Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
068004
Nº Convencional: JSTJ00003704
Relator: SANTOS VICTOR
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA
ONUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ197911210680041
Data do Acordão: 11/21/1979
Votação: MAIORIA COM 2 DEC VOT E 5 VOT VENC
Referência de Publicação: BMJ N291 ANO1979 PAG285 - RLJ ANO113 PAG152 - DR IS 80/01/29
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC TRIB PLENO.
Decisão: TIRADO ASSENTO.
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG / DIR RESP CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 342 N1 ARTIGO 483 N1 ARTIGO 487 N1 ARTIGO 493 N2 ARTIGO 503 N3 ARTIGO 504 N2 ARTIGO 505 ARTIGO 506 N1 N2 ARTIGO 507 N1 N2 ARTIGO 508 N1 N2.
CPC67 ARTIGO 728 N3 ARTIGO 763.
DL 605/75 DE 1975/11/03.
Legislação Estrangeira: CCIV ITALIA ART2050 ART2054.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1960/07/15 IN BMJ N99 PAG576. ACÓRDÃO STJ DE 1976/02/03 IN BMJ N254 PAG180. ACÓRDÃO STJ DE 1976/05/04 IN BMJ N257 PAG121. ACÓRDÃO STJ DE 1978/07/25 IN RLJ ANO112 PAG92. ACÓRDÃO STJ DE 1978/10/17 IN BMJ N280 PAG266. ACÓRDÃO STJ DE 1974/05/28 IN BMJ N237 PAG231. ACÓRDÃO STJ DE 1975/07/22 IN BMJ N249 PAG480. ACÓRDÃO RE DE 1976/11/11 IN CJ ANO1 T3 PAG279. ACÓRDÃO STJ PROC67081 DE 1978/11/30. ACÓRDÃO STJ DE 1978/01/25 IN
BMJ N273 PAG260.
Sumário : O disposto no artigo 493, n. 2 do Codigo Civil não tem aplicação em materia de acidentes de circulação terrestre.
Decisão Texto Integral: Acordam, em sessão plenaria, os juizes do Supremo Tribunal de Justiça:
I - A, ja melhor identificada nos autos, recorreu, para tribunal pleno, do acordão deste Supremo Tribunal, de 30 de Novembro de 1978, proferido, conforme fotocopia de folhas 4 a 12, na revista n. 67081, com fundamento em que, no dominio da mesma legislação, deu esse aresto solução oposta a que foi adoptada, relativamente a mesma questão fundamental de direito, pelo acordão tambem deste Supremo Tribunal, de 25 de Janeiro de 1978, publicado no Boletim do Ministerio da Justiça, n. 273, a paginas 260 e seguintes.
A Secção, pelo seu acordão de folhas 23-24, reconheceu a existencia da oposição invocada e mandou, por isso, prosseguir o recurso, que foi depois oportuna e doutamente alegado pela recorrente e em profundidade analisado pelo ilustre representante do Ministerio Publico no seu não menos douto parecer de folhas 31 a 46.
Não esta, porem, o tribunal pleno, vinculado aquela preliminar decisão da Secção, conforme o n. 3 do artigo
766 do Codigo de Processo Civil, razão por que, corridos como foram ja os vistos legais, se devera agora reexamina-la para em definitivo se decidir da verificação ou não dos requisitos ou pressupostos que condicionam o prosseguimento do recurso (artigo 763 do mesmo diploma).
II - E sem embargo das duvidas que lhe foram postas pelo digno magistrado do Ministerio Publico no tocante ao da oposição entre os referidos julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, pensa-se que tal requisito se verifica.
