Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | SILVA GONÇALVES | ||
Descritores: | HERANÇA PUBLICIDADE TERCEIROS MEAÇÃO QUINHÃO HEREDITÁRIO COMUNHÃO HEREDITÁRIA ART.º 877.º DO C.CIVIL | ||
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Data do Acordão: | 02/09/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
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Sumário : | 1. A transmissão do direito à meação e bem assim do direito ao quinhão hereditário fazem operar a passagem para a esfera jurídica dos compradores o conteúdo de um direito abstractamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência também se patenteiam inseguras. 2. O que aos adquirentes destes direitos fica atribuída é a possibilidade de poderem exercer naquela universalidade jurídica um seu direito próprio perante os restantes interessados no "direito à meação” e no “quinhão hereditário”, designadamente legitimando-os a, com vista a concretizar esta sua prerrogativa, se e quando assim o entenderem, darem os passos necessários tendentes a haver para si a quota-parte dos bens determinados que integram tal herança. 3. Enquanto se não constatar a efectiva titularidade de algum (ou alguns) bem concreto que constitui tal universalidade jurídica, os protegidos com esta venda não desfrutam do atinente direito sobre certo e determinado bem. 4. Na proibição estabelecida no art.º 877.º do C.Civil procura-se evitar uma simulação, difícil de provar, em prejuízo das legítimas dos descendentes. 5. Este detetado perigo de simulação nunca poderá envolver o enteado que, porque não é herdeiro legitimário da madrasta, se não deverá recear que nesta transação possa ser avantajado em relação aos seus diretos descendentes.
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA, viúvo, residente no ..............., em A-dos-Cunhados, Torres Vedras, intentou acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra BB, viúva, residente no lugar de ..............., em A-dos-Cunhados, Torres Vedras; CC, solteira, maior, residente na Rua ..........., n.º ........., em A-dos-Cunhados; DD, solteira, maior, residente na morada da anterior; e EE e mulher FF casados sob o regime da comunhão de adquiridos e residentes, também eles, na mesma Rua ..........., n.º .... em A-dos-Cunhados, pedindo: a) seja reconhecido e declarado o seu direito de propriedade sobre os direitos transmitidos pela 1.ª R., traduzidos na meação e quinhão hereditário desta na herança aberta por óbito de EE; b) seja declarada nula a venda realizada pela 1.ª R. às 2.ª e 3.ª RR; c) seja declarado nulo o registo de aquisição/transmissão a favor das 2.ª e 3.ª RR, a que corresponde a inscrição G-2 no único prédio da herança descrito na Conservatória do Registo Predial; d) sejam os RR. condenados a indemnizar o A. na quantia que se vier a liquidar em execução de sentença. Alegou para tanto, e em síntese, que por escritura pública outorgada no dia 22 de Abril de 1993, no 1.º Cartório Notarial de Torres Vedras, a 1.ª R. vendeu ao A. o «direito à meação que possuía nos bens comuns do dissolvido casal por óbito de seu marido EE, com quem fora casada segundo o regime da comunhão geral de bens em segundas núpcias dele, primeiras dela (...) e, bem assim, o direito ao quinhão hereditário que possui na herança aberta por seu óbito, traduzido este no direito indiviso da mesma». Que a transmissão do referido quinhão foi a forma encontrada pela cedente para proceder ao pagamento ao A. e seu falecido filho, GG, da quantia de 2.209.209$90, por estes entregue ao Ministério da Agricultura para liquidação de uma dívida do referido EE, o que foi do conhecimento dos aqui 4.ºs RR., filho e nora da R. BB. Não obstante, o A. tomou conhecimento que a 1.ª R. celebrou uma segunda escritura, outorgada em 2006.02.06, nos termos do qual vendia o aludido quinhão hereditário na herança do falecido EE a suas netas, as aqui RR. CC e DD, sendo tal venda a non domino nula, nos termos do preceituado no artigo 892.º CC, sendo certo ainda que às demandadas adquirentes deve ser negada qualquer protecção reservada aos terceiros de boa fé, posto que à data da outorga da escritura detinham já conhecimento da anterior venda a favor do demandante. Contestaram os RR., tendo a 1.ª R. declarado desconhecer o conteúdo da aludida escritura de venda, junta pelo A., que não assinou nem subscreveu. Mais impugnou a existência de um qualquer acordo verbal nos termos do qual se tivesse obrigado a ceder a sua meação e quinhão na herança aberta por óbito de seu marido como contrapartida do pagamento pelo seu enteado e aqui A. de dívidas do de cujus. Afirmou a 1.ª R. ter tido conhecimento da pendência de acção executiva instaurada pelo Ministério da Agricultura contra o seu falecido marido, sendo todavia a quantia exequenda de apenas 739.000$00, dívida na altura assumida pelo filho do A., GG, que à época amanhava alguns imóveis da herança, tendo ficado acordado que seria compensado aquando da realização das partilhas, uma vez que detinha também a qualidade de herdeiro em representação de sua mãe, CC, também falecida. Reiterando não ter tido intervenção na invocada escritura, alegou por último a 1.ª R. que na mesma interveio como testemunha II, na verdade parte interessada, por ser a mãe de JJ, companheira de GG e mãe dos seus filhos, sendo este, por seu turno, filho do A.. Alegaram ainda que, tratando-se de cessão ou venda de quinhão hereditário a favor de enteado, estamos perante situação equiparada à prevista no artigo 877.º CC, a desencadear o regime aqui consagrado, sendo o negócio anulável, conforme estatuído no n.º 2 do preceito, sendo certo que os demais RR. dele não tiveram qualquer conhecimento até terem sido interpelados por carta que lhes foi enviada pela Ex.ma Mandatária do A. em Agosto de 2007. Concluem pela improcedência da acção, devendo antes ser reconhecido e declarado o direito das 2.ª e 3.ª RR. sobre os direitos transmitidos pela 1.ª R. e, consequentemente, válidos o negócio celebrado e registo subsequente, pretensão que formulam em via reconvencional. Ainda nesta sede pedem seja declarada a nulidade da cessão onerosa de quinhão hereditário celebrada entre a 1.ª R. e o aqui A. nos termos do disposto no artigo 892.º CC, ou, quando assim se não entenda, deve ser declarada a anulabilidade por interpretação extensiva do artigo 877.