Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | SILVA GONÇALVES | ||
Descritores: | APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO UNIÃO DE FACTO RETROACTIVIDADE DA LEI | ||
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Data do Acordão: | 10/17/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS - DIREITOS REAIS - DIREITO REAL DE HABITAÇÃO PERIÓDICA - DIREITO DA FAMÍLIA - MEDIDAS DE PROTECÇÃO DAS UNIÕES DE FACTO. | ||
Doutrina: | - A. Varela, Obrigações, I, pp. 514 /516. - António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, p. 837. - Manuel A. Domingues de Andrade, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, p.56. - Neves Pereira, Introdução ao Direito e às Obrigações, pp. 136, 137. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, N.º2, 334.º. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 13º. LEI N.º 23/10, DE 30-8, COM A REDACÇÃO DA LEI N.º 7/2001, DE 11-5: - ARTIGOS 2.º-A, 4.º, N.ºS 1 E 2, 5.º, N.ºS 5 E 6, 6.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPEMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA DE 15.3.2012. | ||
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Sumário : | 1. A lei só se aplica aos factos que depois da sua entrada em vigor se operaram; e, mesmo que normativamente permitida, a retroactividade está sujeita aos limites que o n.º 2 do art.º 12.º do C. Civil lhe impõe para a sua real concretização. 2. A lei só não é injustamente retroactiva se respeitar os direitos adquiridos, podendo apenas não respeitar as expectativas. 3. Porque a Lei n.º 23/10, de 30/8, veio subtrair ao autor o conteúdo do direito real de habitação que a Lei n.º 7/2001, de 11.5, lhe havia cedido na sua primitiva formulação, aquele novo diploma legislativo não é susceptível de se aplicar aos efeitos que a lei anterior havia endereçado ao companheiro da BB e em consequência do seu passamento. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
O autor AA intentou a presente ação, com processo ordinário, contra 1. “Herança aberta por Óbito de BB”, representada pelos seus herdeiros CC, DD e EE, FF e GG; 2. º EE.
Alegou, em síntese: • BB nasceu em … de Outubro de 19…, tendo vindo a falecer no dia … de Abril de 20…; • Nunca contraiu matrimónio, nem deixou descendentes, nem ascendentes, deixando como herdeiros os ora identificados. • No ano de 1995, o Autor e BB decidiram passar a viver juntos em união de facto, na residência desta, na ..., nº …, …º andar, em ..., e desde essa data, 1995, até ao presente, essa foi a casa de morada de família do ora Autor e de BB e é o local onde ainda hoje o Autor habita. • O Autor aufere uma pensão de reforma de € 115 mensais, auferindo ainda de rendimentos mensais provindos do arrendamento de quartos, uma média mensal de € 300, considerando o ano lectivo. • Embora o Autor tenha duas irmãs, as mesmas não têm capacidade de contribuir para o seu sustento. • A herança é constituída por quatro prédios e por um extenso e valioso recheio do referido segundo andar. • A pensão de alimentos a atribuir ao Autor não poderá ser inferior a € 400 mensais de forma a garantir rendimentos muito próximos da remuneração mínima nacional.
Concluiu, pedindo que seja proferida sentença: I. Se reconheça a existência da união de facto entre o ora A. e a falecida BB; II. Se reconheça e ser lhe atribua o direito real de habitação no segundo andar sito no nº 7 da ..., freguesia de ..., em ... e em conformidade condene a Ré, na pessoa dos herdeiros EE, CC e DD, a esse mesmo reconhecimento; III. Se reconheça e se lhe atribua e assim se condene a Ré ao pagamento de uma pensão de alimentos.
