Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S3401
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
TRABALHADOR INDEPENDENTE
TRABALHADOR SUBORDINADO
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: SJ200702140034014
Data do Acordão: 02/14/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - A norma do artigo 7º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio, permitindo presumir, até prova em contrário, que o acidente ocorreu ao serviço da entidade empregadora, quando o sinistrado for, simultaneamente, trabalhador independente e trabalhador por conta de outrem, tem em vista determinar, em caso de dúvida, qual o regime aplicável ao acidente, tendo pressuposta ideia de que o direito à reparação releva apenas quanto a uma dessas actividades, ainda que ambas se encontrem cobertas por seguro de acidentes de trabalho;
II - Esta asserção está conforme as regras de cálculo das prestações por incapacidade constantes do artigo 17º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, que, tomando por base a retribuição auferida no exercício da actividade em cuja execução ocorreu o acidente, tem já em linha de conta a eventual eliminação ou redução da capacidade funcional residual para o exercício de outra actividade. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório.

"AA", identificado nos autos, intentou a presente acção emergente de acidente de trabalho contra a Empresa-A, com sede em Lisboa, pedindo o pagamento das pensões e indemnizações devidas pelo acidente de trabalho ocorrido quando prestava serviços de natureza profissional na empresa de que é sócio gerente, e exercia, simultaneamente, a actividade de trabalhador independente, considerando que a responsabilidade infortunística por ambas as actividades se encontrava transferida para a ré, pelos correspondentes contratos de seguro, por referência às retribuições de € 349,17 mensais e € 6.983,17 anuais, respectivamente.

A ré contestou, alegando, em resumo, que o autor não poderia ser ressarcido pelo mesmo acidente de trabalho com base na cobertura do risco por duas diferentes apólices de seguro.

Por sentença de primeira instância, a acção foi julgada procedente e, em apelação, o Tribunal da Relação do Porto, confirmou o julgado.

É contra esta decisão que a ré seguradora de novo se insurge, mediante recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

1ª O regime jurídico previsto na lei dos acidentes de trabalho não estipula uma solução líquida clara sobre como reparar um acidente de trabalho, no caso em que o sinistrado exerce, no momento do acidente, funções em benefício de várias entidades privadas.
2ª Em termos legislativos ainda há um caminho a percorrer para se atingir a solução jurídica prevista no douto acórdão em apreço, mas tal solução não faz parte do nosso presente, pelo menos em termos de Direito constituído.
3ª É, absolutamente, relevante para decisão da causa invocar que ambos os contratos de seguro são obrigatórios.
4ª É relevante invocar o artigo 7° do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio, que existe precisamente para a situação em que havendo a concomitância de regimes por conta de outrem e independente, preconizando-se a solução jurídica que se presuma que o acidente ocorreu em sede de trabalho por conta de outrem.
5ª No caso em que estamos perante um sinistrado de viação e de trabalho, também ele pode ter um dois ou três trabalhos diferentes, com regimes jurídicos distintos e consequentemente será reparado pelo dano, só uma vez e na exacta medida da sua perda patrimonial.
6ª No caso indicado na conclusão anterior também ali existem dois contratos distintos e nem por isso o referido sinistrado recebe o mesmo de ambos.
7ª A teoria da diferença entende-se mitigada perante o leque de danos que são ressarcidos em sede de reparação por acidente de trabalho e, como tal, não está no horizonte deste regime a reparação integral do dano, como acontece na vertente civilista do dano.
8ª Verifica-se designadamente a violação do disposto no artigo 7° do DL nº 159/99, de 11 de Maio.

O autor contra-alegou, concluindo, a parte útil, do seguinte modo:

1. O recorrido ilidiu a presunção prevista no artigo 7°, n° 1, do DL n.º 159/99, de 11 de Maio, ao provar que o acidente ocorreu quando trabalhava para a sua entidade patronal e por conta própria, ministrando uma aula prática de fotografia exercendo em simultâneo as suas normais funções para a "Empresa-B", das quais recebia a respectiva remuneração, e as funções de formador na área de fotografia, pelas quais também era remunerado.
2. Tratando-se de um único acidente, é facto que o recorrido ficou impossibilitado de exercer ambas as actividades que desenvolvia e que estavam garantidas pelos dois seguros que operavam em simultâneo e cujos prémios a recorrente recebia também em simultâneo, competindo-lhe assumir as responsabilidades decorrentes de ambos os contratos que reconhece estarem em vigor.
3. O artigo 7° do aludido Decreto-Lei não se aplica ao caso em concreto, já que se não reporta à situação em que o trabalhador sofre o acidente nas diferentes qualidades de trabalhador subordinado e independente.

