Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
| Relator: | SEBASTIÃO PÓVOAS | ||
| Descritores: | COMPENSAÇÃO NEXO DE CAUSALIDADE DANOS E MORA ABUSO DE DIREITO | ||
| Data do Acordão: | 01/11/2011 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
| Sumário : | 1) Tal como prevê o artigo 847.º do Código Civil, a compensação é uma forma de extinção das obrigações quando os obrigados são simultaneamente credor e devedor, operando-se o que, em linguagem coloquial, se apoda de “encontro de contas”. 2) Então, o compensante, se demandado (ou interpelado) para cumprir exonera-se do seu débito através da realização do seu crédito, na mesma lide. 3) A compensação legal ali prevista não é automática mas sempre potestativa, por depender de uma declaração de vontade, ou pedido, do titular do crédito secundário. 4) Esse pedido surge pela via da reconvenção se o crédito do demandado for superior ao do demandante mas sê-lo-á por excepção peremptória se o contra - crédito for de montante inferior ao pedido. 5) São pressupostos da compensação legal a validade do crédito principal e uma reciprocidade creditícia. 6) São requisitos do instituto a exigibilidade, em sentido forte (não mera expectativa, nem resultante de obrigação natural), do contra - crédito, a sua titularidade pelo compensante e a homogeneidade dos créditos, sendo irrelevante a sua iliquidez. 7) Impedem a extinção por compensação os créditos do Estado (ou outra pessoa colectiva de direito público) salvo excepção legal, a sua impenhorabilidade e a proveniência de factos ilícitos dolosos (neste dois últimos casos excepto se ambos o forem). 8) O facto ilícito tanto pode, para este efeito, ser gerado no âmbito da responsabilidade contratual como no da responsabilidade aquiliana. 9) O juízo de causalidade numa perspectiva meramente naturalística de apuramento da relação causa-efeito, insere-se no plano puramente factual insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e com as ressalvas dos artigos 729.º, n.º 1 e 722.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. 10) Assente esse nexo naturalístico, pode o Supremo Tribunal de Justiça verificar da existência de nexo de causalidade, que se prende com a interpretação e aplicação do artigo 563.º do Código Civil. 11) O artigo 563.º do Código Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias. 12) De acordo com essa doutrina, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis. 13) O disposto nos artigos 916.º e 917.º do Código Civil é aplicável apenas à venda de coisas defeituosas, que não à denúncia de danos causados pela mora no cumprimento de contratos de compra e venda. 14) O abuso de direito, que dispensa o “animus nocendi” tem por base a existência de um direito subjectivo na esfera jurídica do agente, já que tem como principal escopo impedir que a estrita aplicação da lei conduza a notória ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, comportando duas modalidades: “venire contra factum proprium” e situações de desequilíbrio, como sejam o exercício danoso inútil, a actuação dolosa e a desproporção grave entre o exercício do e o sacrifício por ele imposto a outrem. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça “A... – Têxteis Unipessoal, Limitada” requereu - por injunção – a condenação da Ré “E...R... – Têxteis, Limitada” a pagar-lhe a quantia de 20.833, 76 euros, sendo 19.599,16 euros de capital, 1038,60 euros de juros e 192,00 euros de taxa de justiça que já pagou. Alegou, nuclearmente, ter celebrado com a demandada um contrato de fornecimento de bens ou serviços que prestou, tendo emitido as facturas respectivas (n.º 158 e 194) que a Ré não pagou, embora lhas tivesse enviado. Contestou esta impugnando os factos e dizendo que a factura n.º 158 está compensada com um crédito que tem sobre a requerente que deu origem à emissão de nota de débito (n.º 2007026), sendo que a factura n.º 194 não tem fundamento nem nunca foi, por si, aceite. Exigiu, em consequência, que fosse indemnizada, nos termos compensatórios. O processo passou a seguir a forma ordinária. Na pendência da lide, a Autora foi declarada insolvente e os autos prosseguiram contra a massa representada pelo Administrador. No 4.