Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1629/04.3.TBLSB-B.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: INVENTÁRIO
PARTILHA
DIVISÃO DOS BENS DO CASAL
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
RENÚNCIA AO DIREITO DE PARTILHAR
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I- O artº 2101º/2 do Código Civil estabelece o princípio da irrenunciabilidade ao direito de partilhar, sendo tal norma de natureza imperativa, posto que, como bem reconheceu o Ac. deste Supremo Tribunal de 26 de Abril de 1994, «tem subjacente um princípio de interesse e ordem pública», pelo que a sua violação importa a nulidade, nos termos do disposto no artº 280º do C. Civil.
II- O argumento de que uma coisa é a renúncia a um direito, outra, bem diferente, é a desistência do seu concreto exercício através de um pedido formulado em processo judicial, apenas seria um argumento válido se a lei processual não estatuísse que a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer, como dispõe expressamente o artº 295º, nº 1 do CPC.
III- Ainda que se entendesse que a desistência do pedido de inventário-divisório não traz como consequência a renúncia ao direito de partilhar, como defendem alguns arestos, a consequência de tal desistência equivaleria, a todas as luzes, a essa renúncia, posto que extinguindo-se, pela desistência do pedido de inventário-divisório, o direito de partilha que o requerente do inventário se propunha exercer, apenas lhe resta o caminho da partilha extra-judicial o que, como se sabe, pressupõe o acordo de todos os interessados, que, normalmente, não existe.
IV- Com efeito, cumpre aqui e agora recordar que «a desistência do pedido implica, por parte do autor, o reconhecimento de «não lhe assistir direito à sentença de mérito que pretendia» (Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 2º-81) e, nas palavras de Alberto dos Reis, «o autor, desistindo ( do pedido) renuncia ao direito que se arrogara contra o réu e não pode, por isso, propor nova acção sobre o mesmo objecto; a exigência da aceitação do réu não teria justificação alguma. O réu não sofre prejuízo com a desistência; pelo contrário, vê a sua situação jurídica perfeitamente consolidada» (Comentário, 3º volume, pg. 479).

Decisão Texto Integral:
Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


RELATÓRIO

Após decretado o divórcio entre ambos, AA requereu inventário facultativo para separação de meações entre ele e a requerida BB, ambos com os sinais dos autos.
Prosseguindo o processo os seus normais trâmites, veio a ser designado dia para a conferência de interessados, no âmbito da qual os interessados requereram a suspensão da instância, por existirem possibilidades de acordo quanto à partilha.
Todavia, frustrada que foi essa tentativa de acordo, veio o Requerente desistir do pedido, o que foi homologado por sentença de 28-03-2008, prolatada a fIs. 239 dos autos.
Dessa decisão interpôs a Requerida recurso de Apelação para a Relação de Lisboa, tendo o Exmº Desembargador Relator, por sua decisão de fls. 273 e segs, julgado o mesmo procedente, com a consequente revogação da decisão recorrida ao abrigo do disposto no art. 705° do CPC.

Notificado desse despacho, o Recorrido veio requerer que sobre a matéria do mesmo recaísse Acórdão, nos termos do n.° 3 do art. 700° do CPC, tendo a Recorrente se pronunciado pelo indeferimento da reclamação.

