos do artigo 196° do Código de Processo Penal.

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O tribunal declara perdido a favor do Estado as cápsulas e projéctil descritos no auto de fls. 22, devendo aos mesmos ser dado destino legal pelas autoridades policiais, nos termos do artigo 78° da Lei 5/2006, com as alterações introduzidas pelas Lei nº17/2009, de 6 de Maio, Lei nº12/2011 e Lei nº50/2013.

*

Determina a restituição, ao assistente, nos termos do artigo 186°, nº1, do Código de Processo Penal, das peças de vestuário descritas no auto de fls. 22, e a restituição dos telemóveis apreendidos, aos respectivos proprietários, devendo para o efeito ser dado cumprimento ao disposto nos nºs 3 e 4 da disposição citada.

*

Determina, ainda, a recolha de amostra de ADN do arguido AA, após trânsito da presente decisão, e a sua inserção de perfis na correspondente base de dados, nos termos do artigo 8° da Lei 5/2008,com observância do disposto no artigo 9° do citado diploma.

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Transitado em julgado o presente Acórdão, abra vista ao Ministério Público para efeitos de liquidação de pena.

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Cumpra o disposto no n° 5 do art,º 372° do Código de Processo Penal. “

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           Inconformado, recorreu o arguido AA, para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando na motivação de recurso as seguintes:

“Conclusões:

1. O recorrente não concorda com a qualificação jurídica aplicada pelo douto Tribunal recorrido.

2. Na verdade, defende o recorrente estarmos perante factos que integram somente o crime de homicídio simples, na forma tentada, p.p.p. artigo 131°  22° e 23°, todos do C.P.

3. Diz o artigo 132º nº2 al. h) do C.P. que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade praticar o facto juntamente com, pelo menos mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na pratica de um crime de perigo comum.

4.  Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, nem o meio empregue para tentar tirar a vida ao Assistente se revelou particularmente perigoso, nem o facto foi praticado conjuntamente com, pelo menos, mais duas pessoas.

5. A especial censurabilidade e perversidade que alude o artigo 132º do C.P, não é de aplicação automática, mesmo. que estejam preenchidos os seus elementos tipificados nas alíneas de a) a m), porquanto , a revelação da especial censurabilidade e perversidade tem a ver com a culpa do agente.

6. Sendo assim, e porque a nossa legislação descreve quais os objectos que integram o significado de meio particularmente perigos, é a nossa jurisprudência que refere que uma arma de fogo, meio idóneo pata retirar a vida a outra pessoa, e sobejamente utilizada no cometimento deste tipo de ilícito, não integra o preenchimento da alínea h) do artigo 132º nº2 do C.P.

7.  Neste sentido os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ACSTJ de 14-05-2009; ACSTJ 05-02-2009; ACSTJ 29-10-2008; ACSTJ 15-12-2005; ACSTJ 12-07-2005; ACSTJ 05- 05-2004; ACSTJ 15-10-2003; ACSTJ 03-07-2002; ACSTJ 19-03-1998.

8. A arma de fogo utilizada pelo arguido não constitui meio particularmente perigoso que permita preencher a tipificação da alínea h) do nº2 do art 132° do C.P.

9. O facto criminoso foi praticado apenas e somente pelo recorrente como resulta provado no acórdão recorrido.

10.- “13- Em momento não determinado do confronto físico que decorria entre o arguido AA e o assistente DD, o arguido CC interveio, colocando-se entre ambos com o propósito de os separar. “

11. “17-No decurso dos confrontos físicos que envolviam o assistente DD e os arguidos BB e AA, este em determinado momento e de forma não apurada passou a deter uma arma de fogo que apontou na direcção do primeiro e disparou oito tiros, atingindo-o (ao assistente DD) na zona da cabeça, do tronco e do membro inferior direito."

12.. "23- Quando observada a arma de fogo na posse do arguido AA, apontada em direcção ao assistente, os arguidos BB e CC puseram-se em fuga." (fim de transcrição págs. 5 a 7 do acórdão recorrido).

13. 0 facto criminoso de tentar retirar a vida ao assistente é de exclusiva responsabilidade do recorrente, e de mais ninguém.

14.. O acórdão recorrido dá como assente que a responsabilização pelo crime de homicídio na forma tentada é da autoria do arguido AA, inocentando os demais de tal intenção dolosa. Até porque resulta da própria prova dada como assente, designadamente pela fuga dos demais arguidos quando vêem o recorrente empunhando uma arma em direcção ao assistente.

15.Mas se ainda assim se não considerar, a verdade é que tão pouco resulta da matéria de facto dada como provada que o co-arguido CC, tenha tido qualquer actuação ou intervenção na tentativa de retirar a vida ao assistente.

16. Muito antes pelo contrário, os factos provados demonstram sobejamente que o co-arguido CC tentou evitar a agressão.

17.É que faltam pessoas para integrar a tipificação da alínea h) do nº 2 do artigo 132 do CP. porquanto, este exige que o facto (e no nosso entender, aqui o "facto" é a intenção de retirar a vida e não qualquer outro acto que não seja idóneo de produzir tal resultado) seja praticado, ao todo, por 3 pessoas) pelo menos.

18.Ainda que não consubstancie elemento constante da aliena h) do supra citado artigo 132º nº 2 do CP, a verdade é que o local onde sucederam os factos na via publica e a hora que ocorreram, tão-pouco poderão revelar especial censurabilidade e perversidade do agente se compreendermos a dinâmica do actuação delituosa.

19. O recorrente e o Assistente, entraram em confronto físico que resultou em agressões recíprocas.

20. A confrontação física acontece somente entre o recorrente e o Assistente, tendo sido antecedida de discussão e ofensas verbais mutuas, como decorre das declarações dos arguidos BB e AA, constantes de fIs. 24 e 25 do acórdão recorrido, corroboradas pelo assistente, declarações constantes de fis. 28 do acórdão recorrido.

21.O recorrente declarou que retirou a arma de fogo ao assistente, facto que o douto Tribunal não descredibilizou, o que permite explicar o comportamento seguinte de disparar a arma de fogo, equacionando um cenário em que o Assistente, munido dessa mesma arma, teria disparado contra o recorrente.

22.Pelo que as palavras “morre cabrão!”, proferidas pelo recorrente, ao disparar a arma, estejam enquadradas no desvalor da acção típica do crime de homicídio sem que se considere uma especial censurabilidade e perversidade da actuação.

23.Não é certamente por preferir tal expressão que a conduta do agente se toma diferente, para mais grave, da conduta de premir o gatilho da pistola.

24.º O que se retira, sem qualquer duvida dos factos provados será que o crime ocorreu sem premeditação, antes resultando de um impulso emocional e pontual no contexto de uma luta entre dois contendores.

25. Quanto à hora dos factos, cumpre dizer, que a actuação delituosa do recorrente, foi visualizada pelas testemunhas --, -- e --, entre outras pessoas que acompanhavam a testemunha --, pelo que a hora tardia, cerca das 23horas, não impossibilitou a rápida actuação médica que permitiu o salvamento do assistente.

26.A Av. de Berlim, é uma das artérias principais de acesso à zona da Expo, com passagens frequentes de veículos automóveis e ladeada por inúmeros edifícios habitacionais, aliás como se comprovou da audição das testemunhas acima referidas.

27.Pelo exposto, entendemos não estarem preenchidos os elementos tipificados da alínea h) do nº 2 do artigo 132º do CP, devendo o recorrente ser condenado pela prática do crime de homicídio simples na forma tentada p.p.p. artes 131°,22º e 23°, todos do CP, na pena de cinco anos de prisão.

28. O arguido, confessou a autoria do crime por que vinha acusado e demonstrou arrependimento.

29. Pediu desculpas ao ofendido, tendo este aceite.

30. O arguido e o ofendido apertaram as mãos no seguimento deste pedido de desculpa, em plena audiência de julgamento.

31.0perou~se em audiência de julgamento uma pacificação que releva não só entre os dois intervenientes mas também sob o ponto de vista social,

32. O que constitui um objetivo predominante de toda a administração da Justiça.

33. Demonstrou a consciencialização do enorme desvalor da sua conduta.

34. 0 recorrente não tem antecedentes criminais.

35. Da teoria relativa falamos da doutrina da prevenção geral positiva e da prevenção especial positiva.

36. Sendo esta doutrina" a da prevenção geral positiva, a que fixa a moldura de prevenção dentro de cujos limites devem actuar as considerações de prevenção especial e não a culpa, como tradicional e ainda hoje maioritariamente se pensa, que fornece uma moldura penal da culpa, como refere o Prof. Figueiredo Dias nas "questões fundamentais a doutrina geral do crime - Tomo I'.

37.Segundo a doutrina da prevenção especial positiva, a medida da necessidade de socialização do agente é o critério decisivo das exigências de prevenção espeoial. Tudo depende da forma. como o agente se revelar, carente ou não de socialização. Se uma tal carência se não verificar tudo se resumirá em termos de prevenção especial, em conferir à pena uma função de suficiente advertência.

38. É uma pena justa aquela que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa.

39.Achando-se o recorrente um jovem de 25 anos (com 23 anos à data dos factos), sem antecedentes criminais, importa convocar o dever de compaixão que pressupõe que o tribunal tenha em consideração todas as razões do contexto social e da história da pessoa que podem explicar ou eventualmente atenuar a sua responsabilidade - Carmona da Mota

40. O Direito Penal não é moral e a pena não é uma descida às profundezas dos infernos - Figueiredo Dias

41.Até porque as "personalidades psicopáticas" .. para além de fazerem sofrer a sociedade, também sofrem pela sua anormalidade - Schneider

42.A actuação ilícita confessada pelo recorrente demonstra o caminho da ressocialização.