º Juízo Cível de Vila Nova de Famalicão a acção foi julgada parcialmente procedente e a Ré condenada a pagar à Autora 14.837,82 euros, com juros, à taxa legal, contados das datas de emissão das facturas. Mas, “operando a compensação de créditos, face ao crédito da ré sobre a autora”, julgou “totalmente liquidada a quantia em causa, não mais devendo a ré à autora.” Absolveu, ainda, a Ré “do demais peticionado”. A Autora apelou para a Relação do Porto que confirmou o julgado. Inconformada, pede revista assim, e no essencial, concluindo a sua alegação: - Por uma eventual penalização que tenha sido aplicada à Recorrida, não pode a recorrente ser responsabilizada dado não existir nexo de causalidade entre tal penalização e qualquer conduta culposa da Recorrente; - Por outro lado, ocorre um comportamento clamorosamente ofensivo da boa fé, por parte da Recorrida, pelo que estamos perante uma situação de abuso de direito; - É de aplicar à situação dos autos, por analogia, a caducidade do direito de reclamar o reembolso de eventuais indemnizações, pagas por mora no cumprimento das obrigações; - Assim, não há lugar a qualquer compensação, devendo a Recorrida ser condenada a pagar à Recorrente não só os montantes em dívida na sentença como também no pagamento integral da factura 194; - Independentemente das eventuais penalizações, a Ré recebeu sem reserva todas as mercadorias que constam das facturas dos autos e nunca pôs em causa, aquando do recebimento, que podia haver penalizações por qualquer atraso, sendo certo que a Recorrente é completamente alheia a qualquer penalização aplicada à Recorrida por parte de um terceiro; - Foram violados os artigos 562.º, 563.º, 334.º, 762.º, 763.º, 798.º, 799.º, 328.º, 329.º e 333.º do Código Civil e 463.º e 471.º do Código Comercial. A Ré contra-alegou em defesa do julgado. As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto: Foram colhidos os vistos. Conhecendo, O ponto nuclear da motivação recursória consiste na discordância sobre a verificação de factualidade subsumível à compensação. Por isso, iremos, abordar este instituto, na sua dogmática jurídica, para, de seguida, abordar, também com algum detalhe, o nexo causal, que a Recorrente diz inexistir. Posteriormente, e continuando a acompanhar, “pari passu”, o acervo conclusivo, abordar-se-à a invocada caducidade da denúncia para, finalmente, tocar, o insinuado abuso de direito. Assim,
Ou seja, quando ambos são, reciprocamente, credor e devedor, operando-se, então, o que, em linguagem coloquial, se chama “encontro de contas” pois o compensante, quando demandado ou interpelado para cumprir, exonera-se do seu débito através da realização do seu crédito. A lei considera de equidade não obrigar a cumprir quem também é credor do seu credor (também, e aqui aderindo ao argumento do Prof. Almeida Costa, que claramente reflecte a situação destes autos, porque o compensante podia correr “o risco de não ver o seu crédito inteiramente satisfeito, caso se desse, entretanto, a insolvência da contraparte”, apud “Direito das Obrigações”, 6.ª ed., 965), cfr. o Prof. Vaz Serra, “Compensação”, BMJ, 31-13 e ss.). Alertando para a ausência de uma definição legal, o Prof. Menezes Cordeiro – “Direito das Obrigações”, 2001, 2.º, 219 – nota 99 – lança mão do conceito do Código Civil Italiano a fixar que “quando duas pessoas estão obrigadas uma para com a outra, os dois débitos extinguem-se pela quantidade correspondente ...” (artigo 1241.º). Não nos parece que tal seja substancialmente diferente do nosso artigo 847.º que, mantendo a mesma definição, logo nele incorpora os requisitos. Trata-se, tão-somente de uma diferente técnica legislativa. Na sua essência, está a economia de meios jurídicos não obrigando por força de uma fonte obrigacional a uma prestação que teria, mais tarde, de ser repetida, por força de outra obrigação. O legislador substantivo contempla a compensação legal que não é automática (por não operar “ope legis”) mas sempre potestativa (tem de haver declaração de vontade, ou pedido, para compensar, como resulta do n.º 1 do artigo 848.º do Código Civil). E esse pedido (declaração de vontade) – ponto a que só nos referiremos muito superficialmente por transcender o cerne da economia desta deliberação – terá de ser formulado como cruzado (via reconvencional) se o crédito for superior ao do autor e implicar a condenação deste na diferença ou como excepção (peremptória) se o contra crédito for de montante inferior e apenas servir para reduzir, ou impedir, os efeitos do primeiro. (cfr., “inter alia”, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Julho de 1976 – BMJ, 259-223; de 8 de Fevereiro de 1977 – BMJ, 264-134; e de 28 de Maio de 2009 – 09B676; e, na doutrina, Prof. Vaz Serra, RLJ, 110.º, 254 e 3630-323); Profs. Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado, 3.