Com efeito, no caso do acordão recorrido, de 30 de Novembro de 1978, face ao embate de um automovel ligeiro de passageiros com uma arvore que marginava a estrada, de que resultaram graves lesões para um dos ocupantes nele gratuitamente transportado (a recorrente), não se responsabilizaram os demandados por se entender que o caso recaia sob a alçada do n. 2 do artigo 504 do Codigo Civil combinado com o n. 1 do seu artigo 487 em virtude de se não haver apurado a culpa do condutor e se ter por inaplicavel em materia de acidentes de transito o preceito do n. 2 do artigo 493 do mesmo Codigo, enquanto que no caso do acordão invocado em oposição, de 25 de Janeiro de 1978, face a uma colisão entre um auto-ligeiro de carga e um ciclomotor, de que resultou, por efeito das lesões sofridas, a morte do tripulante deste, se responsabilizaram os demandados de harmonia com o disposto no n. 2 do artigo 506 do mencionado diploma, em virtude de nenhum dos condutores ter demonstrado (o ciclomotorista falecido, atraves dos seus representantes nos autos) que empregou todas as providencias exigidas pelas circunstancias para prevenir o acidente, conforme o preceito do n. 2 do citado artigo 493.
E sendo estas as decisões em confronto, por bem claro se tem que em ambas se encarou e que nelas explicita e diversamente se decidiu a mesma questão fundamental de direito que consiste em saber se não tendo sido provada a culpa do ou dos condutores dos veiculos intervenientes no acidente, esta se presume nos termos do n. 2 do artigo 493, ou se antes tera lugar o regime de responsabilidade pelo risco fora dos casos em que, tratando-se de transporte gratuito seja de ter em conta o estabelecido no n. 2 do artigo 504, ambos do Codigo Civil.
E certo que, como objecta o douto magistrado do Ministerio Publico e desde logo se assinalou no acordão da Secção, se não identificam perfeitamente, em toda a sua extensão, as duas ja apontadas situações facticas.
Porem, em qualquer delas - colisão com a intervenção de um so veiculo e colisão entre dois veiculos - e o mesmo ou identico o suporte factual com o qual se ha-de ter como correcta ou desacertada a interpretação e aplicação da norma em causa.
Com efeito, são iguais ou identicos os factos nucleares ou necessarios a resolução do problema, e e isso o que importa, por serem os não coincidentes puramente acessorios e por isso despiciendos.
Pois em ambas as situações se teve como verificada a existencia de danos causados a outrem no exercicio da condução automovel sem que fosse possivel o apuramento da culpa do respectivo condutor ou condutores, o que nos parece bastante para que numa e noutra pudesse surgir, como surgiu, com soluções opostas, a mencionada questão.
Este Supremo ja, alias, se pronunciou no sentido de que o artigo 763 do Codigo de Processo Civil não exige, para legitimar o recurso para o Tribunal Pleno, que os casos sejam iguais, mas apenas que nas respectivas decisões se resolva de forma oposta a mesma questão de direito, isto e, que as bases juridicas das decisões sejam fundamentalmente as mesmas, como no caso acontece (ver, entre outros, o acordão de 15 de Julho de 1960, no Boletim, n. 99, a paginas 576).
Na realidade, e a ter em conta a referida base factual comum, decidiu-se no acordão recorrido que "no caso de acidente de viação o transportador apenas responde, nos termos gerais, pelos danos que culposamente causar a quem transporte gratuitamente (artigo 504, n. 2, do Codigo Civil), recaindo, assim, em principio, sobre o lesado - que não pode prevalecer-se da presunção estabelecida no n. 2 do artigo 493 do mesmo Codigo - o onus de provar a culpa do autor da lesão, conforme o artigo 487, n. 1, daquele Codigo", enquanto no acordão dito em oposição, ao contrario se entendeu "ser a presunção do artigo 493, n. 2, do Codigo Civil aplicavel a responsabilidade civil resultante de danos causados por veiculos em circulação", o que deu motivo a que os demandados no processo em recurso fossem absolvidos e o que por certo não aconteceria se nele se tivesse seguido a orientação que anteriormente se sustentou no outro.
Em resumo, e face a questão que o citado n. 2 do artigo
493 suscita, de ser ou não aplicavel a presunção de culpa que ai se estabelece a responsabilidade emergente de acidentes de viação, adoptou o acordão de 25 de Janeiro a primeira das alternativas, enquanto que pela segunda se pronunciou o de 30 de Novembro, pelo que assim, um e outro, com soluções opostas sobre a mesma questão fundamental de direito. E dai que o mencionado preceito tivesse sido interpretado e aplicado diversamente a factos identicos, o que evidencia oposição justificativa do recurso previsto no artigo 763 do Codigo de Processo Civil.