43.A fixar-se um juízo de censura jurídico-legal haverá que ser ponderado o futuro do agente numa perspectiva de contribuição para a Sua recuperação como indivíduo dentro dos cânones da sociedade.

44.Sendo certo que o cometimento do crime em si, mais que não foi pontual e isolado.

45.0 pedido de desculpas efectuado pelo Recorrente e aceite pelo Assistente, celebrado com um aperto de mão em audiência de julgamento, permite concluir pela diminuição das exigências de prevenção geral pois perante o perdão da vítima, a expectativa da sociedade não poderá ser superior à vontade da vitima, na escolha de uma pena.

46. Pelo que dever-se-à condenar o recorrente na pena de cinco anos de prisão.

47.Realça-se o ac6rdão 1539/10.5 PFLRS.S1, da 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, que condenou um cidadão estrangeiro pela prática do crime de homicídio simples na forma tentada a 5 (cinco) anos de prisão. Neste caso, os factos foram praticados com duas facas, uma em cada mão, tendo desferido mais de 8 golpes no corpo da vitima.

48. A confissão e arrependimento, a ausência de antecedentes criminais, a existência de apoio familiar, um bom comportamento posterior (dentro do estabelecimento prisional), permitirá concluir que a simples ameaça de prisão (ambiente hostil que vivenciou e experimentou) afastará o recorrente de comportamentos desviantes.

49. As condíções pessoais demonstram um indivíduo com hábitos de trabalho, responsável, com apoio familiar, arrependido dos actos praticados, e com consciência do seu desvalor.

50. Entendemos assim, perante tal factualidade (das condições pessoais), conjugada com o perdão da vitima ser possível efectuar um juízo de prognose favorável ao recorrente., suspendendo-se a execução da pena.

51 .Pois será neste contexto supra~referido que a sociedade deverá efectuar todos os esforços na ressoc1ialização e reintegração do recorrente, permitindo e incentivando as condutas lícitas por que se rege, dando uma oportunidade, condenando-o a 5 anos de prisão, suspendendo-se a execução da pena, por igual período, com regime de prova, impondo regras e delimitando planos que deverá seguir, sob pena de regressar ao Estabelecimento Prisional, permitindo também, em liberdade, o retomar da sua profissão.

Violaram-se:

• Artigo 7lº nº 1 do C.P., porquanto a pena excede a culpa.

• Artigo 132º nº 2 aI. h) do C.P., porquanto não estão preenchidos os elementos tipificados que• revelem uma especial censurabilidade e perversidade da actuação delituosa do agente.

Artigo 50° do C.P., porquanto a ameaça da prisão e a simples censura do facto serão suficientes para a realização adequada das finalidades da punição.

Nestes termos deve o presente recurso obter provimento, por provado, condenando-se o recorrente numa pena de 5 (cinco) anos de prisão e suspendendo .• se a sua execução por igual período, com sujeição ao regime de prova.

Assim se fazendo Justiça.“


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Respondeu o Ministério Público à motivação do recurso no sentido de que deverá considerar-se o recurso interposto improcedente e manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.

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Neste Supremo, a Dig.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte Parecer:

 “Por acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Lisboa, 1.ª secção criminal da Instância Central de Lisboa, de 06/03/2015, o arguido BB foi condenado na pena um ano e nove meses de prisão e o arguido Silva na pena de sete anos de prisão.

Inconformados, os arguidos interpuseram recurso, impugnando exclusivamente matéria de direito.

Concordamos com o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, plasmado na decisão sumária de 12/07/2013, proferida no proc. n.º 35/10.5GAODM, que transcrevemos:

«Em matéria de competência, dispõe o art. 427.º do Código de Processo Penal que, “exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância, interpõe-se para a Relação.”

A norma do art. 432.º do Código de Processo Penal, que diz respeito à competência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de recursos, estabelece na alínea c) do n.º 1 que se recorre para o Supremo, “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito.”

No caso, embora a decisão recorrida seja um acórdão proferido pelo tribunal colectivo e o recurso verse, como se disse, sobre matéria de direito, apenas se verifica o pressuposto de a pena aplicada ser de prisão superior a 5 anos quanto aos recursos dos arguidos (…) e já não relativamente ao recurso da arguida (…) para cujo conhecimento é competente, nos termos gerais, o tribunal da relação.

O art. 414.º n.º 8 dispõe que “havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todo julgados conjuntamente pelo tribunal competente para conhecer da matéria de facto”.

Esta norma deve considerar-se um afloramento do princípio geral do conhecimento amplo do recurso. Assim, tal como num recurso em que se suscitem questões de facto e de direito, a competência pertence à relação, independentemente da medida da pena aplicada, também havendo vários recursos interpostos para tribunais com hierarquia diferente, determinada em função das penas aplicadas, todos eles devem ser conhecidos pelo tribunal que tenha competência mais alargada, que é o tribunal da relação.

Termos em que, excepcionando a incompetência do Supremo Tribunal de Justiça, declara-se que o Tribunal da Relação de Évora é o tribunal hierarquicamente competente para apreciar a totalidade dos recursos interpostos pelos diversos arguidos em matéria de direito, independentemente da duração das penas aplicadas.»

Face ao acima exposto, entendemos que o Tribunal da Relação de Lisboa é hierarquicamente competente para conhecer não apenas do recurso interposto pelo arguido BB mas também do recurso interposto pelo arguido AA.”


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Cumpriu-se o disposto nos artºs 417º nº 2, e 424º nº 3, do CPP, tendo o arguido apresentado resposta onde expõe:

“1

Conforme se verifica dos pontos 17 dos FACTOS PROVADOS e da alínea g) dos FACTOS NÃO PROVADOS, o douto Tribunal de primeira instância não condenou com base na detenção da pistola usada nos autos, pelo que se desconhece como a mesma chegou às mãos do recorrente no momento dos disparas.

2

Nomeadamente, colocou a hipótese, alegada pela Defesa, de que a arma era, isso sim, propriedade da vítima, a qual foi desarmada no decurso das agressões mútuas que precederam os disparos

3

De qualquer forma, o recorrente foi condenado por tentativas da homicídio qualificado, p.p.p. artº 131 º e 132º, nº 1 e 2, aI. h) - meio particularmente perigoso.

4

Sendo certo que, in casu, o precário uso da arma pelo recorrente constitui elemento do respectivo tipo de crime.

5

No entanto, tal não impede que o recorrente reitere que o tipo de arma em causa não configura a agravação - meio particularmente perigoso.

6

Isto é, a arma é um meio perigoso mas não particularmente perigoso. “

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Não tendo sido requerida audiência, seguiu o processo para conferência, após os vistos legais em simultâneo.

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Consta do acórdão recorrido:

            II_Matéria de Facto

II.1_ Realizada audiência de julgamento, dos factos constantes da Acusação e com interesse para a causa, deliberou o Colectivo julgar provados os seguintes factos:

1_ O arguido AA, juntamente com o seu pai, CC, dedicava-se à transacção de veículos usados, situação que se verificava no final de Janeiro de 2014.

2_O arguido BB dedicava-se ao mesmo ramo de negócio, tenho conhecido o arguido CC por via da actividade mencionada e o arguido AA, através daquele.

3_Os arguidos AA e CC conhecem DD desde, pelo menos, o ano de 2011, tendo o segundo intervindo com este em alguns negócios de compra e venda de veículos.

4_ No final do ano de 2013, ocorreu uma desavença entre o arguido CC e o assistente DD relacionada com o pagamento, pelo primeiro, de uma comissão que este entendia ter direito a receber, na sequência de um negócio havido entre ambos.

5_ Nessa ocasião – ou seja, no final do ano de 2013 – e conexa com essa desavença, o assistente DD chegou a entrar em confronto físico com o arguido CC, tendo desferido uma bofetada na face deste.

6_ No dia 22 de Janeiro de 2014, a motorizada de DD sofreu uma avaria na Auto-Estrada A5, na zona de saída de Carnaxide.

7_ Cerca das 22 horas desse dia, 22 de Janeiro de 2014, o assistente DD deu conhecimento ao arguido CC que se encontrava na zona de saída de Carnaxide, na Auto-Estrada A5, e que a sua motorizada havia sofrido uma avaria.

8_ Nessa sequência, o arguido CC foi ao encontro do assistente DD.

9_O assistente DD já havia pedido ao seu amigo Paulo Jorge Almeida Urbano que o auxiliasse a efectuar o transporte da mota avariada, numa carrinha, até à sua residência, sita na Avenida de Berlim.

10_ Nesse dia, 22 de Janeiro de 2014, transportada a motorizada, na referida carrinha, até à Avenida de Berlim, CC foi-se embora, ficando, no local, o arguido CC e o assistente DD.

11_ Cerca das 23 horas do dia 22 de Janeiro de 2014, os arguidos AA e BB surgiram na Avenida de Berlim, no local onde se encontravam o arguido CC e o assistente DD.

12_ Após uma breve troca de palavras entre o arguido AA e o assistente DD, envolveram-se ambos em empurrões que culminaram em agressões físicas recíprocas.

13_ Em momento não determinado do confronto físico que decorria entre o arguido AA e o assistente DD, o arguido CC interveio, colocando-se entre ambos, com o propósito de os separar.

14_Em momento igualmente não determinado, o arguido BB envolveu-se no confronto e as agressões físicas passaram a decorrer entre este, o arguido AA e o assistente DD.

15_ O arguido BB agarrou o assistente DD pelas costas.