º, devendo o A. reconvindo ser ainda condenado no pagamento da quantia de € 4.000,00, acrescida de IVA, montante que os demandados terão que pagar à mandatária que os patrocina, gasto a que não seriam obrigados não fora a conduta do demandante. Replicou o A., pugnando pela improcedência da reconvenção. Por ter falecido na pendência da acção a R. BB, foi julgado habilitado para com eles prosseguirem os termos da causa o seu herdeiro e também R.EE. Dispensada a realização da audiência preliminar, foi admitido o pedido reconvencional e relegado para final o conhecimento das excepções aduzidas pelos RR., prosseguindo os autos com a fixação da matéria de facto relevante. Procedeu-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença nos seguintes termos: Em face a todo o exposto, julgo a presente acção procedente, por provada, nos termos explanados e, em consequência: - declaro a nulidade e ineficácia em relação ao A. da cedência efectuada pela R. BB, entretanto habilitada, às demandadas CC e DD tendo por objecto os direitos à meação e quinhão hereditário de que a cedente era titular na herança aberta por óbito de EE, negócio formalizado por escritura pública outorgada em 6 de Fevereiro de 2006 no Cartório Notarial de Torres Vedras da Lic.ª KK, e declaro que o A. AA é o titular dos referidos direitos; - determino, em conformidade, o cancelamento da inscrição G-2 ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.° 0000000000000 da freguesia de A-dos-Cunhados [prédio misto denominado Casal ..............., composto da casa de habitação e logradouro, vinha, terreno estéril e diversas árvores, com a área de 12 560 m², a confrontar do norte com LL, sul com LL e outro, nascente NN outro, poente EE, inscrito na matriz sob os art.°s 203 e 24 da secção B]; - mais condeno os RR. a procederem ao pagamento ao A., a título de indemnização, da quantia que se vier a liquidar corresponder aos gastos por este suportados com a propositura da presente acção, incluindo os honorários à Il. Advogada que os patrocina. - Julgo a reconvenção totalmente improcedente, absolvendo o A. AA dos pedidos contra ele formulados. Inconformados com esta decisão, dela recorreram os réus para a Relação de Lisboa que, por Acórdão de 26.05.2011 (cfr. fls.n391 a 429), julgando a apelação improcedente, confirmou a decisão recorrida, ainda que com fundamentos diversos, com a rectificação de que no ponto 3.1. onde se diz «declaro a nulidade e ineficácia relativamente ao autor», deve passar a constar «declaro a ineficácia relativamente ao autor». Novamente inconformados, recorreram para este Supremo Tribunal os réus BB e Outros, apresentando as seguintes conclusões: 1- O douto acórdão proferido nos autos em referência veio julgar a apelação improcedente, confirmar a decisão recorrida nos autos, ainda que com fundamentos diversos, e designadamente "declarar a nulidade e ineficácia em relação ao autor da cedência efectuada pela ré BB, entretanto habilitada, às demandadas CC e DD tendo por objecto os direitos à meação e quinhão hereditário de que a cedente era titular na herança aberta por óbito de EE, negócio formalizado por escritura pública outorgada em 6 de Fevereiro de 2006 no Cartório Notarial de Torres Vedras da Lic. KK, e declarando que o autor AA é o titular dos referidos direitos; mais determinou o cancelamento da inscrição G-2 ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º 00000000000 da freguesia de A-dos-Cunhados, inscrito na matriz sob o artigo urbano 203 e rústico 24 da secção B”. 2- No caso vertente, consideram os apelantes que, perante a matéria de facto dada como provada, não foi correctamente aplicado o Direito e designadamente foram violados o disposto nos artigos 2.º n.º l alínea a), 7.º e 5.º n.º 2 do Código de Registo Predial. 3- Entendem os apelantes que, não resultando provado o conhecimento dos RR BB , EE, CC e DD da l.ª escritura de cessão de meação e quinhão hereditário da l.ª Ré BB ao A. outorgada em 1993, não pode ser anulada ou declarada nula a 2.ª escritura de cessão de meação e quinhão hereditário da l.ª Ré à 2.ª e 3.ª Rés CC e DD nem cancelado o registo de aquisição a favor destas últimas que se assumem, nesta qualidade, terceiras de boa fé, beneficiando do princípio da boa fé registral, conforme estipula o disposto no artigo 7.º do Código de Registo Predial sendo pois a 2.ª escritura de cessão de meação e quinhão hereditário perfeitamente válida e sendo o seu direito oponível a quaisquer terceiros conforme o entende a jurisprudência portuguesa. 4- E que, tratando-se de cessão ou venda de quinhão hereditário a favor de enteado, estamos perante situação equiparada à prevista no artigo 877.º CC, a desencadear o regime aqui consagrado, sendo o negócio anulável, conforme estatuído no n.º 2 do preceito, sendo certo que os demais RR. dele não tiveram qualquer conhecimento até terem sido interpelados por carta que lhes foi enviada pela Ex.ma Mandatária do A. em Agosto de 2007. 5- Deve ainda ser declarada a nulidade da cessão onerosa de quinhão hereditário celebrada entre a l.ª R. e o aqui A. nos termos do disposto no artigo 892.º CC, ou, quando assim se não entenda, deve ser declarada a anulabilidade por interpretação extensiva do artigo 877.º. 6- A l.ª Ré cedeu à 2.ª e 3.ª RR a sua meação e quinhão hereditário conforme escritura junta e alínea G) da matéria assente e as quais registaram esses direitos de aquisição a seu favor na competente Conservatória do Registo Predial. 7- Pelo menos em relação ao imóvel identificado em G), as RR cessionárias, tendo adquirido da titular inscrita, lograram inscrever registalmente a seu favor a aquisição dos aludidos direitos, assim beneficiando da presunção consagrada no artigo 7.º do Código do Registo Predial. 8- O artigo l.º do Código do Registo Predial estipula que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, tratando-se esta de uma presunção iuris tantum decorrente dos artigos 349.º e ss. do Código Civil, elidível por prova em contrário. 9- No caso dos autos encontrando-se o prédio registado em nome das RR. CC e DD conforme alínea E) da matéria assente presume-se que o direito destas existe e que lhes pertence na medida em que se encontra registado, garantindo por esta via a segurança daquelas que, tendo adquirido do titular inscrito, registou o seu direito, sendo-lhe assim inoponível, nos termos do n.º l do mesmo diploma, o facto aquisitivo não levado a registo. 