A Conferência, com os exactos fundamentos da decisão do Exmº Desembargador Relator, que deu por integralmente reproduzidos, limitou-se a manter essa decisão prolatada pelo Relator e que havia revogado a decisão da 1ª Instância ordenando o prosseguimento dos autos.
Convirá, por isso, transcrever a decisão do Relator, que foi mantida pela Conferência, e que é do seguinte teor:
Decidindo, começa, desde já, por se adiantar que a razão está, em nossa opinião, do lado da recorrente.
O Sr. Juiz, para a homologação da desistência do pedido formulada pelo requerente, louvou-se na afirmação, enunciativa e sem quaisquer desenvolvimentos, de Lopes Cardoso quanto à possibilidade de desistência do pedido no processo de inventário (cfr. Partilhas Judiciais, vol. l, 5a ed., pág. 375).
Não obstante e pese embora uma ou outra divergência jurisprudencial (cfr., os Acs., de que nós temos conhecimento, desta Relação de 2-3-82 e da RC de 3-12-98, in, respectivamente, BMJ 321-341 e CJ, XXIII, V, 39), não vemos razão para não continuar a acompanhar a posição majoritária da jurisprudência nesta matéria.
O inventário tem, como nos parece incontroverso, como objectivo último a partilha dos bens da herança pelos respectivos titulares (cfr. Alberto dos Reis, Processos Especiais, II, 356), do que decorre que se não está perante um verdadeiro processo de partes, pois os interessados não são propriamente adversários na lide, mas antes de mais devem ser vistos como aliados num desiderato comum. Por isso, tal meio processual está na disponibilidade de todos, porque a todos assiste o direito de dissolver a universalidade da herança ou de nela se manter e, daí, que, uma vez instaurado e por todos aceite, o processo ficou à disposição de todos e não apenas daquele ou daqueles que o requereram.
Pode, pois, dizer-se que não há aqui um verdadeiro conflito de interesses, porque o objectivo - a partilha da herança - é comum e, sendo assim, a desistência da herança não parece que possa compaginar-se com tal finalidade, sob pena da sua concretização representar o prejuízo de um direito já nascido para o sujeito passivo da relação processual (cfr. Ac. do STJ de 26-7-74, BMJ 239-162).
Como se escreve no Ac. do STJ de 18-5-99, que seguimos de perto, "a desistência do pedido é um instituto processual que arranca da arrogância prévia por um autor, não um simples interessado, contra um réu, não outro mero interessado, de um direito cujo reconhecimento processual pretende. Ora, no processo de inventário, o seu requerente ou requerentes não afirmam qualquer direito seu contra os restantes interessados. A sua exacta função como requerentes, quando em correlação com os outros interessados, é tão só a de manifestar o seu direito à partilha e a de chamar os restantes co-interessados ao processo para que com ele colaborem nesse fim. Se estes o aceitarem e intervierem no processo, aquela finalidade volve-se em comum e o processo torna-se num instrumento adjectivo de todos, não sendo mais lícito a qualquer deles, isoladamente, extingui-lo, designadamente pelo exercício duma pretensa desistência do pedido" {BMJ 487-321).
Por outro lado, porque a consequência típica da desistência do pedido é a extinção do direito que se pretendia fazer valer (art. 295°, 1 do CPC), que o mesmo é dizer que, com a desistência, o autor renuncia ao direito que se arroga contra o réu, não podendo, por tal, propor nova acção sobre o mesmo objecto (cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 3° vol., 478), a mesma está vedada quando "importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis" (art. 299°, 1 do CPC), como acontece in casu, por não poder renunciar-se ao direito de partilhar (art. 2101°, 2 do CC), isto é, tal direito não está na disponibilidade das partes (neste sentido, para lá dos já citados, ver os Acs. do STJ de 26-4-94 e da RC de 9-3-99, respectivamente, ÇJ, STJ, II, II, 66 e CJ.XXIV, II, 17_e do STJ de 30-1-97 e da RP de 18-5-99 e 18-6-2001, todos em www.dgsi.pt).
Esta proibição que tem subjacente um princípio de interesse e ordem pública, desde logo, porque limita a concentração da propriedade das coisas, acarreta a nulidade de qualquer negócio que a contrarie (art. 280° do CC), o que acontece com a desistência do pedido no processo de inventário, porque traduzida, como se disse, na afirmação de vontade relativamente a direito de que a lei afasta a livre disponibilidade.
A desistência do pedido por parte do requerente importaria, face à força e autoridade do caso julgado que se formasse com o transito em julgado da sentença que a homologou, a renúncia ao direito de partilhar, o que estando legalmente vedado, como sobredito ficou, conduz forçosamente à nulidade desse acto, nulidade esta de conhecimento oficioso (artºs. 280° e 286° do CC).
Destarte, não era de homologar o termo de desistência do pedido formulado pelo requerente, impondo-se, por isso, a revogação da respectiva sentença homologatória.
Nesta conformidade, ao abrigo dos artºs. 705° e 700°, n.° 1, al. g) do CPC, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos».