Neste Supremo Tribunal, a Exma Procuradora-geral adjunta pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, porquanto, encontrando-se provado que o acidente ocorreu quando o autor exercia simultânea e cumulativamente as suas funções de gerente ao serviço da sua entidade patronal e a actividade por conta própria de formador, fica ilidida a presunção do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio, não havendo, por outro lado, obstáculo à acumulação das indemnizações devidas como trabalhador subordinado e trabalhador independente.

Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto.

As instâncias deram como provada a seguinte matéria de facto:

a) - No 19 de Junho de 2001, o Autor quando fotografava ferramentas em estúdio, nas instalações da sociedade Empresa-B, deu uma queda, por ter escorregado de uma escada.
b) - Do sinistro resultaram as seguintes lesões: entorse do joelho direito e lesão de ligamentos.
c) - Foi submetido a intervenção cirúrgica e recebeu tratamento fisiátrico.
d) - À data do acidente, o Autor era sócio gerente da sociedade referida em a).
e) - Auferindo de remuneração mensal de € 349,17;
f) - E como formador auferia uma retribuição anual fixa de € 6.983,17.
g) - Feita a respectiva participação obrigatória dentro do prazo legal deu-se início à fase conciliatória para efectivação dos direitos do Autor.
h) - O Autor foi submetido a exame médico, cujo relatório médico consta de fls. 20.
i) - O perito médico do Tribunal fixou incapacidade parcial permanente de 10%;
j) - A responsabilidade emergente de acidente de trabalho que o autor pudesse sofrer encontrava-se transferida na sua totalidade para a Ré Seguradora, através de dois seguros que operavam em simultâneo titulados pelas apólices n.ºs 198015272 e 201034641.
k) - Realizada a tentativa de conciliação a que alude o artigo 108º e segs. do Código de Processo de Trabalho, não foi possível obter acordo.
l) - A Ré Seguradora aceitou a caracterização do acidente dos autos como de trabalho, aceitou o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente sofrido e a transferência do salário reclamado pelo sinistrado no valor de € 349,16 X 14 meses, e a quantia gasta com deslocações ao Tribunal.
m) - Mas não está de acordo com o exame médico efectuado pelo Tribunal que lhe atribui uma incapacidade parcial permanente de 10%.
n) - E não aceitou pagar a pensão, bem como as indemnizações por incapacidade temporária relativamente ao seguro titulado pela apólice 201034641.
o) - Em consequência do acidente, o autor sofreu uma incapacidade temporária absoluta desde a data do acidente, em 19 de Junho de 2001, até à data de 2 de Junho de 2002, tendo sido submetido a intervenção cirúrgica e tratamento de fisioterapia.
p) - E sofreu uma incapacidade parcial temporária de 30% desde 2 de Junho de 2002 a 25 de Agosto de 2003.
q) - Até ao momento, a Ré seguradora só pagou ao Autor as indemnizações por incapacidade temporária absoluta até 2 de Junho de 2002, em relação ao contrato de seguro titulado pela apólice 198015272.
r) - E nada pagou ao Autor em relação ao contrato de seguro titulado pela apólice nº. 201034641.
s) - No dia 19 de Junho de 2001, o Autor prestava serviços de natureza profissional na Empresa-B.
t) - No momento em que executava tal trabalho, o autor prestava serviço à empresa de que era gerente e, simultaneamente, dava formação a vários formandos.
u) - Pois as instalações da dita sociedade eram também usadas como local de trabalho para a formação que dava como professor de fotografia.
v) - Utilizando o espaço e os materiais, o estúdio, escadotes, máquinas e todos os outros elementos na sua actividade de formador.
w) - E exercia simultaneamente a actividade de formador na área de fotografia.
x) - O Autor teve que efectuar várias deslocações ao hospital para tratamentos e fisioterapia, tendo gasto em medicamentos e transportes quantia não inferior a € 500, 00.
y) - O Autor mora em Valadares e teve que deslocar-se, muitas dezenas de vezes ao centro do Porto onde recebia os tratamentos, sendo necessário usar carro de aluguer.
z) - No apenso para fixação da incapacidade e na sequência do exame por junta médica realizado ao Autor, foi considerado que o mesmo padece de uma IPP de 7, 5% em consequência das lesões sofridas no acidente de trabalho de que foi vítima em 19 de Junho de 2001.