10- O mesmo é dizer-se que o direito registado das RR CC e DD é oponível aos eventuais direitos adquiridos pelo A. na 1.ª escritura de cessão de meação e quinhão hereditário. 11- Se o imóvel/direitos em apreço se encontra inscrito no registo predial a favor dos RR, ora recorrentes, existe a favor destes uma presunção da respectiva titularidade, presunção essa que, porque meramente relativa ou juris tantum, sempre poderia ser ilidida por prova em contrário, a cargo do A., quiçá excepcionando com a invocação da prescrição aquisitiva (usucapião); ilisão essa da presunção de titularidade do direito de propriedade sobre o prédio descrito em E), que não foi feita, e daí que haja que presumir que os RR CC e DD são efectivamente titulares do direito de propriedade sobre o dito prédio rústico (art.º 344.º, n.º l do CC). 12- Por outro lado, a título formal para a transmissão do direito às RR CC e DD foi uma escritura pública, em estrita conformidade legal, como prescrevem as normas do Código do Notariado. 13- Por efeito da 2.ª escritura de cessão e quinhão hereditário conforme matéria assenta na alínea G) a 2.ª e 3.ª RR adquiriram os direitos da 1.ª Ré ao quinhão hereditário e meação que ficaram por óbito daquele EE. 14- Direitos esses que foram adquiridos pelas 2.ª e 3.ª RR de boa fé, porquanto, à data da outorga da referida escritura, desconheciam em absoluto a cessão onerosa de quinhão hereditário agora invocado pelo A. 15- E sendo que os 4.º RR autorizaram, nos termos do disposto no artigo 877.º do Código Civil, a referida cessão, desconhecendo também eles que, àquela data da outorga da referida escritura, existia a cessão onerosa de quinhão hereditário agora invocado pelo A. 16- Tendo as 2.ª e 3.ª R. registado os seus direitos conforme descrição da Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras conforme matéria assente - alínea E). 17- Pelo que, decorrente do princípio da fé pública registral explanado no artigo 7.º do Código do Registo Predial, que estipula que "o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define". Era a 1.ª Ré titular de um direito à meação e quinhão hereditário, o qual transmitiu de forma onerosa às 2.ª e 3.ª RR, de forma válida e eficaz porque através de escritura pública validamente outorgada. 18- Pelo que são, a 2.ª e 3.ª RR, adquirentes de boa fé - porque à data da outorga da sua escritura de cessão de quinhão hereditário não conheciam nem tinham obrigação de conhecer a, invocada pelo A., cessão de quinhão hereditário sendo os actuais titulares desse direito à meação e quinhão hereditário. 19- Direitos esses que, de acordo com o artigo 5.º do Código de Registo Predial, são oponíveis a quaisquer terceiros após a data do respectivo registo. 20- Entendendo-se como "terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado posteriormente" (vide Ac. STJ de 20 de Maio de 1997). 21- O que aconteceria caso se considerasse válida a cessão de quinhão hereditário invocado pelo A., o que não se admite porquanto também esta escritura, como se referiu não consta qualquer autorização do 4.º réu e da mulher para a referida cessão devendo esta ter sido dada pois, tratando-se de uma suposta cessão ou venda de bens a enteado deveria esta situação ser equiparada ao regime do disposto no artigo 877.º do Código Civil, sendo portanto a referida cessão anulável nos termos do seu n.º 2. 22- Devendo esta autorização ou consentimento dos 4.º RR ter sido dada pois estes são filho e nora da 1.ª Ré sendo que qualquer venda da 1.ª Ré, mãe e sogra dos 4.º RR, sempre implicam um eventual prejuízo para os 4.º RR que não intervieram na escritura e isto por interpretação extensiva do disposto no artigo 877.º do Código Civil (nesse sentido vide Ac. STJ de 27-11-2007 no processo 07B3618 disponível em www.dgsi.pt) 23- Sendo que o ora 4.º réu esteve ausente do país desde 27 de Outubro de 1991 a 20 de Março de 2000 e, durante esse período, nunca veio a Portugal tal como resultou provado no quesito 9.º da base instrutória. 24- É o A. quem causa prejuízos aos RR com apresente acção pois, para além do aborrecimento que a presente acção causa aos RR, estes são obrigados a contratar os serviços de um profissional forense para apresentarem defesa às acusações e factos deduzidos e cujo valor de honorários se computam em 4000€ acrescidos de Imposto Sobre o Valor Acrescentado bem como a pagar taxas de justiça e custas, valor cujo pagamento reclama do A.. 25- Considerou pois o Tribunal da Relação de Lisboa no seu douto acórdão que a prova produzida em audiência na l.ª Instância foi pouco abundante e, analisando a prova produzida e as alegações de impugnação da matéria de facto apresentadas pelos recorrentes decidiu alterar a resposta aos quesitos l.º e 2.º concluindo pois que: a R. BB, nora da l.ª Ré BB, não tinha qualquer conhecimento da celebração l.ª escritura pública mencionada ou do acordo subjacente à celebração da primeira escritura, nem o seu marido e filho da l.ª R.EE, ora 4.º RR, nem nessa ocasião nem posteriormente às 2.ª e 3.ª RR. (CC e DD) tinham qualquer conhecimento destes factos pelo que as 2.ª e 3.ª RR, quando outorgaram escritura de cessão da meação e quinhão hereditário com a l.ª Ré encontravam-se de boa fé e, tendo inscrito a seu favor esse direito no registo predial gozam da presunção da boa fé registral com todas as consequências legais daí advenientes. 26- Contudo, veio o Tribunal da Relação de Lisboa concluir que, do facto da 2.ª e 3.ª Ré estarem de boa fé tal não resulta que a aquisição pelas 2.ª e 3.ª RR. do direito em causa seja oponível ao apelado e isto essencialmente porque o objecto do negócio em causa foi o direito à meação e ao quinhão hereditário da l.ª R., e não qualquer imóvel, concluindo que carece de fundamento a afirmação, em que assentou a decisão recorrida, de que, «pelo menos no que respeita ao imóvel identificado em G), as RR cessionárias, tendo adquirido ao titular inscrita, lograram inscrever registalmente a seu favor a aquisição dos aludidos direitos, assim beneficiando da presunção consagrada no art.º 7.º do CRP». 27- Porquanto uma situação é o registo de aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito a favor de TODOS os herdeiros…e outra é o registo de aquisição do direito à meação e quinhão hereditário das ora 2.ª e 3.ª RR. Efectivamente são dois registos distintos, com eficácia legal distinta e consequências distintas. 