Citada a Ré, foi apresentada contestação alegando, em síntese: • Já não existe Herança Jacente, uma vez que a mesma já foi aceite pelos herdeiros testamentários, pelo que, não tem a demandada herança personalidade judiciária. • Só os que são demandados como Réus podem ser condenados e não os que são citados pura e simplesmente como representantes da Herança, como acontece no caso sub judice, sendo, aliás, certo que, no caso dos 4º e 5º citados, se trata apenas de legatários, que, por isso, não representam a Herança Ré. • Pelo menos desde os inícios dos anos 90 do século passado e até Fevereiro de 2000, BB manteve um relacionamento amoroso com o Sr. II, com quem se fazia acompanhar publicamente. • Nunca o Autor e a falecida BB agiram ou viveram como se de um casal se tratasse, nem como tal alguma vez foram reputados pelos familiares, amigos, vizinhos ou outras pessoas em geral. • O Autor é proprietário de, pelo menos, dois andares, na cidade de ..., sempre tendo tido a sua residência na R. …, nº …, …º, na cidade de ..., onde, ao que se sabe, tinha também o seu domicilio fiscal e eleitoral bem como aí recebia toda a sua correspondia, já que jamais a recebeu no andar da ... pertencente à falecida BB. • O Autor nunca teve durante a vida da falecida BB, incluindo no período do seu internamento nos HUC, acesso a quaisquer outros cómodos da casa para além de um quarto numa situação similar à de um hóspede. • O Autor tem, pelo menos, 6 quartos arrendados, nas 2 casas que possui, donde retira, no mínimo, cerca de € 900 mensais. • Para além disso, tem uma loja arrendada para salão de cabeleireiro donde retira mais de € 160. • O Autor deturpa grosseiramente a verdade dos factos, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não ignora. Conclui a pedir que sejam julgadas procedentes e provadas as excepções deduzidas, absolvendo-se a Ré da instância, com as legais consequências. Caso assim não se entenda, deve a acção ser julgada improcedente e não provada, dela se absolvendo a Ré, com as legais consequências. Pede ainda a condenação do Autor como litigante de má fé, em multa e indemnização, esta a favor da Ré, em montante não inferior a € 5.000,00.
Replicando, veio o Autor manter o já alegado na petição inicial, dizendo quanto às excepções invocadas e em síntese: • É manifesto que os citados vêm aos autos, assim se reconhecem, como representantes da herança. Assim, dúvidas não restam que se terá de ter por assente que a citação requerida nos presentes autos é para intervirem como representantes da herança. • Ao se oporem como o fazem, contestam de forma que manifestamente sabem ser destituído de todo e qualquer fundamento, alterando a verdade dos factos de forma grosseira e grotesca, usando de forma manifestamente reprovável o articulado da contestação, o que justifica que sejam condenados a pagar ao Autor uma indemnização de valor não inferior a € 5.000, tudo nos termos do artigo 456º do C. P. Civil. Concluiu, pedindo a improcedência das excepções alegadas.
Treplicando, veio a Ré alegar que o Autor peticionou em sede de réplica a condenação da Ré no pagamento da quantia de 5.000,00 Euros a título de danos não patrimoniais. Ainda que tal pedido esteja formulado no seguimento do pedido de litigância de má fé, caso não se entenda que o mesmo se enquadra neste instituto, tal configura uma modificação do pedido e da causa de pedir, fundamentando a Tréplica. Mais alega que a Ré, com a sua conduta, não praticou quaisquer actos que possam ter sido causa determinante dos danos que o Autor alega ter sofrido, não podendo, por isso, ser condenado em qualquer indemnização, o que se requer seja declarado, com as legais consequências. Concluiu, pedindo que a modificação do pedido e da causa de pedir seja julgado improcedente por não provado, com as legais consequências e o pedido de condenação como litigante de má fé ser julgado improcedente.
Por despacho judicial datado de 14.06.2011 o Autor foi convidado a apresentar nova p.i., através da qual apareça devidamente rectificada a identificação da Ré nos autos e de quem a representa, só devendo ser deduzida a acção contra pessoal e individualmente algum(ns) do(s) herdeiros(s), na hipótese de tal efectivamente se justificar, sendo certo que a verificar-se a pretensão de dedução autónoma do dito pedido de indemnização por danos morais, deve ser devidamente explicitada e concretizada a correspondente factualidade constitutiva da causa de pedir, harmonizando-a com esse pedido, pedido que deverá, então, ser formulado expressamente como tal no petitório final.