Pelo que se conclui pela existencia da invocada oposição e, em consequencia, pela admissibilidade do recurso, uma vez que e para alem desse pressuposto, nenhuma duvida oferece que ambos os acordãos foram proferidos no dominio da mesma legislação e que de presumir e, com transito, o que se invocou de data anterior ao recorrido.
Entraremos, por isso, na apreciação do objecto do recurso.
III - Esta ele, conforme o ja anotado, na questão de saber se a regra do n. 2 do artigo 493 do Codigo Civil e ou não aplicavel em materia de acidentes de viação, o que tem sido motivo de controversia tanto na doutrina como na jurisprudencia, praticamente desde a substituição do Codigo de Seabra pelo actual, onde tal disposição nos aparece com uma redacção muito semelhante a do artigo 2050 do Codigo Civil italiano, donde fora importada.
Em comentarios que fez a varios acordãos deste Supremo Tribunal, entendeu que sim o ilustre mestre de Coimbra,
Prof. Vaz Serra, como pode ver-se da Revista de Legislação e de Jurisprudencia, anos 102, paginas 318-319,
103, paginas 512, 104, pagina 232, e 105, pagina 220, baseando-se, porem, e apenas, na circunstancia de provirem de uma actividade perigosa e na existencia daquele preceito a estabelecer uma presunção de culpa so ilidivel pelo causador dos danos quando mostre que empregou todas as providencias exigidas pelas circunstancias com o fim de os prevenir, e tal entendimento, sem outras achegas, foi tambem o que prevaleceu, durante alguns anos, na jurisprudencia deste Supremo, como no-lo mostram, entre outros, os acordãos de 28 de Maio de 1974, de 22 de Julho de 1975, de 3 de Fevereiro de 1976 (este tirado em reunião de Secções) e de 4 de Maio de 1976, publicados no Boletim do Ministerio da Justiça, numeros 237, pagina 231,
249, pagina 480, 254, pagina 180, e 257, pagina 121, respectivamente, não obstante o mesmo prestigioso mestre, que foi quem mais o influenciou, ter defendido, aquando da publicação dos seus notabilissimos estudos de preparação do novo Codigo Civil, o regime, em materia de acidentes de transito, alias ja adoptado nos nossos anteriores Codigos da Estrada desde a sua versão de 1930, da responsabilidade civil objectiva em vez do da responsabilidade civel baseada na culpa presumida proposta para as coisas perigosas (ver Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades no citado Boletim, n. 85, pagina 375, e Fundamentos da Responsabilidade Civil (em especial responsabilidade por acidentes de viação terrestre e por intervenções ilicitas), no mesmo Boletim, n. 90, pagina 59).
E certo que nos seus mais recentes comentarios as decisões deste Supremo Tribunal sobre a questão em analise ja toma posição menos rigida que a inicial ao referir, como no que fez ao acordão de 25 de Julho de 1978, a paginas 92 do ano 112 da mencionada Revista da Legislação e de Jurisprudencia, que o n. 2 do artigo 493 e, mas so em principio, aplicavel a responsabilidade por acidentes de viação, uma vez que lhe não e aplicavel quando, para certos efeitos, a lei estabeleça um regime diverso, exigindo a prova da culpa do causador do dano, e onde um pouco mais adiante se escreve: "assim, a questão de saber se o artigo 493, n. 2, e aplicavel em materia de acidentes de viação não parece susceptivel de uma solução uniforme: a solução tem de ser obtida mediante interpretação das disposições legais que consideram relevante a culpa do causador do dano, podendo, portanto, variar consoante o sentido de cada uma dessas disposições. Dai que o artigo 493, n. 2, possa ser aplicavel nuns casos e não o ser noutros".
Mas, mesmo assim, continua a admitir, em principio, como diz, a aplicabilidade dessa norma em materia de acidentes de transito.