28- O registo de aquisição em comum e sem determinação de parte a favor de TODOS os herdeiros é sim um registo anómalo do qual não podem derivar as consequências inerentes ao registo, designadamente a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define (artigo 7.º CRP), e a prioridade do direito inscrito em primeiro lugar (artigo 6.º CRP). Este registo é a favor de todos os herdeiros e trata uma universalidade de direito como bem retrata o acórdão da Relação de Lisboa. 29- Tal situação não pode contudo confundir-se com a situação registral das ora 2.ª e 3.ª RR - estas registaram a aquisição do seu direito à meação e quinhão hereditário no bem que vier a preencher o quinhão dos cedentes» e que poderá vir a ser o imóvel no qual registaram o seu direito. Tal imóvel faz parte da meação e acervo hereditário da cedente pelo que integrará a sua meação e quinhão hereditário em concreto. As 2.ª e 3.ª RR pretendem com o seu registo de aquisição acautelar o seu direito NAQUELE PRÉDIO em especifico e, nessa consequência, ficar abrangidas pela protecção registral do artigo l.º e artigo 5.º do Código de Registo Predial. 30- O registo predial, nos termos do n.º l CRP, destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário e a promover a segurança jurídica nas transacções comerciais e que envolvam imóveis ou direitos a eles referentes. 31- E tanto mais assim é que a aquisição de direitos sobre imóveis é facto obrigatório sujeito a registo bem como o é a cessão de meação e de quinhão hereditário nos termos do disposto no artigo 2.º do Código de Registo Predial. 32- Sendo certo que essa obrigatoriedade da cessão de meação e de quinhão hereditário era, ao tempo em que foi celebrada na data de 2006, obrigatória ser outorgada por escritura pública nos termos do Código do Notariado. 33- Pelo que tal obrigatoriedade destina-se, no essencial, a que não existam sobre um mesmo facto, direitos incompatíveis sendo pois aplicável neste âmbito o disposto no artigo 5.º do Código de Registo Predial. 34- O registo predial não obriga ao registo de apenas imóveis ou bens concretos. A presunção do artigo 7.º do Código de registo Predial menciona "presunção de que o DIREITO existe e pertence ao titular inscrito." Com isto quer a lei dizer que os direitos também se registam como é aliás o caso dos autos. 35- O instituto quer da meação, quer do quinhão hereditário constituem patrimónios autónomos, com personalidade jurídica própria, permitindo a celebração de quaisquer negócios jurídico sejam de compra e venda, sejam de doação, ou quaisquer outros. São livremente transmissíveis e negociáveis. 36- O seu registo a favor de quem o invoca permite a celebração de tais negócios jurídicos com a maior segurança jurídica possível porquanto se o direito se encontra registado tal significa que o direito existe e pertence ao titular inscrito que o pode livremente alienar. No caso da cessão ou do quinhão hereditário um direito que futuramente se concretizará naquele imóvel ou em qualquer outro mas que pelo menos está protegido pela ordem jurídica. 37- Não é pois possível e exigível, na nossa ordem jurídica, que um terceiro, pretendendo celebrar negócio translativo sobre o direito de aquisição de um imóvel que pertence ao património de um dissolvido casal ou de uma herança não goze do mínimo de protecção jurídica com o registo de aquisição a seu favor se vier efectivamente a concretizar tal negócio. 38-Tal constituía uma subversão total das regras do registo predial, não apenas da presunção registral bem como da regra da prioridade do registo. Significaria que uma mesma pessoa, relativamente a um direito que detém sobre um imóvel, o pudesse vender 20 vezes porque o registo de aquisição de nada vale. Para quê então registar? Para quê praticar actos inúteis? Não é decerto essa a ideia do legislador e da justiça portuguesa. 39- No caso vertente as 2.ª e 3.ª RR outorgaram escritura notarial conforme consta dos factos dados como provados, no qual foram pagos os encargos fiscais e imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis de acordo com o disposto no Código do Imposto Municipal sobre as transmissões. O negócio é fiscalmente tributável sendo a taxa incidente sobre o valor patrimonial dos móveis e imóveis que constituem a herança. 40- E também no caso vertente as 2.ª e 3.ª RR procederam à inscrição registral, de pelo menos um dos prédios da herança (alínea G) da matéria assente) de forma a ver acautelados os seus direitos sobre aquele imóveis que fazia parte de uma herança ilíquida e indivisa. 41- Criaram pois as 2.ª e 3.ª RR legítimas expectativas de que o seu direito se encontrava assegurado de acordo com a lei portuguesa. Vir agora o Tribunal da relação de Lisboa classificar o registo de cessão e quinhão hereditário como registo anómalo e não oponível ao A. é desvirtuar o sentido da lei e frustrar expectativas legítimas de terceiros. (a ora aqui 2.ª e 3.ª RR.) 42- Como garantir a terceiros de boa fé que os actos de transmissão onerosa de direitos à meação e quinhão hereditário são seguros mesmo quando registados se não se aplica nestes casos o disposto no artigo 5.º n.º 2 do Código de Registo Predial? Existe lacuna na lei? 43- Daqui resulta um prejuízo para a estabilidade da ordem jurídica portuguesa que se pretendeu evitar com a implementação desse regime e do disposto no artigo 7.º do Código de Registo Predial. 44- Porquanto o facto é que o A. invocam ser titular de um direito ou interesse completamente incompatível com o declarado pelas 2.ª e 3.ª RR no registo predial e público. Pretende o Tribunal da Relação de Lisboa desfavorecer as 2.ª e 3.ª RR, titulares inscritas do direito à cessão e quinhão hereditário da cedente naquele imóvel a favor do A. que não registou qualquer direito? Como solucionar esta questão sem lesar os direitos e interesses da 2.ª e 3.ª RR? 45- Também aqui as apelantes recorrem ao acórdão - processo n.º 23/2000.PI.SI, 6.ª secção do Supremo tribunal de Lisboa dando-lhe outra interpretação pois se "a cessão de quinhão hereditário não implica a cessão de bens determinados, nomeadamente imóveis, que integrem a herança, apenas originando o direito à aquisição desses bens se vierem a preencher o quinhão dos cedentes." 