ª ed., II, 140, embora considerando que, na segunda hipótese, se trata de defesa “sui generis, de natureza mista, híbrida ou heterogénea.”). Aproximamo-nos, agora, dos requisitos elencados no n.º 1 do citado artigo 847.º do Código Civil (exigibilidade judicial do contra crédito sem que contra ele proceda excepção peremptória ou dilatória, de direito material; terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade) sendo que terão de perfilar-se, a montante, os pressupostos da validade do crédito principal e da reciprocidade creditícia. Por razão deste último (n.º 1 do artigo 851.º) a compensação “só pode abranger a dívida do declarante e não a de terceiro ainda que aquele possa efectivar a prestação deste” e (n.º 2) o declarante “só pode utilizar para a compensação créditos que sejam seus” e “contra o seu credor”. Dos requisitos do n.º 1 do artigo 847.º densifica-se, por só aqui relevar, (irrelevando o da homogeneidade) o primeiro consistente na validade e exigibilidade do contra crédito. O crédito passivo não pode ser obrigação natural, por ter de ser exigível judicialmente, o que só acontece nas obrigações civis (artigo 402.º do Código Civil) e não pode ser vincendo por ter de ser “exigível”, o que significa a possibilidade da sua realização coactiva (cfr., também, “Das Obrigações em Geral”, 7.ª ed., II, 204, do Prof. Antunes Varela), “situação em que se encontra a prestação já vencida”, como refere o Prof. Pessoa Jorge, in “Lições de Direito das Obrigações”, 1966-284, e que o Prof. Menezes Cordeiro apoda de “exigibilidade em sentido forte” (ob. vol. cit. 222). Finalmente, e para além dos créditos do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas – princípio que pode ser excepcionado – e créditos impenhoráveis, salvo se da mesma natureza, o n.º 1 do artigo 853.º do Código Civil impede a extinção por compensação dos créditos provenientes de factos ilícitos dolosos (alínea a) do mesmo preceito). Quanto a este ponto o facto ilícito tanto pode resultar de conduta integradora de responsabilidade aquiliana como de responsabilidade contratual. Aquele pressuposto da responsabilidade civil é idêntico para os dois tipos de responsabilidade (obrigacional ou extra obrigacional) e parece-nos ser também esta a conclusão do Prof. A. Varela (“Das Obrigações em Geral”, ed. vol. cit. 209, ponderando o exemplo que cita) sendo que a excepção do n.º 1, a) do artigo 853.º não releva se ambos os créditos tiverem a mesma génese. (cfr., neste sentido, o Prof. Almeida Costa, ob. cit., 970 – nota ; embora, em sentido oposto, e com “non distinguo”, opinem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit. II, 145). Sempre, porém, a existência do crédito compensável não pode ser só apurada (podendo, apenas, ser liquidada) no âmbito do juízo de compensação. Aí terá de surgir não como mera expectativa mas com autêntica exigibilidade, sob pena de se ir enxertar numa acção pendente (a pretexto de reconvenção) outra que com ela não tenha conexão. (cfr. o Prof. Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório”, I, 172, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Outubro de 1998 – P.º 643/98, seguido pelo Acórdão de 21 de Novembro de 2002 – 02B2634 – também acolhido pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2006 – 06 A3861). Tanto bastaria para a confirmação do Acórdão recorrido. A Recorrente questiona, porém, a inexistência do 2- Nexo de Causalidade Refere que não é responsável por uma penalização aplicada à Recorrida, já que não existe qualquer nexo causal entre tal penalização e qualquer conduta culposa da Recorrente. Sem razão, porém. 2.1. Resulta da matéria de facto que a Autora forneceria à Ré confecções que produziu para esta, tendo-se obrigado a fornece-las em determinados prazos que não cumpriu; que, por causa desses atrasos, a Ré teve de pagar uma quantia, a título de indemnização, à empresa a que se obrigara a fornece-los; que também – e por dificuldades de tesouraria da Autora – teve de comprar tecidos para a confecção e, pelas mesmas razões, pagou a um acolchoador trabalhos que a Autora não efectuou. 2.2. A causalidade tem uma vertente de facto e uma componente de direito. Na sua vertente naturalística averigua-se se o processo sequencial foi, ou não, factor desencadeador, ou gerador, do dano. Apura-se, então, uma simples relação de causa – efeito, isto é, no percurso naturalístico verifica- se se a conduta do lesante desencadeou o resultado danoso. Então, situamo-nos num plano puramente factual (cfr., entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Novembro de 1998 – P.º 660/98 – 2.