Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
144/11.3JELSB. L1. S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SOUSA FONTE
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CORREIO DE DROGA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
ILICITUDE
CONFISSÃO
ANTECEDENTES CRIMINAIS
ATENUANTE
Data do Acordão: 04/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática: DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO/ ESCOLHA E MEDIDA DA PENA
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS ORDINÁRIOS
Doutrina: - Figueiredo Dias, “… As Consequências Jurídicas do Crime”, 228, 232; “Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 81 e 84.
- Taipa de Carvalho, “Direito Penal, Parte Geral – Questões Fundamentais, 83 e 84.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE, APROVADO PELA LEI 115/2009, DE 15 DE OUTUBRO: - ARTIGO 2.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 427.º, 432.º, N.ºS 1, AL. C), E 2.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, 70.º, 71.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 15/3/2012, Pº Nº 535/10.7JELSB.S1-3ª SECÇÃO.
Sumário :

I - Se os recorrentes apenas querem discutir a medida da pena de 9 anos de prisão que lhes foi imposta pelo tribunal de 1.ª instância, face ao disposto nos arts. 432.º, n.ºs 1, al. c), e 2, e 427.º, do CPP, nenhuma dúvida subsiste de que a competência para o conhecimento do recurso cabe ao STJ.
II - Na determinação da pena concreta, a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos não é um acto de valoração in abstacto – essa, sim, já levada a cabo pelo legislador quando estabeleceu a moldura penal para cada tipo legal –, mas como um acto de demonstração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo juiz à luz das circunstâncias do caso concreto (em face do modo de execução do crime, da motivação do agente, das consequências da sua conduta, etc.).
III - Na situação dos autos são elevadas as exigências de prevenção geral, traduzidas na quantidade de cocaína transportada (22 embalagens com o peso líquido de 24 237,600 g no caso do arguido E e 23 embalagens com o peso líquido de 25 188,803 g no caso do arguido J), com reflexo nos elevadíssimos lucros que a sua distribuição proporcionaria e dos milhares de consumidores que poderia atingir. Por outro lado, é também elevada a ilicitude das suas condutas enquanto reflexo da qualidade e da apreciável quantidade de cocaína que cada um aceitou trazer do Brasil (São Salvador) para a Bélgica (Bruxelas). É também intenso o grau de culpa, em função do dolo intenso com que agiram, entendendo-se que os denominados «correios de droga», que não utilizam uma rota certa e frustram o controle unitário das quantidades transportadas, tornando mais difícil a detenção e a apreensão, são uma das peças fundamentais do tráfico, concorrendo, de modo directo, para a sua disseminação e não merecendo, por isso, qualquer tratamento de favor.
IV - A confissão e a ausência de condenações anteriores não têm valor atenuativo de relevo. A confissão, porque foi a confissão do óbvio, porque surpreendidos com a droga nas respectivas bagagens; a primariedade, por se tratar de pessoas que não consta terem tido anteriormente contacto relevante com o território nacional. Já as dificuldades económicas, no caso em apreço, têm valor atenuativo da culpa com algum peso: por um lado, porque a situação de precariedade laboral não lhes é de todo imputável; por outro, porque foram essas dificuldades conjugadas com os € 5000 que lhes foram oferecidos que, a fazer fé na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, os «empurraram» para a aceitação do transporte da droga, depois de tanto um como o outro terem resistido a uma primeira proposta.
V - Neste contexto, afiguram-se adequadas ao grau de culpa de cada um dos arguido as penas de 8 anos de prisão [em substituição das penas de 9 anos de prisão fixadas em 1.ª instância].


Decisão Texto Integral:

            Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

            1. Na 8ª Vara Criminal de Lisboa, no processo em epígrafe, responderam os arguidos

            - AA, nascido em 29 de Outubro de 1979, filho de ... e de ..., natural de Aruba e residente em Reigersweg 44, Apeldoorn, e

            - BB, nascido em 26 de Setembro de 1981, filho de ... e de ..., natural de Apeldoorn e residente em ..., um e outro de nacionalidade holandesa,

                                        sob a acusação de terem praticado, em co-autoria material, um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º, nº 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B, anexa ao mesmo diploma.

            A final, foram condenados, cada um deles, pela autoria de um crime do referido tipo, na pena de 9 (nove) anos de prisão.