46- Tal significa que, apesar de na cessão de meação e quinhão hereditário não estarmos perante um bem determinado tal contudo não significa que estejamos, em relação a um determinado bem imóvel totalmente desligado dele. Bem pelo contrário, tal significa que é transmitido um direito à aquisição desse bem imóvel se este vier a preencher o quinhão hereditário dos cedentes. E foi apenas esta a situação que as 2.ª e 3.ª RR pretenderam acautelar a esta situação se aplicando também o instituto da meação: - tendo outorgado escritura pública de cessão de meação e quinhão hereditário requereram as 2.ª e 3.ª RR o registo a seu favor, dessa mesma cessão, na competente conservatória do registo predial, acautelando por esta via que, caso o imóvel em cujo registo inscreveram o seu direito, viesse a integrar ou preencher a meação e quinhão hereditário da cedente, seria de imediato transmitido às cessionárias. 47- A presunção do artigo 7.º do Código de Registo Predial destina-se no caso a fazer publicidade dessa situação por forma a que mais nenhum terceiro venha reclamar esse mesmo direito e portanto incompatíveis com o direito registado da 1.º e 3.º RR. 48- Andou pois mal o Tribunal da Relação de Lisboa ao classificar o registo da cessão do direito à meação e quinhão hereditário como "registo anómalo" porquanto tratando-se de um registo que de alguma forma afecta a livre disposição sobre bens e sobre direitos de propriedade é de registo obrigatório nos termos do disposto no artigo 2.º n.ºs l alínea a) e n) seguindo neste âmbito todas as normas do registo predial inclusive o disposto no artigo 7.º e artigo 5.º todos do Código de Registo Predial. 49- Neste sentido deveria a sentença recorrida ter sido alterada e: F) Ser reconhecido e declarado o direito de propriedade das 2.ª e 3.ª RR sobre os direitos transmitidos pela 1.ª R, traduzidos na meação e quinhão hereditário por óbito de EE; G) Deve ser reconhecida válida a venda realizada pela 1.ª R às 2.ª e 3.ª RR, com os demais efeitos legais; H) Deve ser declarado válido o registo de aquisição/transmissão dos direitos da 1.ª R a favor das 2.ª e 3.ª RR, a que corresponde a inscrição G-2 no único prédio da herança descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º 0000 da freguesia de A-dos-Cunhados I) Deve ser declarada nula a cessão onerosa de quinhão hereditário celebrada entre a l.ª Ré e o A. pelos motivos invocados nos termos do disposto no artigo 892.º do Código Civil ou, em alternativa, a sua anulabilidade por interpretação extensiva do disposto no artigo 877.º do Código Civil; J) Deve o A. ser condenado a pagar aos RR. as despesas que estes tiverem com a presente acção judicial no montante de 4.000C acrescidos de Imposto sobre o Valor Acrescentado no valor de 840€ bem como a pagar taxas de justiça e custas e procuradoria legal. Contra-alegou o autor/recorrido AA pedindo a manutenção do julgado. Corridos os vistos legais cumpre decidir.
A- Por escritura pública celebrada perante si, a Notária OO consignou o seguinte: «No dia vinte e dois de Abril de mil novecentos e noventa e três, no primeiro cartório notarial de Torres Vedras, perante mim, M...(...) M....., notária respectiva, compareceram como outorgante: Primeiro: BB, viúva, natural da freguesia e concelho da Lourinhã e residente no lugar do ..............., freguesia de A-dos-Cunhados, deste concelho, contribuinte fiscal 00000000; Segundo: AA (...), contribuinte fiscal 0000000000. E pela primeira foi dito: Que pela presente escritura e pelo preço de um milhão e quinhentos mil escudos, que já recebeu do segundo, a este vende o seguinte: O direito à meação que possuía nos bens comuns do dissolvido casal, por óbito de seu marido, EE, com quem tinha sido casada sob o regime da comunhão geral, em segundas núpcias dele primeiras dela, (...) e bem assim o direito ao quinhão hereditário que possui na herança aberta por seu óbito, traduzido este no direito a ¼ indiviso da mesma (...) E pelo segundo foi dito: Que aceita a presente cessão nos termos exarados. (.. ) Exibiram os cartões de contribuintes fiscais. Verifiquei a identidade dos outorgantes por declaração dos abonadores António Sobreiro (...) e II (...). Esta escritura foi por mim lida e explicado o seu conteúdo (...) aos outorgantes, na presença simultânea de ambos e dos abonadores, não assinando a primeira por não o saber fazer, como declarou.» (alínea A). B- A primeira R. e o seu falecido marido EE, eram, à data da morte deste, os donos dos prédios urbanos inscritos na matriz sob os artigos 203.°, 1391.° e 1878.°, e dos prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos 24 da Secção "B" e 8 da Secção "B", todos da freguesia de A-dos-Cunhados, e ainda do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 9 da Secção "O", da freguesia de Campelos (alínea B). C- A 1.ª R. é madrasta do A., avó das 2.ª e 3.ª RR. e mãe do 4° R. marido (alínea C). D- O A. e o 4.º R. marido eram filhos do falecido EE (alínea D). E- A Relação considerou “não provado” o quesito 1.º e 2.º da base instrutória. F- A data da celebração da mesma escritura o R.EE encontrava-se ausente do país (resposta ao artigo 9.º da base instrutória). G- Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.° 000000000 da freguesia de A-dos-Cunhados o prédio misto denominado Casal ..............., composto de casa de habitação e logradouro, vinha, terreno estéril e diversas árvores, com a área de 12.560 m², a confrontar do norte com LL, sul com LL e outro, nascente NN e outro, poente EE, inscrito na matriz sob os artigos 203 e 24 da secção B (alínea E) e certidão de fls. 29-30). H- O prédio misto sito em Casal de ............... identificado na alínea anterior reúne os supra referidos prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 203.º e rústico inscrito na matriz sob o artigo 24.º, secção B, da mesma freguesia (alínea E). I- Por escritura pública datada de 06.02.2006, celebrada no Cartório Notarial de Torres outorgante e as 2.ª e 3.ª RR., enquanto segundas outorgantes e os 4.°s RR., enquanto 3.º s outorgantes, declararam o seguinte: «A primeira outorgante que pelo preço de sete mil e oitocentos euros, que declara já ter recebido, CEDE, em comunhão e partes iguais, às segundas outorgantes, suas únicas netas, o seguinte: "O direito à sua meação e o quinhão hereditário que possui na herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito do seu marido EE, com quem foi casada no regime de comunhão geral, que era natural da freguesia de Santa Maria do Castelo e São Miguel, deste concelho, residente que foi no dito lugar de ..............., freguesia de A-dos-Cunhados, falecido em vinte e nove de Janeiro de mil novecentos e noventa e um. Pelas segundas outorgantes foi dito que "aceitam esta venda nos termos exarados, prestando o consentimento recíproco a este acto, nos termos do número um do artigo 877.