Inconformado, o Recorrido trouxe recurso de Revista para este Supremo Tribunal, rematando as suas alegações, com as seguintes:

CONCLUSÕES

a) O douto acórdão recorrido pressupõe que há um interesse comum na partilha quando tal pode não suceder designadamente como é o caso, quando os valores em causa são totalmente incomportáveis, passando o interesse a ser o de manter a situação antes da partilha ou seja em comum.

b) Porém, há que ter em atenção que o processo de inventário não é obrigatório, mas tão só facultativo, no qual não é ferido o direito da outra ou outras partes que, se não concordarem poderão sempre requerer, por seu lado, a partilha.

c) O que não pode é ser negado esse direito à parte que requereu a partilha.

d)Estamos no domínio de um processo especial de jurisdição voluntária, numa posição similar à do litisconsórcio voluntário, susceptível de se pôr termo por desistência.

e) A parte contrária pode sempre requerer a divisão de acordo com o disposto no artigo 1412° do Código Civil, sendo certo que as regras da compropriedade são aplicáveis a quaisquer outros direitos nos termos do disposto no artigo 1404° do mesmo Código;

f) O próprio desistente não renuncia à partilha mas tão só ao pedido neste processo.

g)Nesse sentido é claro o Prof. João António Lopes Cardoso que peremptoriamente escreve " Em processo de inventário facultativo a desistência não tem como consequência a renúncia do direito de partilhar" (cfr. "Partilhas Judiciais", vol.I, Almedina,5a ed. P. 375);

h)No mesmo sentido veja-se o Acórdão dessa Relação de Lisboa de 02.03.82 in BMJ n.° 32- 431 " Em processo de inventário facultativo, é admissível ao requerente desistir do pedido até porque esta desistência não traz como consequência a renúncia do direito de partilhar efectivamente a herança";

i) Há vários acórdãos que se pronunciaram neste sentido como por exemplo o Ac. da Relação de Coimbra n.° 1016/99, de 8 de Junho de 1999, ou o da Relação de Évora de 23/03/99 (todos in www. dgsi).

j)Termos em que deve ser revogado o douto acórdão recorrido, mantendo-se a decisão do juiz da 1a Instância, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 300°n°3, 293°n°l, 295V1,296°n°2, 299V2 e 287°al.d) do CPC.

Foram apresentadas contra-alegações, pugnando a parte contrária pela manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