            Inconformados, ambos recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa em motivação conjunta, em cujo início anunciaram que apenas pretendiam discutir a medida concreta da pena, da qual extraíram as seguintes conclusões:

                «1. As penas aplicadas aos recorrentes são muito elevadas e desproporcionadas.

            2. É certo que está em causa um transporte por via aérea de cerca de 25 kg de     cocaína.

            3. A forma de dissimulação apresentada [?] pouca sofisticação – apenas escondidos entre um   edredão.

            4. Contudo atuaram como correios de droga, remunerados pelo serviço de          transporte, tendo aliás em concreto um baixo domínio do facto e sem qualquer            ligação com os fins visados pelos destinatários.

            5. Confessaram integralmente os factos e esclareceram o tribunal de todos os       detalhes da operação, que, no futuro, pode contribuir para uma maior eficácia             das autoridades.

            6. Estão integrados familiarmente, primários e têm bom comportamento   prisional.

            7. A jurisprudência dos tribunais superiores tem aplicado penas bem mais            baixas, quando se está perante correios de droga e quantidades bem mais elevadas de cocaína.

            8. A pena aplicada, não pode ser diretamente proporcional à quantidade transportada.

            9. No caso concreto, os recorrentes entendem mais justo uma pena próxima dos 6 anos e 6 meses de prisão.

            Violaram-se as seguintes normas jurídicas:

            Artigos 40º e 71º do Código Penal.

            Artigos 21º do DL 15/93 de 22/1».

                Respondeu a Senhora Procuradora-Adjunta que:

            - suscitou a questão prévia da competência do Tribunal da Relação para conhecer do recurso, porque, visando os Recorrentes exclusivamente o reexame de matéria de direito e tendo as penas sido fixadas, uma e outra, em medida superior a 5 anos de prisão, o recurso devia ter sido directamente interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, como manda o artº 432º, nºs 1, alínea c), e 2, do CPP;

            - quanto ao objecto do recurso, concluiu pelo não provimento.

            Subidos os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, o Senhor Procurador-geral Adjunto reiterou aquela questão prévia, que o Tribunal da Relação acolheu por decisão sumária, declarando-se incompetente para conhecer do recurso, e ordenou a remessa do processo a este Tribunal.

            No Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-geral Adjunto emitiu parecer em que,

            - sustentou que o recurso é efectivamente da competência do Supremo Tribunal de Justiça e,

            - quanto ao mérito, assinalou que «a pena aplicada a cada um deles … sem pôr em causa o limite, inultrapassável, da medida da culpa [art. 40.º, n.º 2 do CP], corresponde não só às exigências de prevenção geral – consabidamente muito elevadas [a este propósito referiu, na parte conclusiva do seu parecer, que «não pode ignorar-se…, para além do mais, que a inusitada frequência com que vem sendo praticado este tipo de ilícitos torna particularmente elevadas as exigências de defesa do ordenamento jurídico»] – como também as de socialização ínsitas à prevenção especial – [estas desde logo decorrentes da circunstância de, não se mostrando minimamente alterado o quadro de dificuldades económico-financeiras que os levaram a aceitar a proposta de transporte da droga em causa nos autos, os arguidos, logo que essa oportunidade se lhes voltar a deparar, poderem não sentir motivação suficiente para resistir a eventual novo convite para serviço idêntico] –, e não se revela, de todo o modo, desproporcionada, antes se mostrando em sintonia com as que, em casos idênticos de tráfico de cocaína efectuados por “correios de droga”, vêm sendo impostas e/ou confirmadas por este Supremo Tribunal de Justiça».

            Todavia, prossegue, a admitir-se que cada uma das penas deve ser reduzida, entende que essa redução nunca poderá ser para medida inferior a 8 anos de prisão, «medida esta situada, aqui sim, no ponto intermédio da respectiva moldura penal abstracta e, eventualmente, mais consentânea com a concreta grandeza da actividade de tráfico empreendida pelos arguidos». A propósito citou o Acórdão deste Tribunal, de 8 de Março último, proferido no Pº n.º 325/11.0JAPRT.P1.S1-5ª Secção, onde, estando também em causa uma situação de idênticos contornos – transporte de cerca de 10 Kgs. de cocaína («quantidade significativamente inferior à que está aqui em causa», observa) também por um “correio de droga” –, mas em que lhe afigura ser a «dimensão da ilicitude bem menos relevante», foi confirmada uma pena de 7 anos de prisão.