3. Fundamentação de direito.

Coloca-se a questão de saber se um sinistrado de acidente de trabalho pode ser duplamente ressarcido pelos danos dele resultante quando a responsabilidade infortunística relativa à sua actividade laboral se encontra coberta por duas diferentes apólices de seguro, nas modalidades de trabalhador subordinado e trabalhador independente.

As instâncias responderam afirmativamente e o acórdão recorrido, que agora está sob censura, sustentou o seu ponto de vista, defendendo, no essencial, que, no caso de um trabalhador que exerça actividades remuneradas distintas, seja através de dois ou mais contratos de trabalho a tempo parcial, seja por via do desempenho concorrente de trabalho subordinado e trabalho independente, o acidente de trabalho ocorrido na prestação de uma dessas actividades implica uma perda da capacidade de ganho que se repercute no âmbito de toda a sua actividade profissional. Acrescenta o acórdão que não tem aplicação no caso o disposto no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio, porquanto esta norma destina-se a determinar, em caso de dúvida, qual a entidade que responde pela reparação do acidente, e não interfere na medida da indemnização, não impedindo que o ressarcimento venha a englobar a perda de capacidade de ganho em toda a sua amplitude. Nestes termos - conclui o acórdão recorrido -, provando-se que o sinistrado prestava serviço à empresa de que é sócio gerente e, simultaneamente, exercia funções de formação profissional, como trabalhador independente, nenhum obstáculo existia a que se accionassem as apólices de seguro que cobriam essas actividades. O acórdão vai, porém, um pouco mais longe, em reforço da sua posição, considerando que, mesmo que se não demonstrasse a invocada simultaneidade de actividades, a entidade responsável pelo acidente teria de responder pela perda da capacidade de ganho referente a cada uma das actividades desenvolvidas.

É contra este entendimento, que tem o apoio da Exma magistrada do Ministério Público, que se insurge a ré, ora recorrente, aduzindo, em síntese, que a situação de concomitância de regimes de trabalho por conta de outrem e independente é resolvida pelo disposto no artigo 7° do Decreto-Lei n.º 159/99, que estabelece a presunção de que o acidente ocorreu em sede de trabalho subordinado, por conta de outrem, não estando no horizonte da actual legislação o critério da reparação integral do dano, como sucede na vertente civilista do direito de indemnização.

Para ensaiar uma resposta à questão assim suscitada, convirá começar por descrever, em traços gerais, o regime jurídico dos acidentes de trabalho, na parte que aqui mais releva.

Os trabalhadores e seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais nos termos previstos na Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e da respectiva legislação regulamentar, encontrando-se abrangidos pelo direito de reparação os trabalhadores por conta de outrem, considerando-se como tal os trabalhadores que estejam - vinculados por contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado - o que é também aplicável aos administradores, directores, gerentes ou equiparados, quando remunerados (artigo 2º da Lei n.º 100/97) -, e os trabalhadores independentes, considerando-se como tal os trabalhadores que exerçam uma actividade por conta própria, que devem efectuar um seguro que garanta as prestações previstas naquela Lei, nos termos que vierem a ser definidos em diploma próprio (artigo 3º).