A tese contraria, da inaplicabilidade do mencionado preceito do n. 2 do artigo 493 a circulação automovel, sem negar a perigosidade desta, foi, entre outros, patrocinada pelo desembargador Vasconcelos de Carvalho na Revista dos Tribunais, ano 90, pagina 435, e pelo juiz Oliveira Matos no seu Codigo da Estrada, a paginas 327 (2 edição) e foi tambem a que por ultimo passou a ser acolhida num maior numero de arestos deste Supremo Tribunal, sobretudo a partir dos meados de 1978 e, em especial, apos a publicação do ja citado, de 25 de Julho desse ano, da responsabilidade das suas tres Secções, em sessão conjunta, nos termos do n. 3 do artigo 728 do Codigo de Processo Civil.
E foi por esta que ja então abertamente nos decidimos por não nos parecer razoavel admitir que o legislador tivesse querido dois regimes de excepção para a disciplina da actividade em causa: o dos artigos 503 a 508 do Codigo Civil, da responsabilidade objectiva, e ao mesmo tempo o da inversão do onus da prova da culpa constante do n. 2 do seu artigo 493, estabelecido para as actividades perigosas em geral, ate porque, pelo uso deste, se deixaria aquele sem aplicação pratica, com o consequente prejuizo de todas as incontestaveis vantagens que quis assegurar aos lesados.
Certo que a condução automovel constitui uma actividade muito perigosa, se bem que quanto a nos o perigo resulte mais da forma como e exercida do que de propria actividade em si.
Seja, porem, como for, considerou-se causa de frequentes e gravissimos acidentes e foi em função disso que a responsabilidade pelos danos deles decorrentes se submeteu entre nos, como em outros paises, a especial e excepcional disciplina da teoria objectiva ou do risco, que fora da materia de acidentes de trabalho, se não alargou ainda aos danos derivados de outras actividades perigosas, com relação as quais se teve como bastante, dentro do sistema regra da responsabilidade subjectiva, a dita norma especial do n. 2 do artigo 493, de inversão do onus da prova quanto a culpa, pelo que tambem por essa razão não sera a mesma de aplicar nos casos em que se trate de acidentes provocados por veiculos.
O que quer dizer que a responsabilidade civil por danos causados por qualquer veiculo de circulação terrestre se encontra sujeita, quer ao regime geral da responsabilidade por factos ilicitos prevista nos artigos 483, n. 1, e 487, n. 1, do Codigo Civil, quer ao regime excepcional de responsabilidade pelo risco a que se refere o seu artigo 503, conforme se prove ou não uma actuação dolosa ou simplesmente culposa do responsavel e somente a esses.
O da presunção de culpa do n. 2 do artigo 493 respeita aos casos de danos causados no exercicio de outras actividades perigosas que não tem para a sua disciplina, como a da viação acelerada, o regime bem mais gravoso da responsabilidade objectiva ou independente da culpa.
Pelo que ha, em tais condições, como se acentuou no acordão de 17 de Outubro de 1978 (Boletim, n. 280, pagina 266), regimes juridicos distintos para cada uma das referidas actividades perigosas: para as de caracter geral, o do artigo 493, n. 2, ou seja o da responsabilidade com base na culpa, mas com inversão do onus da prova; e para a decorrente da condução de veiculos terrestres, o dos artigos 483, n. 1, e 487, n. 1, quando se prove a culpa, ou o do artigo 503 quando ela se não prove e se não verifique qualquer dos casos de exclusão mencionados no artigo 505.
Argumenta-se, ex-adverso, que no Codigo Civil italiano - que o nosso de 1966 tão de perto acompanhou - vigorava para os acidentes produzidos pela circulação de veiculos sem carris, o principio da inversão do onus da prova da culpa. Porem, sem se atentar em que efectivamente assim sucedia (e sucede), não por força do disposto no seu artigo 2050, de que o artigo 493, n. 2, e quase uma copia, mas sim, conforme se frisou no acordão de 19 de Outubro de 1978 (Boletim, n. 280, pagina 272) por aplicação directa de um principio proprio expresso em outra das suas disposições (a do artigo 2054), o que bem se justifica pelo facto de não existir no direito italiano, para o referido tipo de acidentes, a responsabilidade com base no risco.