             

            Cumprido o disposto no nº 2 do artº 417º do CPP, os Arguidos responderam reafirmando «que a pena aplicada é excessiva e desproporcional». Invocam, nesse sentido, o seu papel de meros “correios de droga”, que «não tiveram domínio do facto nem … tiveram domínio decisório ou activo no planeamento do transporte», e a circunstância da quantidade de cocaína em causa – que apontam como fundamento «quase exclusivo» das penas aplicadas – não ter constituído factor decisivo para o transporte que fizeram: «aceitaram efectuar um transporte de droga e não, especificamente, um transporte de 25 quilos dado que para eles a quantidade era irrelevante».

            E concluíram pugnando por uma pena «próxima dos 6 anos de prisão» – pedido que, como se vê, já não coincide com o formulado nas conclusões da motivação – que lhes parece «mais adequada» e ajustada ao que tem sido a prática jurisprudencial deste Tribunal para hipóteses semelhantes.

            2. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir:

           

            2.1. Da Questão prévia

            Como vimos, o Tribunal Colectivo condenou cada um dos Arguidos na pena de 9 anos de prisão.

            Os Recorrentes apenas querem discutir a sua medida.

            Por isso que, face ao disposto nos arts. 432º, nºs 1, alínea c), e 2 e 427º, do CPP nenhuma dúvida se possa suscitar sobre a imposição legal de o recurso dos Arguidos ter de ser interposto directamente para o Supremo Tribunal de Justiça.

            Procede, por isso, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público e, consequentemente, nada temos a objectar à correspondente decisão do Tribunal da Relação.

            O recurso tem, assim, de ser julgado pelo Supremo Tribunal de Justiça.        

            Posto isto, passemos à apreciação do seu mérito.

           

            2.2. É do seguinte teor a decisão do Tribunal Colectivo da 8ª Vara Criminal de Lisboa sobre a matéria de facto:

«II. a) Matéria de facto provada

De relevantes para a decisão da causa resultaram como provados os seguintes factos:

1. No dia 10 de Maio de 2011, cerca das 12 horas, os arguidos desembarcaram no Aeroporto de Lisboa, provenientes de São Salvador, Brasil,

2. Preparavam-se para embarcar no voo TP614, com destino a Bruxelas, na porta de embarque nº 17 do aeroporto de Lisboa, quando as suas bagagens foram fiscalizadas.

3. As malas do arguido AA tinham apostas as fitas de bagagem com os números TP 532150 e TP 532149,

4. E nas malas do arguido BB estavam apostas as etiquetas de bagagem TP532129 e TP532130.

5. As respectivas reservas de viagem encontram-se associadas uma à outra – cfr. fls. 5 a 6.

6. Tinham consigo cada um, os bilhetes para a viagem Lisboa – Bruxelas, em que estavam colados os canhotos de bagagem que são coincidentes com as referências identificativas das cintas de bagagem apostas nas malas.

7. As malas estavam fechadas a cadeado, mas na mala de mão do arguido AA estava uma argola com duas chaves, as quais abriram os dois cadeados (um de cada mala) das malas registadas em seu nome.

8. Abertas as malas do arguido AA (dois trolleys um encarnado e outro preto) estavam 22 (vinte e duas) embalagens de cocaína, com o peso bruto de 24.238,346 gramas e liquido de 24.237,600 gramas, e que se encontravam dissimuladas no meio de um edredão.

9. Abertas as malas do arguido BB, (dois trolleys pretos) e também dissimuladas no meio de um edredão, estavam 23 (vinte e três) embalagens de cocaína, com o peso bruto de 25.188,803 gramas e líquido de 25.188,070 gramas.

10. O arguido AA trazia ainda consigo:

            - quatro cartões SIM de operadoras móveis estrangeiras;

                        - um telemóvel de marca “Nokia”, modelo “N900”, com cartão SIM da   operadora “LYCA”;

                        - um cartão de segurança;

                        - um cartão da Western Union;

                        - uma etiqueta com três códigos de barras e as referências de um   telemóvel;

                        - uma agenda telefónica;

                        - papéis manuscritos;

                        - máquina fotográfica descartável;

                        - uma caderneta do Banco Popular;