A lei própria para que remete o artigo 3º da Lei dos Acidentes de Trabalho, no que concerne aos trabalhadores independentes, é a resultante do já mencionado Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio, que prevê a obrigatoriedade do seguro para os trabalhadores independentes, de forma a que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na lei geral para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares (artigo 1º, n.º 1), e regula a situação de simultaneidade de regimes, estabelecendo que, nos casos em que o sinistrado em acidente de trabalho é simultaneamente trabalhador por conta de outrem e trabalhador independente, se presume, até prova em contrário, que o acidente ocorreu ao serviço da entidade empregadora (artigo 7º, n.º 1)

Por outro lado, o direito à reparação compreende prestações em espécie e prestações em dinheiro, englobando, neste último caso, indemnização por incapacidade ­ temporária absoluta ou parcial para o trabalho, indemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, em caso de incapacidade permanente, e pensões aos familiares do sinistrado, em caso de morte (artigo 10º da Lei n.º 100/97). As prestações por incapacidade são atribuídas, como explicita o artigo 17º da mesma Lei, quando do acidente resultar redução na capacidade de trabalho ou ganho do sinistrado, e são calculadas tomando por base um determinado índice percentual da retribuição.

Os critérios relativos à retribuição a considerar encontram-se, por sua vez, estabelecidos no artigo 26º da referida Lei n.º 100/97, interessando reter o seguinte. As indemnizações por incapacidade temporária absoluta ou parcial serão calculadas com base na retribuição diária, ou na 30ª parte da retribuição mensal ilíquida, auferida à data do acidente, quando esta represente retribuição normalmente recebida pelo sinistrado (n.º 1), ao passo que as pensões por morte e por incapacidade permanente, absoluta ou parcial, serão calculadas com base na retribuição anual ilíquida normalmente recebida pelo sinistrado (n.º 2). Por retribuição mensal entende-se "tudo o que a lei considera como seu elemento integrante e todas as prestações recebidas mensalmente que revistam carácter de regularidade e não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios" (n.º 3), enquanto que a retribuição anual é "o produto de 12 vezes a retribuição mensal acrescida dos subsídios de Natal e de férias e outras remunerações anuais a que o sinistrado tenha direito com carácter de regularidade" (n.º 4). Se a retribuição correspondente ao dia do acidente não representar a retribuição normal, será esta calculada pela média tomada com base nos dias de trabalho e correspondente a retribuições auferidas pelo sinistrado no período de um ano anterior ao acidente. Na falta destes elementos, o cálculo far-se-á segundo o prudente arbítrio do juiz, tendo em atenção a natureza dos serviços prestados, a categoria profissional do sinistrado e os usos (n.º 5). Este mesmo princípio é aplicável ao trabalho não regular e aos trabalhadores a tempo parcial vinculados a mais de uma entidade empregadora (n.º 9).

Quanto a este último aspecto, o Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, que regulamenta a Lei dos Acidentes de Trabalho, vem esclarecer, no seu artigo 44º, que o "cálculo das prestações dos trabalhadores a tempo parcial tem como base a retribuição que auferiam se trabalhassem a tempo inteiro".

Importa considerar, por fim, nesta primeira abordagem do regime legal, que o Decreto-Lei n.º 159/99 também providencia quanto à retribuição aplicável em caso de acidente de trabalho de trabalhador independente, ditando, no seu artigo 9º, n.º 1, o seguinte: "A remuneração anual a considerar, para efeito do cálculo dos prémios e das prestações em dinheiro, corresponderá, no mínimo, a 14 vezes a remuneração mínima mensal mais elevada, ou a qualquer outro valor, à escolha do trabalhador".

Do exposto parece resultar que o cálculo das indemnizações ou pensões devidas por incapacidade temporária ou permanente resultante de acidente de trabalho se encontra indexado à retribuição auferida pelo trabalhador. E visto que o direito às prestações opera tanto em relação a trabalhadores por conta de outrem quanto a trabalhadores independentes, que têm, nesse particular, um regime tendencialmente equivalente, afigura-se ser de entender que o ressarcimento do dano tomará em linha de conta a a actividade em cuja execução decorreu o acidente, segundo a retribuição que é lhe é aplicável.

Esta asserção não é desmentida, contrariamente ao que propugna a Relação, pelo disposto no artigo 44º do Decreto-Lei n.º 143/99 quanto ao cálculo das prestações para os trabalhadores a tempo parcial.