16_ Utilizando uma faca – cujas características não foram apuradas - de que estava munido, o arguido BB desferiu dois golpes no assistente DD, atingindo-o “na região cervical direita e no lóbulo auricular direito”, provocando-lhe as feridas incisas descritas nos autos no relatório de fls.137 a 142, 433 a 436, 454 e 455 e das quais resultou como sequelas permanentes “cicatriz avermelhada, em “S”, obliqua, de cima para baixo, de frente para trás, com 8cm de comprimento depois de retificada, com percurso do lobo do pavilhão auricular direito até à face posterior direita do terço superior do pescoço, a 2 cm da inserção capilar”.

17_ No decurso dos confrontos físicos que envolviam o assistente DD e os arguidos BB e AA, este, em determinado momento e de forma não apurada, passou a deter uma arma de fogo que apontou na direcção do primeiro e disparou oito tiros, atingindo-o (ao assistente DD) na zona da cabeça, do tronco e do membro inferior direito.

18_ Entre os disparos, o arguido AA, dirigindo-se ao assistente DD, gritou “Morre, cabrão!”.

19_ O assistente DD tentou fugir, iniciando a subida da rua pelo seu pé.

20_ Enquanto fugia, o assistente DD foi atingindo por tiros disparados pelo arguido AA, atingindo-o também nas costas, tendo aquele acabado por cair no solo.

21_Em consequência da actuação do arguido AA, resultou directa e necessariamente ao assistente DD as seguintes lesões:

- fractura da face e da hemiface direita, com porta de entrada do projéctil na órbitra esquerda e saída na hemiface direita.

-fractura do ramo da mandíbula direita, com múltiplas fracturas da parede dos seios maxilares bilaterais.

-fracturas na face esquerda, com lesões orbitárias bilaterais e presença de fragmentos de projécteis de chumbo nos antros maxilares.

-hematoma intra e extra-cónico da órbita esquerda;

-hipoestesia infraorbitária esquerda;

-hemorragia subconjuntival esquerda com quemeses e encerramento palpebral incompleto com exposição de conjuntiva;

- enfisema e perda de definição do nervo óptico;

- fractura da apófise coronoide a nível cervical direito;

- ferida abdominal com porta de entrada de projéctil  pelo flanco direito e sem porta de saída;

- lesão perfurante do cego, cólon ascendente e intestino delgado;

- lesões na região dorso lombar e membro inferior direito, tendo um projéctil ficado alojado na vértebra L4, e outro alojado no lobo esquerdo do fígado.

22_ De seguida, o arguido AA pôs-se em fuga, não cuidando de apurar o estado físico em que se encontrava o assistente DD ou sequer chamado por qualquer auxílio, apesar de saber que se tratava de uma hora tardia.

23_ Quando observada a arma de fogo na posse do arguido AA, apontada em direcção ao assistente, os arguidos BB e CC puseram-se em fuga.

24_ Os arguidos BB e AA actuaram a uma hora da noite em que não é usual existir transeuntes na via pública em causa e aproveitaram a circunstância de o ofendido estar numa situação de inferioridade numérica.

25_ Ao agir da forma descrita, o arguido AA teve a intenção de tirar a vida do assistente DD, bem sabendo que as zonas corporais onde o atingiu com disparos de arma de fogo alojavam órgãos vitais e vasos sanguíneos importantes que lhe causariam necessariamente a morte.

26_Ao actuar da forma descrita, o arguido BB agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de atingir a integridade física do assistente, com um instrumento cortante de características concretas não apuradas, objectivo que logrou alcançar, tendo provocado lesões na região cervical direita e no lóbulo auricular direito deste.

27_ Os arguidos AA e BB agiram livre e conscientemente, bem sabendo que as respectivas condutas lhe eram vedadas e censuráveis.

28_ Nenhum dos arguidos cuidou de apurar o estado físico em que se encontrava o assistente DD ou sequer chamado por qualquer auxílio, apesar de saberem que se tratava de uma hora da noite em que não é usual existir transeuntes na via pública em causa.

29_ O resultado “morte” não ocorreu face à intervenção atempada dos tratamentos médico-cirúrgicos instituídos, entre os quais a intervenção cirúrgica imediata à cavidade abdominal e pélvica a que foi submetido o assistente.

30_ As lesões determinaram 143 dias para a consolidação médico-legal, todos com afectação da capacidade para o trabalho.

31_ Como consequências de carácter permanente das lesões descritas resultaram para o assistente DD as seguintes cicatrizes:

- Face: cicatriz avermelhada, horizontal, linear, com 3,5cm de comprimento, da pálpebra inferior esquerda, junto à inserção das pestanas, que refere a cirurgia a fratura da órbita; cicatriz avermelhada, vertical, com 1,5 cm de comprimento, com retração dos tecidos adjacentes, da região jugal esquerda, que refere a ferida por projétil de arma de fogo; parestesias da hemiface esquerda; cicatriz avermelhada, estrelada, com 1cm de raio, da região nasogeniana, direita, por referência às feridas provocadas por projétil de arma de fogo;            .

- Pescoço: cicatriz avermelhada, em “S”, obliqua, de cima para baixo, de frente para trás, com 8cm de comprimento depois de retificada, com percurso do lobo do pavilhão auricular direito até à face posterior direita do terço superior do pescoço, a 2 cm da inserção capilar, por referência às feridas provocadas por arma branca;

- Ráquis: cicatriz rosada, redonda, com 1 cm de diâmetro, da região lombar, junto à 4ª vértebra lombar, à esquerda, por referência à porta de entrada de projétil de arma de fogo que se encontra instalado junto à mesma;

- Abdómen: cicatriz operatória paramediana, com 28cm de comprimento, avermelhada, contornando a cicatriz umbilical à esquerda, com início na região do apêndice xifoide e termo na região da sinfise púbica, referida pela cirurgia abdominal e ainda permanecendo projéctil a nível hepático; cicatriz nacarada, ovalada, da região do flanco direito, com 4cm por 2cm de diâmetros, junto ao rebordo da 12° costela, por referência ao traumatismo provocado por projécteis de arma de fogo; cicatriz avermelhada, arciforme, de, concavidade superior, com 8cm de comprimento e 0,5cm e largura, da região do flanco direito, sobre o grande ramo da bacia, por referência a ferida provocada por projécteis de arma de fogo.

32_ Como consequências de carácter permanente das lesões sofridas, para além das cicatrizes descritas, o assistente apresenta uma perturbação residual da visão do olho esquerdo, não consubstanciando qualquer das sequelas, pelas suas características, desfiguração grave, nem afectação grave da possibilidade de utilização dos sentidos.

Das condições sócio-económicas referentes ao arguido AA

33_ O arguido AA nasceu em França. O seu processo de desenvolvimento decorreu num ambiente familiar afectuoso e estável, trabalhado o progenitor como chefe de uma empresa francesa de entregas ao domicílio e a mãe, numa creche.

34_ Viveu em Paris até aos 8 anos de idade, altura em que toda a família veio para Portugal, na sequência de uma proposta de trabalho para uma sucursaI da mesma empresa.

35_ Iniciou o percurso escolar em França e, posteriormente, frequentou a escola em Portugal, tendo concluído o 11º ano.

36_Na frequência do 12º ano, abandonou os estudos por desmotivação e ambição de independêncía financeira, tendo iniciado a sua actividade laboral com o pai que, entretanto, iniciou negócio por conta própria, na oficina de lavagem e compra/venda de automóveis.

37_ Há cerca de oito anos, iniciou uma relação, tendo o casal uma filha com seis anos de idade. À data dos factos, a filha vivia consigo em casa dos seus pais, mantendo a relação afectiva com a companheira. Trabalhava com o pai, na oficina deste de lavagem/compra/venda de automóveis. Aos fins-de-semana, acumulava com a actividade de barman numa unidade hoteleira, em Lisboa, e como empregado de bar, num café, em Corroios.

38_ Beneficia do apoio da companheira, dos progenitores e irmãos.

39_ Perspectiva a integração no agregado familiar da companheira e a sua inserção laboral na sua área de experiência, negócios de automóveis ou na restauração.

40_ Encontra-se preso no Estabelecimento Prisional de Lisboa mantendo um comportamento adaptado às normas prisionais, prestando ajuda no bar da ala onde está inserido.

41_ Demonstra preocupação pela sua situação e consequências que dai possam advir.

42_ A sua filha está a cargo da sua progenitora por a companheira do arguido e mãe da menor não dispor de horário de trabalho compatível com as necessidades da filha. O sustento da menor é assegurado pela avó paterna.

43_ Confessou ser o autor dos disparos sobre o assistente e manifestou arrependimento, o que expressou verbalmente na presença daquele e pelo mesmo aceite.

Das condições sócio-económicas referentes ao arguido BB

44_ O processo de socialização do arguido BB decorreu junto do agregado dos progenitores e de dois irmãos mais velhos, embora com a ausência física da figura paterna por prestar trabalhado, como emigrante, desde o nascimento do arguido, situação que se mantém actualmente. O agregado familiar foi sempre pautado pela existência de laços afectivos e por uma situação económica equilibrada, tendo a mãe do arguido assumido uma atitude protectora e desculpabilizante relativamente às atitudes do arguido, sempre muito protegido por todos, inclusive pelos irmãos, dada a grande diferença de idade entre os mesmos.

45_ No percurso escolar, registou-se a falta de motivação, tendo concluído o 9º ano de escolaridade na frequência de um curso profissional de carroçaria e bate-chapas, no Centro de Formação Profissional do Seixal.