Donde, e com todo o acerto, se ter escrito no predito acordão de 19 de Outubro "não parecer razoavel admitir que o nosso legislador, depois de ter concedido aos acidentes na estrada a larga protecção que, em materia de ressarcimento dos danos, resulta da regulamentação da responsabilidade pelo risco, ainda fosse inverter o onus da prova no dominio da responsabilidade por culpa, e que tendo tratado a primeira em disposições especiais (artigos 503 a 508), tratasse a segunda em disposição generica (artigo 493, n. 2)".
Temos, por isso, que não tinha aplicação ao caso do acordão recorrido, como bem nele se julgou, a regra da inversão do onus da prova da culpa insita do preceito do n. 2 do artigo 493 com destino a responsabilidade pelos danos causados no exercicio das actividades perigosas em geral, desprovidas da protecção da responsabilidade objectiva, pelo que era a autora, recorrente, como lesada, que caberia, nos termos dos artigos 342, n. 1, e 504, n. 2, fazer a prova da culpa do lesante.
Com efeito, fala o ultimo desses preceitos "nos termos gerais" e com isso so podera querer aludir-se aos termos gerais da responsabilidade civil expressa nos artigos 483 e 487, como correntemente tem sido entendido. Não que unicamente fica excluida da formula legal a responsabilidade pelo risco, como ja se sustentou. De outro modo, ou seja a admitir-se, no caso, a mencionada presunção, o proprio preceito ficaria (o do artigo 504, n. 2), como com toda a visão se disse no acordão de 25 de Julho de 1978, "esvaziado do seu conteudo", o que seria um contra-senso.
Diz-se, em oposição a isto, que contra-senso seria exceptuar do regime da presunção de culpa estabelecida para os danos causados por actividades perigosas precisamente aqueles que, de tão perigosas, se submeteram a responsabilidade pelo risco, mas parece-nos evidente o sem valor da objecção porque exactamente pela razão apontada e que se instituiu para essas a responsabilidade objectiva, a qual, de efeitos mais severos, nem sequer teria, nas pretendidas condições de cumulação de sistemas, campo de aplicação. Isto por ser sabido que, com a prova da culpa, real ou presumida, do lesante, se afasta sempre a responsabilidade pelo risco.
Chocante, pelo menos - isso sim - seria, como se expos no acordão da Relação de Evora, de 11 de Novembro de 1976, publicado na Colectanea de Jurisprudencia, ano I, tomo 3, a paginas 729, que nos casos em que o juiz, em processo penal, tendo de absolver o reu da acusação - crime por falta de provas quanto a sua culpa, houvesse na mesma sentença de o condenar em indemnização, se provado o ilicito civil e por força do disposto no artigo 12 do Decreto-lei n. 605/75, de 3 de Novembro, a titulo de culpa presumida por aplicação do preceito do artigo 493, n. 2.
Não se aceita, portanto, por tudo o que vem de referir-se, a tese da recorrente, mas a oposta, que vem sendo defendida na mais recente jurisprudencia deste Supremo Tribunal a merecer o aplauso do tambem ilustre mestre de Coimbra, Prof. Antunes Varela, na nova edição que acaba de publicar-se (2) do volume I do seu Codigo Civil Anotado, a paginas 431.
Ai se diz, com efeito, citando-se esssa jurisprudencia (entre a qual a do acordão de 25 de Julho de 1978, tirado em reunião conjunta das Secções, e a do ora recorrido) e a proposito da sua orientação, o seguinte que valera a pena transcrever:
"Este entendimento e o que corresponde a interpretação correcta lei. Atendendo a especial perigosidade inerente a circulação de veiculos, o legislador admitiu neste dominio, para protecção dos lesados, a responsabilidade pelo risco (artigo 503). Mas não ha qualquer indicio de que, alem desta protecção - ja de si excepcional, pois não vale para o comum das actividades perigosas, onde se não foi alem do regime da culpa presumida - legislador tenha querido afastar tambem o principio segundo o qual e ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão (artigo 487), quando a acção de indemnização se baseie na culpa e não no risco. Pelo contrario, ha varios preceitos (artigos 504, n. 2, 506, n. 1, 507, ns. 1 e 2, e 508, ns. 1 e 2) que aludem a culpa do responsavel pelos danos, não podendo deixar de entender-se que se trata de culpa do responsavel pelos danos, não podendo deixar de entender-se que se trata de culpa provada e não de simples culpa presumida. A unica disposição em que se estabelece uma presunção de culpa e a do n. 3 do artigo 503, relativa a responsabilidade do comissario. Trata-se, porem, de um caso em que não existe responsabilidade pelo risco (pelo risco responde apenas o comitente) e por isso o legislador entendeu dever agravar a situação do causador do acidente
(o comissario) com uma presunção de culpa...".