A lei ficciona aí que o trabalhador exercia funções a tempo inteiro, para efeito de fazer intervir no cálculo da indemnização ou da pensão, uma retribuição superior à efectivamente auferida; mas o direito à reparação não deixa de ser considerado por referência à retribuição que era aplicável à actividade que o trabalhador se encontrava a exercer no momento em que sofreu o acidente, embora se tome em linha de conta a remuneração que seria devida, nesse tipo de trabalho, se o trabalhador tivesse um horário completo e não um horário parcial.

O que sucede, conforme se depreende das regras de cálculo das prestações por incapacidade constantes do citado artigo 17º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, é que a pensão a atribuir, no caso de incapacidade permanente absoluta, é de maior ou menor valor consoante o sinistrado tenha ficado incapacitado para todo e qualquer trabalho, caso em que a pensão anual vitalícia é de 80% da retribuição, acrescida de 10% por cada familiar a cargo, ou mantenha alguma capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão, caso em que essa pensão será fixada entre 50% e 70% da retribuição. Princípio que está igualmente subjacente no cálculo da pensão ou indemnização a arbitrar nas incapacidades, permanentes ou temporárias, parciais, em que se tem em conta o índice percentual de redução sofrida na capacidade geral de ganho.

Ou seja, ao definir o cálculo da pensão ou indemnização a fixar pelo acidente de trabalho, o legislador já tem conta a repercussão que o acidente tem na capacidade funcional residual do trabalhador, pelo que o montante pecuniário da prestação será maior ou menor, consoante o sinistrado fique impedido de retomar a vida activa ou possa ainda exercer uma outra profissão que não seja incompatível com as sequelas do acidente. O que tem necessariamente aplicação quando o sinistrado exerça várias actividades em tempo parcial ou desempenhe concorrentemente trabalho subordinado e trabalho independente. O ressarcimento do acidente de trabalho sofrido numa dessas actividades terá já em consideração a eventual impossibilidade ou a redução de capacidade para exercer qualquer uma das outras. O que significa que, na determinação do dano, são consideradas todas as consequências do acidente, ainda que o cálculo das prestações devidas tenha por base a retribuição auferida pela concreta actividade que o trabalhador desenvolvia no momento do acidente.

Este critério legal surge reforçado pelo disposto no já citado artigo 7º do Decreto-Lei n.º 159/99, que, sob a epígrafe "Simultaneidade de regimes", dispõe:

"1. Quando o sinistrado de acidente de trabalho for, simultaneamente, trabalhador independente e trabalhador por conta de outrem havendo dúvida sobre o regime aplicável ao acidente, presumir-se-á até prova em contrário, que o acidente ocorreu ao serviço da entidade empregadora.
2. Provando-se que o acidente de trabalho ocorreu quando o sinistrado exercia funções de trabalhador independente, a entidade presumida como responsável nos termos do número anterior adquire direito de regresso contra a empresa de seguros do trabalhador independente ou contra o próprio trabalhador."

Afirma o acórdão recorrido, com razão, que a finalidade da norma é apenas a de determinar qual é a entidade responsável pelo acidente e que ela nada tem a ver com a medida da reparação. Só que daí não se pode extrair a ilação de que ambas as entidades seguradoras respondam pelo acidente, quando o sinistrado exerça actividade subordinada e independente e a responsabilidade infortunística se encontre transferida, em qualquer dos casos, pela retribuição auferida em cada uma delas.

A norma do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 159/99 visa justamente compatibilizar os regimes de acidente de trabalho quando o sinistrado seja simultaneamente trabalhador independente e trabalhador subordinado e carece de ser interpretada em conformidade com o regime geral, e, em particular, com o estabelecido no artigo 17º da Lei n.º 100/97, quanto ao cálculo das prestações devidas.

Como já vimos, face a esta disposição, a medida da reparação é determinada em função da redução da capacidade geral de ganho, e, portanto, em função da desvalorização funcional do sinistrado para o exercício de qualquer das actividades a que se dedique, independentemente de o acidente ter ocorrido quando desempenhava uma ou outra dessas actividades.