46_ Começou a sua actividade profissional aos 17 anos numa oficina de reparação de automóveis. Exerceu actividade como barman e, posteriormente, trabalhou no hiperpermercado Pingo Doce. Iniciou actividade por conta própria na área de compra/venda de automóveis usados. Cerca de seis meses antes da sujeição à medida de coacção de prisão preventiva, iniciou a exploração de um estabelecimento comercial denominado "Café Santo Antão", localizado no Laranjeiro com resultados económicos positivos.

47_ Mantém a relação afectiva com a sua companheira, desde há cerca de um ano e meio, vivendo ambos na residência desta, à data dos factos.

48_ Aos 17 anos de idade, teve o primeiro contacto com o sistema judicial, na sequência da prática de um crime de condução sem habilitação legal, tendo o processo sido suspenso provisoriamente, com a injunção de o arguido prestar de 30 horas de serviço de interesse público, que cumpriu no Mercado do Laranjeiro, entre 20 de Março e 18 de Abril de 2012, com avaliação positiva.

49_ À data da sujeição à medida de coacção de prisão preventiva, o arguido BB encontrava-se a viver com a companheira na habitação desta, sendo a relação pautada por laços afectivos e de entre-ajuda, contribuindo o equilíbrio entre o casal, de forma positiva, para a estabilidade emocional do filho.

50_ O agregado tinha uma situação económica equilibrada fruto do trabalho da companheira como empregada doméstica e do rendimento obtido pelo arguido através da exploração do café e da venda/compra de automóveis usados, auferindo cerca de €500 mensais por cada uma das actividades.

51_ Em 2 de Maio de 2014, no âmbito do processo cujos termos correm no 2º Juízo do Tribunal de Família e Menores da Comarca do Seixal, foi determinada a suspensão provisória do processo no âmbito do qual cumpria 100 horas de trabalho a favor da comunidade, pelo período de trinta meses, até 8/7/2016, na sequência da aplicação, ao arguido, da medida de coacção de prisão preventiva, nestes autos.

52_ Ao nível pessoal, o arguido evidencia forte permeabilidade ao grupo de pares.

53_ Apresenta hábitos de trabalho e capacidade em perspectivar um projecto de vida organizado.

54_ Mantém o propósito de vir a integrar o agregado da companheira que manifesta disponibilidade em o apoiar e pretende dar continuidade à exploração do café que se encontra, presentemente, a cargo de uma prima.

55_ O arguido BB encontra-se preso no Estabelecimento Prisional junto às instalações da Polícia Judiciária, apresentando uma postura adaptada ao meio institucional, embora inicialmente, tenha estado instável e revelada dificuldade no cumprimento das regras, tendo sofrido uma sanção disciplinar. Em Outubro de 2014, iniciou a frequência de um curso de Inglês, no Estabelecimento Prisional.

56_ Continua a beneficiar do apoio da companheira, progenitores, irmãos e família alargada, visitando-o regularmente no estabelecimento prisional.

Das condições sócio-económicas referentes ao arguido CC

57_ O arguido CC foi educado pelos avós maternos por os pais se encontrem emigrados em França, sendo o pai operário fabril e a mãe empregada doméstica.

58_ É filho único e, apesar do afastamento dos progenitores que apenas se deslocavam a Portugal uma vez por ano, o seu processo de desenvolvimento decorreu em Silves, num ambiente familiar afectuoso e estável.

59_ Completou a 4ª classe em Portugal e terminou o 12º ano em França, para onde foi viver com os pais.

60_Iniciou a sua actividade profissional em França, aos 18 anos de idade, tenha trabalhado inicialmente como operário em fábricas de metal e, posteriormente, numa empresa francesa de entrega de mercadorias ao domicílio, onde permaneceu durante cerca de onze anos.

61_ Em França, contraiu matrimónio tendo o casal quatro filhos.

62_ Há cerca de dezasseis anos, na sequência de uma proposta de trabalho para uma sucursal da mesma empresa, em Portugal, regressou com a família.

63_ Decorridos cerca de dois anos a trabalhar na empresa, decidiu investir no exercício de actividade por conta própria, no ramo de lavagem de automóveis que, posteriormente, alargou o âmbito para oficina de reparação/venda/compra de veículos, negócio que mantém há cerca de três anos, trabalhando consigo o arguido AA .

64_ O arguido CC encontra-se sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, à ordem de outro processo. À data dos factos, vivia em casa própria com a esposa e os três filhos do casal, estando o filho mais velho, o arguido AA , preso preventivamente.

65_ Perspectiva regressar ao seu agregado familiar onde se encontram as suas referências afectiva e manter a sua actividade profissional como proprietário da oficina de automóveis que se encontra presentemente em funcionamento e gerida pelos trabalhadores.

66_ Para além do apoio da esposa, dispõe do apoio dos progenitores.

67_ Beneficia de visitas da esposa e filhos.

68_ Nada consta do certificado de registo criminal referente ao arguido AA.

69_ Nada consta do certificado de registo criminal referente ao arguido CC.

70_ O arguido BB foi condenado nas seguintes penas:

i)          por sentença proferida em 12/9/2011 e transitada em julgado em 3/10/2011, no Processo nº1099/11.0PPSXL cujos termos correram no 2º Juízo do Tribunal de Família, Menores e Comarca do Seixal, foi condenado pela prática, em 12/9/2011, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº2, do Decreto-Lei2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €5,00;

ii)        por sentença proferida em 24/8/2012 e transitada em julgado em 20/9/2012, no Processo nº 1105/12.0PFSXL cujos termos correram no 1º Juízo do Tribunal de Família, Menores e Comarca do Seixal, foi condenado pela prática, em 12/9/2011, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº2, do Decreto-Lei nº2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00;

iii)       por sentença proferida em 19/2/2013 e transitada em julgado em 21/3/2013, no Processo nº 269/13.0PGALM cujos termos correram no 2º Juízo Criminal do Tribunal de Família, Menores e Comarca de Almada, foi condenado pela prática, em 18/2/2013, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº2, do Decreto-Lei nº2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00;

iv)        por sentença proferida em 4/10/2013 e transitada em julgado em 2/11/2013, no Processo nº 1438/13.6PGALM cujos termos correram no 1º Juízo Criminal do Tribunal de Família, Menores e Comarca de Almada, foi condenado pela prática, em 25/9/2013, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº2, do Decreto-Lei2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na execução por igual período.

71_ O Centro Hospitalar de Lisboa Norte prestou assistência ao assistente DD em regime de ambulatório, na consulta externa de oftalmologia - triagem técnica, realizada em 20-02-2014; na consulta externa de cirurgia plástica e rec. de maxilo facial - atendimento enfermagem, realizada em 25-02-2014; na consulta externa de cirurgia plástica e rec. maxilo facial - atendimento enfermagem, realizada em 25-03-2014; consulta externa de ortopedia – coluna, realizada em 24-03-2014; consulta externa de cirurgia plástica e rec. maxilo facial, realizada em 25-02-2014, consulta externa de oftalmologia, realizada em 20-02-2014 e Consulta externa de ortopedia – coluna, realizada em 21-04-2014; e em meios complementares de Diagnóstico e Terapêutica, realizados em 20-02-2014, 25-02-2014, 24-03-2014; cujo custo importou o valor total de €350,40.

72_ E prestou assistência em regime de ambulatório, na consulta externa de cirurgia plástica e rec. maxilo facial, realizada no dia 25-03-2014, cujo custo importou o valor de €31,00.


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II.2_Factos não provados

Dos factos com interesse para a decisão, constantes da Acusação, não se provou qualquer outro para além dos acima descritos, bem como os que se encontram em contradição com aqueles, designadamente que:

a) tenha surgido uma desavença entre o arguido CC e o assistente, motivada por alegada falsificação de uma declaração de venda de um veículo por parte do primeiro;

b) em finais de 2013, início de 2014, DD tenha chegado a entrar em confrontos físicos com os arguidos AA e CC, desferindo bofetadas na face e dado encontrões, no primeiro, e dado encontrões no segundo;

c) no dia 22 de Janeiro de 2014, cerca das 22horas, CC tenha decidido pôr fim às exigências de DD e lhe comunicado que precisava de falar com ele;

d) DD tenha então combinado com o arguido CC que este seguiria no seu próprio veículo até à Avenida de Berlim onde se encontrariam todos para conversarem;

e) o arguido CC, ao chegar à Avenida de Berlim,  cerca das 23h00, tenha avistado o ofendido na via pública, junto ao lote J daquela artéria, e estacionando o veículo que conduzia, a cerca de 50m do local onde este se encontrava;

f) o arguido CC, entretanto, tenha contactado o seu filho AA, prevenindo-o que o acompanhasse ao local onde estava o ofendido, a fim de o coagirem - mediante a utilização da violência e a exibição de armas - a terminar os  diferendos que mantinham nos negócios;

g) AA tenha acedido a tal pedido, tenha feito acompanhar-se pelo arguido BB e ambos tenham-se munido, previamente, de uma faca e de uma arma de fogo;

h) os arguidos tenham desligado os respectivo telemóveis, à hora em que ocorreram os factos a fim de impossibilitarem as autoridades policiais de determinar o respectivo paradeiro;

i) o arguido CC tenha feito uso de um telemóvel cujo número não foi possível apurar  e que não tenha voltado a utilizar esse telemóvel;

j) o arguido CC tenha dito a CC  que a sua  presença  já não era ali necessária, pelo que este se foi embora e, assim, facilitado a acção que o primeiro pretendia desenvolver contra o ofendido;

l) acto contínuo, tenha surgido, no local, AA e BB e que estes tivessem rodeado, de imediato, o ofendido, impedindo-o de fugir;

m) o arguido BB fosse portador de uma arma de fogo;

n) logo após ter  ser ferido com a faca, o ofendido tenha tentado fugir, subindo a  rua;

o) o arguido BB tenha disparado um tiro com a arma de fogo;

p) os arguidos tenham-se colocado em fuga ao mesmo tempo;

q) o arguido BB tenha tido a intenção de tirar a vida do ofendido;

r) o arguido CC tenha configurado como possível que da acção directamente executada pelos restantes arguidos pudesse ocorrer a morte do ofendido e tenha-se conformado com tal possibilidade e não se demovido, em nenhum momento, da decisão por si tomada;

s) tenha sido em consequência da actuação do arguido BB que DD sofreu as lesões descritas causadas pela arma de fogo;

t) tenha sido em consequência da actuação do arguido CC que DD sofreu as lesões descritas na acusação;

u) a rua encontrava-se vazia, no momento em que ocorreram os factos;

v) o arguido BB tenha tido a intenção de tirar a vida do ofendido.