ª; de 11 de Junho de 2002 – P.º 1810/02 – 2.ª e, desta Conferência, de 13 de Março de 2008 – 08 A369; de 17 de Junho de 2008 – 08 A1700; e de 2 de Novembro de 2010 – 2290/04 – 0TBBCL.G1.S1). Mas quando estão em causa juízos de valor e da interpretação e aplicação de normas jurídicas, trata-se de uma questão de direito (cfr. Prof. Menezes Cordeiro – “Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais”, 1997, 532 e ss e 541 e ss e, v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 1987 – BMJ 371-402; de 26 de Fevereiro de 1991 – BMJ 404-424 e de 3 de Dezembro de 1992 – BMJ 422-365). É, então, a causalidade legal, por resultante da pura aplicação dos princípios do artigo 563.º do Código Civil. (cfr. Prof. Pereira Coelho, “O nexo de causalidade na responsabilidade”, in “Revista de Direito e Estudos Sociais”, VI, 1, 2, 3, 113 e ss, e “A causalidade na responsabilidade civil em direito português”, “R.D. Estudos Sociais”, XII, 3, 39 e ss., e 4, 1 e ss) que consagra a teoria da causalidade adequada afirmando “uma ligação positiva, em termos de juízo de probabilidade entre o facto jurídico e o dano.” (Prof. Pessoa Jorge, in “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 413 e nota 374 a citar o Prof. Vaz Serra – BMJ – 100-127, nota 269). Como se disse no Acórdão n.º 2290/04 – 0TBBCL.E1.S1: Do exposto resulta que, e como já se deixou dito, a não razão da recorrente neste segmento recursório, irrelevando,em consequencia, a alegação de ter sido “alheia a qualquer penalização aplicada à Recorrida por parte de um terceiro.” 3 – Incumprimento e caducidade Quanto ao ter recebido “sem reserva todas as mercadorias” é matéria que não consta dos factos provados. Porém, e de qualquer modo, não se pôs em causa qualquer incumprimento definitivo mas um retardamento da prestação não podendo considerar-se caducidade para reclamar indemnização. Nesta parte, bem julgou a Relação quando entendeu que os artigos 916.º e 917.º do Código Civil têm o seu âmbito de aplicação limitado à venda de coisas defeituosas, o que não é o caso vertente. Na realidade aqueles preceitos reportam-se à denúncia do vício ou da falta de qualidade da coisa e destinam-se a, nestes casos, disciplinar no tempo a faculdade de exercício desse direito ou, no caso de erro, pedir a anulação do contrato. De todo o modo, e ainda que academicamente assim não fosse entendido, os fornecimentos ocorreram em 2006 (cfr. a factura n.º 158, datada de 26 de Setembro de 2006 e a factura n.º 194, datada de 11 de Novembro de 2006, sendo que, mesmo os mais antigos, são de Junho desse ano), e , em 28 de Fevereiro de 2007, aquando da apresentação da nota de débito referente a atrasos, a Ré apresentou à Autora todo o montante das penalizações, com discriminação por factura, no total de 9754,47 (fls. 190 e 190). Esta factualidade consta do Acórdão recorrido e por ele foi aceite como verificada. Assim a reclamação sempre teria sido feita no prazo dos oito dias seguintes ao conhecimento do montante da indemnização que tinha de pagar à empresa a que se destinavam os materiais fornecidos pela Autora. Não resulta provado que a Ré, antes de receber a nota de débito, soubesse que teria de indemnizar pela entrega da mercadoria fora do prazo e que, em consequência, pudesse exigir à Autora o “quantum” correspondente. Não haveria pois – e ainda que se entendessem extensíveis os preceitos referentes à venda de coisas defeituosas – caducidade. 4 – Abuso de direito “In cauda”, a Recorrente imputa à Recorrida “um comportamento clamorosamente ofensivo da boa fé” o que integraria abuso de direito. Ainda, e também, sem razão. Não há, nem a Recorrente o demonstra, sequer, indícios de que a Recorrida tenha exercido o seu direito de forma ilegítima por, manifestamente, exceder a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico (artigo 334.º do Código Civil). Tal como resulta do seu “nomen juris”, a figura pressupõe a existência de um direito radicado na esfera do titular, direito que, contudo, é exercido por forma ilegítima por exceder manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico (artigo 334.º do Código Civil). Quer o preceito vigente (com redacção idêntica à do artigo 334.º do Anteprojecto do Código Civil [2ª revisão ministerial], quer a primeira proposta – artigo 297.