O accionamento conjunto, nesse condicionalismo, de ambas as apólices, conduziria, nesses termos, a um locupletamento indevido do sinistrado, que iria beneficiar de uma dupla indemnização, que já de si é calculada, em cada caso, tomando em linha de conta a redução de capacidade de ganho para cada uma das funções que ele possa exercer profissionalmente.

Ademais, a possibilidade, deixada em aberto no acórdão recorrido, da responsabilização conjunta das entidades seguradoras por cada uma das actividades em causa inutilizaria o regime do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 159/99, que, partindo da regra da obrigatoriedade do seguro, pretende justamente fornecer um critério legal para determinar a entidade responsável quando não seja possível apurar se o acidente de trabalho ocorreu quando o sinistrado exercia funções de trabalhador independente ou funções de trabalhador subordinado.

Vem a propósito referir que não tem cabimento a interpretação sustentada pelo autor, ora recorrido, no sentido de se considerar ilidida a presunção a que se refere aquele preceito, por se ter demonstrado a simultaneidade das funções de trabalhador independente e trabalhador por conta de outrem.

A norma do artigo 7º tem precisamente em vista solucionar as dificuldades que possam existir na determinação da entidade responsável quando haja simultaneidade de regimes. A presunção funciona quando se não consiga provar se o sinistrado trabalhava, na ocasião do acidente, por conta própria ou por conta de outrem. A ilisão da presunção implica que se efectue essa prova, isto é, que se demonstre que, nessa ocasião, o sinistrado intervinha na qualidade de trabalhador subordinado ou desenvolvia trabalho independente, hipótese em que, consoante os casos, o responsável será a seguradora da entidade empregadora ou a empresa de seguros do trabalhador independente.

No caso dos autos, o autor alegou, na parte que interessa considerar, o seguinte:

- no dia 19 de Junho de 2001, quando prestava serviços de natureza profissional nas instalações da sociedade Empresa-B sofreu um acidente de trabalho (artigo 1º da petição inicial);
- que consistiu na queda de uma escada quando fotografava ferramentas em estúdio, nas ditas instalações (artigo 2º),
- no momento em que executava tal trabalho, o autor prestava serviço à empresa de que era gerente e, simultaneamente, dava formação a vários formandos (artigo 5º);
- pois as instalações da dita sociedade eram também usadas como local de trabalho para a formação que dava como professor de fotografia (artigo 6º);
- utilizando o espaço e os materiais, o estúdio, escadotes, máquinas e todos os outros elementos na sua actividade de formador (artigo 7º);
- à data do acidente o autor era sócio gerente da sociedade Empresa-B (artigo 8º);
- e exercia simultaneamente a actividade de formador na área de fotografia (artigo 9º).

Toda esta matéria foi dada como provada, constando das alíneas a), d), s), t), u), v) e w) da decisão de facto, daí retirando as instâncias a ilação de que o acidente ocorreu quando o autor trabalhava para a sua entidade patronal e por conta própria, ministrando uma aula de fotografia. Considerando-se, neste enquadramento, ilidida a presunção do artigo 7º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 159/99 e condenando-se a ré a pagar indemnizações relativas à incapacidade temporária permanente e incapacidade permanente parcial por cada uma das apólices de seguro vigentes, uma relativa ao trabalho subordinado e outra ao trabalho independente, tomando por base, no respectivo cálculo, as retribuições seguras para cada uma dessas actividades.

Já vimos que o artigo 7º tem em vista determinar qual o regime aplicável ao acidente de trabalho no caso em que o sinistrado seja, simultaneamente, trabalhador independente e trabalhador por conta de outrem; e que a presunção aí estabelecida só se considera ilidida quando for possível identificar a entidade responsável, por ser permitido concluir, com segurança, em face dos resultados probatórios, que o acidente ocorreu quando o sinistrado prestava uma ou outra actividade. Em qualquer caso, sob pena de completa inutilização do mecanismo legal resultante daquele preceito, não é possível fazer accionar conjuntamente duas apólices de seguros.