Sobre o demais conteúdo da pronúncia, o tribunal não se pronunciou por não se tratar de matéria de facto mas de conclusões, conceitos ou matéria de direito.


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O que tudo visto:

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            Entende a Exma Magistrada do Ministério Público junto deste Supremo, em seu douto Parecer, que o Tribunal da Relação de Lisboa “é hierarquicamente competente para conhecer não apenas do recurso interposto pelo arguido Cardoso Andrade mas também do recurso interposto pelo arguido Silva” fundamentando-se na concordância com o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, plasmado na decisão sumária de 12/07/2013, proferida no proc. n.º 35/10.5GAODM, que a dado passo refere:

“O art. 414.º n.º 8 dispõe que “havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todo julgados conjuntamente pelo tribunal competente para conhecer da matéria de facto”.

Esta norma deve considerar-se um afloramento do princípio geral do conhecimento amplo do recurso. Assim, tal como num recurso em que se suscitem questões de facto e de direito, a competência pertence à relação, independentemente da medida da pena aplicada, também havendo vários recursos interpostos para tribunais com hierarquia diferente, determinada em função das penas aplicadas, todos eles devem ser conhecidos pelo tribunal que tenha competência mais alargada, que é o tribunal da relação.”

            Cumpre analisar a questão prévia suscitada

O art. 414.º n.º 8 dispõe que “havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente pelo tribunal competente para conhecer da matéria de facto”.

           

            Esta norma assenta em razões de economia processual, e pretende evitar disfunções no sistema de recurso, e morosidade na administração da justiça,

           

           Porém, atentas as regras legalmente consentidas, na interpretação da norma – v. art. 9º do Código Civil, e, embora em processo penal apenas seja vedada a analogia malam partem, entendemos que não existe suporte legal, e interpretativo, no sentido de que “também havendo vários recursos interpostos para tribunais com hierarquia diferente, determinada em função das penas aplicadas, todos eles devem ser conhecidos pelo tribunal que tenha competência mais alargada, que é o tribunal da relação.”

A lei é clara, quando especifica em vários recursos da mesma decisão ” os quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito”., para concluir que “são todos julgados conjuntamente pelo tribunal competente para conhecer da matéria de facto”.

            Tribunal competente para conhecer do facto, ou da matéria de facto, é o tribunal da Relação, pois que as Relações conhecem de facto e de direito, como determina o artº 428º do CPP.

            Como escreve Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, Almedina 2014 p. 1413, nota 7, “Razões de operacionalidade ditam a disposição do nº 8. Não faria sentido que havendo recurso da matéria de facto, este fosse julgado em separado na relação, para só depois seguir para o Supremo a decisão de direito”

           

Isto significa que a referida norma prevê a simultaneidade de recursos em matéria de facto e de recursos exclusivamente em matéria de direito, mas não consente, não prevê, a existência exclusiva de recursos exclusivamente em matéria de direito.

Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 1150, nota 10: “Havendo pluralidade de recursos da mesma decisão, uns impugnando a matéria de facto e outros exclusivamente a matéria de direito, o processo é decidido pelo tribunal de recurso competente para conhecer a matéria de facto, onde todos os recursos serão conhecidos em conjunto. A Lei nº 48/2007, de 29.8, esclareceu este ponto. Tal regra é aplicável não apenas no caso de pluralidade de recorrentes, mas também para o caso de um mesmo recorrente impugnar matéria de facto e de direito (Acórdão do STJ, de 22.3.2000, in SASTJ, nº 39, 58).”

Com efeito, nos motivos da proposta de lei n.º157/VII]:, se refere:

‘c) Faz-se um uso discreto do princípio da dupla conforme, harmonizando objectivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade;

d) Admite-se o recurso per saltum, justificado pela medida da pena e pela limitação do recurso a matéria de direito;

e) Retoma-se a ideia de diferenciação orgânica, mas apenas fundada no princípio de que os casos de pequena ou média gravidade não devem, por norma, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça[…];

É certo que o artº 24.º do CPP versando sobre casos de conexão, estabelece:

“1 - Há conexão de processos quando:

a) O mesmo agente tiver cometido vários crimes através da mesma acção ou omissão;

b) O mesmo agente tiver cometido vários crimes, na mesma ocasião ou lugar, sendo uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar os outros;

c) O mesmo crime tiver sido cometido por vários agentes em comparticipação;

d) Vários agentes tiverem cometido diversos crimes em comparticipação, na mesma ocasião ou lugar, sendo uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar os outros; ou

e) Vários agentes tiverem cometido diversos crimes reciprocamente na mesma ocasião ou lugar.

2 - A conexão só opera relativamente aos processos que se encontrarem simultaneamente na fase de inquérito, de instrução ou de julgamento.  “

  

E, segundo o artº 27.,º referente a competência material e funcional determinada pela conexão:

“Se os processos conexos devessem ser da competência de tribunais de diferente hierarquia ou espécie, é competente para todos o tribunal de hierarquia ou espécie mais elevada.”

 

Nesta sequência, determina o  artº 29.º sobre unidade e apensação dos processos

“1 - Para todos os crimes determinantes de uma conexão, nos termos das disposições anteriores, organiza-se um só processo.

2 - Se tiverem já sido instaurados processos distintos, logo que a conexão for reconhecida procede-se à apensação de todos àquele que respeitar ao crime determinante da competência por conexão. “

É também certo que pode haver lugar à separação dos processos, nos termos do artº 30º, sendo certo também que o artº 31.º, versando sobre a prorrogação da competência, refere que:

“A competência determinada por conexão, nos termos dos artigos anteriores, mantém-se:

a) Mesmo que, relativamente ao crime ou aos crimes determinantes da competência por conexão, o tribunal profira uma absolvição ou a responsabilidade criminal se extinga antes do julgamento;

b) Para o conhecimento dos processos separados nos termos do n.º 1 do artigo 30.º“

 

Porém, como refere Henriques Gaspar, Código de Processo Penal, comentado, Almedina 2014, “Na conexão existe uma forte ligação entre crimes que justifica o seu julgamento conjunto. […] Sendo regras objectivas de competência, os critérios de conexão não são discricionários nem manipuláveis pela (aparente) conveniência operativa.[…] No caso de pluralidade de agentes, só há conexão em casos de comparticipação (co-autoria ou cumplicidade – artigos 26º e 27º, do CP), ou de comparticipação de vários agentes em casos de pluralidade de crimes (alínea c)); a identidade de lugar e tempo no caso de vários agentes de crimes independentes, não constitui critério de conexão.”

In casu, inexistem pressupostos de conexão, uma vez que os diversos crimes cometidos pelos arguidos não foram em comparticipação, nem causa ou efeito um do outro, ou destinando-se um a continuar ou a ocultar o outro; nem os crimes, que foram praticados na mesma ocasião e lugar foram reciprocamente cometidos., pois a vítima foi uma terceira pessoa.

Na verdade, sobre a mesma vítima, apenas o arguido AA, foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º e 132°, n.ºs 1 e 2, alínea h), com referência aos artigos 22° e 23°, todos do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão, sem qualquer outra condenação, e apenas o arguido BB foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143°, °1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão.

Por outro lado, de harmonia com o artº 432.ºdo CPP

“1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

[…]

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º “

Assim atenta a pena aplicada, porque se trata de arguidos diferentes e diferentemente condenados, com autonomia de condutas delituosas, ou seja, sem interferência recíproca nas respectivas condutas, somente o arguido AA podia ter recorrido para o Supremo, como fez, por a pena exceder cinco anos de prisão.

 A autonomia da condenação do arguido BB, em pena inferior a 5 anos de prisão por crime diferente do crime praticado pelo arguido AA, não tendo por ofendido o mesmo arguido AA, nem a existência de comparticipação nas ilicitudes praticadas sobre a mesma vítima, impedia o arguido BB de recorrer para o Supremo, pois que não se configura pressuposto de conexão e, conforme artº 427.º, do CPP, “Exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a relação.”

Somente se houvesse comparticipação é que a conexão operaria., e se tal acontecesse, inexistindo recurso em matéria de facto, competente seria não o tribunal da Relação, mas o Supremo tribunal de Justiça, quer por força do critério da pena mais grave, quer por força do disposto no artº 432º nº 1 al. c) do CPP., em que, de harmonia com o nº 3 não seria admissível recurso prévio para a Relação, sem prejuízo do disposto no nº 8 do artigo 414º”

Improcede assim, pela conjugação das regras de conexão e separação de processo, relativamente a arguidos diferentes, sem comparticipação delituosa, a questão prévia suscitada pela Exma Magistrada do Ministério Público, não sendo, por isso de conhecer do recurso interposto por C..., por ser da competência do Tribunal da Relação.