º do Código Civil. Pelos terceiros outorgantes foi dito que: "prestam a sua mãe e sogra, primeira outorgante, nos termos do dito artigo, o necessário consentimento à presente venda.» (alínea G). J- O prédio identificado em G) mostra-se inscrito, pela inscrição G-2 (Ap. 00000000000000 sem determinação de parte ou direito, a favor de BB, viúva, AA, viúvo, GG, casado com PP segundo o regime da comunhão geral, EE, casado com BB segundo o regime da comunhão de adquiridos, GG, solteiro, maior, e QQ, casado com SS segundo o regime da comunhão de adquiridos, por dissolução da comunhão conjugal e hereditária (alínea E) e certidão de fls. 29/30). K- Pela inscrição G-2 (Ap. 00000000) mostra-se averbado à descrição do mesmo prédio a transmissão dos direitos pertencentes a BB a favor de CC e DD por venda do quinhão hereditário (idem). L- Os restantes prédios urbanos e rústicos estão omissos na Conservatória (alínea F). M- A advogada do A. enviou carta registada datada de 27.08.2007 à primeira R. e esta recebeu, com o seguinte teor: «No seguimento da tentativa de contacto já efectuado com V. Exa. e na qualidade de mandatária de AA e filhos, sou a solicitar se digne marcar consulta com o n/ escritório, a fim de esclarecer a duplicação da venda do seu quinhão hereditário. Efectivamente, conforme tiveram agora os meus clientes conhecimento, V. certamente por lapso, realizou duas vendas do mesmo (seu) quinhão hereditário, sendo que efectuou a primeira ao meu cliente AA, já em 1993, e a segunda às suas netas, no ano que passou. (...)». (alínea H). N- Com a presente acção o A. teve despesas de custas processuais, despesas de registo da acção e de patrocínio (alínea I). ********************************* A questão essencial posta no recurso é a de saber se as 2.ª e 3.ª rés/apelantes gozam da proteção registal conferida aos adquirentes de boa fé pelo estatuído no n.º 4 do art.º 5.º do C.R.Predial. Conotada com esta, o recurso envolve também a problemática de saber se o disposto no art.º 877.º do C.Civil se aplica igualmente à proibição da venda da madrasta (1.ª ré) ao seu enteado (autor). *********************************** I. A complexidade e a delicadeza que acompanham a constituição, a transferência e a extinção dos direitos reais, tornam necessárias medidas destinadas a dar-lhes publicidade, para que possam ser conhecidos ou cognoscíveis por todos aqueles que nisso estejam interessados. Em termos gerais podemos distinguir a publicidade espontânea - a que resulta do mero funcionamento social do direito real, nos termos da qual os membros da sociedade tomam naturalmente conhecimento da situação jurídica em causa - da publicidade racionalizada, também designada de publicidade registal - a que deriva da intenção deliberada de dar a conhecer ao público determinada situação jurídica, sendo, normalmente, instituída ou imposta pelo Estado (Menezes Cordeiro; Direitos Reais; II Volume.; pág. 364) - o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (art.º 1.º do C.R.P.). Ambos estes modos de divulgação têm assentimento no enquadramento geral da publicidade dos direitos reais, anotando-se que é o direito registal que, por ser emanação de uma tarefa estatal que tem por objectivo fixar os contornos dos direitos incidentes sobre bens imóveis, melhor trata desta problemática jurídico-positiva. II. Tem vindo a ser objecto de divergência jurisprudencial a questão de saber o que deve entender-se por "terceiros" para os efeitos do disposto no art.º 5.º do C.R.Predial, havendo a destacar duas correntes sobre esta problemática: Um conceito amplo - terceiro é aquele que tem a seu favor um direito que não pode ser afectado pela produção dos efeitos de um acto que não no registo e que com ele seja incompatível; Um conceito restrito - é terceiro apenas o adquirente de direito incompatível sobre a mesma coisa de um mesmo autor comum. A eficácia da transmissão da titularidade do direito de propriedade verificada em consequência de um acto dele justificativo tem de ser aferida, não só no plano interno (entre alienante e tomador), mas também num plano exterior (em relação a terceiros), neste último caso havendo de se tomar em consideração os princípios que dimanam do registo predial ("prior in tempore, potior in jus"). Porque a aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo - art.º 2.º, n.º 1, al. a) do C. R. Predial - e os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo (art.º 5.º do C. R. Predial), segue-se que a eficácia do acto translativo do direito de propriedade atinente a bens imóveis, para atingir o plano externo (em relação a terceiros), só a partir do registo se concretizará pois que, enquanto tal não acontecer, a sua eficácia apenas produz os seus efeitos no plano interno (entre alienante e tomador). Tomando posição pelo conceito amplo de terceiros "por só este ter em conta os fins do registo e a eficácia dos actos que devam ser registados, sendo tão digno de tutela aquele que adquire um direito com a intervenção do titular inscrito (compra e venda, troca, doação, etc.) como aquele a quem a lei permite obter um registo sobre o mesmo prédio sem essa intervenção (credor que regista uma penhora, hipoteca judicial, etc.)", assim decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão n.º 15/97, de 20.05.1997, publicado no D.R. n.º 152, de 04.07.1997, I Série - A, com vista a uniformizar jurisprudência: "Terceiros, para os efeitos do registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico não registado ou registado posteriormente". Foi, porém, de pouca dura a tutela dada pelo Supremo Tribunal de Justiça a esta corrente jurisprudencial que, por Acórdão n.º 03/99, de 10.07.199, destinado a uniformizar jurisprudência (in D.R. de 10.07.1999, I Série -A, n.º 259), revendo a doutrina do mencionado aresto de 20 de Maio de 1997, veio a consagrar o conceito restrito de terceiros para efeitos de registo predial: "terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”. Tendo como boa a doutrina expendida neste Acórdão uniformizar jurisprudência (n.