                        - documentação referente à viagem efectuada, nomeadamente de   estadias em Hotéis no Brasil, canhotos de cartões de embarque, duas        impressões de bilhetes electrónicos, tudo em nome do arguido e duas    etiquetas de bagagem com os números TP 532150 e TP 532149 - cfr.       auto de apreensão de fls. 30, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

            11. O arguido Jonhann trazia ainda consigo:

                        - um papel manuscrito;

                        - um pedaço de um cartão manuscrito;

                        - três telemóveis, um de marca “Samsung” cinza e preto, com  cartão       sim da “Lebara Móbil”, um de marca “Samsung”, modelo “GT-E1170”,          preto, um de marca Samsung”, modelo “GT-E1150i”, cinza e preto com       cartão sim da operadora “Lyca Mobile”;

                        - três cartões das operadoras móveis internacionais;

                        - a documentação referente às viagens efectuadas, designadamente os       talões de embarque, os bilhetes da TAP e das linhas áreas brasileiras,         tudo em nome do arguido –   cfr. auto de apreensão de fls. 53, cujo teor   aqui se dá por integralmente reproduzido.

            12. Os arguidos tinham conhecimento de que transportavam consigo cocaína e tinham noção da natureza estupefaciente dessa substância e mesmo assim, agiram com o único intuito de auferir proventos pecuniários.

            13. Os arguidos haviam-se deslocado ao Brasil desde a Holanda a fim de efectuar a recolha e transporte daquela cocaína por tal lhe ter sido proposto, a cada um, por terceiros indivíduos não identificados, e a troco de receberem o pagamento de cerca de €5.000 cada um, além de lhes serem pagas todas as despesas inerentes à viagem e à estadia no Brasil;

            14. Agiram sempre deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.

            15. O arguido AA é natural da Ilha de Aruba, ilha Holandesa nas Caraíbas, tendo nascido de uma relação amorosa esporádica dos pais, e crescido sob os cuidados da mãe (empregada de supermercado) e da avó materna (doméstica), possuindo o agregado uma condição socio-económica estável.

            Concluiu a escolaridade obrigatória, ingressando no ensino profissionalizante na escola de turismo.

            Começou a trabalhar com 18/19 anos no aeroporto, primeiro como bagageiro e outras tarefas             indiferenciadas, tendo frequentado vários pequenos cursos             profissionais que o habilitaram a outras tarefas exercidas na pista do aeroporto.

            Com cerca de I9 anos, e depois do falecimento do pai, desenvolveu uma   problemática de toxicodependência a cocaína que durou até aos 24 anos, altura            em que efectuou um tratamento de desintoxicação na Republica Dominicana.   Contudo, o período da sua toxicodependência desestruturou-lhe a sua vida nos    aspectos pessoais e sócio-profissionais.

            Casou com 26 anos, relação que durou somente cerca de um ano e meio. Desde esta altura revelou uma vida pouco estruturada e estável, trabalhando      esporadicamente como eletricista, tendo estudado inglês até cerca dos 29 anos,   momento em que viajou para a Europa por ter um contrato de trabalho para a   Bélgica, que depois se revelou fraudulento.

            Estabeleceu-se então na Holanda, onde iniciou um relacionamento marital com   a actual companheira e viveu em casas de amigos sem actividade laboral    estável.

            No período que antecedeu os factos, residia com a companheira, grávida, num    quarto             arrendado, e após ser expulso de casa de um amigo, não exercendo        actividade laboral e estando dependente dos apoios da sua mãe, a viver em    Aruba e da mãe da companheira, solicitando apoio assistencial ao nível da          alimentação.

            Actualmente, a sua companheira e duas filhas desta estão a viver em total            dependência dos serviços sociais da Holanda, tendo entretanto, e há cerca de            um mês, nascido o seu filho.

            Consumia por vezes haxixe em "Coffe Shops", onde conheceu o co-arguido no     presente processo.

            Futuramente, pretende regressar ao seu país de origem, referindo estar também em total dependência dos serviços sociais holandeses até criar a sua autonomia.

            Tem mantido bom comportamento prisional.

            16. O arguido BB [e não “Landonk”, como consta do texto do acórdão recorrido] é natural da Holanda, sendo filho único, e tendo crescido no agregado familiar de origem (com equilibradas condições socio-económicas e educativas) até aos 21 anos, altura em que o pai faleceu – a mãe falecera            quando o arguido tinha 8 anos. O pai era empresário, explorando uma oficina          de pneus e a mãe doméstica. Depois dos 21 anos e sem apoios familiares viveu   sob os cuidados dos serviços sociais, tendo residido em centros de             acolhimento, tendo ficado autónomo, ao nível sócio-económico e habitacional,   aos cerca de    26/27 anos [sic].