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           Inexistem vícios ou nulidades de que cumpra conhecer nos termos do artº 410º nºs 2 e 3 do CPP.

O recorrente não concorda com a qualificação jurídica aplicada no acórdão recorrido entendendo “não estarem preenchidos os elementos tipificados da alínea h) do nº 2 do artigo 132º do CP, devendo o recorrente ser condenado pela prática do crime de homicídio simples na forma tentada p.p.p. artºs 131°~ 22º e 23°, todos do CP)”pois que “salvo o devido respeito por opinião contrária, nem o meio empregue para tentar tirar a vida ao Assistente se revelou particularmente perigoso, nem o facto foi praticado conjuntamente com, pelo menos, mais duas pessoas.” E a “especial censurabilidade e perversidade que alude o artigo 132º do C.P, não é de aplicação automática, mesmo. que estejam preenchidos os seus elementos tipificados nas alíneas de a) a m), porquanto , a revelação da especial censurabilidade e perversidade tem a ver com a culpa do agente.”

           

Analisando:

O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no art. 131.º do CP, sendo desse preceito que a lei parte para, nos artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo acrescer ao tipo-base, circunstâncias que qualificam o crime, por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade.

O crime de homicídio qualificado verifica-se: “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade ,(…)” artº 132º nº 1 do C.Penal

As circunstâncias referidas no nº 2 do mesmo preceito, são meramente indicativas e, não taxativas, são circunstâncias de referência exemplificativa, mas não de abrangência exclusiva.

O nº 2 apenas determina que:

“É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente (….) (sublinhado nosso)

A especial censurabilidade ou perversidade, sendo conceitos indeterminados, são representadas por circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e são descritas como exemplos-padrão. A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. (Ac. do STJ de  07-07-2005, Proc. n.º 1670/05 - 5.ª).

No art. 132.º do CP o legislador utilizou a chamada técnica dos exemplos-padrão, estando em causa, pelo menos para parte muito significativa da doutrina, no seu n.º 2, circunstâncias atinentes à culpa do agente e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente – Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 27 e Teresa Quintela de Brito, Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, pág. 191.

Assim sendo, é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas, se bem que valorativamente equivalentes, as quais revelem a falada especial censurabilidade ou perversidade; e, por outro lado, apesar da descrição dos factos provados apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do art. 132.º, não é só por isso que o crime de homicídio cometido, deverá ter-se logo por qualificado.

A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, com “efeito de indício” (expressão de Teresa Serra, Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 126), interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado. Ac. do STJ de 15-05-2008, Proc. n.º 3979/07 - 5.ª Secção)

O cerne do referido ilícito está, assim, na caracterização da acção letal do agente como de especial censurabilidade ou perversidade face às circunstâncias em que, e como, agiu, ou dito de outro modo, está nas circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade que integraram a acção letal do agente.

Como conclui Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, Coimbra, 2003, p. 124:

“3.O critério generalizador do artigo 132º integra um tipo de culpa fundamental que permite caracterizar de forma autónoma a atitude especialmente censurável ou perversa do agente.

4. Só no âmbito de um conceito material de culpa susceptível de graduação, tendo como objecto de referência próprio o maior ou menor desvalor da atitude do agente actualizada no facto, a função de tipos de culpa agravadores da moldura penal pode ser inteiramente compreendida.”

O legislador apesar de optar pela técnica dos exemplos padrão, consubstanciados no artigo 132º funda-se porém “na combinação de um critério generalizador, constituído por uma cláusula geral de agravação penal, com uma enumeração exemplificativa de circunstâncias agravantes de funcionamento não automático”

Mesmo na construção do Leitbild dos exemplos padrão, é a partir de cada uma das concretas circunstâncias agravantes exemplificadas que se retira não apenas o seu especial grau de gravidade, mas também a sua própria estrutura valorativa.( idem, ibidem, p. 126 e 127)

O arguido AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º e 132°, n.ºs 1 e 2, alínea h), com referência aos artigos 22° e 23°, todos do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão;


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A citada alínea h) reporta-se à prática do facto “juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime comum”.

 “Assim se juntam «três constelações que se deixam reduzir à mesma estrutura valorativa através da ideia de particular perigosidade do meio empregado (seja directamente para a vítima, seja indirectamente para outros bens jurídicos protegidos) e da consequente maior dificuldade de defesa em que se coloca a vítima».

Por outro lado, um meio é qualificável de particularmente perigoso sempre e na medida em que «revelar uma perigosidade muito superior à normal nos meios utilizados para matar (…), se da natureza do meio utilizado – e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes – resulta já uma especial censurabilidade do agente».- Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, p. 346. nota 30. citando Figueiredo Dias).

“A utilização de meio particularmente perigoso significa que o meio utilizado deve exceder a perigosidade dos meios que normalmente são utilizados no cometimento de crime de homicídio; de outro modo o homicídio qualificado transformar-se-ia do [no] homicídio-regra.” – Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado – Legislação Complementar, 18ª edição – 2007., p. 516

Na alínea h) referida, e como referem Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, com Notas e Comentários, Almedina  2014, p. 510:”Há um crime planeado e executado pelo menos a três” e “ Compreende-se e aceita-se que a simples utilização de um objecto adequado a matar alguém (por ex. uma pistola) não seja elemento bastante para, por si só, se poder concluir pela existência de especial perversidade ou censurabilidade, pois que nesse caso, a censura e o desvalor da conduta – tirar a vida de outrem – já estão previstas na norma-incriminadora base (homicídio simples)”

 Sobre a prática de crime de perigo comum, referem estes últimos autores (idem, ibidem, p.511) “Meio de perigo comum significa na alínea h) um meio tipificado nos arºs 272º e ss, caracterizado por também ameaçar uma pluralidade de bens jurídicos de um número indeterminado de pessoas.”

 Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, 2ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 404, nota 21: diz que “Para os efeitos desta alínea , são crimes de perigo comum não apenas os previstos nos artigos 272º e seguintes do CP, mas também outros crimes de perigo comum previstos fora do CP, como por exemplo o crime previsto no artigo 86º, da Lei nº 5/2006,, que substituiu o anterior artigo 275º do CP. (diferentemente SILVA DIAS, 2007, 34 e 35[…] A especial censurabilidade do facto reside na atitude do agente que não se importa com o destino de outros além da vítima do homicídio.”

Mas, como pode verificar-se o crime de perigo comum, se além da vítima, não houver outros afectados, mesmo potencialmente ?!

“De resto, a criação de perigo comum revela de falta de escrúpulo, impondo-se que, «a partir deste ponto de vista, a outros meios de prova atribuir estrutura análoga à dos descritos (v.g. analogia entre crimes de perigo comum e alguns crimes contra a segurança das comunicações , artº 287º ss) e que, por outra parte e sobretudo, a utilização de qualquer destes meios não determine por si, o tipo de culpa agravado, (mas até mesmo possivelmente, um tipo de crime privilegiado), é coisa que mal se tornará necessário enfatizar» (FIGUEIREDO DIAS, ibidem, 37) -v. Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, ibidem, p. 346, nota 30)


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Refere a dado passo a decisão recorrida, depois de convocar e se pronunciar sobre o texto legal:

“Importa, então, analisar a imagem global do facto, de modo a detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana.

Para efeitos da alínea h) constitui crime de perigo comum o crime previsto no nº1 do artigo 86º da Lei 5/2006, alterada pela Lei nº 17/2009, de 6 de Maio, Lei nº 26/2010, de 30 de Agosto, Lei nº 12/2011, de 27 de Abril, e Lei nº 5/2013, de 24 de Julho (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código Penal À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem", Universidade Católica Editora, pág. 352, nota 21 ao artigo 132° do C.P,).

Voltando aos presentes autos, a situação prevista na alínea h) do nº 2 do artigo 132º, por referência ao nº 1 do mesmo artigo é precisamente a aqui configurada, reflectindo a conduta do arguido AA Silva uma atitude profundamente distanciada da do agente que pauta a sua conduta de acordo com os valores i e reveladora de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade e, por isso" mesmo, objecto da qualificação de especial censurabilidade e perversidade.

Dos factos provados decorre que o arguido AA, pretendendo tirar a vida ao assistente bem sabendo que as zonas corporais onde o atingiu com disparos de arma de fogo alojavam órgãos vitais e vasos sanguíneos importantes que lhe causariam necessariamente a morte, munido com uma arma de fogo - embora de características concretamente não apuradas - atingiu-o, na zona cabeça, tronco e membro inferior.

A conduta do arguido espelha uma atitude profundamente rejeitável e distanciada do agente cuja determinação respeita os valores da sociedade atento todo o circunstancialismo que envolveu a prática dos factos.

A localização temporal e espacial em que ocorreram os factos: actuou a uma hora da noite em que não era usual existir transeuntes na via pública.

A situação de inferioridade em que se encontrava o assistente: o arguido AA actuou aproveitando-se da situação de inferioridade numérica em que se encontrava o assistente. A fragilidade da situação do assistente não se traduz em meros números. O assistente foi confrontado com a situação de estar a ser agarrado pelas costas, por um dos arguidos e, simultaneamente, ter posicionado na sua frente dois dos arguidos. Para além da superioridade numérica, um dos arguidos estava munido de um instrumento com lâmina, circunstância que por si só inibe comportamento reactivo de defesa. Previamente à utilização da arma de fogo, o assistente já havia sofrido o golpe com instrumento com lâmina na região cervical direita e no lóbulo auricular direito que lhe provocaram, no pescoço, uma cicatriz avermelhada, em "S", obliqua, de cima para baixo, de frente para trás, com 8cm de comprimento depois de retificada, com percurso do lobo do pavilhão auricular direito até à face posterior direita do terço superior do pescoço, a 2 cm da inserção capilar.