Respondendo ao convite que lhe foi dirigido, veio o autor AA apresentar nova petição, deduzindo a acção contra “Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de BB”, representada por todos os herdeiros, que identifica como CC, DD, EE, FF e GG, e ainda contra, individualmente considerada, EE, mantendo, no essencial, tudo o alegado na petição inicial e completado na réplica, conclui peticionando: I. Seja reconhecido a existência da união de facto, entre o ora A. e a falecida BB, e assim seja a Ré, a Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de BB, representada pelos cinco herdeiros identificados, condenada a reconhecer a existência de tal união de facto; II. Seja reconhecido, e atribua ao ora A., o direito real de habitação no segundo andar sito no nº … da ..., freguesia de ..., em ..., e, em conformidade, seja a Ré, a Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de BB, representada pelos cinco herdeiros identificados, condenada a reconhecer esse mesmo direito sendo o mesmo a seu cargo; III. Seja reconhecido, e atribua ao A., e assim seja a Ré, a Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de BB, representada pelos cinco herdeiros identificados, condenada ao pagamento de uma pensão de alimentos a cargo da herança, ou caso a mesma seja insuficiente, a cargo do próprio património dos herdeiros na proporção da quota que lhes couber. IV. Seja condenada a Ré, assim representada pelos cinco herdeiros identificados, por se considerar provado, como litigante de má-fé, e, em consequência, deve ser condenada ao pagamento de multa, a arbitrar pelo tribunal, e de indemnização, a conceder ao A. em valor não inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros). V. Deve a presente acção, quanto à causa de pedir atinente à herdeira EE, individualmente considerada, ser julgada totalmente procedente por provada e, em consequência, deverá a mesma ser condenada ao pagamento ao A., a título de indemnização por danos morais, da quantia de 5.000,00 (cinco mil euros).
Contestando, veio a Ré Herança manter tudo o por si alegado nos articulados anteriores, concluindo nos mesmos termos em que já o havia feito. A Ré EE contestou, pedindo a condenação do Autor em multa e condigna indemnização a favor desta em montante não inferior a € 2.500,00, a título de litigância de má fé.
No despacho saneador foi proferida decisão que determinou que a acção apenas prosseguiria contra a Herança Ré representada apenas pelos herdeiros CC, DD e EE e já não pelos legatários FF e GG.
A final veio a ser proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos: I. Reconheceu a existência da união de facto entre o ora A. AA e a falecida BB. II. Absolveu a Ré “Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de BB”, dos demais pedidos formulados contra si pelo A. III. Condenou EE no pagamento ao A. Da quantia de 200,00 Euros a título de danos não patrimoniais sofridos, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a presente decisão e até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado. IV. Julgou totalmente improcedentes todos os pedidos de litigância de má fé, absolvendo A. e RR. em conformidade. V. Custas pelo A. e R. EE na proporção do respectivo decaimento, fixando em 99% o decaimento do A. e 1% o decaimento da R. EE (art.º 446º do CPC) VI. Custas pelos incidentes de litigância de má fé formulados a cargo de A. e RR. respetivamente, fixando a taxa de justiça devida por cada um dos pedidos de litigância, em 1 UC (art.º 7º, n.º 4 e tabela II em anexo)