            Concluiu a escolaridade obrigatória e frequentou um curso profissional na área da metalurgia, que não chegou a concluir.

            Começou a trabalhar com 16 anos em tarefas indiferenciadas e com vínculos       precários através de             empresas de trabalho temporário até ter começado a          exercer somente a actividade laboral como limpa-vidros. Permaneceu vários     períodos de tempo inactivo laboralmente.

            No período que antecedeu os factos residia há algumas semanas em casa de um amigo, trabalhando como limpa-vidros, confrontando-se com uma condição de          carência económica e dívidas bancárias por pagar. Consumia por vezes haxixe    em "Coffee Shops", onde conheceu o co-arguido no presente processo.

            Pretende regressar ao seu país de origem, para integrar o agregado familiar de   um tio, sendo que em termos profissionais afirmou não ter dificuldades em obter ocupação laboral como limpa-vidros.

            Tem mantido bom comportamento prisional.

            17. Dos certificados de Registo Criminal dos arguidos não consta qualquer          condenação anterior pela prática de ilícitos criminais».

            II. b) Matéria de facto não provada

De relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa não lograram provar-se mais factos.

Designadamente não logrou provar-se que os todos os objectos [sic] e     documentos apreendidos aos arguidos se destinavam a ser utilizados por eles no             tráfico de estupefacientes e eram fruto dessa actividade, nem que os telemóveis          que transportavam se destinavam a permitir contactar e a ser contactados pelos            ulteriores destinatários da cocaína».

2.3. Como vimos, os Recorrentes apenas se insurgem contra a medida das penas em que foram condenados, as quais reputam de «muito elevadas e desproporcionadas», por entendem ser mais justa uma pena próxima dos 6 anos e 6 meses de prisão (ou dos 6 anos, como depois alegaram na resposta ao parecer do Senhor Procurador-geral Adjunto).

Pois bem.

2.3.1. Segundo o artº 40º do CPenal, a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. A pena, porém, em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa.

Por sua vez, o artº 71º, nº 1 dispõe que a determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

E o número seguinte manda atender, para o efeito, a todas as circunstâncias – que enumera de forma exemplificativa nas suas diversas alíneas – que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele – os “factores de medida da pena”, como lhes chama Figueiredo Dias[1], que hão-de naturalmente relevar para efeitos da culpa e/ou da prevenção.

Na síntese conclusiva com que encerra o capítulo sobre as “Finalidades e legitimação da pena criminal”, o mesmo Autor resume do seguinte modo a teoria sobre essas finalidades e limite: «(1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; (4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais», sendo estas que vão determinar em última instância, a medida da pena[2].

A medida da pena é, assim, função da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, traduzida na tutela das expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma violada, a determinar, naturalmente, em consonância com as circunstâncias do caso concreto, em face do modo de execução do crime, da motivação do agente, das consequências da sua conduta, etc.   

Por outro lado, assim como o Estado usa do seu ius puniendi, também deve oferecer ao condenado o mínimo de condições para prevenir a reincidência, como desde logo impõe o artº 2º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei 115/2009, de 15 de Outubro, nisso se traduzindo essencialmente as razões de prevenção especial (de socialização). Como nota Taipa de Carvalho[3], «a função da ressocialização não significa uma espécie de “lavagem ao cérebro”, … mas, sim e apenas, uma tentativa de interpelação e consequente auto-adesão do delinquente à indispensabilidade social dos valores essenciais (…) para a possibilitação da realização pessoal de todos e cada um dos membros da sociedade. Em síntese, significa uma prevenção da reincidência».

Não pode, no entanto, escamotear-se, dentro das razões de prevenção especial, a função de dissuasão ou intimidação do delinquente (prevenção especial negativa) que, segundo o mesmo Autor, em nada é incompatível com a função de ressocialização, porque se trata, não de intimidar por intimidar, mas antes de uma dissuasão, através do sofrimento inerente à pena, «humanamente necessária para reforçar no delinquente o sentimento de necessidade de se auto-ressocializar, ou seja de não reincidir»

3.2. Posto isto, vejamos o percurso e as orientações seguidos pelo acórdão recorrido para justificar as penas que concretamente aplicou, as críticas que os Recorrentes lhes dirigem e as considerações aduzidas a esse respeito pelos dois Magistrados do Ministério Público, para, então, tomarmos posição sobre a questão que nos vem colocada.