Na execução do seu intento, reflecte a actuação do arguido AA um distanciamento acentuado de comportamento pautado pelos valores da sociedade: o assistente DD tentou fugir, iniciando a subida da rua pelo seu pé enquanto fugia, foi atingindo por tiros disparados pelo arguido AA, atingindo-o também nas costas, tendo aquele acabado por cair no solo.

Em plena execução do seu propósito, o arguido AA verbalizou a sua intenção: entre os disparos, foi proferindo "Morre, cabrão", revelando um desprezo elevadíssimo pelo bem mais valioso, a vida.

É, assim, evidente que a conduta de o arguido AA silva reflecte uma atitude profundamente distanciada da conduta do agente que se determina pelos valores e regras da sociedade, razão da qualificação do homicídio pela especial censurabilidade e perversidade revelada nas circunstâncias e que tentou concretizar o seu propósito, só não o tendo conseguido por o assistente ter sido submetido de forma atempada aos tratamentos e cuidados médicos adequados, Está, assim, preenchida a circunstância qualificativa prevista na alínea h) do nº2 do artigo 132º do Código Penal.

Porém, não consta a prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, pelo arguido AA, “juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas.”

E, continua a mesma decisão:

“Vejamos a situação dos arguidos CC e BB,

Os arguidos encontram-se pronunciados pela prática, em co-autoria e na forma tentada, de um crime de homicídio,

Encontra-se demonstrado que o arguido CC colocou-se entre o arguido AA e o assistente DD com o propósito de os separar e o arguido BB envolveu-se no confronto físico que decorria entre o segundo e o terceiro, passando as agressões físicas a ocorrer entre o arguido BB, o arguido AA e o assistente DD. No decurso do conflito físico, o arguido BB agarrou o ofendido pelas costas e utilizando uma faca de que estava munido, desferiu-lhe dois golpes, atingindo-o "na região cervical direita e no lóbulo auricular direito” Em consequência de tais lesões, o assistente apresenta como sequelas permanentes “Cicatriz avermelhada, em S, oblíqua, de cima para baixo, de frente para trás, com 8cm de comprimento depois de retificada, com percurso do lobo do pavilhão auricular direito até à face posterior direita do terço superior do pescoço, a 2 cm da inserção capilar".

Por referência ao arguido BB, provado está apenas que, no momento em que, no cenário, surge uma arma de fogo e o arguido AA a apontou em direcção ao assistente, aquele (arguido BB) e o arguido CC puseram-se em fuga.

Não resulta da factualidade provada que o instrumento com lâmina utilizado pelo arguido BB lhe pertencesse e que já fosse munido do mesmo. Da factualidade provada decorre, simplesmente, que o arguido BB, munido de um instrumento com lâmina, agrediu o assistente,

Provado está ainda que ao agir da forma descrita, o arguido BB agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de atingir o ofendido, com um instrumento cortante, na região cervical direita e no lóbulo auricular direito, objectivos que logrou alcançar.

Sendo esta a factualidade provada relativamente aos arguidos CC e BB, não se encontra demonstrada comparticipação dos mesmos no crime de homicídio, nos termos do artigo 26° do Código Penal que dispõe "É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo, ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou início de execução"

Na verdade, os arguidos CC e BB vieram a ser absolvidos do crime de homicídio qualificado na forma tentada.

           Por outro lado, embora o arguido AA disparasse a arma de fogo que detinha, contra DD, o disparo é conatural ao funcionamento da arma, e ainda que a arma de fogo seja um meio perigoso, pela potencialidade letal que lhe é inerente, não constitui por isso, um meio particularmente perigoso, para efeito de qualificação do crime de homicídio, sendo que, por outro lado, a mera detenção ou utilização da mesma arma não traduz a prática de crime comum.

           Donde, não poder considerar-se preenchida a agravante qualificativa da alínea h) do artº 132º do C Penal.

Ainda assim, poderia dizer-se que a conduta do arguido não deixou de ser de especial perversidade e censurabilidade, na medida em que, como resulta da matéria fáctica provada, o arguido depois de ter apontado na direcção do DD e disparado oito tiros, atingindo-o na zona da cabeça, do tronco e do membro inferior direito, o assistente DD tentou fugir, iniciando a subida da rua pelo seu pé, enquanto fugia, o assistente DD foi atingido por tiros disparados pelo arguido AA, atingindo-o também nas costas, tendo aquele acabado por cair no solo.

            Todavia, o Tribunal Constitucional (TC), pelo seu acórdão de 10 de Dezembro de 2014, - in Acórdão n.º 852/2014 - Diário da República n.º 48/2015, Série II de 2015-03-10 veio  “Julgar inconstitucional a norma retirada do n.° 1 do artigo 132.° do Código Penal, na relação deste com o n° 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do n.° 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo artigo 29.°, n.°1, da Constituição da República Portuguesa.”

Ora, in casu, pelo exposto, não é possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do n.° 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente..

Inexiste uma estrutura valorativa comum, que conjugue o nº1 com o nº2.do artº 132º do CP, ainda que de forma analógica.

O crime praticado pelo arguido AA, é pois o previsto e punido no artº 131º do CPenal.


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Porém, de harmonia com a Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, que estabelece o Regime Jurídico das Armas e Munições:

3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.

4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.

   Como é jurisprudência deste Supremo, v. por ex. acórdão, de 31 de Março de 2011, proc.361/10.3GBLLE ,  5ª SECÇÃO

O n.º 3 do art. 86.º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respectivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do art. 86.º, n.º 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de accionar efectivamente essa outra agravação.

Ora, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, e, no caso, não leva ao preenchimento do tipo qualificado do art.132.º, pelo que não há fundamento para afastar a agravação do art. 86.º, n.º 3.


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 Sobre a questão da medida concreta da pena

O crime p. e p. no artigo 131º do CP na forma tentada é punido com pena de prisão, que face a agravação constante do artº 86º nº 3 referido da Lei nº 5/2006, vai de 2 anos 1 mês e 18 dias a 14 anos 2 meses e 20 dias.

Alega o recorrente que

O arguido, confessou a autoria do crime por que vinha acusado e demonstrou arrependimento. Pediu desculpas ao ofendido, tendo este aceite. O arguido e o ofendido apertaram as mãos no seguimento deste pedido de desculpa, em plena audiência de julgamento. 0perou~se em audiência de julgamento uma pacificação que releva não só entre os dois intervenientes mas também sob o ponto de vista social, que constitui um objetivo predominante de toda a administração da Justiça. Demonstrou a consciencialização do enorme desvalor da sua conduta. 0 recorrente não tem antecedentes criminais.

Achando-se o recorrente um jovem de 25 anos (com 23 anos à data dos factos),

O recorrente pede a condenação na pena de 5 anos de prisão, suspendendo-se a execução da pena, por igual período, com regime de prova, impondo regras e delimitando planos que deverá seguir, sob pena de regressar ao Estabelecimento Prisional, permitindo também, em liberdade, o retomar da sua profissão.

Vejamos

Escrevia CESARE BECARIA –Dos delitos e das Penas, tradução de JOSÉ DE FARIA COSTA, Serviço de Educação, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 38, sobre a necessidade da pena que “Toda a pena que não deriva da absoluta necessidade – diz o grande Montesquieu – é tirânica.”  (II); - embora as penas produzam um bem, elas nem sempre são justas, porque, para isso, devem ser necessárias, e uma injustiça útil não pode ser tolerada pelo legislador que quer fechar todas as portas à vigilante tirania...” (XXV)

Mas, como ensinava EDUARDO CORREIA, Para Uma Nova Justiça Penal, Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Livraria Almedina, Coimbra, p. 16, “Ao contrário do que pretendia Beccaria, uma violação ou perigo de violação de bens jurídicos não pode desprender-se das duas formas de imputação subjectiva, da responsabilidade, culpa ou censura, que lhe correspondem.

E neste domínio tem-se verificado uma evolução que seguramente não nos cabe aqui, nem é possível, desenvolver.

Essa solução está, de resto, ligada ao quadro que se vem tendo do homem, às necessidades da sociedade que o integra, aos fins das penas a que se adira e à solidariedade que se deve a todos, ainda que criminosos.”

Na lição de Figueiredo Dias (Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime- Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121):

“1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”

As penas como instrumentos de prevenção geral são “instrumentos político-criminais destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através das ameaças penais estatuídas pela lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efectividade da sua execução”, surgindo então a prevenção geral positiva ou de integração “como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal; como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese todas as suas violações que tenham tido lugar (idem, ibidem, p. 84)

Por outro lado, como salienta o mesmo Distinto Professor a pena também tem uma função de prevenção geral negativa ou de intimidação, como forma estadualmente acolhida de intimidação das outras pessoas pelo mal que com ela se faz sofrer ao delinquente e que, ao fim, as conduzirá a não cometerem factos criminais. Porém, “não constitui todavia por si mesma uma finalidade autónoma de pena apenas podendo” surgir como um efeito lateral (porventura desejável) da necessidade de tutela dos bens jurídicos.” (ibidem, p. 118)

Tal desiderato sobre as penas integra o programa político-criminal legitimado pelo artº 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa e que o legislador penal acolheu no artigo 40º do Código Penal, estabelecendo o nº 1 que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade

E determinando o nº 2 que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

O ponto de partida das finalidades das penas com referência à tutela necessária dos bens jurídicos reclamada pelo caso concreto e com significado prospectivo, encontra-se nas exigências da prevenção geral positiva ou de integração, em que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal.