º 03/99, de 10.07.199; in D.R. de 10.07.1999, I Série -A, n.º 259), o legislador veio assumi-la de forma autêntica, normativamente a adotando pelo Dec. Lei n.º533/99, de 11/12, na redação que deu ao estatuído no n.º 4 do art.º 5.º do C.R.Predial - terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, exigindo-se a sua observância por imposição do disposto no n.º 1 do art.º 13.º do C.Civil. III. Através da venda operada pelas escrituras públicas de 22.04.1993 e 06.02.2006 a BB transmitiu ao autor e às 2.º e 3.º rés, respectivamente, o “direito à meação que possuía nos bens comuns do dissolvido casal, por óbito de seu marido, EE, com quem tinha sido casada sob o regime da comunhão geral, em segundas núpcias dele primeiras dela, (...) e bem assim o direito ao quinhão hereditário que possui na herança aberta por seu óbito”. Reportando-nos a esta especificada alienação, aquilo que passou para a esfera jurídica dos compradores foi o conteúdo de um direito - a “meação” tem a mesma caracterização jurídica da herança - abstractamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência também se patenteiam inseguras - a herança é uma universalidade jurídica de bens, pelo que cada interessado não tem uma quota-parte em cada um de todos esses bens mas uma quota referida àquela universalidade, ao conjunto de todos os bens, só pela partilha se determinando aqueles em que se concretiza a quota-parte ou quinhão de cada interessado.[1] Neste enquadramento doutrinal o que ao demandante e 2.ª e 3.ª demandadas ficou atribuída foi a possibilidade de poderem exercer naquela universalidade jurídica um seu direito próprio perante os restantes interessados no "direito à meação” da transmitente BB e no quinhão hereditário que possui na herança, ilíquida e indivisa, aberta por óbito do seu marido EE, designadamente legitimou-os a, com vista a concretizar esta sua prerrogativa, se e quando assim o entenderem, darem os passos necessários tendentes a haver para si a quota-parte dos bens determinados que integram tal herança. Enquanto se não constatar a efectiva titularidade de algum (ou alguns) bem concreto que constitui o acervo da herança, os protegidos com esta venda não desfrutam do atinente direito sobre certo e determinado bem da herança. IV. A proteção que o n.º 4 do art.º 5.º do C.R.Predial concede a terceiros de boa fé, e aí pormenorizada, tem em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário e está inexoravelmente ligada ao regime das ocorrências impreterivelmente sujeitas a registo e restritivamente elencadas no art.º 2.º desse mesmo diploma. Ora, porque a quota hereditária e a meação não contêm qualquer direito sobre bens certos e determinados, designadamente imóveis componentes da herança, a sua alienação não está prevista na descrição posta no art.º 5.º do C.R.Predial. Convenhamos que “a comunhão hereditária, geralmente entendida como universalidade jurídica, não se confunde com a compropriedade (cfr. n.º1 do art. 1403.º), uma vez que os herdeiros não são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. Da aceitação sucessória apenas decorre directamente para cada um dos chamados o direito a uma quota hereditária. Os herdeiros são titulares apenas de um direito à herança, universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais esse direito ficará a pertencer, se só a alguns ou a um, sendo os demais compensados em tornas. Enquanto a herança se mantiver no estado de indivisão, nenhum dos herdeiros tem “direitos sobre bens certos e determinados”, nem “um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer sobre uma quota-parte em cada um deles “ - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-1-99; BMJ; 483-211. É que ”só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança. O registo facilitado pelo disposto no art.º 49.º do C.R.Predial,[2] porque constitui uma particularizada concessão destinada a poder fazer transmitir um direito sem infração ao princípio da legitimação descrito no art.º 9.º do C.R.Predial,[3] está de fora do regime de apoio dado a terceiros de boa fé nos termos daquela regra legal - o art. 49.º do C.R.Predial autoriza expressamente o registo de aquisição em comum e sem determinação de parte ou de direito nas condições que nele se explicitam. E isto, por seu turno, viabiliza a transmissão de direitos sobre imóvel assim registado na pendência da indivisão hereditária sem ofensa do princípio da legitimação estabelecido no art. 9.º do mesmo diploma (Acórdão do STJ de 26.6.2007;www.dgsi.pt). Deste modo e como proficientemente vem tratado este tema pela Relação, porque não há perfeita coincidência entre o direito inscrito (prédio misto denominado Casal ..............., sem determinação de parte ou direito, a favor de BB, viúva, AA e demais herdeiros) e o direito transmitido (a transmissão dos direitos pertencentes a BB a favor de CC e DD por venda do quinhão hereditário), segue-se que não podem os recorrentes invocar em seu proveito a inscrição registal do direito anteriormente adquirido pelo recorrido AA. Quer isto dizer que, tendo na devida conta que a segunda transmissão (da BB para a CC e DD) havia já sido concretizada para a esfera jurídica do autor AA por efeito de contrato anterior, consubstancia este acto a alienação de coisa alheia que, por força do estatuído nos artigos 939.º e 892.º, ambos do C. Civil, produz a sua nulidade e ineficácia em relação ao demandante. V. A primeira venda de que temos vindo a falar teve a outorgá-la a 1.ª ré BB e o autor, seu enteado (a 1.ª R. é madrasta do autor, avó das 2.ª e 3.ª rés. e mãe do 4° réu marido). Apontando contra esta alienação o disposto no art.º 877.º do C.Civil[4] e propondo também a sua aplicação ao caso por interpretação extensiva, os recorrentes argúem a anulabilidade de tal venda com o fundamento em que ela foi efetivada sem o acordo doEE, filho da vendedora. Não lhes assiste, porém, razão. Interpretar a lei é tarefa que tem por objectivo a descoberta do seu exacto e preciso sentido, partindo-se do elemento literal para se ajuizar da "mens legislatoris" e tendo-se sempre em conta que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º n.º 3 do C.C.): a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação; o texto funciona também como limite de busca do espírito.