Inconformado, desta sentença recorreu o autor AA para a Relação de ... que, por acórdão de 19.02.2013 (cfr. fls.649 a 685), julgando parcialmente procedente a apelação, alterou o constante do ponto I da decisão recorrida, passando também a reconhecer ao Autor o direito real de habitação sobre o segundo andar sito no n.º … da ..., freguesia de ..., em ..., mantendo-se tudo o demais decidido. 1. Ao ter decidido "reconhecer ao Autor o direito real de habitação sobre o segundo andar sito no n.º … da ..., freguesia da ..., em ... (...)" revogando, nessa parte, a sentença de 1.ª instância, violou o acórdão recorrido a seguinte jurisprudência uniformizada pelo Acórdão Uniformizador deste STJ de 15.03.2012: "A alteração que a Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, introduziu na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, sobre o regime de prestações sociais em caso de óbito de um dos elementos da união de facto beneficiário de sistema de Segurança Social, é aplicável também às situações em que o óbito do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor do novo regime". 2. Na verdade, ao contrário do que se sustenta no acórdão recorrido, no que respeita, especificamente, à atribuição do direito real de habitação ao membro da dissolvida união de facto, aplica-se a Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio, na redação introduzida pela Lei n.º 23/2010 de 30 de Agosto. 3. Aliás, ao assim se não entender, estar-se-ia a violar o princípio da igualdade ínsito no art. 13.º da CRP, uma vez que situações idênticas não podem deixar de ter soluções idênticas, como bem se sustenta no supra referido Ac. Uniformizados do STJ de 15.03.2012. 4. E a situação versada no Ac. Uniformizador e a versada no Ac. Recorrido são idênticas, exigindo tratamento idêntico, porquanto, ao invés do que se sustenta no acórdão recorrido, o facto gerador do direito e o momento da sua constituição é o mesmo nas duas situações, ou seja, o do óbito de um dos membros da união e não a decisão judicial, ou administrativa que o reconhece. 5. Como resulta do próprio acórdão uniformizador quando nele se escreve: "circunscritos, pois, ao disposto no art. 12.° do Código Civil em matéria de aplicação da lei no tempo, é legítimo asseverar que, sendo o óbito do beneficiário pressuposto essencial (sublinhado nosso) para a invocação, por parte do elemento sobrevivo da união de facto, do direito ao recebimento das prestações sociais, uma vez adquirido tal estatuto devem aplicar-se-lhe as novas regras definidoras de do seu conteúdo (...)". 6. Sendo que, no citado enquadramento legal, o procedimento judicial então previsto perante os tribunais cíveis, ou administrativo (como agora se prevê) constitui um mero expediente de comprovação das condições, não dando ou tirando o direito. 7. Aplicando-se, ao caso dos autos, a Lei n.º 7/2001, na redação introduzida pela Lei n.º 23/2010 e, em especial, a norma do n.º 6 do seu art. 5.º, face à matéria de facto definitivamente fixada pelo acórdão recorrido, nomeadamente nos pontos XX, XXI, XX e XXXIII, é inequívoco que não pode ser reconhecido ao autor o direito à atribuição do direito real de habitação sobre o segundo andar do prédio sito no n.º … da ..., freguesia da ..., em ...; 8. Desde logo porque, o autor não tem uma, mas duas casas (uma na rua .. . n.º …, ….º, em ... e outra na rua de ...), no concelho de .... Sem prescindir: 9. Mas mesmo que se entenda que não é aplicável ao caso dos autos a jurisprudência uniformizadora citada - o que frontalmente se rejeita e só por necessidade de raciocínio se refere - sempre se dirá que a pretensão do autor/ recorrido, nas circunstâncias concretas, nunca poderia ser acolhida por constituir manifesto abuso de direito, nos termos do art. 334.º do C. Civil; 10. Uma vez que o seu exercício excede, manifestamente, os limites impostos pelo fim social que presidia à atribuição daquele direito, pela Lei n.º 7/2001, na sua primitiva redação. 11. Ao decidir, como decidiu, violou o acórdão recorrido a jurisprudência uniformizadora do Ac. STJ de 15.03.2012, o art. 5°, n.º 6 da Lei n.º 7/2001, na redação introduzida pela Lei n.º 23/2010 de 30 de agosto e o art. 334.º do C. Civil; 12. Devendo, por isso, ser revogado, na parte em que reconheceu o direito real de habitação ao autor/ recorrido, mantendo-se a sentença de 1.ª instância, com as legais consequências.
O recorrido autor não contra-alegou.
Corridos os vistos legais cumpre decidir.