           

           Em termos jurídico-constitucionais, é a ideia de prevenção geral positiva ou de integração que dá corpo ao princípio da necessidade de pena.

A moldura de prevenção, comporta ainda abaixo do ponto óptimo ideal outros em que a pressuposta tutela dos bens jurídicos “é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena pode ainda situar-se sem que perca a sua função primordial de tutela de bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico – abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.” (idem, ibidem, p. 117)

O ponto de chegada está nas exigências de prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização, ou, porventura a prevenção negativa  relevando de advertência individual ou de segurança ou inocuização, sendo que a função negativa da prevenção especial, se assume por excelência no âmbito das medidas de segurança.

Ensina o mesmo Ilustre Professor, As Consequências Jurídicas do Crime, §55, que “Só finalidades relativas de prevenção geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma ‘infringida’”

Todavia em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa), pois que o princípio da culpa, como salienta o mesmo Insigne Professor – ob. cit. § 56 -, “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.”

Ou, e, em síntese: A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.”- v. FIGUEIREDO DIAS, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.

É no âmbito do exposto, que este Supremo Tribunal vem interpretando sobre as finalidades e limites da pena de harmonia com a actual dogmática legal.

           O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

           Por sua vez, o n ° 2 do mesmo artigo do Código Penal, estabelece, que:

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou, contra ele, considerando nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência:

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados..

Refere o acórdão recorrido:

“ Da medida da pena relativamente ao crime de homicídio

As exigências de prevenção geral são bastante acentuadas. O crime de homícídio atenta directamente contra o bem vida, uniformemente, considerado como valor nuclear da vida em sociedade e o respeito pelo mesmo uma condição essencial da relação entre cidadãos. Se a finalidade do Direito Penal é a protecção de bens jurídicos, a Vida é o primeiro dos valores a ser tutelado e protegido. A prática do homicídio cresce, exponencialmente, em todo o país, denotando a banaJização do respeito pela vida humana, tornando a necessidade de pena, actualizada e adequada ao valor supremo bem jurídico protegido suprimido, irrepetível, e o mais valioso na pirâmide dos direitos fundamentais. A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando as restantes finalidades da punição.

Para além da acentuada necessidade de prevenção geral e de harmonia com o disposto no artigo 71° do Código Penal, há a salientar: 

a) a elevada ilicitude da conduta, atento o modo de execução do ilícito: actuou a uma hora da noite em que não é usual existir transeuntes na via pública; o arguido disparou oito tiros sobre o assistente, atingindo diversas regiões corporais; o assistente tentou fugir, iniciando a subida da rua pejo seu pé, e enquanto fugia, foi atingindo por tiros disparados pelo arguido AA; o arguido atingiu o assistente também nas costas, tendo este acabado por cair no solo; entre os disparos, o arguido AA, dirigindo-se ao assistente, gritou "Morre, cabrãol". O resultado "morte" não ocorreu face à intervenção atempada dos tratamentos médico-cirúrgicos instituídos, entre os quais a intervenção cirúrgica imediata à cavidade abdominal e pélvica a que foi submetido o assistente. Em consequência da actuação do arguido, resultou directa e necessariamente ao assistente fractura da face e da hemiface direita, com porta de entrada do projéctil na órbita esquerda e saída na hemiface direita; fractura do ramo da mandíbula direita, com múltiplas fracturas da parede dos seios maxilares bilaterais; fracturas na face esquerda, com lesões orbitárias bilaterais e presença de fragmentos de projécteis de chumbo nos antros maxilares; hematoma intra e extra-cónico da órbita esquerda; hipoestesia infraorbitária esquerda; hemorragia subconjuntivaJ esquerda com quemeses e encerramento palpebral incompleto com exposição de conjuntiva; enfisema e perda de definição do nervo óptico; fractura da apófise coronoide a nível cervical direito; ferida abdominal com porta de entrada de projéctil pelo flanco direito e sem porta de saída; lesão perfurante do cego, cólon ascendente e intestino delgado; lesões na região dorso lombar e membro inferior direito, tendo um projéctil ficado alojado na vértebra L4, e outro alojado no lobo esquerdo do fígado.

As lesões sofridas determinaram 143 dias para a consolidação médico-legal, todos com afectação da capacidade para o trabalho.

Das lesões resultaram consequências de carácter permanente. Permanece, ainda, um projéctil a nível hepático. E na região lombar, junto à 4a vértebra lombar, à esquerda, encontra-se instalado projéctil de arma de fogo.

Para além das cicatrizes, o assistente apresenta uma perturbação residual da visão do olho esquerdo. Nenhuma das sequelas consubstancia, pelas suas características, desfiguração grave, nem afectação grave da possibilidade de utilização dos sentidos.

b) a intensidade do dolo, na modalidade de dolo directo (artigo 14°, nº 3, do C.P.);

c) o comportamento anterior e posterior aos factos, salientando-se a inexistência de antecedentes criminais, sendo esta circunstância de escasso valor atenuativo por corresponder à situação de  normalidade das pessoas fiéis ao direito; confessou ser o autor dos disparas sobre o assistente, embora com um circunstancialismo diverso do apurado. Em sede de julgamento, manifestou arrependimento e pediu desculpa ao assistente que aceitou. Em sede de julgamento, foi o assistente ressarcido dos danos provocados com a conduta do arguido.

d) as condições pessoais do arguido, suas habilitações literárias e situação económica.

Das condições sócio-económicas do arquido

O processo de socialização do arguido AA decorreu num ambiente familiar afectuoso e estável. Viveu em Paris até aos 8 anos de idade, altura em que toda a família veio para Portugal, na sequência de uma proposta de trabalho para uma sucursal da mesma empresa.

O seu percurso escolar teve início em França e terminou em Portugal, tendo concluído o 11º ano.

Na frequência do 12° ano, abandonou os estudos por desmotivação e ambição de independência financeira, tendo iniciado a sua actividade laboral com o pai que, entretanto, iniciou negócio por conta própria, na oficina de lavagem e compra/venda de automóveis.

Há cerca de oitos anos, iniciou uma relação, tendo o casal uma filha com seis anos de idade. À data dos factos, a filha vivia consigo em casa dos seus pais, mantendo a relação afectiva com a companheira. Trabalhava com o pai, na oficina deste de lavagem/compra/venda de automóveis. Aos fins-de-semana, acumulava com a actividade de barman numa unidade hoteleira, em Lisboa, e como empregado de bar, num café, em Corroios. Perspectiva a integração no agregado familiar da companheira e a sua inserção labora! na sua área de experiência, negócios de automóveis ou na restauração. No Estabelecimento Prisional de Lisboa mantém um comportamento adaptado às normas prisionais, prestando ajuda no bar, ala onde está inserido.

Decorre do exposto que o arguido evidencia hábitos consolidados de trabalho, tendo no seu percurso de vida investido sobretudo no trabalho e manifesta interesse em retomar a sua actividade profissional quando lhe for restituída a liberdade.

Encontra-se inserido familiarmente e beneficia de apoio de familiares próximos.

Conforme já se explicitou, são bastante acentuadas as exigências de prevenção geral.

Do ponto de vista da prevenção especial, não existe notícia do arguido ter praticado quaisquer ilícitos, sendo esta, é certo, a normalidade, tanto mais que o arguido possui apenas 24 anos de idade. Avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor da vida e dignidade da pessoa humana, evidenciada na violência da sua conduta, bem como no comportamento posterior. Não revelou qualquer preocupação quanto ao estado em que se encontrava o ofendido, tendo abandonado o Jocal, deixando o ofendido caído no chão, apesar de saber que se tratava de uma hora tardia. “

Todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Só não será assim, e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, v.g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. (Figueiredo Dias, Direito Penal Português -As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211, e Ac. de 15-11-2006 deste Supremo, Proc. n.º 2555/06- 3ª)

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Tendo em conta a fundamentação pertinente apresentada pelo acórdão recorrido, de harmonia com o artº 71º nº 2 do CP, a idade do arguido – nascido em 16 de Março de 1990 -, a matéria fáctica provada, e os limites da pena aplicável, as fortes exigências de prevenção geral, normais exigências de prevenção especial, e forte intensidade da culpa, julga-se adequada a pena de seis anos de prisão.

Prejudicada fica a questão da apreciação da suspensão da execução da pena –v.  art. 50º nº 1 do CP.


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            Termos em que, decidindo:

           Acordam os deste Supremo – 3ª Secção – em dar parcial provimento ao recurso e, em consequência:

Absolvem o arguido AA, do crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º e 132°, n.ºs 1 e 2, alínea h), com referência aos artigos 22° e 23°, todos do Código Penal, de que vinha condenado, mas condenam o mesmo arguido AA, por um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º com referência aos artigos 22° e 23°, todos do Código Penal, com a agravação constante do artº 86º nº 3 da Lei nº 5/2006, alterada pela Lei nº 17/2009, de 6 de Maio, Lei nº 26/2010, de 30 de Agosto, Lei nº 12/2011, de 27 de Abril, e Lei nº 5/2013, na pena de 6 (seis) anos de prisão,

            No mais mantêm o acórdão recorrido.

            Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Outubro de 2015

                                               Elaborado e revisto pelo relator

                                               Pires da Graça

                                               Raul Borges