A única questão que está aqui em causa é a de saber se é admissível a desistência de pedido no inventário facultativo.
Embora se não desconheça que existem arestos da 2ª Instância no sentido de tal admissibilidade, designadamente os citados pelo Recorrente nas suas doutas alegações, a verdade é que as decisões deste Supremo Tribunal, acompanhadas de várias outras das Relações têm sido exactamente no sentido contrário.
Citaremos apenas duas, a título meramente exemplificativo:
O Acórdão deste Supremo Tribunal, de 30-01-1997 (Relator, o Exmº Conselheiro Pereira da Graça) assim sumariado, na parte que ora interessa:
«Sendo proibida a renúncia ao direito de partilhar, é inadmissível a desistência do pedido no inventário facultativo, por iniciativa própria e individual» (Pº 96B856, disponível, em sumário, em www.dgsi.pt) e o Acórdão deste mesmo Supremo Tribunal, de 26 de Abril de 1994 ( Relator, o Exmº e saudoso Conselheiro Mário Sereno Cura Mariano) assim sumariado, também na parte que interessa para a decisão da questão emergente do presente recurso:
«O requerente do inventário para separação de meações não pode desistir do pedido, pois não é admissível a renúncia ao direito de partilhar» (Col. Jur/STJ, Ano II, TII – 1994, pg. 66 e ss).
Neste aresto, com profusa fundamentação, ponderou-se, além do mais, que:
« O recorrente, porque não chegou a acordo com o seu cônjuge, resolveu instaurar inventário facultativo para partilha dos bens do casal, entretanto judicialmente separado pessoas e bens. Já depois de efectuadas licitações e de tomadas disposições sobre as consequências do não pagamento de tornas, aquele veio desistir do pedido formulado - partilha dos bens do casal.
Uma vez que o mesmo não chegou a acordo com a sua mulher, a desistência do pedido formulado no inventário importaria renúncia ao direito de partilhar, atentas as consequências derivadas dos princípios imanentes à força e autoridade do caso julgado da sentença que homologasse tal desistência. Não poderia, pois, como referimos atrás, o recorrente propor outro inventário facultativo com o mesmo objecto».
Estribou-se, este douto Acórdão, na lição do Professor Manuel de Andrade ( Lições, pgs. 351), em que o preclaro Professor de Coimbra ensinava que « entendeu a lei que a confissão, a desistência e a transacção não podem ser admitidas quando levarem a um resultado que as partes não pudessem obter, por meio de negócio jurídico abertamente destinado a tal efeito. E está certo. De outro modo, poderia obter-se por via indirecta ou oblíqua aquilo que directamente não pode ser alcançado».
Ora dúvida não existe de que o artº 2101º/2 do Código Civil estabelece o princípio da irrenunciabilidade ao direito de partilhar, sendo tal norma de natureza imperativa, posto que, como bem reconheceu o aresto a que nos temos vindo a referir, «tem subjacente um princípio de interesse e ordem pública», pelo que a sua violação importa a nulidade, nos termos do disposto no artº 280º do C. Civil.
O argumento de que uma coisa é a renúncia a um direito, outra, bem diferente, é a desistência do seu concreto exercício através de um pedido formulado em processo judicial, apenas seria um argumento válido se a lei processual não estatuísse que a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer, como dispõe expressamente o artº 295º, nº 1 do CPC.
Não se desconhece a posição dos arestos proferidos «ex adverso», designadamente, o Acórdão da Relação de Lisboa de 2 de Março de 1982, de que foi Relator o Exmº Desembargador Leite Marreiros onde se entendeu maioritariamente que «em processo de inventário facultativo, é admissível ao requerente desistir do pedido – até porque esta desistência não traz como consequência a renúncia do direito de partilhar efectivamente a herança» (BMJ 321, 431), mas, em primeiro lugar, não há que olvidar que o mesmo acórdão não foi tirado por unanimidade, tendo havido um voto de vencido do Exmº Desembargador Beça Pereira «por entender não poder admitir-se a desistência do pedido, pois que tanto equivaleria à extinção do direito que veio a ser exercido – artigo 295º, nº 1, do CPC – o que violaria o disposto no artigo 2101º, nº 2 do Código Civil» e, em segundo lugar, que o Ilustre Adjunto que votou no sentido propugnado pelo Relator, o Exmº Desembargador Mário Sereno Cura Mariano, foi ele próprio Relator do Acórdão deste Supremo Tribunal a que supra fizemos referência – o Ac. STJ de 26 de Abril de 1994 – certamente por ter alterado o seu entendimento.
De resto, ainda que se entendesse que a desistência do pedido de inventário-divisório não traz como consequência a renúncia ao direito de partilhar, como defendem alguns arestos, a consequência de tal desistência equivaleria, a todas as luzes, a essa renúncia, posto que extinguindo-se, pela desistência do pedido de inventário-divisório, o direito de partilha que o requerente do inventário se propunha exercer, apenas lhe resta o caminho da partilha extra-judicial o que, como se sabe, pressupõe o acordo de todos os interessados, que, normalmente, não existe.
Com efeito, cumpre aqui e agora recordar que «a desistência do pedido implica, por parte do autor, o reconhecimento de «não lhe assistir direito à sentença de mérito que pretendia» (Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 2º-81) e, nas palavras de Alberto dos Reis, «o autor, desistindo ( do pedido) renuncia ao direito que se arrogara contra o réu e não pode, por isso, propor nova acção sobre o mesmo objecto; a exigência da aceitação do réu não teria justificação alguma. O réu não sofre prejuízo com a desistência; pelo contrário, vê a sua situação jurídica perfeitamente consolidada» (Comentário, 3º volume, pg. 479).
Não temos dúvidas, destarte, de que a doutrina perfilhada pela Relação, no acórdão ora em recurso, é a que melhor se ajusta à realidade processual no nosso ordenamento jurídico, estando em consonância com a jurisprudência deste Supremo Tribunal nesta matéria, pelo que improcedem as conclusões da alegação do Recorrente, improcedendo, consequentemente, o presente recurso.

DECISÃO

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o douta decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Processado e revisto pelo Relator.


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Dezembro de 2010

Álvaro Rodrigues (Relator)
Teixeira Ribeiro
Bettencourt de Faria