[5] Pode, porém, acontecer que o intérprete se aperceba de que o legislador foi infeliz no modo como se exprimiu, que o seu pensamento foi atraiçoado pelos termos utilizados na redacção da lei, dizendo menos do que pretendia. Quando tal ocorrência acontecer ter-se-á de alargar o seu conteúdo até onde o legislador desejava ter querido chegar. O intérprete concluirá assim fazendo recurso aos elementos racional ou lógico (argumento a maiori ad minus - a minoris ad maius - a lei que permite o mais, permite o menos) e teleológico (ratio legis - a razão de ser da norma). O elemento filológico de interpretação tirado do sentido das palavras que integram o texto descrito na lei - os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda - aponta no sentido de que o objetivo primordial e único deste normativo legal é proibir a venda apenas dos pais e avós a filhos ou netos. Mas haverá alguma razão para pensar de modo diferente, ou seja, existe algum argumento capaz de nos poder fazer sentir que é outra a teleologia impregnada na lei, isto é, que o legislador quis efectivamente restringir a esta classe de pessoas a proibição que nele estabelece? Na proibição estabelecida no art.º 877.º do C.Civil procura-se evitar uma simulação, difícil de provar, em prejuízo das legítimas dos descendentes (Batista Lopes, contrato de compra e venda, pág.51). Os pais doariam bens aos filhos, sob a forma de venda, para estes não impugnarem nas suas quotas legitimárias os valores recebidos e assim prejudicarem os outros herdeiros; mas, enquanto nos casos normais de simulação, o contraente interessado na futura destruição do negócio guarda em regra consigo provas do vício do acto, na venda simulada feita descendentes o ascendente procurará, pelo contrário, destruir todos os vícios da simulação (Pires de Lima e Antunes Varela; Código Civil Anotado, art.º 877.º). Este detetado perigo de simulação nunca poderá envolver o enteado/autor que, porque não é herdeiro legitimário da madrasta BB, não se deverá recear que nesta transação tenha ela querido, de forma ilícita, avantajá-lo em relação aos seus diretos descendentes. O seu posicionamento na herança da vendedora está equiparado a qualquer outra pessoa estranha à família da BB. Não nos parece, assim, que na interpretação daquele preceito legal se possa ir para além do quadro circunstancial nele literalmente pontificado e, outrossim, que estejamos perante uma lacuna da lei. Concluindo: 1. Através da venda operada pelas escrituras públicas de 22.04.1993 e 06.02.2006 o que a BB transmitiu ao autor e às 2.º e 3.º rés, respectivamente, foi o conteúdo de um direito - a “meação” tem a mesma caracterização jurídica da herança - abstractamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência também se patenteiam inseguras. 2. Neste enquadramento doutrinal o que ao demandante e 2.ª e 3.ª demandadas ficou atribuída na venda, foi a possibilidade de poderem exercer naquela universalidade jurídica um seu direito próprio perante os restantes interessados no "direito à meação da transmitente BB e no quinhão hereditário que possui na herança, ilíquida e indivisa, aberta por óbito do seu marido EE, designadamente legitimou-os a, com vista a concretizar esta sua prerrogativa, se e quando assim o entenderem, darem os passos necessários tendentes a haver para si a quota-parte dos bens determinados que integram tal herança. 3. Enquanto se não constatar a efectiva titularidade de algum (ou alguns) bem concreto que constitui o acervo da herança, os protegidos com esta venda não desfrutam do atinente direito sobre certo e determinado bem da herança. 4. A proteção que o n.º 4 do art.º 5.º do C.R.Predial concede a terceiros de boa fé, e aí pormenorizada, tem em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário e está inexoravelmente ligada ao regime das ocorrências impreterivelmente sujeitas a registo e restritivamente elencadas no art.º 2.º desse mesmo diploma. Ora, porque a quota hereditária e a meação não contêm qualquer direito sobre bens certos e determinados, designadamente imóveis componentes da herança, a sua alienação não está prevista na descrição posta no art.º 5.º do C.R.Predial. 5. A venda da madrasta ao enteado não está prevista, nem por analogia nem por interpretação extensiva, na previsão do estatuído no art.º 877.º do C. Civil. Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.
Silva Gonçalves (Relator) Ana Paula Boularot Pires da Rosa ___________________________
[1] É esta a jurisprudência unânime e pacífico o entendimento proclamado (Acs. do STJ de 09.07.1952 e 08.02.1963, no Bol. 35-303 e 124-668; Ver. Trib. 84-196), citados in Lopes Cardoso; Partilhas Judiciais; II, pág. 526. [2] Artigo 49º (aquisição em comunhão hereditária) O registo de aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito é feito com base em documento comprovativo da habilitação e, tratando-se de prédio não descrito, em declaração que identifique os bens (redacção pelo Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho). [3] Artigo 9º (legitimação de direitos sobre imóveis) 1 – Os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo. 2 – Exceptuam-se do disposto no número anterior: a) A partilha, a expropriação, a venda executiva, a penhora, o arresto, a declaração de insolvência e outras providências que afectem a livre disposição dos imóveis; b) Os actos de transmissão ou oneração praticados por quem tenha adquirido no mesmo dia os bens transmitidos ou onerados; c) Os casos de urgência devidamente justificada por perigo de vida dos outorgantes. 3 – Tratando-se de prédio situado em área onde não tenha vigorado o registo obrigatório, o primeiro acto de transmissão posterior a 1 de Outubro de 1984 pode ser titulado sem a exigência prevista no nº 1, se for exibido documento comprovativo, ou feita justificação simultânea, do direito da pessoa de quem se adquire (redacção pelo Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho)
[4] Artigo 877º (venda a filhos ou netos). 1. Os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda; o consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou seja recusado, é susceptível de suprimento judicial. 2. A venda feita com quebra do que preceitua o número anterior é anulável; a anulação pode ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, ou do termo da incapacidade, se forem incapazes. 3. A proibição não abrange a dação em cumprimento feita pelo ascendente.
[5] Oliveira Ascensão; O Direito, Introdução e Teoria Geral; pág. 350. |