3.2.1. O Tribunal Colectivo, depois de convocar as normas dos arts. 70º e 71º do CPenal, considerou como desfavoráveis aos Arguidos o dolo intenso, porque directo, e a “gravidade da ilicitude dos seus actos», concretizada no efeito altamente pernicioso da cocaína para a saúde pública, e nos seus efeitos colaterais devastadores: «ela provoca, como efeito da situação de dependência física e psíquica que aceleradamente desencadeia nos seus consumidores, fenómenos de grave despersonalização, colocando em causa as suas vidas, integridade física e liberdade individuais – e, ademais, afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos mesmos consumidores e possui comprovadíssimos efeitos criminógenos», observa o acórdão recorrido.

Sublinhou, ainda, a sua especifica actuação, como “correios de droga”, cuja actuação considera contribuir «poderosamente para a disseminação dos produtos estupefacientes no continente europeu», de que Portugal se tem vindo a tornar, «nos últimos anos, uma apetecível e muito explorada porta de entrada».

Por isso, continua o acórdão recorrido, «no que às exigências de prevenção geral diz respeito não pode perder-se de vista este infeliz papel de liderança que o nosso país tem vindo a assumir no que respeita à prática de actos da natureza dos [dos Arguidos], sendo urgente a necessidade de que, em resposta a essa circunstância, o sistema legal e penal português saiba reagir-lhe de forma particularmente incisiva, de maneira a obviar ou pelo menos a não se permitir qualquer forma de “pactuação”, sequer por omissão, no que à prevenção de tão nefasta realidade diz respeito – o que também passa, naturalmente, por uma particular e efectiva severidade no sancionamento de casos como o dos presentes autos».

Relevou finalmente «extraordinariamente elevada quantidade de cocaína transportada», que reputou de «absolutamente incomum», para “correios de droga”, que «daria seguramente para fabricar uma quantidade imensa de doses de consumo individual, potenciando assim grandemente a ocorrência de um lucro ilícito muitíssimo significativo por parte dos seus destinatários – o que, aliás, encontra de certo modo confirmação na remuneração também relativamente elevada que esperava cada um dos arguidos caso concretizasse a sua tarefa criminosa – cerca de 5.000€, para além do pagamento de todas as despesas com as suas viagens e estadia no Brasil, naturalmente». E como nenhuma destas circunstâncias inibiu os Arguidos, conclui serem «bastante elevadas igualmente as exigências concretas de prevenção especial».

            A favor dos arguidos,

            - atendeu à circunstância de haverem admitido integralmente a prática dos factos que se deram por provados, esclarecendo as circunstâncias em que actuaram;

- considerou que, apesar dos seus actos, se mostram integrados socialmente, ainda que em termos algo precários e dependentes de apoios de terceiros, e

- admitiu que terão actuado motivados por dificuldades financeiras que atravessavam à data dos factos;

- registou serem primários e com bom comportamento prisional;

- consignou finalmente,

            - em relação ao arguido AA, a circunstância de ter companheira e um filho recém-nascido que ainda não pôde contactar em virtude da sua actual situação e de grande parte da sua vida ter sido afectada pelo desenvolvimento de uma toxicodependência que estará actualmente controlada;

            - quanto ao arguido BB, a de se tratar de um indivíduo «que se viu obrigado, após o falecimento do pai, em permanecer dependente dos apoios sociais ao nível habitacional e socio-económico durante um período de tempo, tendo entretanto encontrado colocação profissional».

Perante o quadro que traçou, o acórdão recorrido concluiu que «as exigências de prevenção geral e especial se sobrepõem a um prognóstico favorável que pudesse ser feito relativamente ao comportamento futuro dos arguidos», razão por que decidiu aplicar a cada um deles a pena de 9 (nove) anos de prisão.

3.2.2. Contra esta fundamentação, os Recorrentes começaram a sua motivação por desvalorizar a relevância dada às exigências de prevenção geral porque, afirmam, essas exigências «relevam já na moldura penal que o legislador consagrou».