IV - Assim, e face ao que exposto fica, negam provimento ao recurso, com custas pelo recorrente, e tiram o seguinte assento:
"O disposto no artigo 493, n. 2, do Codigo Civil não tem aplicação em materia de acidentes de circulação terrestre".
Manuel dos Santos Vitor (Relator) - Eduardo Botelho de Sousa - Costa Soares - Artur Moreira da Fonseca - Hernani de Lencastre - Alberto Alves Pinto - Antonio Furtado dos Santos - Octavio Dias Garcia - Henrique Augusto da Rocha Ferreira - Bruto da Costa - Jacinto Rodrigues Bastos - Daniel Ferreira - Antonio Correia de Melo Bandeira - Augusto de Azevedo Ferreira - Oliveira Carvalho (Votei o assento com a declaração de que pelo facto de na circulação automovel poderem resultar perigos e efeitos danosos isso não significa que os condutores dos veiculos exerçam uma actividade perigosa por sua propria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, o que afasta a aplicação a esses acidentes do preceituado no n. 2 do artigo 493 do Codigo Civil). _ Anibal Aquilino Ribeiro (concordo com a declaração de voto do colega Acacio de Carvalho, tendo a acrescentar que votei a conclusão do acordão). - Rui Corte-Real (com a declaração de que voto o assento por melhor esclarecido e atenta a interpretação que dei ao n. 3 do artigo 503, do Codigo Civil, no acordão deste Supremo, de 17 de Outubro de 1978, Boletim, n. 280, pagina 266, de que fui relator). - Ferreira da Costa (Vencido. Votei no sentido da inexistencia de oposição e no de se assentar em que o n. 2 do artigo 493 do Codigo Civil e aplicavel, em principio, a condução de veiculos de circulação terrestre. Apresento a declaração de voto com as razões do meu entendimento). - Avelino da Costa Ferreira Junior (Vencido, mas apenas quanto a decisão final, pelos mesmos fundamentos da declaração de voto do Excelentissimo Colega Doutor Ferreira da Costa). - Manuel Alves Peixoto (Vencido quanto a materia do assento fundamentalmente pelas razões do meu Excelentissimo Colega Ferreira da Costa). - João Moura (Vencido pelos motivos invocados pelo Conselheiro Ferreira da Costa). - Abel de Campos (Vencido, não so quanto a existencia de oposição relevante, de harmonia com a declaração de voto do Excelentissimo Conselheiro Ferreira da Costa, mais ainda quanto ao fundo, relativamente ao qual apresento declaração de voto).
Tem voto de conformidade do Excelentissimo Conselheiro Doutor Antonio Miguel Caeiro, que não assina por não estar presente. Manuel dos Santos Vitor.