As instâncias consideraram provados os factos seguintes: ********************************** São estas as questões postas no recurso: 1. Saber se o acórdão da Relação violou a jurisprudência uniformizada fixada no Acórdão Uniformizador deste STJ de 15.03.2012: "a alteração que a Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, introduziu na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, sobre o regime de prestações sociais em caso de óbito de um dos elementos da união de facto beneficiário de sistema de Segurança Social, é aplicável também às situações em que o óbito do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor do novo regime". 2. Averiguar se a pretensão do autor/recorrido constitui manifesto abuso de direito, nos termos do art. 334.º do C. Civil.
********************************** I. A lei inicia a sua vivência com a sua publicação no Diário da República e a sua vigência principia na data por ela determinada, ou então, posteriormente à “vacatio legis” legalmente determinada no caso de o começo da sua vigência dela não constar; e a extinção da sua força vinculativa ocorre quando a sua caducidade ou revogação surgirem.
O quotidiano frenesim de que está eivada a nossa actual ambiência social faz com que a legislação estatal, que sempre tem que a reger, se torne cada vez mais impregnada de passageiras características e se tenha de emendar, com exigida autoridade, o regime legal atribuído a cada uma das instituições jurídicas que integram o nosso pródigo ordenamento.
A conjunção política, económica e social, que é apanágio de determinado calendarizado momento, preconiza a mudança, por via legislativa, do modo de se apreender essa encontrada diversificada realidade para, de modo cada vez mais expedito, se recomeçar a nova compostura detetada. Para pôr termo às adversidades entretanto achadas, a lei realiza a função que lhe é particularmente peculiar, ou seja, a de proporcionar aos seus destinatários a retidão que eles dela conjeturam na procura destes dois ideais jurídicos: a certeza e a retitude do direito - “o ideal seria que o direito fosse sumamente certo sem deixar de ser sumamente recto, ideal este inacessível, tanto para a política como para a ciência jurídica…” (Prof. Manuel A. Domingues de Andrade; Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis; pág.56).
Este denunciado fenómeno vivencial, dimanado da imutável dinâmica da sociedade, faz desencadear uma sucessão de leis no tempo, virtualmente aplicáveis a situações que se manifestaram em determinado espaço temporal, concretamente planificadas; e faz surgir aquilo que se designa pela contingência jurídica de um conflito de leis, ressurgido desta susceptibilidade de termos duas leis a regular a mesma factualidade.
II. O regime legal destinado à “aplicação das leis no tempo” está definido no art.º 12.º do C. Civil[1] e a determinar que a lei se não aplica retroativamente, isto é, que apenas se aplica a factos manifestados em momento anterior à sua vigência; sem descurar, todavia, a possibilidade de ela se adoptar retroativamente, estabelece, igualmente, os limites a ter em conta quanto à subsistência dessa retroatividade.
Abordando esta temática consignaram os tratadistas os vários graus em que a retroatividade deve ser entendida: 1. Retroatividade de 3.º grau - aplica-se a lei nova anulando as consequências últimas e definitivas da lei antiga; todas as situações definitivamente decididas segundo a lei antiga deixam de o ser; 2. Retroatividade de 2.º grau - respeita os casos judicialmente decididos, mas não aqueles que não tenham tal estatuto; os factos ou situações e respetivos efeitos passados, mas que não tenham sido objeto de sentença judicial transitada em julgado, são renovados e regulados segundo a lei posterior ao seu período de vida; e 3. Retroatividade de 1.º grau (a retroatividade normal ou “justa”) - aquela em que, quando a lei nova regula factos ou situações nascidas antes do seu início de vigência, se entende que já não ficam sujeitos à nova lei os efeitos produzidos (por aqueles factos ou situações) antes da entrada em vigor da nova lei.