O argumento é, no entanto, manifestamente improcedente, como resulta inquestionavelmente do teor do nº 1 do artº 71º do CPenal que eles próprios afirmaram ter sido violado (cfr. último parágrafo das conclusões).

Na determinação da pena concreta, a medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos não é um acto de valoração in abstracto – essa, sim, é que foi levada a cabo pelo legislador quando estabeleceu a moldura penal para cada tipo legal –, mas, como referimos atrás, um acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo juiz à luz das circunstâncias do caso concreto[4].

Por isso, em face dos contornos do caso concreto, sufragamos o entendimento do Tribunal Colectivo de que são «bastante elevadas» essas exigências. A Senhora Procuradora da República, acentuou a esse propósito e com toda a pertinência que «o tráfico de estupefacientes é um flagelo das sociedades hodiernas sendo responsável, directa ou indirectamente, pela morte de milhares de pessoas, atingindo muitas outras na sua integridade física pelas sequelas, físicas e psíquicas, permanentes e irreversíveis, que o seu consumo ocasiona [pelo que] alarma ainda a sociedade por ser fracturante da organização familiar, estar associado à ruptura do tecido social e à crescente criminalidade contra o património». Alarme que, no nosso caso, se faz sentir com particular intensidade em função da quantidade e qualidade da droga transportada, com reflexo nos elevadíssimos lucros que a sua distribuição proporcionaria e dos milhares de consumidores que poderia atingir.

Por outro lado, embora não discutam directamente a elevada ilicitude das suas condutas enquanto reflexo da qualidade e da apreciável quantidade de cocaína que cada um aceitou trazer do Brasil (São Salvador) para a Bélgica (Bruxelas) e aceitem o elevado grau de culpa que lhes é assacado, em função do dolo «intenso» com que agiram, insurgem-se contra o que entendem ter sido o fundamento «quase exclusivo» das penas em que foram condenados: a quantidade da cocaína que foi apreendida a cada um deles, conjugada com a faceta da sua actuação: simples “correios de droga”, com «baixo domínio do facto e sem qualquer ligação com os fins visados pelos destinatários», não tendo tido «qualquer papel decisório ou activo, quer no planeamento quer na encomenda, e muito menos no destino final».

É verdade que os Arguidos não eram os donos da cocaína. Mas já não podemos aceitar que, ao terem-se prestado a transportá-la, não ficaram com qualquer ligação aos fins visados pelos destinatários. Com a sua colaboração obviamente que procuraram, que quiseram, que estes a recebessem e, assim, que pudessem vir a auferir enormes lucros com o respectivo tráfico, aceitando, dessa forma, a sua ligação inexorável à rede, com um contributo aliás decisivo na disseminação da droga por milhares de consumidores. Como refere o Acórdão de 15 de Março último deste Tribunal, Pº nº 535/10.7JELSB.S1-3ª Secção, «o “correio” de droga é uma das peças fundamentais do tráfico, concorrendo, de modo directo, para a sua disseminação, não merecendo um tratamento de favor». E, citando o Acórdão de 13-01.2011, Pº nº 369/09.1JELSB.L1.S1, também do Supremo Tribunal de Justiça, refere, a propósito desse contributo, que «o “correio de droga” não utiliza uma rota certa e frustra o controle unitário das quantidades transportadas, tornando mais difícil a detecção e a apreensão, donde ser um perigo iminente, a todo o momento, no tráfico internacional», para depois rematar com a consideração de que «o “correio de droga” não se deixa contramotivar pelos efeitos perniciosos do seu acto, pela ruína pessoal e familiar de quem se vicia no seu consumo, pela desgraça que gera na sua família, pela instabilidade social, pelos efeitos criminógenos a que a difusão de estupefacientes conduz» – circunstancias estas que entendemos exasperar as necessidades de prevenção geral e especial e ainda o grau da culpa, como, de resto, foi realçado pelo acórdão recorrido, com o aplauso da Senhora Procuradora da República do Tribunal recorrido e do Senhor Procurador-geral Adjunto deste Tribunal.

Em relação à quantidade de droga, os Recorrentes, embora reconheçam que «é muito maior, que por via de regra, é transportada por via aérea nestes percursos», voltam a insistir no facto de a transportarem por conta de outrem, com o que, dizem, «ficam desvalorizadas, …, as considerações da decisão recorrida quanto à aferição do desvalor da acção criminosa … [porquanto] não está provado que os arguidos visassem o lucro através da distribuição da droga a outras pessoas, mediante a sua venda».