Seguem as declarações de voto:
Eis as razões desse voto: a) No que toca a pretensa oposição:
Os casos versados no acordão recorrido e no de 25 de Janeiro de 1978, são diferentes no substrato factual e a questão fundamental de direito que neles se decidiu não e a mesma: naquele, a da interpretação e aplicação do n. 2 do artigo 504 do Codigo Civil e neste a do entendimento e ambito do n. 2 do seu artigo 493. b) No que respeita a doutrina do assento:
A presunção de culpa estabelecida neste n. 2 funda-se numa regra de experiencia segundo a qual os danos resultantes do exercicio de actividades perigosas são, normalmente, ocasionados por quem as pratica;
Pela sua razão de ser a presunção deve, em principio, alcançar todos os condutores de veiculos de circulação terrestre, visto exercitarem uma actividade consabidamente perigosa, quer sejam proprietarios deles, quer sejam simples comissarios ou utentes;
A circunstancia de a lei prever o regime da responsabilidade objectiva em alternativa com a culposa não justifica o afastamento daquela presunção;
Esta solução deixaria sem razão de ser plausivel a presunção de culpa formulada no n. 3 do artigo 503 do Codigo Civil quanto aos danos causados pela condução do comissario; efectivamente,
O preceito não se poderia restringir as relações internas entre o comitente e comissario quando o dano fosse causado por este sob pena de privilegiar o comitente relativamente a terceiros lesados, o que seria manifestamente injusto dado aquele ser responsavel pela escolha do comissario e, muitas vezes, pelas faltas praticadas na condução;
Tambem e inaceitavel, salvo o devido respeito, a opinião adiantada pelo Prof. Antunes Varela, de que a presunção formulada no citado n. 2 so funciona contra o comissario - e nenhum outro condutor - visto estar isento de responsabilidade objectiva: e que, por um lado, os direitos de terceiros encontram-se cobertos pela responsabilidade objectiva do comitente e, por outro seria tambem injusto que o comissario pagasse um preço tão desmedido por essa isenção, passando a assumir uma obrigação de indemnizar sem qualquer limite, em vez de uma responsabilidade menos grave, propria de quem responde por força do risco;
A injustiça seria tanto mais evidente quanto e certo que a isenção de responsabilidade objectiva do comissario não representa nenhum favor legal por ser consequencia do proprio fundamento dela;
Resulta do exposto que o n. 3 do citado artigo 503 so pode explicar-se, na parte em que formula a presunção de culpa do comissario, como afloramento da regra enunciada no n. 2 do citado artigo 493;
Esta regra e que tornou necessaria a formulação da excepção prevista no n. 2 do artigo 504 do Codigo Civil para o transportador a titulo gratuito, fazendo-o responder "apenas nos termos gerais, pelos danos que culposamente causar", ou seja, sem culpa presumida;
Esta excepção, qualquer que seja a sua justificação, exprime uma tendencia para favorecer o transportador a titulo gratuito, designadamente ao transportador por mera cortesia, para a qual propende o direito de alguns outros Estados.
Ferreira da Costa.
Declaração de voto:
Mantenho inteiramente o ponto de vista que largamente sustentei no voto de vencido expresso no acordão recorrido (Boletim do Ministerio da Justiça, n. 281, pagina 324) - notando que no acordão de 19 de Outubro de 1978, nesse Boletim, n. 280, pagina 272, apenas votei a conclusão, como se esclareceu no mesmo Boletim, n. 282, pagina 291.
Pela doutrina contraria, ficam indevidamente desprotegidos os interesses que pelo estabelecimento da responsabilidade civil se procuravam acautelar - e era a isso que primordialmente importava atender.
Na verdade, a responsabilidade objectiva e mera solução subsidiaria, de efeitos restritos, ja que não permite a indemnização integral dos danos sofridos pelos lesados, a partir de certo limite (artigo 508 do Codigo Civil).
Estes, por tal doutrina, embora vitimas duma actividade inegavelmente reconhecida como das mais perigosas (sendo ate por isso mesmo que se vai ao ponto de estabelecer a seu respeito a responsabilidade pelo risco) ficam, inexplicavel e injustamente, desprovidos da protecção que a lei consagra, em geral, relativamente a quaisquer actividades perigosas.
Protecção, como se disse, muito mais larga e eficaz, na sua concretização indemnizatoria, visto garantir sempre o ressarcimento de todos os danos sofridos.
Nem pode tambem deixar de se frisar a injusta incongruencia que dessa doutrina resulta para o caso de colisão de veiculos conduzidos um pelo seu proprietario e o outro por simples comissario: enquanto o primeiro so respondera integralmente pelos danos causados se se provar que agiu com culpa, este ultimo (afinal, em principio, o mais desfavorecido, por conduzir por conta de outrem) tera de responder pela totalidade dos danos, a não ser que ele mesmo prove não ter havido culpa da sua parte (artigo 503, n. 3, do Codigo Civil).
Abel de Campos.