Compreendidas no mesmo anseio de procurar limitar a retroatividade, a este propósito se vem teorizando, também, diversificadas teses: - A teoria da revisão das “causae finita”, que correspondente à retroatividade de 3.º grau, está hoje comummente hostilizada. - A teoria do “direitos adquiridos” (teoria clássica) - a lei não é injustamente retroativa se respeita os direitos adquiridos, podendo não respeitar as expectativas (v.g. de um contratante resolver o negócio, de um cônjuge requerer divórcio); e - A teoria das “situações jurídicas objetivas e subjetivas” - a lei nova altera as situações jurídicas objetivas porque também com a lei nasceram, mas já não as situações jurídicas subjetivas porque resultantes da autonomia privada, caso contrário será retroativa injustamente; e - A teoria do “facto passado” - formulada por Enneccerus-Nipperdey assim sintetizada: - é injustamente retroactiva a lei que se aplica a factos passados e seus efeitos de antes do seu início de vigência; não há injusta retroactividade na aplicação da lei nova no que respeita às situações jurídicas em curso no seu início de vigência. É este último entendimento o que está basicamente consagrada no difícil art.º 12.º do C. Civil vigente em Portugal, como peremtoriamente afirma o docente M.S.D. Neves Pereira na sua obra “Introdução ao Direito e às Obrigações”, pág. 137, donde foi retirada toda a substancialidade que acabamos de descrever agora. Acentuamos, então, que, nos termos deste especificado apontamento, a lei só se aplica aos factos que depois da sua entrada em vigor se operarem e que a possibilidade da sua retroatividade, mesmo que normativamente permitida, está sujeita aos limites que o n.º 2 do art.º 12.º do C. Civil lhe impõe para a sua real concretização.
Considerando os princípios atrás anunciados e no sentido de que, como referenciamos e agora repetimos, a lei se não aplica retroativamente, isto é, que apenas se aplica aos factos ocorridos anteriormente à sua vigência (art.º 12.º do C. Civil); e que a lei só não é injustamente retroativa se respeitar os direitos adquiridos, podendo apenas não respeitar as expectativas [4] , porque a Lei n.º 23/10, de 30/8, veio subtrair ao autor o conteúdo do direito real de habitação que a Lei n.º 7/2001, de 11.5, na sua primitiva formulação, lhe havia cedido, este novo diploma legislativo não é suscetível de se aplicar aos efeitos que a lei anterior havia endereçado ao companheiro da BB e em consequência do seu passamento.
IV. Queixam-se os recorrentes de que são idênticas, esta de que ora tratamos e a resolução acolhida no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido por este S.T.J. em 15.3.2012: o facto gerador do direito e o momento da sua constituição é o mesmo nas duas situações, ou seja, o do óbito de um dos membros da união. No entender dos recorrentes o acórdão recorrido violou até o princípio da igualdade prescrito no art. 13.º da C.R.Portuguesa. Através das alterações que a Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, fez ao artigo 6.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, ficou o favorecido com estes particularizados benefícios e dispensado de fazer prova dos requisitos anteriormente exigidos para os alcançar. Esta Lei veio reconstituir o art.º 6.º da Lei n.º 7/2001 (Regime de acesso às prestações por morte), exactamente assim: 1 - O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, independentemente da necessidade de alimentos. 2 - A entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação. 3 - Exceptuam-se do previsto no n.º 2 as situações em que a união de facto tenha durado pelo menos dois anos após o decurso do prazo estipulado no n.º 2 do artigo 1.º Flui deste excerto normativo que deixou de se tornar necessária a instauração de acção judicial para que o conviva veja reconhecido o direito à pensão de sobrevivência, que pode fazer a prova recorrendo aos meios facultados pelo artigo 2.º-A, aditado à Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio pela Lei n.º 23/2010 de 30 de Agosto, ou seja, por qualquer meio legalmente admissível; e fazendo incumbir à entidade responsável pelo pagamento o ónus de instauração de acção judicial quando existam dúvidas fundadas sobre a existência da união de facto. Do que acabamos de expor resulta que a morte de um elemento da união de facto permite ao outro seu convivente o direito de requerer que lhe seja reconhecida a pensão de sobrevivência integrada no sistema de Segurança Social; Diversamente, o óbito do membro da união de facto, proprietário da casa de morada de família, determina a imediata e absoluta constituição do direito real de habitação na esfera jurídica do membro da união sobrevivo. São situações diferentes e a determinar consequências jurídicas também divergentes, e, por isso, igualmente ajuizadas diversificadamente.