No caso vertente, a falada simultaneidade de actividades parece evidenciar a existência de uma contradição na decisão sobre a matéria de facto, que poderia justificar que se ordenasse a baixa do processo nos termos previstos no artigo 729º, n.º 3, do Código de Processo Civil. A contradição é, no entanto, apenas aparente. Está fora de dúvida que o autor, no momento do acidente, estava a trabalhar como formador na área da fotografia, actividade que, aliás, exercia por conta própria (alíneas f) e w)). A indicação de que simultaneamente também prestava serviço à Empresa-B parece resultar do facto de o autor ser sócio gerente da referida sociedade (alínea d)) e as instalações da empresa serem utilizadas para as acções de formação (alínea u)). No entanto, as funções de sócio gerente deverão ter, pela natureza das coisas, uma qualquer dimensão material - que, no caso, não está sequer explicitada -, não bastando ao autor invocar a qualidade de sócio gerente da empresa para se poder afirmar que ele se encontra em qualquer momento ou circunstância em exercício laboral a favor da sua entidade patronal. Se o trabalhador se encontrava a dar uma aula de formação como trabalhador independente, não poderia simultaneamente estar a exercer funções de sócio gerente. Se estivesse a exercer estas funções, ele estaria então a intervir na qualidade de sócio gerente e, portanto, a efectuar trabalho subordinado, o que é incompatível com a leccionação de uma aula de fotografia, que só poderia ser ministrada a título de trabalho independente. E não é o facto de as instalações da empresa serem usadas para as acções de formação que torna viável o exercício cumulativo e simultâneo das duas actividades, pois do que aí se trata é do uso pelo trabalhador independente de uma autorização que a gerência da empresa lhe terá concedido para o efeito.

Nestes termos, é de entender que o regime aplicável ao acidente de trabalho é o trabalho independente e apenas este, que no caso se encontrava coberto pela apólice de seguro n.º 201034641, pelo que o direito à reparação apenas abrange as prestações consideradas nos n.ºs 2, 3, 5 e 6 da parte dispositiva da sentença.
Todavia, uma vez que a recorrente pagou ao recorrido, em relação ao contrato de seguro titulado pela apólice n.º 198015272, as indemnizações por incapacidade temporária até 2 de Junho de 2002 (alínea q) da matéria de facto), deverá proceder-se, na prestação considerada sob o n.º 2 da sentença, à dedução daquelas indemnizações.

4. Decisão

Em face do exposto, acordam em conceder a revista, revogar a decisão recorrida, julgar parcialmente procedente a acção, condenando a ré a pagar ao autor :
a) A quantia de € 6.677, 05 referente ao período de I.T.A. desde a data do acidente até 2 de Junho de 2002 decorrente da cobertura da apólice nº 201034641, a que será deduzida a importância paga pela ré ao autor, referente àquele período e a título de incapacidade temporária, decorrente da cobertura da apólice n.º 198015272, em montante a liquidar em sentença;
b) A quantia de € 1.718, 05 referente ao período de ITP de 30% decorrente da cobertura da apólice nº 201034641 decorrido entre 2 de Junho de 2002 e 25 de Agosto de 2003;
c) Ao capital de remição calculado com base na pensão anual e obrigatoriamente remível decorrente da IPP de 7, 5% e da cobertura da apólice nº 201034641, calculada a partir do dia seguinte ao da alta (26 de Agosto de 2003) e no montante de € 366, 61 (6.983, 17 x 70% x 7, 5%);
d) A quantia de 500,00 € referente a despesas médico medicamentosas, deslocações ao hospital, aos tratamentos de fisioterapia e ao tribunal;
e) Aos juros de mora sobre as quantias em dívida, calculados à taxa legal e até integral pagamento.

Custas na 1.ª instância pela recorrente, na proporção do vencido, tendo em conta as prestações ora fixadas, não se condenando o recorrido na parte restante por delas se encontra isento (art. 2.º, n.º 1, alínea l), do CCJ, na redacção do DL n.º 224-A/96, de 26 de Novembro). Na 2.ª instância e no recurso, sem custas, atenta a referida isenção do recorrido.


Lisboa, 14 de Fevereiro de 2007

Fernandes Cadilha - (relator)
Mário Pereira
Maria Laura Leonardo