º - 1ª revisão ministerial – “O exercício de um direito (…) através de factos que contrariem os princípios éticos fundamentais do sistema jurídico (…)”) têm ínsito o “qui jure sua utitur”, ou seja, que o abusador surja titular de um direito subjectivo, ou de parte dele. E, então, ou o utiliza lícitamente – dentro dos limites do direito objectivo – ou ultrapassa limites que a ética, a boa fé e o fim social não toleram. Assim, são os casos de “venire contra factum proprium”, em que o exercício contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo agente (cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2007 – 07 A1180, desta Conferência e de 30 de Março de 2006 – P.º 3921/05, 4.ª). Aí, o ponto de partida é uma anterior conduta de um sujeito jurídico que “objectivamente considerada é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira.” (cf. Prof. Baptista Machado, apud “Obra Dispersa”, 1, 415 e ss). A conduta pregressa terá criado na contraparte uma situação de confiança com base na qual esta tenha tomado disposições ou organizado planos que, gorados, lhe causarão danos. Tem ínsita a ideia de “dolus praesens”, a trair um investimento de confiança feito pela outra parte, originado por dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. (cf. o Prof. Menezes Cordeiro, “o primeiro – o ‘factum proprium’ – é, porém, contrariado pelo segundo”, apud, “Da Boa Fé no Direito Civil”, 45; e ROA – 58, 1998, 964). A outra modalidade de abuso de direito consiste na criação de situações de desequilíbrio, “genus” que tem como “species” o exercício danoso inútil, a actuação dolosa e a grave desproporção entre o exercício do titular excrescente e o sacrifício por ele imposto a outrem. (Acórdão n.º 4852/06 – 2TBAVR.L1.S1) Ora, nenhuma destas modalidades surge presente. 5 – Conclusões É tempo de concluir que: a) Tal como prevê o artigo 847.º do Código Civil, a compensação é uma forma de extinção das obrigações quando os obrigados são simultaneamente credor e devedor, operando-se o que, em linguagem coloquial, se apoda de “encontro de contas”. b) Então o compensante, se demandado (ou interpelado) para cumprir exonera-se do seu débito através da realização do seu crédito, na mesma lide. c) A compensação legal ali prevista não é automática mas sempre potestativa, por depender de uma declaração de vontade, ou pedido, do titular do crédito secundário. d) Esse pedido surge pela via da reconvenção se o crédito do demandado for superior ao do demandante mas sê-lo-á por excepção peremptória se o contra- crédito for de montante inferior ao pedido. e) São pressupostos da compensação legal a validade do crédito principal e uma reciprocidade creditícia. f) São requisitos do instituto a exigibilidade, em sentido forte (não mera expectativa, nem resultante de obrigação natural), do contra crédito, a sua titularidade pelo compensante e a homogeneidade dos créditos, sendo irrelevante a sua iliquidez. g) Impedem a extinção por compensação, os créditos do Estado (ou outra pessoa colectiva de direito público) salvo excepção legal, a sua impenhorabilidade e a proveniência de factos ilícitos dolosos (neste dois últimos casos excepto se ambos o forem). h) Para esse efeito, o facto ilícito tanto pode ser gerado no âmbito da responsabilidade contratual como no da responsabilidade aquiliana. i) O juízo de causalidade, numa perspectiva meramente naturalística de apuramento da relação causa-efeito, insere-se no plano puramente factual insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e com as ressalvas dos artigos 729.º, n.º 1 e 722.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. j) Assente esse nexo naturalístico, o Supremo Tribunal de Justiça só pode verificar da existência de nexo de causalidade, que se prende com a interpretação e aplicação do artigo 563.º do Código Civil. k) O artigo 563.º do Código Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias. l) De acordo com essa doutrina, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis. m) O disposto nos artigos 916.º e 917.º do Código Civil é aplicável apenas à venda de coisas defeituosas, que não à denúncia de danos causados pela mora no cumprimento de contratos de compra e venda. n) O abuso de direito, que dispensa o “animus nocendi” tem por base a existência de um direito subjectivo na esfera jurídica do agente, já que tem como principal escopo impedir que a estrita aplicação da lei conduza a notória ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, comportando duas modalidades: “venire contra factum proprium” e situações de desequilíbrio, como sejam o exercício danoso inútil, a actuação dolosa e a desproporção grave entre o exercício do e o sacrifício por ele imposto a outrem. Assim, acordam negar a revista. Custas pela Recorrente. Supremo Tribunal de Justiça, 11 de Janeiro de 2011 |