Também agora o argumento não colhe.

Não colhe porque, repetindo de algum modo considerações anteriores sobre o tema, o que o acórdão recorrido diz na fundamentação da medida da pena é que as quantidades de droga transportadas pelo Arguidos «dariam seguramente para fabricar uma quantidade imensa de doses …, potenciando assim grandemente a ocorrência de um lucro ilícito muitíssimo significativo por parte dos seus destinatários». Porém, os Arguidos não foram punidos por terem querido ou desejado comparticipar directamente nesses potenciais ganhos, como sócios no negócio, mas, como é próprio da actividade de “correio”, por terem procurado, por terem querido, proporcionar esses lucros aos “donos” da droga, como antes já dissemos. Note-se, todavia, que a mira de lucro por parte dos Arguidos está bem presente na motivação das suas condutas, como claramente nos dizem os números 12. e 13. dos “Factos Provados”, sendo notório que os proveitos económicos almejados só podiam sair do tráfico, como não podiam deixar de ter representado.

Se a quantidade de droga a transportar era ou não significativa para os Arguidos é questão estranha à matéria de facto provada que apenas nos diz que foram contratados para «efectuar a recolha e transporte daquela cocaína» (nº 13. dos “Factos Provados”) que, na economia da respectiva decisão, é, seguramente, a concretizada nos antecedentes nºs 8. e 9.

Seja como for, a predisposição para transportar qualquer quantidade de droga, grande ou pequena, releva negativamente, por agravar o juízo de censura que lhes deve ser dirigido.

 Os Arguidos invocam ainda a seu favor, os seus percursos de vida, «manchados de graves dificuldades, marcados pela dependência económica, ausência de esperança e toxicodependência», serem primários, terem bom comportamento prisional, a confissão integral dos factos, o arrependimento, a integração familiar.

O arrependimento, são os Recorrentes os primeiros a dizê-lo, não consta do rol dos factos provados. As restantes circunstâncias foram consideradas expressamente no acórdão recorrido, como vimos.

Sublinhe-se, todavia, que tanto a confissão como a ausência de condenações anteriores não têm valor atenuativo de relevo. A confissão, porque foi a confissão do óbvio, porque surpreendidos com a droga nas respectivas bagagens; a primariedade, por se tratar de pessoas que não consta terem tido anteriormente contacto relevante com o território nacional.  

Já as dificuldades económicas, independentemente do significado que, em termos de exigências de prevenção especial, lhes aponta o Senhor Procurador-geral Adjunto, entendemos terem, em relação a qualquer deles, valor atenuativo da culpa com algum peso. Por um lado, porque a situação de precariedade laboral não lhes é de todo imputável (cfr. designadamente os nºs 15. e 16. dos”Factos Provados”), por outro, porque foram essas dificuldades conjugadas com os €5.000,00 que lhes foram oferecidos que, a fazer fé na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, os empurraram para a aceitação do transporte, depois de tanto um como o outro terem resistido a uma primeira proposta.

Concluímos assim, como o acórdão recorrido, que são elevadas as exigências de prevenção geral e especial. Do mesmo modo, também entendemos que o grau de culpa é elevado. Por isso que julgamos descabida a pena que cada um reclama (6 ou 6 anos e meio de prisão).

 No entanto, considerando a especial incidência daquela particular atenuante, consideramos que se ajusta melhor ao grau de culpa de cada um dos Arguidos a pena de 8 (oito) anos de prisão.

É essa a pena que vamos aplicar.

4. Em conformidade com o exposto, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em, julgando parcialmente procedente o recurso dos Arguidos, revogar o acórdão recorrido, na parte em que decidiu punir cada um deles em 9 (nove) anos de prisão, pena esta que substituímos pela de 8 (oito) anos de prisão

No mais, confirmam o mesmo acórdão.

             Sem custas (artº 513º, nº 1, do CPP).

                                                                                                          Lisboa,

            Processado e revisto pelo Relator

                                                                                                     Sousa Fonte (Relator)

Santos Cabral      

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[1]  “… As Consequências Jurídicas do Crime”, 232
[2] “Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 81 e 84
[3] “Direito Penal, Parte Geral – Questões Fundamentais, 83 e 84
[4] CFr. Figueiredo Dias, “… As Consequências…”, 228