O princípio da igualdade estatuído no art.º 13.º da nossa Lei Fundamental, ao consignar que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”, não impõe que a lei seja aplicada de modo igual, generalizadamente, a todo o cidadão; o que esta máxima exige é que a situações iguais se aplique tratamento semelhante, deste modo possibilitando que relativamente a casos diferentes sejam utilizadas regras diversas, desde que diferenciadamente justificadas. Este princípio, entendido como um modo de controlar o legislador ordinário, não impede que este estabeleça uma pontual diversificação de procedimento, se este se mostrar ponderadamente conforme à razão, objectivamente fundado. É esta a “opinio communis” advogada consensualmente pela hodierna doutrina que se pronuncia no sentido de que a igualdade constitucional engloba a proibição de arbítrio, proibição de discriminação e privilégio, obrigação de diferenciação - tratamento igual de situações iguais ou semelhantes e tratamento desigual para situações dissemelhantes.
V. A figura do abuso do direito está na lei para tornar mais ético o nosso ordenamento jurídico, com vista a impedir a conjugação de forças antijurídicas que, por vezes, a imposição fria e rígida da lei possa levar a cabo, em confronto com o ideal de justiça que sempre deve andar indissoluvelmente ligado à aplicação do direito e dentro da máxima "perde o direito quem dele abusa" e em oposição ao velho adágio romano "qui suo jure utitur neminem laedit".
Não está de modo algum indiciado que o autor tenha cometido alguma das maldades que atrás acabámos de enunciar.
Concluindo: 1. A lei só se aplica aos factos que depois da sua entrada em vigor se operaram; e, mesmo que normativamente permitida, a retroactividade está sujeita aos limites que o n.º 2 do art.º 12.º do C. Civil lhe impõe para a sua real concretização. 2. A lei só não é injustamente retroactiva se respeitar os direitos adquiridos, podendo apenas não respeitar as expectativas. 3. Porque a Lei n.º 23/10, de 30/8, veio subtrair ao autor o conteúdo do direito real de habitação que a Lei n.º 7/2001, de 11.5, lhe havia cedido na sua primitiva formulação, aquele novo diploma legislativo não é suscetível de se aplicar aos efeitos que a lei anterior havia endereçado ao companheiro da BB e em consequência do seu passamento. 4. São diferentes, esta de que ora tratamos e a resolução acolhida no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido por este S.T.J. Em 15.3.2012: do que trata o Acórdão proferido por este S.T.J. em 15.3.2012 é da questão de saber se a morte de um elemento da união de facto permite ao outro seu componente o direito requerer que lhe seja reconhecida a pensão de sobrevivência integrada no sistema de Segurança Social; diversamente, no nosso caso o que estamos a apreciar é se o óbito do membro da união de facto, proprietário da casa de morada de família, determina a imediata e incondicional constituição do direito real de habitação na esfera jurídica do membro da união sobrevivo.
Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.
Silva Gonçalves (Relator) Pires da Rosa Prazeres Beleza _____________________________________ [1] Artigo 12.º (Aplicação das leis no tempo. Princípio geral). 1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor. [2] Art.º 4º, n.1, da Lei 7/2001, de 11.5: - Em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada comum, o membro sobrevivo tem direito real de habitação, pelo prazo de cinco anos, sobre a mesma, e, no mesmo prazo, direito de preferência na sua venda. [3] Art.º 5.º da Lei n.º 7/2001, de 11.5. 6. O direito real de habitação previsto no n.º 1 não é conferido ao membro sobrevivo se este tiver casa própria na área do respectivo concelho da casa de morada da família; no caso das áreas dos concelhos de Lisboa ou do Porto incluem-se os concelhos limítrofes. |